Resumo: Este trabalho visa analisar a origem, a subsequente história e o panorama contemporâneo do preconceito e violência sofridos pelos membros da comunidade LGBTI. Além de abordar as soluções já oferecidas para a situação, como a composição de leis e medidas socioeducativas, esta monografia busca simultaneamente compreender a inação dos membros do nosso Congresso Nacional diante da crescente eclosão de crimes com conotações intolerantes e a real validade da implementação de legislações simbólicas e políticas públicas como mecanismos eficazes de repressão e prevenção.[1]
Palavras-chave: Homofobia; Criminalização; Direito Penal Simbólico; Repressão; Prevenção; Sexismo; Heteronormatividade.
Abstract: This paper aims to analyze the origin, subsequent history as well as the contemporary landscape of the prejudice and violence inflicted upon the members of the LGBTI community. Beyond approaching the already proposed solutions for the current situation, such as law compositions and social-educative measures, this monograph aims to simultaneously comprehend the inaction of the National Congress’ members when facing the ever-growing hate-crime spree and the actual worth of implementing symbolic legislations and public policies as effective repression and prevention mechanisms.
Keywords: Homophobia; Prejudice; Criminalization; Symbolic Criminal Law; Repression; Prevention; Sexism; Heteronormativity.
Sumário: Introdução. 1. Homofobia: Orientação sexual e suas anifestações. 1.1 Definição. 1.2 Homofobia geral e homofobia específica. 1.3 Heterossexismo. 1.4 Intolerância homofóbica. 1.5 Evolução histórica. 1.6 Homossexualidade e o catolicismo contemporâneo. 1.7 Homofobia clínica. 1.8 Perspectivas atuais. 2 Da criminalização a não criminalização. 2.1 Fundamentos constitucionais. 2.2 Proteção penal dos bens jurídicos. 2.3 Princípios penais e limites de bens. 2.4 Direito Penal Simbólico. 2.5 Contrastes da criminalização. 3 Progresso e violência: Manifestações no Brasil contra a homofobia. 3.1 Tentativas de engajamento estatal. 3.2 Programa “Escola sem homofobia”. 3.3 Pareceres estagnados. Considerações finais. Referências.
Introdução
A homofobia[2] é um fenômeno datado desde a expansão da cultura judaico-cristã nas sociedades ocidentais, que veio a coibir todo o tipo de relacionamento entre os mesmos sexos, classificando-os como pervertidos e pecaminosos. Desde então a sociedade tem se estruturado com o homem como seu parâmetro e a heterossexualidade como a norma, restando às mulheres uma posição de inferioridade e aos homossexuais o ostracismo.
Ao decorrer dos anos se desenvolveu a noção de que o homossexual sofria de uma enfermidade que poderia ser tratada através da medicina, surgindo, assim, “curas” que envolviam desde terapias de aversão até eletrochoques. Foi somente com o advento dos Direitos Humanos após a 2ª Guerra Mundial, que a solidariedade e a compreensão começaram a permear a discussão.
Todavia, a batalha pela aceitação continua viva e sendo lutada diariamente. A homofobia encontra-se enraizada muito profundamente na consciência social, fazendo com que qualquer ação que tenha como intuito desafiar a ordem pré-estabelecida seja de difícil realização, sendo ainda mais árduo o convencimento daqueles com poderes para criar mudanças significativas na atual situação. Projetos de lei que tem por objetivo punir atos de violência motivados por orientação sexual são propostos constantemente dentro de Brasília, mas até então nenhuma medida real foi tomada.
Porém, caberia ao Direito Penal realmente intervir? O próprio conceito do aparato coercitivo estatal se baseia na intervenção mínima, a fim de evitar um Estado maximizado. Já existindo tipos penais punindo crimes de injúria, lesão corporal e homicídio, qual seria a validade de uma legislação especificamente protegendo aqueles que são vítimas de crimes homofóbicos?
O presente trabalho científico tem como tema a ausência de legislação vigente no Brasil oferecendo segurança àqueles discriminados por suas orientações sexuais e a possível ofensa causada aos princípios constitucionais básicos de defesa dos direitos humanos e cidadania dentro do país que tal posicionamento acarreta, ao mesmo tempo considerando as reais consequências de uma legislação criada em atendimento ao clamor público.
Para tentar descobrir quais seriam as razões ideológicas e práticas justificando a inação dos parlamentares em relação a sua recusa em criar leis específicas para a proteção da população LGBTI[3], assim como a validade de tais motivos, dado o conceito do Direito Penal Simbólico, este trabalho buscará a raiz da aversão encontrada em parcelas da comunidade em respeito não só aos homossexuais, mas às relações homoafetivas e seu próprio conceito.
Dentro do primeiro capítulo, a fim de atingir o maior entendimento sobre tal hostilidade, o foco será igualmente no nascimento do termo que dá titulo ao trabalho e no desenvolvimento da cultura heteronormativa que se esquiva da diversidade existente à sua volta, desde as origens da homofobia dentro da religião judaico-cristã, passando pelas tentativas de patologização, tratamentos médicos e psiquiátricos da homossexualidade até o crescimento dos movimentos LGBTI e o princípio da luta pelos seus direitos.
A seguir, no segundo capítulo, são analisados os fundamentos jurídicos sobre os quais se baseiam todas as demandas por uma criminalização. Para isso, se faz necessária a exploração dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal brasileira e o papel do Direito penal em sua defesa, através da coerção dos danos iminentes ou a reparação dos já perpetrados. Ademais, é proposta uma análise da real efetividade do Direito Penal Simbólico, assim como as críticas impostas pelos estudos criminológicos contra o mesmo e contra o próprio conceito de criminalização da homofobia.
Por fim no terceiro capítulo, através da análise de duas pesquisas – a primeira contabilizando o número anual de assassinatos de LGBTI e a segunda analisando o nível de preconceito homofóbico dentro da população brasileira –, abordam-se os impedimentos culturais que acarretam as manifestações de caráter hostil e intolerante por parte da população em geral; impedimentos estes que, consequentemente, influenciam as decisões governamentais que tem bloqueado as frequentes tentativas de legitimação e proteção da cidadania LGBTI.
Para a concretização da pesquisa, o método de abordagem utilizado será o crítico-dialético, a partir do qual se compreende que as contradições se transcendem dando origem a novas contradições que passam a requerer solução, também por ser um método de interpretação dinâmica e totalizante da realidade, e que considera que os fatos não podem ser analisados fora de um contexto social, político, econômico, etc.
Este horizonte compreensivo foi o que se mostrou suficientemente fértil e adequado para a discussão da temática objeto desta investigação. Aplicado às pesquisas sociais, o método dialético pode contribuir para uma compreensão mais rigorosa da realidade social, pois elabora uma representação que parte sempre do concreto, tendo em conta a totalidade do fenômeno estudado.
A abordagem do tema será realizada através de pesquisa bibliográfica, utilizando-se técnicas de leitura analítica, fichamento e demais informações que se mostrem úteis.
1 Homofobia: orientação sexual e suas manifestações
1.1 Definição
A origem do termo “homofobia” é muito disputada. Em certos trabalhos é atribuída ao autor George Weinberg, enquanto outros afirmam ter sido cunhado pelo psicólogo K. T. Smith, os dois no início da década de 70 do século XX. Em ambas as situações o conceito é apresentado como uma hostilidade e desconforto diante de homossexuais e, no caso dos próprios, “o ódio por si mesmo[4]”.
Porém diversos especialistas deram o seu parecer a respeito dessa condição ao passar dos anos, criando diversos outros termos, como Wainwright Churchill ao cunhar “homoerotofobia”, ou o “heterossexismo” criado por Stephen Morine e Ellen Garfinkle[5].
Todavia, o termo mais popularizado sofre diversas críticas, principalmente pela sua origem etimológica no grego, que poderia ser traduzida literalmente para “medo do semelhante”. Até mesmo o vocábulo “fobia” muitas vezes soa inadequado, tendo em vista que a homofobia não engloba somente o desconforto psicológico imediato contra a homossexualidade, mas envolve igualmente discriminações mais veladas dentro do plano social, que permeiam as relações cotidianas de maneira tão sutil que podem nem sequer ser registradas por seus perpetradores.
Tendo tal distinção em mente, Daniel Borrillo (2000, p.22) propõe uma subdivisão:
“O termo “homofobia” designa, assim, dois aspectos diferentes da mesma realidade: a dimensão pessoal, de natureza afetiva, que se manifesta pela rejeição dos homossexuais; e a dimensão cultural, de natureza cognitiva, em que o objeto da rejeição não é o homossexual enquanto indivíduo, mas a homossexualidade como fenômeno psicológico e social.”
Essa separação carrega especial relevância, uma vez considerada a vastidão de indivíduos que não condizem com o arquétipo clássico de preconceito, visto que não agem com particular hostilidade em relação ao grupo oprimido, até mesmo simpatizando com os mesmos enquanto, simultaneamente, rejeitam de maneira categórica o mero conceito da implementação de uma política de igualdade. Esta “homofobia liberal”, como o autor se refere, não busca condenar ou erradicar os homossexuais, estando contentes em tolerar a existência deles, desde que os mesmos se abstenham de expor a sua intimidade publicamente.
Resultado de uma repressão social à diversidade vista também no racismo, sexismo ou na xenofobia, trata-se de uma mentalidade de inferiorização de tudo aquilo que diverge do status quo. A sociedade, como heteronormativa, posiciona o homem heterossexual como a regra a ser seguida, disseminando sua influência sobre a mulher heterossexual e sendo o homossexual nada mais que um indivíduo irregular, não se encaixando nos moldes pré-estabelecidos.
A teoria determinista-biológica costuma ser o principal argumento daqueles em favor da perpetuação de atitudes tão claramente discriminatórias como as exemplificadas acima, alegando que as diferenças psicofísicas entre homens e mulheres colocam os primeiros em clara vantagem evolucionária, conceito este já há muito desmistificado pela autora Margareth Mead em seu livro de 1935 “Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas”. A autora, ao analisar os comportamentos de três tribos primitivas de Nova Guiné, observou uma discrepância em relação às atividades desempenhadas pelos diferentes sexos com o que é visto dentro da nossa sociedade, não estando as mulheres restritas a atividades secundárias, uma vez que para eles inexiste o entendimento da superioridade masculina, sendo esta só uma construção sócio-cultural.
“Nem os Arapesh nem os Mundugumor sentem a necessidade de instituir uma diferença entre os sexos. O ideal Arapesh é um homem doce e sensível, casado com uma mulher igualmente doce e sensível. Para os Mundugumor, é aquele de um homem violento e agressivo, casado com uma mulher violenta e agressiva também”. (2011, p. 48).
Esta antipatia frente ao mero conceito da homossexualidade é um produto da doutrinação dos valores da cultura judaico-cristã, enraizados tão profundamente no cotidiano que causam a rejeição imediata pela população de qualquer demonstração de intimidade entre membros do mesmo sexo. Como assevera Maria Berenice Dias (2014, p. 51), somente dentro do sacramento do matrimônio estavam livres os homens e as mulheres para agirem nos seus impulsos:
“O matrimônio era considerado como um remédio que Deus deu ao homem para preservá-lo da impudícia e da luxúria. O amor carnal, enquanto associado ao prazer é um rival do amor de Deus. O opróbrio do pecado mortal é distanciar o homem de Deus. Toda atividade sexual com finalidade diversa da procriação constituía pecado”.
Este condicionamento latente de rejeição é imposto constantemente aos sentidos, através de piadas, representações caricaturais e expressões do dia-a-dia, desde tenra idade, criando o que Guacira Lopes Louro se refere como “Pedagogia da sexualidade”. (LOURO, 2000, p. 10). A conduta zombeteira direcionada aos comportamentos dissonantes do que é considerado normal são maneiras de reforçar o medo dos jovens de agirem como preferirem, assim escondendo suas atitudes e moldando suas personalidades baseadas nas expectativas do grupo, cujos gracejos “[…] constituem-se poderosos mecanismos heterorreguladores de objetivação, silenciamento, dominação simbólica, normalização, marginalização e exclusão.” (JUNQUEIRA, 2011, p. 96).
Todas essas geram uma sensação de afastamento dos fatos causadores do problema maior. Como o próprio Borrillo (2010, p. 24) demonstra “ninguém rejeita os homossexuais; entretanto, ninguém fica chocado pelo fato de que eles não usufruam dos mesmos direitos reconhecidos aos heterossexuais”. A tolerância existe, mas somente em seu nível mais trivial. Aos homossexuais é permitido somente existir, desde que seus atos, suas dificuldades e suas lutas não gerem nenhuma espécie de inconveniência a todos os outros.
1.2 Homofobia geral e homofobia específica
Semelhante à primeira subdivisão apresentada por Borrillo, o sociólogo Welzer-Lang propõe o entendimento de que existem dois tipos de ojeriza perante a homossexualidade. Considera-se homofobia geral aquela que demonstra um descontentamento com a quebra dos paradigmas societais pré-estabelecidos em relação ao sexo, sendo uma manifestação da cultura misógina avessa a mudanças nos modelos e papéis já familiares. Dessa forma, em uma sociedade voltada à heteronormatividade, a homofobia está presente na constante fiscalização da virilidade alheia, sendo esperada a rejeição da feminilidade e da homossexualidade. (BORILLO, 2010, p. 27).
Qualquer indivíduo que vier a destoar dessas expectativas acaba sendo tratado como um pária, fixado em subverter todo o gênero do qual ele faz parte. Do homem é esperada a capacidade de liderar, prover e procriar, enquanto a mulher fica relegada às obrigações de servir, alimentar e criar. Atitudes, brincadeiras e até cores específicas servem para determinar as barreiras que dividem os dois sexos, também demarcando exatamente o território nebuloso onde nenhum dos dois deve ousar pisar, ou também serão classificados como anomalias a serem corrigidas.
Por outro lado a homofobia específica refere-se estritamente aos indivíduos homoafetivos, sendo eles gays ou lésbicas. Estas, especialmente sofrem um duplo preconceito, uma vez que “[…] a lésbica é vítima de uma violência particular, definida pelo duplo desdém que tem a ver com o fato de ser mulher e homossexual. Diferente do gay, ela acumula as discriminações contra o gênero e contra a sexualidade” (BORRILLO, 2010, p. 27).
De fato, a marginalização das mulheres dentro da sociedade levou a efeito uma atitude de incredulidade quanto à autenticidade das relações homossexuais das mesmas. Os meandros da sexualidade feminina são de certa forma, invisíveis e inconsequentes aos homens, devido à maior intimidade existente entre elas. Até mesmo em relação às diversas formas de repressão da homoafetividade existentes, um bom exemplo é apresentado por Maria Berenice Dias (2014, p.75) ao afirmar que “No Paquistão os homossexuais masculinos estão sujeitos à prisão perpétua, mas a lei não fala nas mulheres”.
No entanto, isto não deve ser visto como demonstração de compreensão ou tolerância, mas sim como outra evidência do menosprezo dos homens pela sexualidade feminina, que a seus olhos existe somente para seu prazer, sendo qualquer ação de teor homoafetivo entre as mulheres uma pseudo-homossexualidade que não é digna de nota.
1.3 Heterossexismo
Para um maior entendimento do fenômeno da homofobia é necessária a compreensão da ordem social responsável pelo estabelecimento dos papéis de gênero previamente expostos. A dita “ordem natural” que rege as relações humanas designa a existência do feminino como meramente dependente, um complemento para o masculino, este sim digno de sua posição no topo da hierarquia humana. Como assevera Borrillo:
“O sexismo define-se, desde então, como a ideologia organizadora das relações entre os sexos, no âmago da qual o masculino caracteriza-se por sua vinculação ao universo exterior e político, enquanto o feminino reenvia à intimidade e a tudo o que se refere à vida doméstica”. (BORRILLO, 2000, p. 30).
Esta expectativa de submissão limitadora de gênero encontra-se tão profundamente estabelecida que ela acaba por se tornar muitas vezes imperceptível, não se restringindo somente à dicotomia “homem/mulher”, mas sim abrangendo toda e qualquer relação entre sexualidades que sejam conflitantes com a heteronormatividade.
Tendo a heterossexualidade como o paradigma sob o qual se constroem as relações coletivas, qualquer outra forma de expressão encontra-se aquém do esperado pela sociedade, sendo, na melhor das hipóteses, considerada perversa e, na pior, vista como aberrante e destrutiva da paz e dos bons costumes.
Embora tal enfoque seja mais obviamente danoso, outras abordagens que, a primeira vista aparentam ser inconsequentes, acabam por ter resultados igualmente negativos ao longo prazo. Perfeito exemplo deste conceito é a mentalidade de diferenciação entre a homo e a heterossexualidade; não de maneira discriminatória ou hierárquica, mas com a intenção de realçar a diversidade.
Mesmo que no seu âmago talvez realmente exista uma busca celebratória das distinções existentes entra as duas ao invés do tratamento prioritário oferecido à heterossexualidade, impossível descartar o efeito desta mentalidade na luta contra as barreiras jurídicas entre as sexualidades, pois ao diferenciar ao invés de normalizar, somente se reforçam as justificativas do tratamento excludente que os homoafetivos recebem diariamente.
Portanto, este “heterossexismo diferencialista” somente mitiga a discriminação a um nível mais velado, criando possíveis regimes de exceção. Ao invés de fortalecer a luta pelos direitos iguais ao expor as formas em que os indivíduos continuam sendo separados em castas, realça-se exatamente os supostos motivos usados para justificar o tratamento distinto oferecido aos mesmos.
1.4 Intolerância homofóbica
O próprio conceito da homofobia como uma doutrina de inferiorização e menosprezo de um seleto grupo de indivíduos por características além de seu controle encontra eco em muitas outras formas de rebaixamento ao longo da história. Se reconhece que estes atos tem por objetivo a total desumanização daqueles que são diferentes através da perpetuação de diversas crenças, condutas e ideologias que, por um lado se baseiam em um “[…] fundo irracional comum de uma opinião particularmente orientada para a desconfiança em relação aos outros e, por outro, elas transformam tal preconceito corriqueiro em doutrina elaborada” (BORRILLO, 2010, p. 35).
Através desta inerente desconfiança de tudo aquilo que se mostra diferente, acaba por se criar uma legitimação da intolerância, afunilando toda a identidade social de um indivíduo a somente uma parcela de aspectos considerada destoante da normalidade. A partir daí, a desconfiança cresce exponencialmente, sendo alimentada pela constante suspeita de que as suas práticas e costumes estarão, de alguma forma, ameaçando “a coesão cultural e moral da sociedade” (BORRILLO, 2010, p. 36).
O autor exemplifica perfeitamente esta retórica no conceito que ele chama “nós-civilizados e eles-selvagens”, tornado comum nos primórdios do século XX em artigos antropológicos que tentavam explicar o comportamento e a tolerância à homossexualidade dentro das sociedades primevas, atos estes considerados pelos burgueses da época como uma desenfreada libertinagem digna de animais selvagens.
Partindo desta linha de pensamento, o crescimento da desconsideração pela liberalidade sexual passou a julgar qualquer comportamento que fosse considerado “inapropriado” pelas elites como uma degradação dos hábitos moderados criados pelos mesmos. Desta forma, condutas que proviessem de práticas das classes populares eram rapidamente desconsideradas ou taxadas como perigosas.
Nestas interações, onde se forjam diferenças que justifiquem exclusões é que se encontra a essência da lógica que perpetua a predominância de somente um tipo aceitável de interação humana, a “Disposição de um poder que vai do individual ao social, as categorias evocadas organizam um critério de acesso desigual aos recursos econômicos, políticos, sociais e/ou jurídicos”. (BORRILLO, 2010, p. 38)
No entanto, o que agrava ainda mais a atual situação da população homoafetiva é que, diferentemente de outros grupos oprimidos durante a história que ao menos tinham a oportunidade de contar com o apoio de outros membros do seu grupo, sua família ou de amigos desde o princípio, homossexuais são atacados em conjunto por suas práticas e isoladamente por suas identidades, muitas vezes sem poderem contar com o apoio de ninguém próximo, sendo vítimas de um total ostracismo simplesmente por serem quem são. Nesse sentido, para Maria Berenice Dias (2014, p. 99):
“Dentre os excluídos, os homossexuais são as maiores vítimas, estando a merecer cuidado especial. Todos os que sofrem algum tipo de discriminação encontram o apoio da família; assim o negro, o judeu, o portador de necessidades especiais, etc. Mas o homossexual não, a própria família o rejeita. Por isso precisa ser acolhido pela sociedade, tutelado pela lei e protegido pela Justiça.”
Sem a existência de qualquer sistema de apoio durante seus anos formativos, os jovens homossexuais correm grandes riscos de sucumbirem a pressão imposta pelas expectativas societais, criando até mesmo uma aversão a si mesmos, levando alguns ao suicídio.
1.5 Evolução histórica
Embora hoje a relação da sociedade com a homoafetividade seja uma de desconfiança e distanciamento, este nem sempre foi o caso. Todas as civilizações que vieram a habitar este planeta tiveram seus próprios contatos com os relacionamentos homossexuais. Porém, diferentemente desta em que vivemos atualmente, tais práticas nem sempre foram vistas como perigosas ou subversivas.
Precursores do direito, os gregos e romanos reconheciam abertamente os relacionamentos homossexuais, tendo estes como preferenciais, uma vez que relações heterossexuais eram limitadoras do total potencial da libido, sendo reservadas somente à procriação, diferentemente das homoafetivas, que faziam parte até mesmo de um processo de maturação do homem, sendo a própria palavra pederastia de origem grega, derivada dos termos paidós(menino) e érotos(paixão). Suas próprias lendas contavam histórias de amor entre heróis, como Aquiles e Pátroclo ou os deuses Zeus e Ganimede. No entanto, a sociedade grega somente levava em consideração nas relações homossexuais aquele que era o polo ativo, umas vez que, “o machismo, já naquela época, identificava o ato sexual ativo como postura masculina, sendo o ato sexual passivo tido como postura feminina.” (VECCHIATTI, 2013, p. 42).
A preferência homossexual era até mesmo incentivada dentro das instituições militares gregas. Cidades-estados como Esparta, que tinha sua cultura voltada inteiramente à militarização dos seus cidadãos, encorajava os relacionamentos entre os soldados, uma vez que, chegado o momento da luta, o guerreiro não estaria batalhando somente por sua pátria, mas em defesa do homem lutando ao seu lado. (DIAS, 2014, p. 47).
Todavia, quando a fé Judaico-cristã começou a exercer a sua influência sobre o Império Romano, a situação das relações homossexuais mudou drasticamente. A dicotomia, anteriormente vista como ativo/passivo, devido aos papéis societais e a posição de cada pessoa em relação à sua classe, veio a evoluir para a mais atual heterossexual/homossexual, sendo a antiga disposição de poderes taxada como avessa à nova ordem. Os dogmas da Igreja vieram a considerar todas as relações tidas fora do sacramento do matrimônio como pecaminosas, desta forma inibindo a sexualidade de todos, especialmente das mulheres, fadadas a cumprirem o requerimento estabelecido a elas de serem ideais virginais e símbolos da virtude cristã. (VERSIGNASSI; CORDEIRO, 2012)
Fazendo uso da narrativa sobre as cidades de Sodoma e Gomorra dentro do livro de Gênesis na Bíblia (capítulos 18 e 19) [6] e as prescrições contidas em Levítico, a Igreja Católica teve sucesso em implementar a total hostilidade para com os homossexuais dentro de Roma, expandindo-a em seguida por todo o Ocidente, dando início a uma era de homofobia jamais antes vista e cunhando o termo “sodomia”. (VERSIGNASSI; CORDEIRO, 2012)
No entanto, a referida passagem, tão utilizada para justificar a discriminação desenfreada, não aparenta oferecer fundamentos suficientemente consistentes para a interpretação que causa tamanha ojeriza. Afirma que “com o homem não te deitarás como se fosse mulher, é abominação.” (Levítico, 18:22), porém tal frase não leva em consideração mulheres lésbicas e suas próprias relações homossexuais. Ademais o livro de Eclesiastes afirma que "É melhor viverem dois homens juntos do que separados. Se os dois dormirem juntos na mesma cama se aquecerão melhor" (Eclesiastes, 4:11), o que não deixa de ser uma afirmação interessante, tendo em vista as elevadas temperaturas de Israel. Por fim, a relação entre o Rei Davi e seu amigo Jonatã, filho do antigo Rei Saul, foi descrita como incrivelmente íntima.
“E, indo-se o moço, levantou-se Davi do lado do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra, e inclinou-se três vezes; e beijaram-se um ao outro, e choraram juntos, mas Davi chorou muito mais.” (1 Samuel 20:41)
“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres.” (2 Samuel 1:26).
Levítico também condena em suas passagens 19:27, o corte de cabelo e aparamento da barba, algo que, juntamente com diversas outras proibições[7], se escolhia relevar no momento em que eram selecionados os infiéis merecedores de imolação. Sobre o assunto, o padre católico-romano Daniel A. Helminiak é categórico: “[…] a Bíblia não fornece qualquer base real para a condenação da homossexualidade.” (HELMINIAK , 1998, p. 16).
1.6 Homossexualidade e catolicismo contemporâneo
Durante a história, incontáveis barbáries foram cometidas em nome de Deus pela Igreja Católica, todas elas justificadas através de interpretações conflitantes de ensinamentos contidos dentro da Bíblia Sagrada. No entanto, conforme passaram os anos, certos ocorridos se tornaram merecedores de uma reavaliação por parte dos responsáveis, tendo estes admitido os erros em suas atitudes com relação aos descendentes de escravos, os judeus, Galileu Galilei e a Santa Inquisição, entre outros. Esta retrospectiva, todavia, nunca reconsiderou propriamente os atos cometidos contra os homossexuais, uma vez que, embora não venham mais a queimar infiéis em praça pública, seu posicionamento contrário permanece fortemente enraizado nos dogmas da fé cristã. O próprio catecismo católico ainda contém dentro de seus ordenamentos sobre castidade alíneas expressamente condenando qualquer espécie de prática homoafetiva:
“2357 – A homossexualidade designa as relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade se reveste de formas muito variáveis ao longo dos séculos e das culturas. Sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a tradição sempre declarou que "os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados". São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados.”[8]
Embora seja digna de nota a mudança de atitude, não mais tão agressiva e sim focada na suposta salvação pelo arrependimento, a essência do discurso permanece intocada. Os atos impuros praticados pelos homossexuais são uma afronta à ordem natural criada por Deus e por isso estes precisam ser expurgados de seus pecados ou viver em perpétua abstinência.
1.7 Homofobia clínica
Embora precursor das práticas previamente debatidas de exclusão e discriminação, o Catolicismo somente foi responsável pelo pontapé inicial desta política de inferiorização. O repúdio proclamado pela igreja católica aos atos homossexuais, embora incrivelmente danoso, não se baseia em qualquer posicionamento científico, utilizando unicamente o argumento da desobediência às “ordens de Deus” por estes pecados da carne. Como assevera Borrillo (2000, p. 63):
“Ao condenar o adultério, o roubo, a idolatria, a hipocrisia ou a sodomia, a tradição teológica não tentou construir, a partir dos atos contrários à Lei de Deus, uma personalidade adúltera, criminosa, idólatra, hipócrita ou sodomita; tratava-se de uma proibição geral, enunciada sob diferentes formas do pecado da carne”.
Quando se iniciaram as tentativas científicas de compreensão e classificação daquilo que era visto até então como atividades desviantes, longe de oferecerem uma maior clareza e entendimento sobre a autenticidade da existência homossexual e a complexa vastidão de possibilidades sexuais inerentes ao ser humano, acabaram por segregar ainda mais os indivíduos homoafetivos, julgando-os como transgressores do instinto sexual normal, portadores de uma enfermidade e em desesperada necessidade de uma cura que os livrasse de tal moléstia.
Considerados muitas vezes até como um mal contagioso, diversas técnicas foram desenvolvidas no decorrer dos anos para tentar tratar os instintos homossexuais. Injeções de hormônios, hipnose, lobotomia e eletroconvulsoterapia já foram vistas como soluções. Outro tratamento ainda mais peculiar criado na Checoslováquia envolvia a ingestão de remédios indutores de vômito enquanto o paciente assistia a cenas eróticas envolvendo homens, para logo em seguida ser injetado com testosterona e forçado a assistir a cenas com mulheres nuas. Na Alemanha Nazista, onde o aprimoramento da raça ariana tornou-se a principal preocupação da liderança do partido, foram autorizados experimentos com os homossexuais, realizados pelo Dr. Carl Værnet, que envolviam desde a copulação forçada com prostitutas, até a castração química das cobaias. No entanto, nenhuma destas técnicas apresentou qualquer resultado incontestavelmente positivo ou sequer duradouro. (AXT, 2004, p. 36).
Não obstante, a medicina continuou a estudar os aspectos fisiológicos que poderiam de alguma forma diferenciar os heterossexuais dos homossexuais, buscando intensamente qualquer diferença, digna de nota, nos hormônios, aparelhos genitais ou sistemas nervosos centrais. O continuado fracasso nesta fronte não impediu que o “homossexualismo” constasse como transtorno sexual dentro da Classificação Internacional de Doenças, tendo sido transferido para a categoria de “sintomas decorrentes de circunstâncias psicossociais” em 1993 pela Organização Mundial da Saúde. Somente em 1995 o CID foi revisto, tendo a classificação mudada para “transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e orientação sexual” (F66), explicitando que a orientação sexual em si não era mais vista como uma enfermidade, modificando o sufixo “ismo”, típico da classificação de doenças, para o sufixo “dade”, “que significa modo de ser” (DIAS, 2014, p. 65).
Embora esse seja um claro passo na direção correta, a contínua dificuldade da medicina moderna em lidar com a homossexualidade acaba por gerar uma desconfiança no âmago dos homoafetivos quando estes se veem obrigados a interagir com qualquer instituição de saúde. Maria Berenice Dias afirma (2014, p.65):
“Esta resistência, inclusive, faz com que a população LGBTI resista em buscar cuidados médicos. Em face do preconceito e da discriminação de que é alvo, tem uma saúde mais frágil, a exigir atenção redobrada. No entanto, os médicos têm enorme dificuldade em oportunizar que os pacientes revelem sua orientação sexual, dado indispensável para um bom diagnóstico”.
Dentro dos estudos da psicanálise, as tentativas de melhor entender a homossexualidade datam do século V, com o posicionamento do médico romano Caelius Aurelianus, que considerava as inversões de gênero como uma “perturbação mental” (DIAS, 2014, p. 67). Desde esse passo inicial, muitas outras tentativas foram feitas com o objetivo de decifrar a origem do comportamento. O pai da psicanálise, Dr. Sigmund Freud, que muito expôs sobre a relevância da sexualidade na formação humana, acreditava que o acaso governava a identidade sexual do indivíduo, e não uma opção consciente. Ele encorajava que os homossexuais procurassem conhecer melhor a si mesmos, para que pudessem ter uma vida plena. Após a publicação de sua obra, “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud recebeu uma carta enviada por uma mãe preocupada com o comportamento de seu filho. O doutor, reconhecendo as características da situação, lhe enviou a seguinte carta que hoje se encontra exposta em uma exibição intitulada “The Institute of Sexology”, no museu Wellcome, em Londres:
“Entendi, pela sua carta, que seu filho é homossexual. Estou muito impressionado pelo fato de a senhora não mencionar este termo nas informações sobre ele. Posso perguntar-lhe por que o evita? A homossexualidade não traz com certeza qualquer benefício, mas não é nada que deva ser classificado como uma doença; consideramos que seja uma variação do desenvolvimento sexual”. (SIECZKOWSKI, 2015)
Apesar de uma opinião inicial promissora no que tange o respeito à diversidade, o seu trabalho e de tantos outros colegas posteriores torna a visualizar a homossexualidade como um contratempo evolutivo, um desencaminhamento decorrido da bissexualidade latente em todos os indivíduos, continuando a perpetuar o já mencionado heterossexismo diferencialista.
Partindo de outra vertente, a Teoria Queer busca a desconstrução dos papéis de gênero criados na sociedade através de anos de opressão baseados na divisão binária da sexualidade. Em sua essência, ao tentar questionar o resultado de tais construções limitadoras, quando se tratando da vasta expressão individual de cada ser humano, a teoria analisa comparativamente a forma como a sociedade vê o indivíduo e como isso influencia a visão deste sobre si. Afirma, neste contexto Guacira Lopes Louro (2001):
“A desconstrução das oposições binárias tornaria manifesta a interdependência e a fragmentação de cada um dos pólos. Trabalhando para mostrar que cada pólo contém o outro, de forma desviada ou negada, a desconstrução indica que cada pólo carrega vestígios do outro e depende desse outro para adquirir sentido. A operação sugere também o quanto cada pólo é, em si mesmo, fragmentado e plural. Para os teóricos/as queer, a oposição heterossexualidade/homossexualidade – onipresente na cultura ocidental moderna – poderia ser efetivamente criticada e abalada por meio de procedimentos desconstrutivos”.
Muitos acreditam que a descoberta da origem da homoafetividade seria o fim das acusações de que tais atos não são naturais. O antropólogo fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott, sustenta a imensa importância das pesquisas que desconstroem a noção religiosa milenar de que homossexualidade é um comportamento diabólico e patológico. “Se comprovarem que há uma raiz genética, estará claro que a homossexualidade está nos próprios desígnios do Criador”.(SZKLARZ, 2006)
No entanto, o interesse classificatório da homossexualidade é considerado por outros, por si só, um ato de homofobia, pois raramente é abordado com o objetivo hermenêutico de maior compreensão e integração das diversas sexualidades, estando mais interessado nas maneiras de evitar que a mesma se reproduza nas futuras gerações. Dessa forma, a inferiorização baseada nos ensinamentos das leis do catolicismo acaba por evoluir gradativamente, passando a analisar a homoafetividade como distúrbio, não sendo o homossexual visto somente como pecador, mas também como anomalia, algo a ser estudado, desvendado e curado. Ao progredir do discurso religioso até a análise científica, acredita-se que uma nova cultura que legitima a desumanização e a erradicação da suposta abnormidade tenha sido criada, assim fortalecendo a posição dos heteronormativos no topo da hierarquia humana.
1.8 Perspectivas atuais
Durante a década de 60 do século XX, incursões policiais em estabelecimentos que eram frequentados por um público gay eram rotineiras dentro dos Estados Unidos da América. Tais ações eram vistas como uma forma de reverter a situação do país à forma como se encontrava anteriormente à 2ª Guerra Mundial. A busca por anarquistas, comunistas e subversivos em geral era autorizada pelo governo, como forma de restaurar a paz. Durante este período tumultuoso da história americana, vários homossexuais foram presos, espancados e humilhados publicamente em nome da decência. Diante disso, muitos grupos ativistas nasceram com o objetivo de questionar tais perseguições.
Um dos eventos mais importantes dessa luta ocorreu no dia 28 de junho de 1969 e ficou conhecido como o Motim de Stonewall, no qual grupos ativistas dos direitos gays entraram em confronto aberto com policiais da cidade de Nova York, enquanto os mesmos realizavam uma batida rotineira no Hotel Stonewall. Hoje, a data é mundialmente conhecida como Dia do Orgulho Gay.
Mesmo sendo as origens da homossexualidade ainda desconhecidas, é necessário realizar o questionamento; por que qualquer indivíduo optaria por livremente seguir uma tendência que lhe levaria a ser perpetuamente perseguido, ridicularizado e agredido? Um jovem, ao se descobrir homoafetivo, passará por diversas dificuldades, podendo ser odiado e/ou odiando a si mesmo. Esta violência é perpetuada diariamente contra uma parcela gigantesca da população, que é privada ainda de direitos e proteções básicas a qualquer cidadão. O Motim de Stonewall foi um dos estopins que colocaram em movimento a batalha pelo reconhecimento e defesa da comunidade Gay contra as inúmeras adversidades as quais foi exposta até então.
Dentro do Brasil, as práticas homossexuais foram criminalizadas até o ano de 1821, quando passaram a ser tratadas como sintomas de uma doença (DIAS, 2014, p. 55). Concomitantemente, o ordenamento jurídico da nação foi permeado por valores da conduta católica, “cujos princípios remetem à exclusão de seres humanos da humanidade, em razão de suas práticas sexuais contradizerem preceitos religiosos” (LOREA, 2011, p. 40).
Ao decorrer das décadas, alguns avanços foram feitos para uma maior aceitação da homossexualidade dentro da nação. No momento presente, a união homoafetiva pode legalmente ser convertida em casamento graças ao reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da equiparação da união homossexual à heterossexual, embora em nenhuma instância a mesma seja sequer referenciada dentro dos 110 artigos do Código Civil Brasileiro que regulamentam esta instituição. Com efeito, dentro de toda a legislação federal, existem apenas duas instâncias em que são reconhecidos os termos “orientação sexual” e “identidade de gênero”, sendo uma dentro da Lei Maria da Penha[9] e a outra no Estatuto da Juventude[10].
No dia 28 de outubro de 2015, por voto de maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal veio a considerar parcialmente procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 291, que visava impugnar o artigo 235 do Código Penal Militar, que criminaliza a prática homossexual em lugar sujeito à administração militar[11], não sendo admitida suspensão condicional da pena, ocasionando a perda do posto e da patente além da declaração de indignidade.[12] A Corte acabou por não mais recepcionar os termos “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, ambos explícitos no Código Peal Militar.
Não obstante, certas facetas legais continuam vergonhosamente datadas, ao começar pela própria Constituição Federal, que, no artigo 3º roga a proibição de preconceito de sexo sem, no entanto, se posicionar à respeito da discriminação por orientação sexual.[13]
Ademais, tamanho descaso por parte dos governantes com o panorama atual dos direitos da comunidade LGBTI se evidencia ainda mais claramente pelo seu desinteresse e protelação de toda e qualquer medida que envolva a obrigação do Poder Legislativo de resguardar os direitos de seus cidadãos, estes tão vulneráveis e constantemente bombardeados com o pior tipo de intolerância e hostilidade.
2 Da criminalização a não criminalização
Tendo sido analisadas as origens da terminologia e suas diversas variantes, assim como a posição da comunidade LGBTI dentro das estruturas sociais ao decorrer da história, o tratamento da sociedade e ainda os diversos níveis de preconceito com os quais os indivíduos homoafetivos são obrigados a lidar diariamente, este capítulo será centrado na situação dos membros desta comunidade dentro da nação brasileira dos dias de hoje e a maneira como a hostilidade e a intolerância vistas anteriormente se manifestam dentro do país, buscando elucidar, ao mesmo tempo, as faltas e erros cometidos na abordagem governamental frente aos pedidos de tutela estatal de parte da sua população que é diariamente oprimida e hostilizada.
2.1 Fundamentos constitucionais
Qualquer debate sobre uma eventual criminalização de certas condutas indesejadas dentro de uma sociedade precisa primeiramente avaliar o verdadeiro propósito das normas que a regem. Tendo evoluído através de anos de dominação despótica, o Brasil contemporâneo é modelado como um Estado Democrático de Direito que oferece destaque logo na introdução da sua Constituição Federal aos ideais pelos quais a mesma foi elaborada e aos direitos que ela se compromete a tutelar, como os “direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, a ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias […]” (BRASIL, 1988).
Desta forma, a proteção oferecida pela Constituição brasileira aos direitos fundamentais deve ser firmemente pautada em sua universalidade, na aplicação imediata de sua força e na garantia da valorização da dignidade da pessoa humana, sem importar qualquer tipo de preconceito ou discriminação, conforme fundamentado explicitamente no inciso III do primeiríssimo artigo da Carta Magna[14]. Mantendo-se coesa na estruturação destes direitos fundamentais, a Lei Maior sujeitou os mesmos aos princípios da igualdade e da universalidade [15], enfatizando o enfoque no bem de todos, sem discernir raça, sexo, cor, idade ou o que fosse [16].
De forma a tentar providenciar a todos os cidadãos estes direitos basilares enumerados, é necessário que a Carta Constitucional sistematize conjuntos de normas e princípios dedicados a tornar possível a convivência humana, observando os rigorosos fundamentos de justiça elencados por ela. Desta maneira, partindo o poder soberano do Estado de preceitos contidos dentro da Constituição Federal, cabe a ela simultaneamente legitimar e refrear todos os ordenamentos jurídicos que vierem a ser derivados de seu texto, sendo a função destes, por sua vez, a proteção dos bens jurídicos elencados no texto constitucional.
2.2 Proteção penal dos bens jurídicos
Segundo Zaffaroni (2003, p. 87), a legislação penal se define como “o conjunto de leis que programam a decisão de conflitos mediante uma espécie de coerção que priva de direito e inflige uma dor (pena) sem buscar seja um fim reparador seja a neutralização de um dano em curso ou de um perigo iminente”. Na sua visão, embora existam diversas maneiras de lidar com o surgimento de conflitos dentro de um corpo social, o modelo punitivo manuseado pelo Direito Penal não tende a interagir bem com nenhum outro, uma vez que as soluções dispostas pelo mesmo envolvem o afastamento do indivíduo através de sua reclusão.
Devido à tamanha severidade das consequências resultantes da intervenção penal, a mesma somente deve interpor na resolução de conflitos como o último recurso. Assim, para que sejam evitados excessos punitivos, cabe aos legisladores encarregados determinar quais valores, interesses e bens são essenciais e, portanto, necessitados de tutela específica dentro da legislação penal.
Tais valores recebem a denominação de “bens jurídicos” e, segundo Figueiredo Dias tal noção:
“não pôde, até o momento presente, ser determinada – e talvez jamais o venha a ser – com uma nitidez e segurança que a permita converter em conceito fechado e apto à subsunção, capaz de traçar, para além de toda a dúvida possível, a fronteira entre o que legitimamente pode e não pode ser criminalizado.” (DIAS apud GUIMARÃES, 2002).
Por sua vez, o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 37) afirma que o bem jurídico não deve ser pura e simplesmente a razão da lei (ou ratio legis), necessitando compreender uma motivação social anterior a da legislação que vise defender, “caso contrário, não seria capaz de servir a sua função sistêmica, de parâmetro e limite do preceito penal e de contrapartida das causas de justificação na hipótese de conflito de valorações”.
A ascensão do pensamento iluminista no princípio do século XIX fez com que houvesse uma superação dos conceitos punitivos presentes durante a Era Absolutista, estes fortemente voltados a uma espécie de vingança institucionalizada pelos soberanos. Chegado ao fim o Antigo Regime e tendo sido introduzido conceitos científicos normativos do que hoje é conhecido como Direito Penal, foi Ludwig Feuerbach quem, afastando-se da noção do pecado, definiu o conceito de crime como qualquer atentado a direitos subjetivos tanto do particular como do Estado, assim atribuindo à pena caráter retributivo. (GUIMARÃES, 2002)
Coube posteriormente a Johann Michael Franz Birnbaum expandir no trabalho de Feuerbach, abordando a proteção dos bens “transindividuais”, como a liberdade, o patrimônio e o corpo, assim fornecendo a base para o conceito introdutório do que mais tarde veio a ser conhecido como “bem jurídico”, limitado posteriormente pelo jurista alemão Karl Binding como o “estado valorado pelo legislador” (BITENCOURT, 2011, p. 37).
Atualmente, concorda-se que o referido bem deve sempre ter relevante valor social, mesmo quando relacionados a interesses individuais, estando sua especificação aberta à interpretação do poder legiferante, podendo até mesmo ser modificado com o decorrer do tempo, abandonando este status, como ocorreu com o delito de posse sexual mediante fraude que, no Código Penal de 1940, especificava a proteção contra o delito somente para mulheres honestas, expressão esta que caiu por terra devido ao seu óbvio subtexto sexista, que insinuava que uma mulher que não fosse “honesta” não poderia se queixar de ter sido estuprada (MUNIZ, 2005, p. 3).
Sendo os bens jurídicos determinadores dos valores que necessitam ser protegidos enquanto, simultaneamente, agem como limitadores do poder punitivo estatal, o seu conceito é mantido propositalmente amplo, estando claro que qualquer tentativa de definição não será como “uma varinha mágica, com cuja ajuda se pode separar, sem mais, por meio da subsunção e da dedução, a conduta punível da que deve permanecer impunível” (ROXIN, 1976, p. 46-47), fato que, por vezes, pode tornar difícil a introdução de um novo conceito como necessitado da intervenção penal, precisando este necessariamente derivar de conceito protegido pela Constituição Federal.
“Vida, liberdade, honra, propriedade e integridade física, passam a configurar bens jurídicos de natureza individual aos quais a tecnologia de controle penal direcionaria sua atenção, estabelecendo modelo de administração dos conflitos individuais e controle das violências públicas”. (CARVALHO, 2011, p. 92).
A batalha inerente a qualquer legislação penal é a busca do equilíbrio entre garantir a segurança do corpo social que se tenta proteger sem, ao mesmo tempo, cercear as suas liberdades. Essa tribulação encontra-se no âmago das teorias da pena, afinal é uma utopia almejar erradicar completamente crimes e delitos, pois ao se atingir esse objetivo teórico, os cidadãos estariam privados de qualquer autonomia. Estes são contrapesos essenciais que devem ser balanceados precisamente de forma a atingir o equilíbrio satisfatório citado por Conde e Hassemer (2008, p. 165):
“Quando se fala de reação social frente à criminalidade, se esquece, muitas vezes, que a liberdade é um elemento tão indispensável para o desenvolvimento dos indivíduos que integram a sociedade como o é a segurança que devem ter os mesmos indivíduos (e, em consequência, a sociedade também) de que não serão expostos continuamente a perigos e ataques provenientes de outros indivíduos.”
Por conseguinte, o intento da legislação criminal é oferecer proteção e segurança por meio de penas exatas elencadas para delitos específicos que ameacem os valores fundamentais que se deseje tutelar. Tamanha precisão é um objeto idealizado, mas que tenta ser alcançado através dos Princípios do Direito Penal.
2.3 Princípios penais e limites de bens
A máxima que impede o Direito Penal de intervir em lides até o momento em que as demais intervenções estatais disponíveis tiverem fracassado ou se mostrado inadequadas é baseada no Princípio da Intervenção Mínima, um de muitos preceitos utilizados para guiar tanto os criadores de normas quanto aqueles que as interpretam. A fim de criar um contraponto com o aspecto intervencionista dos Estados absolutistas que o precederam, o pensamento iluminista que guiou a estruturação constitucional decidiu por circunscrever o Direito Penal, limitando a ação estatal sobre as liberdades individuais, desta forma garantindo a proteção dos direitos fundamentais do cidadão.
Enquanto diversos princípios são aplicáveis a várias áreas do Direito, como o Princípio da Reserva Legal consagrado por Feuerbach através da fórmula “nullun crimen, nulla poena sine lege”, que impõe a necessidade da lei definir precisamente a conduta proibida, caso contrário, “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BITENCOURT, 2011, p. 41), existem outros princípios que tratam especificamente da demarcação das fronteiras do Direito Penal, como os Princípios da Subsidiariedade e Fragmentariedade. Ambos são subsidiários do Princípio da Intervenção Mínima, o primeiro afastando a intervenção penal até que todas as medidas possíveis tenham sido tentadas, e o segundo ditando que, quando realmente se apresentar uma situação necessitada de intervenção, o bem jurídico em questão esteja realmente sob a tutela Penal. Como atesta Luiz Régis Prado, esse desmembramento de funções “é o que se denomina caráter fragmentário do Direito Penal. Faz-se uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa” (1992, p. 52).
Todas estas determinações elencadas pela Constituição Federal buscam o respeito à dignidade humana dentro do controle estatal, desejando a proteção dos bens essenciais ao homem frente ao colossal aparato punitivo do Governo. E mesmo tendo sido dedicada uma substancial atenção a essas garantias constitucionais, muitos doutrinadores creem que o sistema penal ainda fracassa.
Acredita-se que muito esforço é dedicado a fazer cumprir tipos penais que não oferecem ofensa a bens jurídicos de grande importância, dedicando o poder policial ao cumprimento de ações irrelevantes, assim atravancando o exercício da Justiça Criminal, que por sua vez, como elucida Baratta (apud GUIMARÃES, 2012, p. 29), tende a gerar injustiças ao aplicar penas e medidas de segurança que “recaem fundamentalmente sobre as classes mais baixas, pois seus membros não têm meios financeiros de buscar uma boa defesa em juízo”.
Explanando sobre esta distorção do emprego do Direito Penal André Luiz Callegari (1998, p. 478) assevera:
“Haja vista que o Direito Penal lida com o bem jurídico liberdade, um dos mais importantes dentre todos, nada mais lógico do que esse ramo do Direito obrigar-se a dispor das máximas garantias individuais. E mais, conhecendo o nosso sistema carcerário, fica claro que só formalmente a atuação do Direito Penal restringe-se à privação da liberdade. Na prática, a sua ação vai mais além, afetando, muitíssimas vezes, outros bens jurídicos de extrema importância, como a vida, a integridade física e a liberdade sexual, verbi gratia; uma vez que no atual sistema prisional são freqüentes as ocorrências de homicídios, atentados violentos ao pudor, agressões e diversos outros crimes entre os que ali convivem”.
Esta linha de pensamento, conhecida como “garantismo”, preza pelo cumprimento das doutrinas constitucionais em sua essência, evitando interpretações contemporâneasque tendem a se afastar dos princípios basilares ao atenderem às demandas populacionais, que clamam por maior controle da criminalidade diante da violência aparentemente irrefreável. Segundo a definição apresentada por Salo de Carvalho (2011, p. 108):
“A experiência proporcionada pelos sistemas penais do baixo medievo colocou em marcha processos políticos emancipadores e reforçou movimentos intelectuais críticos à legitimidade e ao exercício repressivo das agências inquisitórias de punitividade. […] com a invenção (em sentido genealógico) dos direitos humanos pelo liberalismo político, o papel auferido ao direito penal, ao processo penal e à política criminal foi o de construir barreiras ao poder de punir, limitando ao máximo sua intervenção”.
Ao acreditar que a mudança efetiva é praticamente inalcançável, o Estado recorre ao suposto poder simbólico que é inerente às instituições do Direito para efetivamente apaziguar os ânimos vingativos do seu eleitorado através da elaboração de novos tipos penais vazios, que somente visam conter essa insatisfação popular com a incapacidade governamental. “Via de regra, a atuação dessa perspectiva dá-se com o aumento do rigor desproporcional das penas sobre determinadas condutas que mais chocam as massas, através da criminalização de certas atitudes e ou majoração da pena de crimes já existentes” (QUEIROZ, 1999, p. 09).
E em meio a essa encruzilhada ideológica encontra-se o debate sobre a criminalização da homofobia. Ao analisar o disposto na Constituição, é possível afirmar que a sexualidade, a liberdade sexual e a livre orientação sexual, sendo partes intrínsecas da vida de qualquer indivíduo, são tuteladas pela Carta Magna e qualquer prática que venha a oprimi-las, encontrar-se-á em claro desacordo com a mesma. No entanto, mostra-se válido questionar se é realmente cabível a elaboração de tipos penais específicos que protejam os membros da comunidade LGBTI dos constantes abusos e ataques de que já são vítimas, se já existem tipos penais que tratam dessas ocorrências, embora não de uma maneira específica.
2.4 Direito penal simbólico
Partindo do princípio de que o objetivo do Direito Penal é oferecer proteção aos bens de vida considerados essenciais pelo ordenamento jurídico e punir todos aqueles que ameaçarem a sua integridade, fica claro que é imperativo para o Sistema Jurídico a constante análise de seus preceitos basilares e a atualização de seus termos quando necessário, de forma a poder acompanhar a sociedade que busca proteger, esta sempre mutável e em constante avanço. Por este motivo, a eficácia do Direito é sempre posta em dúvida. Através desta perspectiva, afirmam Busato e Huapaya (2007, p. 35):
“O Direito Penal tenta responder às mudanças sociais. Exemplos como os da escolha de novos bens jurídicos que se deve proteger, a mudança dos fins declarados da pena desde uma fundamentação absoluta até outra preventiva; os processos reformados surgidos nos diversos Estados da Europa são sintomas da evolução do Direito Penal. Entramos em um sistema ainda não muito claro onde todos os conceitos básicos dogmáticos passam a ser debatidos, como a função do bem jurídico, a missão da pena, etc”.
Recentemente, grande parte da doutrina acadêmica a respeito de justiça penalista, segurança pública e criminalização têm substituído a antiga política criminal embasada nos ideais humanitários liberais e nos princípios ressocializadores do elemento criminal por “uma política penal mais dura, abrangente e agora mais voltada para a defesa social” no enfrentamento do crime (CAMPOS, 2010, p. 06). Desta forma, considerando-se a sociedade brasileira contemporânea, é visível o surgimento de uma expectativa por parte do público em geral por maior gestão estatal dos riscos da criminalidade, assim como maior controle e prevenção do elemento delituoso que ameaça a prometida paz. E este tem se empenhado para cumprir com a expectativa popular, embora seja uma tarefa intrincada. Diante destas novas ameaças, “a sociedade apresenta uma forte demanda de segurança por parte do Estado e este tem respondido com o recurso penal de criminalização de comportamentos que se desenvolvem nessas novas esferas de risco” (MARTIN apud ALVES, 2013, p. 07).
Este sentimento generalizado de insegurança que acomete a população brasileira encontra a sua suposta solução dentro do Direito Penal Simbólico, cujo objetivo geral é suprir esta necessidade popular por ação governamental, através da criação de novos tipos penais e sanções mais estritas para os crimes, extrapolando assim os limites estabelecidos pelo Direito Penal Clássico e as suas proteções de bens e valores. Como afirma Günther Jakobs, criador do conceito, a nova missão do Direito Penal deveria ser “a tutela da integridade do ordenamento jurídico e da própria aplicação de normas” (apud GUIMARÃES, 2012, p. 32).
Logo, tendo o Estado passado por esta metamorfose, o mesmo não mais se estrutura somente como uma entidade cujas atitudes repressivas se pautam no afastamento absentista, tendo evolvido para um governo de aspecto Intervencionista cuja tutela busca abranger os direitos individuais e os direitos coletivos através de um renovado foco no aspecto coercitivo das sanções penais.
Como abordado previamente, o Direito Penal sempre teve em seu âmago a procura pela teoria penal que mais efetivamente, caso não fosse capaz de evitar totalmente a comissão do ato criminoso, reduziria a sua perpetuação a limites suportáveis. Sendo a sanção a principal maneira encontrada durante os séculos para reagir quando cometido um delito, busca-se balancear o quanto dela deve servir como retribuição pelo mal incutido e o quanto ela deve coagir o delinquente condenado e a população em geral a não repetir tal ato. Ambas as necessidades vieram a ser conciliadas na primeira metade do século XX através das “teorias da união”, que postulam que “a pena deve servir para retribuir à culpabilidade, sem deixar por isso de ter, por outro lado, um saudável efeito preventivo […]”. Como ilustrado perfeitamente pelos doutrinadores Francisco Muñoz Conde e Winfried Hassemer (2008, p. 171-172):
“Assim, por exemplo, no âmbito da cominação penal, significa que, quando o legislador tipifica nas leis penais um fato como delito e ameaça sua realização com um determinado tipo de pena, pode-se pretender desencadear, antes de tudo, o efeito preventivo geral, esperando com ele que, à vista da ameaça penal, os cidadãos destinatários dessa cominação se abstenham de realizar a conduta proibida. E o mesmo efeito cabe esperar quando, na fase sumarial de investigação e instrução do processo penal, inicia-se a investigação de um delito e dirige-se a acusação contra uma determinada pessoa, adotam-se medidas cautelares, como a prisão preventiva, e se põe em marcha um mecanismo que não só incide na pessoa ou pessoas diretamente implicadas, inculpadas ou acusadas da comissão do delito, senão na generalidade dos cidadãos que veem como se põe em movimento a pesada e, às vezes terrível, máquina da Justiça. Em troca, quando, uma vez terminado o juízo oral, o acusado é considerado culpável e a ele é imposta pena, a magnitude desta deve ser, antes de tudo, a retribuição da culpabilidade e da gravidade do delito que restaram provados durante o processo”.
Ao acentuar o caráter simbólico da legislação, o Estado almeja alcançar uma mudança imediata da opinião pública a respeito da sua suposta ineficiência, esforçando-se para promover o retrato de um Poder Legislativo que decreta soluções penais eficazes aos males que suscitam a inquietação popular. Exemplo perfeito desta mentalidade é o atual debate referente à possível redução da maioridade penal que, de acordo com a legislação vigente, é de 18 anos.[17] Devido a uma ampliação da cobertura midiática sobre o aparente aumento da incidência de crimes praticados por menores de idade, veio a ser aprovada em primeiro turno dentro da Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional da redução da maioridade penal (PEC 171/93) para 16 anos nos casos de crimes cometidos por meio de violência ou grave ameaça, crimes hediondos, homicídio doloso, lesão corporal grave ou lesão corporal seguida de morte, tráfico de drogas e roubo qualificado.[18]
Esta exposição do funcionamento interno do Direito aos caprichos da comoção popular é a fonte das principais críticas das ciências criminais ao Direito Penal Simbólico, uma vez que este simplesmente se importa com o apaziguamento dos ânimos acalorados do povo através da criação de medidas que são destituídas de verdadeira efetividade, evitando assim confrontar o fato de que mudanças sociais concretas não são tão facilmente alcançadas e envolvem uma legítima mobilização humana e pecuniária.
“[…] não é tanto a função instrumental da pena que serve para resolver determinados problemas e conflitos, são determinados problemas e conflitos que ao atingirem certo grau de interesse e alarde social no público se convertem num pretexto para uma ação política destinada a obter não tanto funções instrumentais específicas, mas sim uma função de caráter geral: a obtenção do consenso buscado pelos políticos na chamada “opinião pública” (BARATTA, 1994, p. 23).
O próprio conceito de controle societal através da implementação de novas normas penais nos códigos legislativos pode vir a ser considerado uma utopia, posto que a eficiência do Estado na contenção de delitos e desvios não é capaz de ser tão abrangente a ponto de eficientemente regulamentar todas as interações, havendo dessa forma, uma “inevitável diferença entre a seleção das condutas criminalizadas pelo Poder Legislativo […] e a efetiva atuação dos aparelhos repressivos na dissuasão de delitos praticados pelas pessoas vulneráveis à incidência do mecanismo penal” (CARVALHO, 2011, p. 89).
Esta situação impera pela ocorrência de inúmeros fatores, mas o mais relevante deles é a incapacidade do aparelho repressor estatal de garantir proteção e exercer punição sobre todos os delitos cometidos dentro do país, seja pela falta de subsídios, o desinteresse da população em informá-los ou a própria triagem realizada pelas agências policiais. Seguindo este raciocínio, torna-se irreal a expectativa de que este aparato é capaz de, realmente exercer sua força para punir todos os delitos praticados, estando eles já tipificados ou não. Por consequência disso, a crença de que a tipificação de qualquer conduta seria eficaz em reprimir psicologicamente a sua prática torna-se fantasiosa. Na realidade, atesta o mestre dos estudos criminológicos, Eugenio Raúl Zaffaroni (1991, p. 26), que:
“[…] a disparidade entre o exercício de poder programado e a capacidade operativa dos órgãos é abissal, mas se por uma circunstancia inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de chegar a corresponder a todo o exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizar varias vezes toda a população.”
Por conseguinte, sendo o objetivo causar uma efetiva mudança nacional, Carvalho preconiza um afastamento do desejo de implantar novas normas jurídicas acreditando que somente estas trarão soluções imediatas, pois sem a devida análise do infrator e a causa de seu ato criminoso, tais ações se tornarão fúteis. Ao invés de acrescentar maiores punições como consequência do número elevado de ações delituosas de um tipo específico, é preciso considerar os fatores sociais que levaram a origem do mesmo, pois somente entendendo estes, as futuras ocorrências poderão ser evitadas.
2.5 Contrastes da criminalização
Tendo em vista a diversidade de doutrinadores que vieram a abordar a temática em questão, inúmeros posicionamentos já foram tomados quanto à necessidade de uma criminalização da homofobia no Brasil. Os autores Freire e Cardinali (2012, p. 51) são resolutos quando afirmam que um posicionamento firme por parte do governo estatal na questão simbolizaria um significativo comprometimento por parte dos governantes na contenda contra a referida violência. No entanto, os mesmos estabelecem alguns limites à efetividade de tal ato:
“Invocar a tutela penal parece adequado. Contudo, é importante destacar que a mesma não promoverá a conscientização social ou o valor da tolerância, uma vez que não lhe é própria uma função pedagógica, mas apenas a de impedir a perpetração de condutas discriminatórias. Cabe aqui resgatar a distinção entre preconceito e discriminação para esclarecer que não pretende a lei penal, por não lhe ser objeto, a correção ou anulação do preconceito. Ela se presta somente, conforme já dito, à tutela da discriminação” (2012, p. 54).
Porém, na corrente oposta de pensamento, Marcus Vinicius de Oliveira (2011, p. 224-225) assevera que quaisquer tentativas que visem a criminalização de atitudes homofóbicas estariam indo de encontro com os princípios basilares defendidos pelos Direitos Humanos, uma vez que, em sua opinião não se pode defender de uma espécie de opressão criando uma nova opressão:
“Tem algo, particularmente, que eu queria propor com o debate, talvez causando alguma uma ordem de polêmica – mas, se não foi para isso que nós viemos falar, não sei para que serve uma conversa com um coletivo tão qualificado como vocês –, que diz respeito à criminalização da homofobia, numa aposta na punição e na apenação pela via privação de liberdade. Quero afirmar que esse é um equívoco e que essa é uma linha muito problemática para a perspectiva dos direitos humanos e das transformações culturais em direção a uma sociedade justa”.
Enquanto inegável a importância da observação dos Princípios Gerais do Direito Penal não só durante a composição de nova legislação, mas também no exercício do poder estatal, a relevância de um símbolo não pode ser desmerecida completamente, visto que estes sempre exerceram uma influência significativa na plena efetivação do Direito. Dentro das batalhas precursoras à dos Direitos LGBTI, o reconhecimento da necessidade de maior proteção a outras classes que eram igualmente limitadas e hostilizadas em razão de preconceitos revelou-se o primeiro passo na conquista de diversas outras garantias equitativamente essenciais. Assim, a obtenção de uma igualdade formal levou, posteriormente, ao fortalecimento de uma igualdade material (CARVALHO, 2012, p. 192).
Não obstante o conceito apresentado por doutrinadoras como Mariana Carrara (2010, p. 326) que, baseada no manifesto repúdio de grande parte da população por indivíduos homoafetivos, acredita poder vir a ser contraproducente para a luta LGBTI criminalizar a conduta homofóbica, pois a atitude de um suposto réu acusado deste crime não seria considerada reprovável pela maioria[19], é importante voltar a ressaltar a essencialidade da proteção dos valores de igualdade e dignidade humana, ambos garantidos constitucionalmente a todos os cidadãos brasileiros e ainda firmemente estabelecidos como uma das bases da nossa nação, independentemente de qualquer opinião popular. Logo, por mais que tais mudanças possam acabar desagradando a generalidade opressora, as considerações desta com relação ao assunto são desimportantes. Como destaca brilhantemente Sérgio Cademartori (1999, p. 105): “O Estado de direito não pode ficar à mercê de eventuais consensos produzidos por eventuais maiorias”.
De fato, ao estabelecer claramente dentro da lei federal um absoluto repúdio a qualquer tipo de atitude opressiva e discriminatória, listando consequências claras e severas com os quais o Direito penal poderá punir comportamentos preconceituosos, o Estado pode não vir a ser capaz de causar uma mudança imediatamente visível, posto que a mentalidade homofóbica encontra-se, no momento, demasiadamente arraigada no cerne da sociedade brasileira. Não obstante, o mesmo ainda assim se mostrará efetivamente posicionado, ao menos ideologicamente, a favor da proteção de todos os seus cidadãos, independente de quem estes sejam.
Por mais limitado que possa ser o efeito inicial de uma eventual criminalização, é essencial ter em mente que o poder simbólico do Direito é capaz de apresentar resultados, mesmo que singelos. E estes não deverão ser vistos como somente outra solução ilusória para esta realidade atualmente distópica em que se encontram os cidadãos homoafetivos, mas sim como ferramentas com as quais se almejará buscar a construção de uma sociedade mais harmoniosa no futuro.
3 Progresso e violência: manifestações no brasil contra a homofobia
Inexistindo quaisquer dados oficiais por parte do governo federal sobre o número exato de assassinatos perpetuados contra os cidadãos LGBTI brasileiros, o Grupo Gay da Bahia anualmente disponibiliza sua própria pesquisa, desenvolvida com base em notícias encontradas dentro de jornais ou na internet, não abrangendo a integralidade de todos os casos, porém oferecendo um panorama suficientemente chocante.
Segundo as informações oferecidas, o Brasil continua a reter sua posição como campeão internacional no quesito de crimes motivados pela homo/transfobia: 50% de todos os homicídios cometidos contra a população trans ocorreram em terras brasileiras. De todos os 326 (trezentos e vinte e seis) indivíduos assassinados em 2014, 163 (cento e sessenta e três) eram gays, 14 (catorze) lésbicas, 3 (três) bissexuais, 134 (cento e trinta e quatro) travestis e 7 (sete) amantes de travestis. Ademais, 7 (sete) heterossexuais foram mortos ao terem sido confundidos com homossexuais ou por terem sido encontrados em locais considerados como homoeróticos. Este número aponta para o fato de que ao menos um homicídio motivado pela homo/transfobia foi cometido a cada 27 horas durante o ano de 2014. De fato, somente no mês de janeiro 45 cidadãos LGBTIs foram assassinados, representando uma média de uma morte a cada 18 horas. Tal cifra demonstra um aumento de 4,1% em relação ao ano anterior, em que ocorreram 313 mortes.[20]
Segundo o fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott, que tem organizado a referida pesquisa há mais de 30 anos, a violência homofóbica tem crescido exponencialmente dentro do país. Durante o governo de oito anos do presidente Fernando Henrique Cardoso foram documentados 1023 (mil e vinte e três) crimes homotransfóbicos, apresentando uma média de 127 a cada ano. Posteriormente, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva a cifra subiu para 1306 assassinatos, apresentando assim uma média de 163 por ano. No entanto, somente nos primeiros quatro anos do governo da Presidente Dilma Rousseff, as mortes já atingiram a casa de 1.243, com uma média de 310 assassinatos anuais. (NUNES, 2015).
Dentre os diversos crimes contabilizados, a maioria deles é marcado por requintes de extrema crueldade e violência. Além de muitas vítimas mortas com o uso de machados, facas e foices, os assassinatos cometidos abrangem desde espancamentos (quarenta e nove pessoas) e enforcamentos (vinte e quatro) até casos de envenenamento (três), apedrejamento (dez) e carbonização (quatro). O número de balas mortíferas variou de uma até quinze, enquanto 11 LGBTI foram perfurados mais de dez vezes com uma arma branca, três mais de vinte vezes e um indivíduo em particular foi esfaqueado 46 vezes. Tais detalhes explicitam o caráter torpe dos atos, não podendo estes deixarem de ser considerados “crimes de ódio”.
Evidenciando que os perpetradores desse tipo de ato não distinguem entre idade, poder aquisitivo ou status social na escolha de suas vítimas, do total de indivíduos assassinados, 30 (trinta) deles tinham menos de 18 anos, enquanto 90 (noventa) das vítimas tinham idades entre 19-30 anos e 76 (setenta e seis) deles tinham de 30 a 40 anos de idade; entre todas as pessoas contabilizadas, as mesmas exerciam 20 (vinte) profissões diferentes, existindo uma predominância de travestis profissionais do sexo (trinta e sete das vítimas), seguidos de 11 (onze) professores, 8 (oito) estudantes, 6 (seis) cabeleireiras, havendo ainda aposentados, comerciantes, funcionários públicos, um padre e três pais de santo. Sobre as oscilações notadas no número de vítimas e localidades de ano a outro[21], Mott afirma que:
“Os crimes contra LGBT desafiam a imaginação sociológica devido a sua imprevisibilidade: há estados que num ano matam-se mais gays, no outro, mais travestis; em janeiro de 2014 foram assassinados 45 lgbt, caindo para 17 em fevereiro, perfazendo uma média de 27 mortes mensalmente, sem possibilidade de interpretar-se cientificamente tal oscilação; enquanto nos anos anteriores sempre prevaleceu o uso de armas brancas na execução dos homicídios, nesse ano dominaram as armas de fogo. Ninguém consegue explicar tais oscilações anuais.”
Quando postulado o questionamento sobre a certeza quanto ao motivo de todos os crimes contabilizados no estudo, Mott é incisivo:
“Sim! 99% destes homicídios contra LGBT têm como agravante seja a homofobia individual, quando o assassino tem mal resolvida sua própria sexualidade e quer lavar com o sangue seu desejo reprimido; seja a homofobia cultural, que pratica bullying contra lésbicas e gays, expulsando as travestis para as margens da sociedade onde a violência é endêmica; seja a homofobia institucional, quando o Governo não garante a segurança dos espaços frequentados pela comunidade lgbt ou como fez a Presidente Dilma, ao vetar o kit anti-homofobia, que deveria ter capacitado mais de 6 milhões de jovens no respeito aos direitos humanos dos homossexuais e mais recentemente, ao ter pressionado os senadores para que não aprovassem o PLC 122 que equiparava a homofobia ao crime do racismo”.
Vindo por corroborar as alegações de Mott destacadas acima, a Fundação Perseu Abramo, em parceria com a alemã Rosa Luxemburg Stiftung, a fim de melhor entender a disseminação do preconceito homofóbico dentro da nação publicou em 2009 um estudo intitulado “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil” (VENTURI, 2010), relatando a forma como a hostilidade com a comunidade LGBTI opera em diversos níveis, não só de forma explícita, mas surgindo de maneira latente em uma parcela significativa da população e, dessa forma, moldando a sua percepção da problemática aqui debatida e as respectivas atitudes que almejam solucioná-la.
Durante os questionários, quando interrogados se acreditavam existir um preconceito dentro do Brasil contra pessoas LGBTI, 93% dos entrevistados responderam positivamente quanto ao preconceito contra travestis, 91% contra transexuais, 92% contra gays, 92% contra lésbicas e 90% acreditam existir um preconceito contra bissexuais. No entanto, quando questionados se consideravam a si mesmos como pessoas preconceituosas, somente 29% admitiram serem com relação a travestis, 28% com transexuais, 27% com lésbicas e bissexuais e 26% com gays. Tal resposta é esperável, tendo em vista que qualquer tipo de atitude preconceituosa tende a ser mal vista aos olhos da sociedade.
Logo, com o intuito de explorar a verdade por trás dessas respostas e medir a dimensão dos preconceitos velados da população brasileira em relação às minorias sexuais, os pesquisadores analisaram as respostas que foram oferecidas quando os entrevistados eram inquiridos sobre grupos sociais que pudessem ser taxados como “diferentes”; em seguida seu nível de anuência a certos pensamentos ou frases comumente atribuídas aos homoafetivos e por fim suas possíveis reações a diversas situações hipotéticas de proximidade ou contato social com pessoas LGBTI. Os resultados apresentados mostraram que 54% dos interrogados apresentaram um nível leve de preconceito, enquanto 39% apresentaram um preconceito mediano e 6% demonstraram um alto nível de hostilidade. No entanto, somente 1% de todos os questionados não apresentou nenhum tipo de preconceito.
Embora à primeira vista este seja um dado incrivelmente alarmante, essa estatística de forma alguma deve ser interpretada erroneamente como prova irrefutável de que o povo brasileiro encontra-se total e irreversivelmente comprometido no que é referente à sua tolerância às minorias sexuais. Dado os parâmetros estabelecidos pelas perguntas apresentadas pelos pesquisadores, o organizador da pesquisa, Gustavo Venturi enfatiza que, caso fossem dadas perguntas diferentes, um sistema de pontuação de respostas distinto ou talvez situações hipotéticas diversas das estabelecidas no questionário, o resultado poderia ter apresentado um número diverso dos 99% ali vistos.
“[…] é evidente que uma medida de preconceito assim construída, pontuando como preconceituosas não apenas as respostas extremas, mas também respostas intermediárias – por exemplo, quem disse ter ‘antipatia’ por travestis (mas não ‘ódio ou repulsa’), ou ainda que ‘não gostaria, mas procuraria aceitar’ vizinhos homossexuais (em vez de ‘não aceitaria e mudaria de casa’) – não pode ser lida como sinônimo de medida da homofobia.” (VENTURI, 2010)
De fato, o autor acima assevera que embora certas porcentagens obtidas dentro da pesquisa possam ser interpretadas como representativos de um grupo de indivíduos com inclinações fortemente discriminatórias frente à comunidade LGBTI, é de suma importância a compreensão da distinção entre um preconceito extremo e inflexível e um tipo de atitude que, embora tecnicamente fundada em preconceito, origina-se mais de certa ignorância, sendo possível até mesmo testemunhar vislumbres de tolerância em meio ao desconhecimento (VENTURI, 2010).
Porém, uma constatação importante foi auferida pelos pesquisadores através da análise dos resultados desse estudo em comparação com outros que haviam sido realizados na mesma época, mas sobre preconceitos diferentes. Embora, em termos comparativos, os níveis de discriminação constatados dentro do Brasil pelos entrevistados com relação aos cidadãos da terceira idade (na pesquisa “Idosos no Brasil”) e contra os negros (na pesquisa “Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil”) seja muito similar aos apresentados na investigação de Venturi, os números encontrados nos três estudos quando os mesmos indivíduos eram questionados a respeito do seu próprio nível de preconceito variou significativamente.
“[…] se em 2006 apenas 4% dos não idosos admitiam ser preconceituosos em relação aos idosos, e se em 2003 também apenas 4% dos de cor não preta assumiam ser preconceituosos em relação aos negros (taxa que era de 10% em pesquisa do Datafolha, em 1995), agora encontramos em média 27% declarando ter preconceito contra LGBTT – sendo que 23% admitem ter preconceito contra os cinco grupos simultaneamente e 32% contra pelo menos um dos cinco. E com metodologia muito parecida, inclusive com perguntas análogas […] e ainda com algoritmo semelhante para montagem de uma escala de preconceito racial velado, 74% manifestaram em algum grau de preconceito racial, em 2003 (87% em 1995), contra os 99% de preconceito potencialmente homofóbico, achados agora”. (VENTURI, 2010)
Novamente, embora impossível chegar a qualquer conclusão definitiva sobre o estado das relações do povo brasileiro frente a estas minorias somente através da observação das estatísticas destacadas, é aceitável fazer certas assunções óbvias por meio do que foi exposto, como o fato de que o preconceito homofóbico aparenta ser mais facilmente admitido do que os outros. Isso pode ser decorrente de diversos fatores concomitantes, como uma percepção mais fortemente segregacionista enraizada no povo, levando a percepção popular de que atitudes de caráter discriminatório contra indivíduos homoafetivos não são tão mal vistas pela sociedade. Baseando-se em certas respostas ao questionário, Venturi propõe que a falta de educação sobre a temática, principalmente a percepção popular de que a homossexualidade trata-se de uma “opção” e não uma “orientação” contribui para a facilidade com que os LGBTI são criticados, uma vez que sendo a homoafetividade uma escolha, esta se encontra aberta a julgamentos.
Além disto, comparativamente com a situação do preconceito racista, a homofobia, não estando amparada sob a égide de um código legislativo específico, mostra-se mais vulnerável à disseminação de insultos, gozações veladas ou agressões, visto que nem sequer pode escapar da percepção errônea e mal informada disseminada através de discursos ofensivos ou representações humilhantes na mídia, que normatizam o preconceito e o tornam cotidiano. Como assevera Borrillo (2000, p. 41):
“Atualmente, é inimaginável proferir, sem risco, afirmações injuriosas contra outras minorias – tal como ocorre em relação aos homossexuais -, entre outros motivos, porque tal atitude é punida por lei. Essa ausência de proteção jurídica contra o ódio homofóbico posiciona os gays em uma situação particularmente vulnerável, tanto mais grave quanto a homossexualidade usufrui do triste privilégio de ter sido combatida, durante os últimos dois séculos, simultaneamente, enquanto pecado, crime e doença: mesmo escapando à Igreja, ela acabava caindo sob o jugo da lei laica ou sob a influência da clínica médica.”
Diante das respostas obtidas previamente, não é de se espantar que, quando questionados se acreditavam que a intervenção governamental era necessária no combate ao preconceito homofóbico que eles mesmos haviam reconhecido como real, somente 24% dos entrevistados mostrou-se favorável à ideia de envolvimento estatal na solução destes conflitos, em oposição aos 70% que acreditam que este conflito deve ser solucionado entre as partes.
Como evidenciado por Mott e reforçado por Venturi, as horrendas evidências da intolerância homofóbica no Brasil aparentam, à primeira vista, serem colossais barreiras, incomparáveis em sua perversidade barbárica e intransponíveis em seu enraizamento cultural. Não obstante, ambos diplomam separadamente a singular relevância que uma genuína intervenção estatal teria sobre a atual perspectiva brasileira da comunidade LGBTI, não somente através da elaboração de proteções estatais advindas de uma legislação penal, mas igualmente buscando engajar o povo em uma reeducação dos seus preceitos discriminatórios, dessa forma operando uma investida em múltiplas frontes necessitadas de intervenção, como a educação basilar da juventude nacional.
Porém, para que tal desígnio se torne realidade, um primeiro enfrentamento deve ser realizado dentro do maquinário estatal, local este onde, amiúde, a intolerância e a incompreensão tendem a reinar livremente.
3.1 Tentativas de engajamento estatal
O movimento LGBTI brasileiro teve seu surgimento durante a década de 70 do século XX. Primariamente, seu foco era o fortalecimento da “identidade homossexual” dentro do país. No entanto durante a epidemia do HIV/AIDS o mesmo acabou sendo fortemente impactado e os seus muitos grupos acabaram diminuindo, visto que a doença era taxada na época como o “câncer gay” pela mídia. No entanto esta atenção midiática trouxe à pauta as primeiras discussões nacionais sobre a comunidade LGBTI. A diminuição do número de associações acarretou uma concentração do grupo, a partir daí menos avesso a institucionalizações, levando à formação de associações formalmente registradas que batalhavam pelo reconhecimento dos direitos civis e políticas públicas (DANILIAUSKAS, 2011, p. 41-42). A partir de então o movimento cresceu exponencialmente, ganhando vozes mais poderosas, entre elas a do Triângulo Rosa e o Grupo Gay da Bahia, fundado pelo já referenciado Luiz Mott.
Durante o II Encontro Brasileiro de Homossexuais (atualmente conhecido como Encontro Brasileiro de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis), em 1984, todos os participantes reafirmaram seu interesses pelo fim da patologização da homossexualidade, a legalização do casamento gay, a criação de uma legislação anti-discriminatória e a ampliação da educação sexual nos currículos escolares, além da criação de uma comissão nacional de Direitos Humanos para LGBTI. Em 1986, veio a ser criado o Programa Nacional da DST/AIDS que, durante o ano de 1995, foi responsável por financiar o VIII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas (EBGL), onde teve nascimento a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) (FACCHINI, 2002, p. 88-95).
A seguir, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a consolidação do primeiro Programa Nacional dos Direitos Humanos dentro do Brasil tornou-se prioridade do movimento LGBTI, que em 1996 já estava envolvido na batalha contra os preconceitos de gênero e sexualidade. O Programa foi baseado nas resoluções da Conferência Mundial de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Nele foi feita a primeira utilização do termo “homossexuais” em um documento governamental oficial:
“Direitos humanos são os direitos fundamentais de todas as pessoas, sejam elas mulheres, negros, homossexuais, índios, idosos, pessoas portadoras de deficiências, populações de fronteiras, estrangeiros e emigrantes, refugiados, portadores de HIV positivo, crianças e adolescentes, policiais, presos, despossuídos e os que têm acesso à riqueza. Todos, enquanto pessoas, devem ser respeitados e sua integridade física protegida e assegurada.” (BRASIL, 1996).
A qualificação específica dentro do texto foi um passo de grande importância, oferecendo reconhecimento das adversidades enfrentadas pela comunidade, tratando estes como indivíduos merecedores de respeito e proteção[22].
Estava claro na primeira redação do Programa o interesse no combate à discriminação, mantendo-se simultaneamente fiel ao disposto na Constituição Federal e expandindo os conceitos por ela implementada, uma vez que o texto explicita a defesa contra discriminações por “orientação sexual”, termo ausente da Carta Magna, mas que sempre esteve na pauta do Movimento LGBTI como uma inclusão necessária.
No Programa Nacional de Direitos Humanos II ainda mais avanços foram feitos com relação ao conteúdo do documento, como a abordagem do Direito à Saúde, Previdência e Assistência Social, além da maior especificação dos sujeitos de direitos, desta vez referenciando gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais. O documento, concebido com a ajuda da sociedade civil organizada e através de um longo processo de consulta pública, continha ainda quinze ações que seriam tomadas pelo Governo Federal para batalhar a discriminação social e sensificar a nação sobre os direitos LGBTI e a forma como estes eram constantemente afrontados. Uma das implementações mais pertinentes que derivaram deste projeto foi a criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação[23]. (BRASIL, 2004, p.13) O progresso realizado através destes dois documentos, embora relevante na longa jornada, deixou a desejar em sua execução efetiva, pois “Apesar de ser lançado em 2002, último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, os seminários para sua elaboração aconteceram desde 1999, início do seu segundo mandato, e poucas ações foram implementadas”. (DANILIAUSKAS, 2011, p. 55)
Durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, em uma medida que visava atender as pressões dos movimentos humanitários ligados ao PT, o mesmo criou diversas secretarias com status de ministérios, que trabalhavam junto com o seu gabinete na busca do avanço do combate às desigualdades sociais. No ano de 2004 uma destas divisões, intitulada Secretaria Especial de Direitos Humanos (posteriormente batizada de Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República[24]), deu origem ao Programa Brasil Sem Homofobia, cujos objetivos eram a promoção da cidadania dos indivíduos homoafetivos, a educação e a mudança de comportamento dos gestores públicos e o fim da discriminação e da violência através da integração ministerial em parceria com o movimento LGBTI.
“[…] o presente Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania de Homossexuais, Brasil sem Homofobia, sinaliza, de modo claro, à sociedade brasileira que, enquanto existirem cidadãos cujos direitos fundamentais não sejam respeitados por razões relativas à discriminação por: orientação sexual, raça, etnia, idade, credo religioso ou opinião política, não se poderá afirmar que a sociedade brasileira seja justa, igualitária, democrática e tolerante. Com esse novo Programa, o governo brasileiro dá um passo crucial no sentido da construção de uma verdadeira cultura de paz”. (BRASIL, 2004, p. 13-14)
Por meio do engajamento dos participantes do projeto diversas intervenções foram realizadas em benefício dos cidadãos homoafetivos, como a capacitação de profissionais de segurança pública e educação para melhor lidarem com os LGBTI, reconhecimento do nome social de transexuais e travestis pelo Serviço Público Federal, a regulamentação no Sistema Único de Saúde da cirurgia de mudança de sexo e a inclusão de famílias homoafetivas no Censo 2010. (GUIMARÃES, 2012, p. 48)
3.2 Programa “Escola sem homofobia”
Das diversas ações promovidas pela iniciativa, uma das mais relevantes foi também a que acabou por receber a maior atenção do público em geral. Utilizando como ponto de partida a teoria queer e suas noções desconstrutivistas de papéis de gênero, o projeto derivado “Escola sem Homofobia” visava o progresso educacional da nação brasileira através da elaboração de um programa que aprimorasse a abordagem das questões de sexualidade dentro dos currículos escolares, abrangendo a agenda “anti-homofobia” através da instrução pedagógica dos estudantes sobre a importância do respeito às diversas orientações dentro do ambiente escolar.
Segundo Maria Rita de Assis César (2008, p. 48), a escola é uma “instituição que nasceu disciplinar e normatizadora, a diferença, ou tudo aquilo que está fora da norma, em especial, a norma sexual, mostra ser insuportável por transbordar os limites do conhecido”. Levando em consideração as tendências notoriamente hostis do ambiente escolar, a diversidade acaba por ser reprimida pelos educadores ou segregada pelos alunos. A reprodução retrógrada de pensamentos preexistentes é incrivelmente danosa ao progresso cultural necessário para o fim da discriminação das minorias sexuais, e quando a educação é entregue às mentes em formação por pessoas que se encontram presas (mesmo que inconscientemente) nas crenças de hierarquização das sexualidades, a perpetuação da ignorância não conhece limites.
Sendo as escolas locais primários de desenvolvimento cultural e educação cidadã, tornou-se óbvio que, além de punir as atitudes e violências discriminatórias em um nível delituoso, era necessário também trabalhar na construção de uma futura geração mais propícia ao respeito, capaz de apreciar os esforços preliminares realizados até então na busca da autonomia identitária homoafetiva e, posteriormente, continuar a converter a sua sociedade em um ambiente mais igualitário e tolerante.
“A escola, igualmente, deve desempenhar um papel capital na luta contra a intolerância, levando a compreender que o reconhecimento da igualdade de gays e lésbicas é uma questão que diz respeito a todos. Nos cursos e livros didáticos, a homossexualidade e a bissexualidade deveriam ser apresentadas como manifestações da sexualidade tão legítimas e bem sucedidas quanto a heterossexualidade. Finalmente, a homossexualidade dos personagens da História, da Literatura ou das Ciências poderia ser evocada com uma naturalidade semelhante à que se utiliza para falar do casamento de determinada rainha ou das aventuras amorosas de determinado revolucionário”. (BORRILLO, 2010, p. 110)
Logo, a proposta apresentada pelo programa era de:
“- Elaborar diretrizes que orientem os Sistemas de Ensino na implementação de ações que comprovem o respeito ao cidadão e à não-discriminação por orientação sexual.
– Fomentar e apoiar curso de formação inicial e continuada de professores na área da sexualidade;
– Formar equipes multidisciplinares para avaliação dos livros didáticos, de modo a eliminar aspectos discriminatórios por orientação sexual e a superação da homofobia;
– Estimular a produção de materiais educativos (filmes, vídeos e publicações) sobre orientação sexual e superação da homofobia;
– Apoiar e divulgar a produção de materiais específicos para a formação de professores;
– Divulgar as informações científicas sobre sexualidade humana;
– Estimular a pesquisa e a difusão de conhecimentos que contribuam para o combate à violência e à discriminação de GLTB;
– Criar o Subcomitê sobre Educação em Direitos Humanos no Ministério da Educação, com a participação do movimento de homossexuais, para acompanhar e avaliar as diretrizes traçadas.” (BRASIL, 2004, p. 22-23)
Dessa forma, com capital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e a ajuda das ONGs Reprolatina e Pathfinder, o Ministério da Educação não somente trabalhou na capacitação de profissionais em âmbito federal para um maior preparo quando necessário lidar com questões LGBTI, mas também realizou pesquisa qualitativa sobre a existência da homofobia nas escolas, o que levou a criação do “Kit de Combate à Homofobia”, que incluía vídeos e cartilhas para uso dos professores, seminários, pesquisas e atividades de formação continuadas para os docentes. (OLIVEIRA JUNIOR, 2013, p. 75-76)
A despeito das suas melhores intenções, a distribuição e efetivação desse projeto (que ficou popularmente conhecido como “kit gay”), encontrou diversas barreiras em seu percurso. No infindável cruzamento de opiniões, conhecimentos, e métodos de ensino dentro do ambiente escolar, o kit buscou unificar uma linha de pensamento progressista que foca nos “aspectos cognitivos individuais” (OLIVEIRA JUNIOR, 2013, p. 78). Ainda que diversos docentes tenham mostrado interesse em obter uma maior preparação na ressignificação das linguagens que melhor abordem os novos discursos e legitimem a abordagem combativa de situações homofóbicas dentro do ambiente escolar (FERRARI, 2011, p. 85), o projeto não foi capaz de lidar com o eventual enfrentamento das opiniões discordantes de diversos educadores e pais brasileiros que, ao obterem informações difusas sobre o kit através da mídia, o pré-julgaram como inapropriado e subversivo. Dessa forma o “currículo oculto[25]” se manteve firmemente plantado dentro da heteronormatividade.
Porém, o maior contratempo enfrentado pelo projeto foi a grande resistência (e o seu eventual bloqueio) por parte do Legislativo e Executivo brasileiro que, como de costume, usaram de mais esta oportunidade para expor as dificuldades extremas que possuem quando o assunto é a tão necessária reciclagem ideológica de seus posicionamentos.
3.3 Pareceres estagnados
“O preconceito que permeia a sociedade adquire um colorido mais intenso e mais perverso no âmbito do Poder Legislativo, infestado de parlamentares ligados a igrejas evangélicas fundamentalistas e que se arvoram o direito de destilarem todo o seu ódio contra a população LGBTI nos microfones das casas legislativas, de suas igrejas e dos meios de comunicação que adquirem em grande número, pois são detentores de incalculáveis fortunas”. (DIAS, 2014, p. 92)
Durante dois anos o Ministério da Educação trabalhou na produção e lançamento do programa que, em 2011, planejava distribuir por seis mil escolas brasileiras de Ensino Médio da rede pública uma coleção de materiais pedagógicos cujo principal objetivo era a promoção de uma discussão nacional sobre diversidade sexual. Embora tal empreitada contasse com a parceria de múltiplos órgãos como a UNESCO, a ABGLT, a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), a União Nacional de Estudantes (UNE) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP), a sua efetivação foi vetada pelos esforços conjuntos de uma bancada fundamentalista religiosa que se opôs veementemente à necessidade e o cabimento da abordagem de tais assuntos nas escolas. (OLIVEIRA JUNIOR, 2013, p. 198)
De fato, o pensamento religioso exerce poderosa influência na opinião pública brasileira. Tais manifestações avessas à homossexualidade foram também documentadas por Venturi (2010) na pesquisa referida anteriormente, tendo 92% dos entrevistados aprovado a frase “Deus fez o homem e a mulher diferentes para que cumpram seu papel e tenham filhos” e outros 66% subscreveram-se ao pensamento “homossexualidade é um pecado contra as leis de Deus”. Essa maioria tem constantemente apoiado a imposição de vetos e repressões de iniciativas governamentais que tem como seu simples objetivo o esclarecimento das diversas dúvidas e incertezas que afligem as crianças numa idade de desenvolvimento importantíssima[26].
A aderência à tamanha repressão de conhecimento e progresso tem se tornado uma preocupante tendência dentro do Congresso Nacional, que tem sido gradativamente cooptado por forças conservadoras que “lideram bancadas fundamentalistas de natureza religiosa, mais numerosas a cada legislatura”. (DIAS, 2014, p. 95) Além das múltiplas iniciativas educacionais, existem ainda diversos Projetos de Lei e Propostas de Emendas Constitucionais focadas na repressão da homofobia através da instituição de penas privativas de liberdade ou restritivas de direito que são constantemente nulificadas pela oposição tradicionalista, sendo o caso mais famoso entre estes o referente à PLC 122/2006.
Quando inicialmente apresentado, o texto da proposta concebida pela então deputada Iara Bernardi visava não só a imposição de penalidades criminais contra perpetradores de atos de homofobia, mas também sanções civis, como o impedimento de assumir cargos de Administração Pública ou a negação de benefícios tributários. (GUIMARÃES, 2012, p. 52) No entanto a passagem que veio a causar maior polêmica referia-se à pena privativa de liberdade de até cinco anos para aqueles que ofendessem ou criticassem publicamente a homossexualidade. Diante disso, os grupos religiosos alegaram que tal impedimento seria uma violação à liberdade religiosa e de expressão. (MASIERO, 2013, p. 15)
A retomada da relevância religiosa dentro da estrutura governamental é de suma importância para o entendimento da batalha pela legitimação da problemática homofóbica dentro do Brasil. A religiosidade, antes colocada em separado da atividade governamental, por determinações da laicidade do estado que a relegaram para a privacidade do indivíduo, agora ressurge como foco de poder e base determinante no confronto aos avanços da política humanitária dos Direitos LGBTI. Como afirma Tony Reis (2011, p. 176-177):
“O fundamentalismo religioso talvez seja um dos maiores problemas hoje enfrentados pela população LGBT, inclusive para a aprovação de leis. […] Os principais desafios que enfrentamos começam com os religiosos fundamentalistas, que não fazem distinção entre a Bíblia e a Constituição, que não respeitam a laicidade do Estado”[27].
Em uma análise feita pelo autor Paulo dos Santos Nascimento (2014, p. 71-101) dos muitos subtextos religiosos que permearam os debates a respeito da aprovação ou coibição da PLC 122/2006, se ofereceu destaque para a absoluta divergência de argumentos e temas em cada um dos discursos apresentados, diversos deles se afastando até mesmo da temática em questão para focar em outras preocupações religiosas com relação à comunidade LGBTI:
“É fato que há agressões contra homossexuais, assim como há contra idosos, pobres, deficientes, obesos, pessoas sem atributos estéticos evidentes, tímidos, etc. O problema da violência é muito mais uma consequência da impunidade que da intolerância, visto que a mesma deve ser coibida em todas as esferas da sociedade. Atribuir a não concordância com o estilo de vida homossexual, pela razão que se tenha, todo tipo de agressão é arbitrário e faz parecer que a violência está localizada, quando, no Brasil, é um problema sistêmico. E outra coisa: creditar toda morte de homossexual na conta da intolerância é irresponsabilidade, uma vez que as razões podem ser as mais variadas (dívidas de jogo, drogas, vingança, desentendimentos e, certamente, preconceito)” (Câmara dos Deputados, 02/06/2011).
“A união entre homem e mulher é o sustentáculo da humanidade e o que nos diferencia dos demais seres. É dela que emana todos os valores que tornam a sociedade possível, como, por exemplo, a coesão, o respeito, a unidade e o sentido de pertencimento e destino. É graças à instituição familiar, mais do que qualquer outra, que nós, seres racionais, transmitimos os valores definidores do bom e adequado caráter humano. Assim, qualquer distorção ou perturbação desse desígnio representa uma ameaça direta ao futuro da humanidade como a conhecemos” (Câmara dos Deputados, 02/06/2011).
“Se um casal dispensar uma secretária do lar e ela, numa delegacia, disser que isso foi feito por conta da sua opção sexual, porque a patroa a surpreendeu ao telefone conversando com a sua colega lésbica, essa patroa pega também de 2 a 5 anos de cadeia” (Câmara dos Deputados, 16/06/2011).
Fica claro dentro destes poucos excertos a tentativa latente de privar os indivíduos LGBTI do reconhecimento não só das adversidades que enfrentam, mas também de suas próprias identidades políticas. Ao tentar minimizar o ostensivo preconceito sofrido por esta significativa parcela da população e classificar a violência resultante como apenas mais uma inevitável consequência da sociedade brasileira o locutor se recusa a reconhecer um evidente problema para que possa permanecer firmemente posicionado dentro do status quo heteronormativo que lhe é confortável; a conjuntura estática da “família brasileira” que precisa desesperadamente ser defendida como uma criação de Deus e alicerce do futuro biológico da humanidade é o representativo mais forte do poderio patriarcal, que se esforça constantemente nestes discursos para manter quaisquer perturbações ou distorções de importunarem a suposta ordem natural. (NASCIMENTO, 2014)
Este sentimento generalizado de risco societal por consequência da comunidade LGBTI se encaixa na descrição do conceito de “Pânico Moral”, cunhado pelo sociólogo Stanley Cohen, em que retrata a concepção de temores públicos através da criação de bodes expiatórios para a sociedade quando esta é confrontada com certas situações que se contrapõe com as normas que estão em vigência. Os referidos pânicos morais manifestam-se aqui com a possibilidade de alterações nessa estrutura social heteronormativa. (NASCIMENTO, 2014, p. 102)
“Por trás dos temores de degeneração sexual residia o medo de transformações profundas em instituições como a família. Considerava-se que a então chamada “inversão sexual” constituía uma ameaça múltipla: à reprodução biológica, à divisão tradicional de poder entre o homem e a mulher na família e na sociedade e, sobretudo, à manutenção dos valores e da moralidade responsáveis por toda uma ordem e visão de mundo.” (MISKOLCI, 2007, p. 105)
Diante deste hipotético desmantelamento do modelo nuclear-patriarcal[28] supõe-se possível que os posicionamentos veementemente contrários à aprovação de legislações que favoreçam a comunidade LGBTI derivem mais de um artifício político focado em reter o domínio sobre interesses particulares do que um eventual cerceamento de liberdades de expressão “que, nesse caso, significa a ‘liberdade’ de condenar publicamente a homossexualidade a partir de interpretações da Bíblia”. (CARRARA, 2010, p. 51-52)
Estas manobras políticas que permeiam o tecido social são analisadas por Michel Foucault (2005, p. 58-59), que descreve a construção de qualquer ordenamento jurídico como similar a disputas bélicas entre diversos grupos com interesses distintos, tendo somente o lado vencedor a força necessária para fazer de sua vontade uma realidade, seja através de guerra ou meios políticos tradicionais. Dessa forma a lei acaba por ser idealizada sempre à imagem das tendências sociais dos círculos vencedores. E nesta situação particular, a força societal das convicções religiosas tem se mostrado uma grande influência.
“[…] o que estaria implicado nessas disputas é a produção e a legitimação de formas de controle social, que, na arena política em questão, pautam-se no cerceamento da cidadania a um grupo historicamente estereotipado como uma ameaça aos valores basilares que estruturam a presente conjuntura social.” (NASCIMENTO, 2014, p. 102-103)
Por conseguinte, as inclinações controladoras e repressoras do poderio estatal, expressas nas atuações legislativas, executivas e judiciais contra a emergência dos movimentos sociais aqui debatidos podem ser consideradas como investidas cujo intuito é refrear a normatização de novas formas de existência e comportamento que se encontram em completo desacordo com aquilo que está atualmente estabelecido.
A questão que se encontra verdadeiramente no âmago da dinâmica social aqui abordada é uma de identidade. Durante toda a história, um seleto grupo de pessoas dentro da sociedade teve todos os seus comportamentos, suas práticas, suas intimidades, suas mentes e até mesmo as suas cidadanias questionadas e definidas por uma maioria dominante que constantemente buscou, através de regras arcaicas de convívio, coibir e adequar a individualidade desta parcela de seus semelhantes ao que eles consideravam como o padrão. A estandardização aqui tratada, que demanda a conformação às regras e códigos de conduta pré-estabelecidos, transforma a homossexualidade em uma identidade fora da norma. Tal situação suscita a homofobia, mas não é diferente de tantas outras formas de preconceito que vieram antes e nem será distinta das que ainda hão de ser desafiadas.
Consequência de uma sociedade patriarcal heteronormativa, a homofobia mostrou ter suas raízes sexistas firmemente plantadas na cultura brasileira, expondo-se como especialmente danosa por estar presente não só em manifestações de extrema violência, mas também passando despercebida em meio às relações usuais do dia-a-dia. O desprezo, o desdenho, as humilhações e até o ostracismo acabam sendo vistas como angústias superficiais de se lidar quando comparados com a constante ameaça de violência e morte. Ademais, quando empreendimentos são promovidos visando a expansão cultural da nação ou a preservação deste grupo marginalizado, os mesmos são recebidos com escárnio ou revolta, muitos agindo como se fosse impossível acreditar que tais mudanças sejam remotamente necessárias, à despeito de todas as evidências que demonstram o contrário.
É inequívoco afirmar que o movimento LGBTI brasileiro conquistou diversas vitórias políticas dentro do país, como o reconhecimento da união estável e do casamento civil (com implicações dentro do direito sucessório e previdenciário), a possibilidade de alteração do nome social no registro civil, a permissão de cirurgias de mudança de sexo dentro Sistema Único de Saúde para transexuais, assim como a adoção de crianças por casais homossexuais e, por consequência, a liberação de licença natalidade. No entanto, apesar desses triunfos, a hostilidade ainda é eminente e o grau de agressividade e antipatia direcionado aos LGBTI faz com que a busca por um amparo legal que os proteja dessa violência sistemática torne-se imperativa. Este anseio por atuação acaba invariavelmente sendo exigido do Direito Penal, braço da lei tão frequentemente solicitado para solucionar os males que mais afligem o corpo social.
Sabendo que os princípios constitucionais que guiam a atuação intervencionista do Direito Penal o fazem de maneira a restringir seu exercício exagerado, somente permitindo sua intromissão quando ela se mostra excepcionalmente necessária, torna-se compreensível a hesitação de muitos estudiosos das ciências criminológicas frente a este anseio de criar mais uma tipificação na lei como resposta a demandas sociais, uma vez que, teoricamente, o Direito Penal não deveria ser utilizado como ferramenta de promoção de políticas públicas. Porém este é um entendimento que se encontra no cerne do Direito Penal Simbólico, posto que o mesmo busca suprir as expectativas de proteção, controle e prevenção do elemento delituoso através da implementação de sanções penais focadas tanto na coerção quanto na punição.
Com efeito, a eficácia simbólica não deve ser completamente ignorada, pois possui real influência sobre o ânimo nacional e neste caso abriria espaço para uma discussão necessária no Brasil. Assim como prévias legislações específicas abriram caminho para certo desenvolvimento cultural, além de fazerem com que os indivíduos vitimados sintam-se mais confortáveis para procurarem pela justiça (como é o caso das mulheres que podem procurar por delegacias específicas), tal especificação estaria dentro dos confins estipulados pela Constituição Federal, uma vez que as demandas envolvem a preservação da vida, a integridade, a dignidade e a honra, não sendo assim distinta das proteções oferecidas a outros grupos vulneráveis, como as mulheres, os negros ou os idosos.
No entanto, ainda que a demanda por intervenção penal pareça ser adequada, até mesmo essencial, é importante ressaltar que dita intercessão, embora válida, provavelmente não seria capaz de surtir um efeito imediato ou sequer em longo prazo na população brasileira. Uma mudança emblemática na abordagem estatal à violência LGBTI não seria suficiente enquanto a heteronormatividade no âmago da questão permanece irrefutada.
O ato de tutelar a discriminação homofóbica certamente seria um considerável passo na direção correta, porém para que a marcha possa seguir em frente é primordial que o comprometimento governamental ao combate à qualquer tipo de discriminação não se limite a atos simbólicos que lidam com as consequências da problemática à curto prazo, mas sim seja expandido para estratégias múltiplas de ação, visando uma total retificação cultural em nível basilar através de políticas públicas educacionais, ultrapassando assim os confins das tribunas e garantindo que os paradigmas atuais possam ser abertamente questionados pelas gerações futuras.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande FURG
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