A nova concepção de família no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo: A família, antes vista sob ótica meramente patrimonial, com o fito de reprodução, passou à condição de reduto afetivo de seus integrantes. Sob tal enfoque, necessário reconhecer verdadeiro pluralismo de entidades familiares, devendo o Ordenamento Jurídico garantir-lhes respeito e proteção. Diante das diferentes matizes familiares, o presente trabalho pretende fazer abordagem sintética acerca de alguns destes modelos, dando maior atenção aos institutos da união estável e da família homoafetiva, esta fonte de acirradas divergências na doutrina pátria, onde renomados autores ainda não a reconhecem como entidade familiar. Serão traçadas, ainda, breves linhas acerca da adoção por pares homoafetivos, assunto polêmico e que merece ser visto sob o manto constitucional que assegura a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme estabelecido no artigo 3°, IV, da Constituição Federal de 1988. 


Palavras-chaves: Família homoafetiva. Afetividade. Entidade familiar.


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Sumário: Introdução. 1. Elementos estruturais da família contemporânea. 2. Tratamento constitucional dispensado às entidades familiares. 3. A função social da família. 4. A União estável como entidade familiar. 4.1. Elementos caracterizadores da união estável. 5. O fundamento constitucional da dignidade humana e a tutela das “entidades familiares homoafetivas”. 5.1. Adoção por pares homossexuais. . Família moparental. Conclusão. Bibliografia.


INTRODUÇÃO


Não se deve negar que a multiplicidade e variedade de fatores, de diversas matizes, não permitem fixar um modelo familiar uniforme, sendo essencial compreender a família de acordo com as necessidades sociais prementes de cada tempo.


Do evidente avanço tecnológico e cientifico que marca a sociedade atual, decorrem, naturalmente, alterações nas concepções jurídico-sociais vigentes no sistema. No passo desse avanço tecnológico, cientifico e cultural decorre, por certo, a eliminação de barreiras arquitetadas pelo sistema jurídico clássico, abrindo espaço para uma família contemporânea, plural, aberta, de múltiplas facetas. Impõe-se, pois, necessariamente, traçar o novo eixo fundamental da família, não apenas condizente com a pós modernidade, mas, igualmente, afinado com os ideais de coerência filosófica da vida humana.


1. ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA.


A transição da família como unidade econômica para uma compreensão solidária e afetiva, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, traz consigo a afirmação de uma nova feição, agora fundada na ética, na afetividade e na solidariedade. E esse novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para que os seres humanos se completem.


Com tal pensamento, Gustavo Tepedino[1] sintetiza essa nova ordem que se descortina no âmbito familiar, ao sustentar que:


“As relações de família, formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por muito complexas que se apresentem, nutrem-se todas elas, de substancias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar: afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido a arte e a virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência de dar e receber amor”.


Nesse aspecto, a entidade familiar deve ser entendida, hodiernamente, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar, sob análise do texto constitucional. Assim, afirma-se a importância do afeto para a compreensão da própria pessoa humana, integrando o seu “eu”, sendo fundamental compreender a possibilidade de que dele – afeto; decorram efeitos jurídicos diversos. Essa afetividade traduz-se, concretamente, no necessário e imprescindível respeito às peculiaridades de cada um de seus membros, preservando a imprescindível dignidade de todos.


Afirmado o afeto como base fundamental do Direito de Família atual, vislumbra-se que, composta a família por seres humanos, decorre, por conseguinte, uma mutabilidade inexorável, apresentando-se sob tantas e diversas formas, quantas sejam as possibilidades de se relacionar e expressar amor, propriamente dito.


Por esta forma, percebe-se que a Constituição Federal de 1988 logrou êxito ao enxergar esta nova realidade. Formada por pessoas dotadas de anseios, necessidades e ideais que se alteram, significativamente, no transcorrer dos tempos, mas com um sentimento comum, a família deve ser compreendida como um ponto de referência comum na sociedade. Pode-se dizer que a Constituição promoveu verdadeira reconstrução da dogmática jurídica, estabelecendo como base a afirmação da cidadania como seu elemento propulsor.


Assim, dessa supremacia normativa constitucional, surge a necessidade de releitura dos conceitos e institutos jurídicos clássicos, como, por exemplo, o casamento e a filiação. Percebe-se, portanto, que o Direito Constitucional afastou-se de um caráter neutro e indiferente socialmente, deixando de cuidar apenas da organização política do Estado, para engendrar-se nas necessidades humanas reais e concretas, ao cuidar, de direitos individuais e sociais, como, exemplifica-se, nos artigos 226 e 227, onde se disciplina a organização da família, sendo esta reconhecida até mesmo como nova teoria constitucional.


Assume, portanto, a Carta Magna um verdadeiro papel reunificador do sistema, passando a demarcar os limites do Direito Civil, inclusive no que concerne a proteção dos núcleos familiares, ocorrendo verdadeira migração dos princípios e regras atinentes às instituições privadas, que antes eram, historicamente, tratadas exclusivamente sob a égide do Código Civil de 1916, de feição nitidamente patrimonialista, para o texto constitucional.


Não se pode negar que a família nasce do simples desenvolvimento da vida humana, não existindo, portanto, outra instituição tão próxima da natureza do homem como a família, sendo incontroverso que a visão constitucional da família aproxima-se de tal conceito.


Superada a percepção de família com o fito de reprodução, pregada pelo Código Civil de 1916, em função de valores predominantes a sua época, transparecem novos contornos para o direito de família, mais precisamente com o advento da Constituição de 1988, que solidificou valores sociais e humanizadores, tais como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a igualdade substancial, tratando-se de entidade de afeto e solidariedade fundada em relações de índole pessoal, voltadas para o desenvolvimento da pessoa humana.


Desse modo, a entidade familiar está vocacionada, efetivamente, a promover a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, sendo alicerce primordial para o alcance da felicidade.


2. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DISPENSADO ÀS ENTIDADES FAMILIARES.


A Carta Constitucional alargou o conceito de família, permitindo o reconhecimento de entidades familiares não casamentárias, com a mesma proteção jurídica dedicada ao casamento, modificando de forma revolucionária a compreensão do direito de família, que até então se assentava necessariamente no matrimônio.


O legislador constituinte, no caput do artigo 226 da Constituição Federal, normatizou o que já representava a realidade de milhares de famílias brasileiras, reconhecendo que a família é um fato natural, e o casamento uma solenidade, adaptando, por esta forma, o direito aos anseios e necessidades da sociedade, passando a receber proteção estatal não somente a família oriunda do casamento, bem como qualquer outra manifestação afetiva, como a união estável e a família monoparental, formada esta na comunidade de qualquer dos pais e seus descendentes, no eloqüente exemplo da mãe solteira.


O pluralismo das entidades familiares, por conseguinte, tende ao reconhecimento e efetiva proteção, pelo Estado, das múltiplas possibilidades de arranjos familiares, sendo oportuno ressaltar que o rol da previsão constitucional não é taxativo, estando protegida toda e qualquer entidade familiar, fundada no afeto. Trata-se da busca da dignidade humana, sobrepujando valores meramente patrimoniais.


A transição da família como unidade econômica para uma compreensão solidária e afetiva, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, traz consigo a afirmação de uma nova feição, agora fundada na ética e na solidariedade. Pode-se afirmar que esse novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para que os seres humanos se complementem e se completem.


Nessa linha de raciocínio, a entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional. Dessa forma, afirma-se a importância do afeto para a compreensão da própria pessoa humana, integrando o seu “eu”, sendo fundamental compreender a possibilidade de que do afeto decorram efeitos jurídicos dos mais diversos possíveis.


3. A FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA.


Entende-se que a norma jurídica somente pode ser vista e admitida como instrumento posto à disposição para implementar decisões justas e adequadas, solucionando os mais variados problemas e conflitos emergidos de uma sociedade aberta, plural e de múltiplas facetas.


Com a especial colaboração do Texto Constitucional, torna-se inquestionável que a ciência jurídica, como um todo, e, por conseguinte, o Direito de Família, é um sistema aberto a valores fundados em princípios que indicam um caminho a ser percorrido, em busca da efetivação da dignidade do homem, da solidariedade social, da igualdade e da liberdade.


Nessa nova arquitetura jurídica, não resta dúvida de que todo e qualquer instituto, necessariamente, tem de cumprir uma função social, uma determinada finalidade, a qual precisa ser observada na sua aplicação, sob pena de desvirtuá-lo da orientação geral do sistema jurídico, criado a partir das opções valorativas constitucionais.


Naturalmente, não pode ser diferente na seara do Direito de Família. A aplicação da norma familiarista tem de estar sintonizada com o tom garantista e solidário da Constituição Federal, garantindo a funcionalidade de seus institutos – é o que se pode chamar de função social da família.


Neste sentido, em importante ponderação, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Leandro Santos Guerra[2] pontificam:


“Os institutos do Direito de Família como um todo devem observar uma determinada finalidade, sob pena de perderem a sua razão de ser. Assim, deve-se buscar, nos princípios constitucionais o que almejou o constituinte para a família, de forma a bem entender sua normatização.”


Seguindo tal orientação, torna-se válido asseverar que a família é espaço de integração social, afastando uma compreensão egoísta e individualista das entidades familiares, para se tornar um ambiente seguro para a boa convivência e dignidade de seus membros.


Exemplos característicos do cumprimento da função social pelos institutos de direito de família podem ser apresentados, de modo a se ilustrar o afirmado. Dentre eles, tem-se o reconhecimento do direito de visitas aos diferentes membros das entidades familiares, como avós, tios e, até mesmo, padrastos ou madrastas. De outra forma, há a possibilidade de condenação alimentícia para a manutenção dos membros da família, assim como o reconhecimento da união estável quando um dos companheiros, apesar de ainda ser casado, já se encontra separado de fato do seu cônjuge, como reconhece o artigo 1.723, §1°, do Código Civil. Em todas as situações elencadas, percebe-se a preocupação em reconhecer uma perspectiva solidária nos núcleos familiares.


Afirmada a imprescindibilidade do cumprimento de uma função social pelo direito da família, vale destacar, inclusive, a premente necessidade de adaptação do conteúdo de seus clássicos institutos aos valores constitucionais, podendo implicar modificação de situações históricas, como se nota da admissibilidade de união estável entre pessoas ainda casadas, mas separadas de fato.


4. A UNIÃO ESTÁVEL COMO ENTIDADE FAMILIAR.


O Código Civil de 1916 somente reconhecia o casamento como entidade familiar, sequer admitindo a existência de uniões extramatrimonializadas. Naquela ambientação, o casamento era a única forma de constituição da chamada família legítima, sendo, portanto, ilegítima toda e qualquer outra forma familiar, ainda que marcada pelo afeto.


Considerando o caráter indissolúvel do casamento, na vigência do Código Civil de 1916, posto que este poderia até acabar de fato, porém não de direito, as pessoas viviam maritalmente com alguém, mas optando por não casar. Essas pessoas passaram a viver em entidades que foram intituladas concubinato, que significava, em linhas gerais, união entre homem e mulher sem casamento, seja porque eles não poderiam casar, seja porque não pretendiam casar. De qualquer modo, o concubinato não produzia efeito jurídico no âmbito do Direito de Família, mas sim no Direito das Obrigações, por ser estranho ao conceito de família, sendo chamada de sociedade de fato.


Tais relações afetivas, no entanto, produziam conseqüências fáticas, e as inúmeras pessoas que viviam em concubinato passavam a reclamar proteção jurídica e, assim, buscaram o reconhecimento de seus direitos junto ao Poder Judiciário, exigindo, desta feita, manifestação jurisprudencial.


Provocadas as Cortes superiores, o Supremo Tribunal Federal, que na época, possuía competência, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, cumprindo um papel visivelmente construtivo, editou duas sumulas reconhecendo algum tipo de proteção às pessoas que viviam concubinariamente, fora do matrimônio legal. Dispõe a Súmula 380: “comprovada a existência de sociedade de fato entre concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Noutro giro, a Súmula 382, por seu turno, reza: “a vida em comum sob o mesmo teto, ‘more uxorio’, não é indispensável à caracterização do concubinato”.


De outra forma, considerando que os concubinos não faziam jus aos alimentos, vez que a relação não tinha natureza familiar, a jurisprudência brasileira passou a reconhecer-lhes o direito a uma indenização por serviços domésticos, tais como lavar, passar, cozinhar, etc. e sexuais prestados, numa visão notadamente machista. Porém, foi uma maneira eficaz de conceder algum tipo de direito às pessoas que por lei não teriam direito a nada.tal posicionamento jurisprudencial teve grande consistência jurídica, representando significativo avanço para aquele tempo.


A firme posição dos tribunais chegou de fato a influenciar o legislador, que editou normas legais reconhecendo o concubinato. Neste sentido, a título ilustrativo, pode-se citar a Lei 6.367/75, bem como o Decreto-Lei 7.036/44, que reconheciam ao concubino o direito ao recebimento de indenização por acidente de trabalho com o seu convivente, matéria pacificada pelo Supremo na Súmula 35. Deste modo, a jurisprudência passou a reconhecer diferentes efeitos jurídicos às relações concubinárias, onde o concubinato era tratado à margem da legislação, mas com efeitos reconhecidos pelos Tribunais.


Finalmente, com a Constituição de 1988, o concubinato fora elevado a qualidade de entidade familiar, sob normatividade do Direto das Famílias, ganhando proteção estatal. Concretamente, o nome do instituto fora modificado, visando retirar o estigma da dupla conotação trazida pela palavra concubinato. União estável foi a nova denominação adotada para indicar as relações afetivas decorrentes da convivência entre homem e mulher, com o intuito de constituir família, despida das formalidades exigidas para o casamento.


Também chamada de companheirismo, a união estável foi normatizada e reconhecida como entidade familiar merecedora de amparo a partir do parágrafo 3° do artigo 226 da Constituição Cidadã. Sua tutela constitucional decorre do reconhecimento pelo legislador constituinte de uma situação de fato existente entre duas pessoas, de sexos diferentes e desimpedidas para os votos do matrimônio, que vivem juntas, como se casadas fossem, caracterizando, por esta forma, nítida entidade familiar.


Trata-se, em verdade, de um “casamento de fato”, efetivando a ligação entre um homem e uma mulher, fora do casamento, merecedor de especial proteção do Estado, vez que trata de fenômeno social natural, decorrente da própria liberdade de autodeterminação de pessoas que optam por viverem uma união livre. Com isso, a expressão concubinato passou a designar o relacionamento amoroso envolvendo pessoas impedidas de casar.


Na união estável, não resta dúvida, tem-se a mesma conduta pública e privada, a mesma comunhão de vida e nas mesmas expectativas do casamento, até mesmo porque tudo o que um casamento pretende, grosso modo, é ser união estável em sentido amplo, diferenciando-se apenas pela exigência de solenidades para sua constituição.


4.1. Elementos caracterizadores da união estável.


É possível diferenciar os requisitos da união estável em perspectiva objetiva e subjetiva. Os requisitos objetivos dizem respeito à diversidade de sexos, estabilidade, publicidade e inexistência de impedimento nupcial, enquanto os requisitos subjetivos se rendem ao ânimo de constituir família, a intenção de estar em convivência verdadeiramente familiar[3]. O domínio de tais elementos é de grande relevância, não apenas para sua compreensão, mas, por igual, para evitar a sua confusão com outros institutos assemelhados.


Neste sentido, o intuito de constituir família é o requisito principal para caracterização da união estável, pois a Constituição Federal confere status de entidade familiar à união estável, gozando, por conseguinte, de especial tutela estatal, tratando-se, pois, na firme intenção de viver como se casados fossem. Nesse passo, é o intuito de constituir família que diferencia a união estável de outras figuras afins, como, por exemplo, um namoro prolongado. Também afasta a união estável de um noivado, pois nestes as partes querem, um dia, estar casadas, enquanto os companheiros já vivem como casados.


Lado outro, não se pode negar que a prova da intenção de constituir família pode se apresentar de difícil caracterização, especialmente quando um dos conviventes vier a negá-la, tentando desqualificar a entidade familiar, todavia, a demonstração do ânimo de constituir família decorre da comprovação da existência da vida comum.


Quanto à diversidade dos sexos, a Carta Magna é expressa ao exigir a dualidade de sexos para a caracterização da união estável. A bem da verdade, esse elemento caracterizador das entidades familiares apresenta-se conectado a padrões morais de outros tempos, pretéritos, argumentando parte da doutrina que a exigência de dualidade de sexos decorreria da impossibilidade de os homossexuais assumirem, concomitantemente, o papel de pai e mãe em uma relação familiar.


De fato, não se deve fechar os olhos para a existência de “entidades familiares homoafetivas”, pessoas que se unem ao derredor de objetivos comuns, dedicando amor recíproco e almejando a felicidade, como qualquer outro grupamento heteroafetivo, pois, vale ressaltar, a Constituição Federal veda quaisquer tipos de discriminação, incluindo-se, aí, a discriminação sexual. Não se deve tolerar o tratamento dado a estes como sociedade de fato, com repercussão no campo do Direito Obrigacional, o que se torna um verdadeiro e retrógrado atentado aos direitos humanos, pois afronta os direitos de liberdade e autodeterminação.


De modo a se corroborar o entendimento da não taxatividade do artigo 226 da Constituição Federal, torna-se válido trazer a colação o ensinamento de Luciano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[4], que se expressam da seguinte forma:


“A Carta Magna estabelece em seu preâmbulo que, instituído o Estado Democrático, este se4 destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Fica claro, portanto, que a interpretação de todo o texto constitucional deve ser fincada nos princípios de liberdade e igualdade, e despida de qualquer preconceito, porque tem como “pano de fundo” o macroprincípio da dignidade da pessoa humana, assegurado logo pelo art. 1°, III, como princípio fundamental da República. A não admissibilidade de quaiquer comunidades afetivas (denominadas por alguns, de entidades parafamiliares) como núcleos familiares, afastando-as da incidência protetiva do Direito de Família, sob o frágil argumento de não estarem explicitamente previstas no art. 226, colide, em linhas gerais, com os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial, por ser descabida discriminação de qualquer espécie a opção afetiva do cidadão”.


No tocante a estabilidade, impõe-se à relação entre os companheiros uma feição não acidental, não momentânea. Por óbvio, convém rechaçar que a durabilidade esteja conectada a alguma exigência de lapso temporal mínimo, não sendo exigido, conforme alhures afirmado, prazo mínimo de convivência.


Confere-se, então, ao intérprete, a tarefa de verificar se a união perdura por tempo suficiente de modo a estabilizar a entidade familiar. Evidencia-se que esta estabilidade exigida por lei jamais será absoluta, ante a impossibilidade de se garantir certeza de estabilidade eterna entre o casal. De forma natural, ela é relativa, dependendo dos elementos pessoais dos companheiros e do próprio relacionamento, em si.


A própria noção de estabilidade traz, consigo, a necessidade de continuidade da relação afetiva, o que significa que o relacionamento permanece, transpassa o tempo, não sofrendo interrupções constantes, onde não será qualquer interrupção que comprometerá a constituição da entidade familiar. É certo, nesta ordem de idéias, que eventuais desentendimentos e conflitos pessoais são naturais na vida em comum. O que deteriora o vínculo afetivo é a ruptura séria, quebrando a base objetiva, que é a convivência, e a base subjetiva, configurada na intenção de continuar compromissado com outra pessoa.


Noutro giro, para que exista a união estável, é necessário que a relação afetiva seja pública, sendo preciso que os conviventes mantenham um comportamento notório, apresentando-se aos olhos de todos como se casados fossem, posto que nas uniões familiares é natural que o par não se esconda do meio social, mantendo o respeito recíproco, sendo reconhecido como uma família perante a sociedade.


5. O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA E A TUTELA DAS “ENTIDADES FAMILIARES HOMOAFETIVAS”.


Não resta dúvida de que uma relação contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo poderá produzir efeitos no âmbito do ordenamento jurídico, seja no âmbito patrimonial, seja na esfera pessoal.


Em que pese o retrógrado posicionamento de parte da doutrina brasileira, donde pode-se citar, a título ilustrativo, dentre esse posicionamento mais conservador, os renomados Carlos Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz, que entendem que as uniões homossexuais mantém-se na seara do direito puramente obrigacional, caracterizando-a como mera sociedade de fato – da qual decorreriam efeitos tão somente patrimoniais – a matéria exige análise mais cuidadosa, à luz das garantias constitucionais, em especial da dignidade da pessoa humana.


Vale dizer que para se viver em dignidade, deve ser respeitado o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas, segundo sua peculiar forma de ser. Não se pode excluir uma pessoa do sistema jurídico tutelador das conseqüências da afetividade, como o é o Direito de Família, em razão de sua orientação sexual, a qual é constituidora de sua personalidade, sendo elemento essencial do seu ser.


Como fundamento primário das uniões homoafetivas, tem-se o afeto, da mesma forma como em qualquer outra entidade familiar. Por isso, não é crível, nem admissível, que lhes seja negada a caracterização como entidade familiar. Da Constituição Federal extraem-se fundamentos que justificam tal assertiva.


Não obstante a Carta Magna não tenha expressamente contemplado a união homoafetiva como relação familiar, uma visão unitária e sistêmica do ordenamento jurídico conduz, tranquilamente, a essa conclusão, máxime quando considerados os princípios basilares constitucionais da dignidade humana, da igualdade substancial, da não discriminação, inclusive por opção sexual e do pluralismo familiar, que consagra diferentes moldes de entidade familiar.


Dentro da mesma perspectiva, a Lei ° 11.340/06, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – veio a reconhecer as uniões homoafetivas como entidades familiares ao aludir à possibilidade de violência familiar contra mulher, praticada inclusive por outra mulher. A norma é de clareza solar ao explicitar que as relações pessoais, e, por conseguinte, familiares, das quais podem decorrer violência doméstica, tratadas pela citada lei, independem de orientação sexual. Por esta forma, consagra-se, também em sede infraconstitucional, a tese de que as uniões familiares não são, exclusivamente, heteroafetivas.


Ademais, se a união entre irmãos, entre tio e sobrinho, entre avós e netos, dentre outras, constituem entidades familiares, naturalmente, é porque o rol constitucional é meramente exemplificativo, a partir do comando 226 da Constituição Federal. Por conseguinte, as uniões homoafetivas também são núcleos familiares, reclamando idêntica proteção.


Justamente acatando essa linha de argumentação, já se entende, em sede jurisprudencial, de maneira cabal, que a atual Constituição não vinculou a família ao casamento, pois abarcou outros modelos de entidades familiares, como as uniões estáveis e as famílias monoparentais. Todavia, essa pluralidade de entidades familiares não se esgota nos modelos antes mencionados. Percebe-se que o conceito de família não se restringe mais a união formada pelo casamento, visando a procriação, limitada, portanto, à heterossexualidade.


Hodiernamente, a afetividade é elemento essencial da família. Mesmo que não haja previsão legal para o reconhecimento das uniões homossexuais como entidades familiares, devem ser respeitados os princípios e garantias fundamentais da Constituição, um sistema aberto de princípios e regras que deve ser mantido vivo, atento a evolução da realidade social. Observa-se que a própria Constituição veda a discriminação, inclusive fundada em orientação sexual do indivíduo.


Daí ser lícita a conclusão de que o reconhecimento da união homoafetiva dentro do Direito de Família é imperativo constitucional, não sendo possível violar a dignidade do homem por apego absurdo e retrógrado a formalismos legais. Entender o contrário significaria negar a pessoas seus direitos fundamentais e a sua própria dignidade, garantida constitucionalmente logo no primeiro artigo da Carta Magna.


5.1. Adoção por pares homossexuais.


Prima facie, vale esclarecer que no procedimento da adoção não se verifica, ab initio, a opção sexual do adotante, ou seja, não se reconhece vedação à pessoa homossexual que pretende adotar uma criança. O que se percebe, na prática, é que o problema está inserido quando se trata de adoção por parte de pares homossexuais, vale dizer, em que pese posicionamentos contrários, que ocorre verdadeiro preconceito por parte dos tribunais pátrios no tocante a matéria suscitada, em desatendimento a princípios salutares, podendo-se invocar, por todos, o princípio da igualdade substancial.


Questão deveras controvertida, com recente destaque na mídia nacional, é a possibilidade de adoção por pares homossexuais. Em que pese entendimentos contrários, afere-se perfeitamente cabível a adoção por “casal homossexual”, em face da ausência de impedimento constitucional.


Exatamente por isso, o artigo 1.662 do Código Civil não pode ter o condão de limitar a adoção conjunta apenas para pessoas que vivam em casamento ou união estável. A partir da intelecção do artigo 227, em especial de seus §§ 5° e 6°, da Carta Magna, há abertura suficiente para que a adoção seja deferida, conjuntamente, a casais homossexuais que vivam estavelmente como entidade familiar.


O fundamento a ser perseguido para o deferimento, ou não, da adoção certamente será o melhor interesse da criança ou adolescente. Respeitadas a proteção integral e a prioridade absoluta infanto-juvenil, poderá ser deferida a adoção, conjunta ou individualmente, a quem representar vantagens reais e concretas ao menor, independente de orientação sexual.


Não sendo suficientes tais argumentos jurídicos, todos de índole constitucional, é mister tangenciar, ainda, o fato de que estudos técnicos mais recentes vem demonstrando que a orientação sexual dos pais não influencia os filhos, o que corrobora da preservação dos interesses menoristas. Neste sentido, Paulo Lobo[5] recorda e destaca uma pesquisa publicada em um periódico nacional, asseverando que “todos os estudos no país indicam que paternidade e adoção gay não causam problemas à criança”.


Assim, cumpre-se transcrever a ementa de acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, corroborando o entendimento aqui esposado:


“Adoção. Casal formado por duas pessoas do mesmo sexo. Possibilidade. Reconhecida como entidade familiar, merecedora de proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos da criança e adolescente. Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre a criança e as adotantes”.  (TJ/RS, Ac. 7ª Câm. Cív., ApCív 70013801592 – comarca de Bagé, rel. Dês. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 5.4.06, DJRS 12.4.06).


Sistematizando a matéria, tem-se que reconhecida como entidade familiar, das uniões homoafetivas decorrerão efeitos diversos típicos de uma relação de família, sem a possibilidade de cerceamento dos efeitos, sob pena de violação de valores constitucionais.


6. FAMÍLIA MONOPARENTAL.


Sob enfoque do princípio da pluralidade das entidades familiares, a Constituição Federal, em seu artigo 226, 4°, também mencionou a comunidade formada pelos ascendentes e seus descendentes, enquadrando a categoria no âmbito especial das relações de Direito de Família.


Neste sentido, percebe-se que a Carta Magna reconheceu um fato social de grande relevância prática, especialmente nos centros urbanos, ao abarcar como entidade familiar o núcleo formado por pessoas sozinhas (solteiros, separados, viúvos, etc.), que vivem com sua prole, sem a presença de um parceiro afetivo. É o exemplo da mãe solteira que vive com seu filho, ou até mesmo de um pai viúvo que se mantém com seu filho, sendo tais situações as legítimas famílias monoparentais. Assim, nada mais lícito do que lhes garantir a proteção advinda do Direito de Família.


Pode-se citar alguns fatores como determinantes a se constituir a família monoparental, como a separação ou divórcio, a maternidade ou paternidade sem casamento ou união estável, a adoção por pessoa solteira, a fertilização por acompanhamento médico, dentre outras.


Por tal forma, as entidades familiares monoparentais possuem os mesmos sinais característicos de uma família, posto que seus componentes cumprem os seus papéis no grupo familiar tal como ocorre em grupamento formado por casamento ou união estável. Justamente nesse sentido é que pode-se afirmar que família não é apenas o conjunto de pessoas onde existe uma dualidade de cônjuges ou de pais configurada, lado outro, também lhe aproveita qualquer expressão grupal articulada por uma relação de descendência.


Cabe destacar, outrossim, que das famílias monoparentais podem decorrer importantes conseqüências jurídicas, tais como a guarda, e o regramento do regime de visitas, além dos efeitos atinentes ao parentesco e a proteção do bem de família.


A família monoparental apresenta estrutura interna mais fragilizada, tendo em vista que os encargos mais pesados são impostos ao ascendente que cuidará, sozinho, do seu descendente. Observa-se que a monoparentalidade decorre, via de regra, da dissolução de uma relação afetiva ou da formação de um núcleo familiar sem a presença constante de um dos genitores, como na hipótese da mãe solteira. Assim, há uma tendência natural à diminuição da renda econômica, ao mesmo tempo em que há maior desgaste físico e psicológico por parte do ascendente, já que este não tem com quem dividir as obrigações assistenciais ao descendente, o que leva ao reconhecimento de uma certa fragilidade no seio destas famílias.


CONCLUSÃO


Como é cediço, o Direito não se mantém estático, e da mesma forma que a sociedade evolui, o Direito, por conseqüência lógica, acompanha tal processo de transformação. Neste ponto, percebe-se que a família, ponto fundamental e inicial de inserção do homem na sociedade, teve sua estrutura modificada, em detrimento ao conceito legal outrora estabelecido. E tal aspecto evolutivo se deu, notadamente, em virtude do afeto e da solidariedade, que norteiam o comportamento social do ser humano.


Por tal forma, novas concepções acerca da família vem surgindo no ordenamento pátrio, conceitos tais que se fundam sobre a personalidade humana, devendo a entidade familiar ser entendida como grupo social fundado em laços afetivos, promovendo a dignidade do ser humano, no que toca a seus anseios, no que diz respeito a seus sentimentos, de modo a se alcançar a felicidade plena.


Nesta seara, novos modelos familiares ganharam força, dentre eles a família monoparental, estruturada por pais únicos, com a ausência do pai ou da mãe. Várias são as formas de constituição familiar, em detrimento ao arcaico conceito estabelecido na legislação em vigor. Assim, deve-se destacar que o Direito acompanha a sociedade, regulando-a, sendo certo que tal regulamentação, de fato, acompanha os anseios das pessoas, devendo estar, por tal forma, de acordo com suas características.


Daí ser legítima a conclusão de que o reconhecimento da união homoafetiva dentro do Direito de Família é imperativo constitucional, não sendo possível violar a dignidade do homem, por apego a uma moral retrógrada a formalismos legais. Na medida em que a família deixa de ser encarada sob a ótica patrimonialista e como núcleo de reprodução, passando a ser tratada como instrumento para o desenvolvimento da pessoa humana, realçados seus componentes mais próximos a sua condição humana, tem-se, sem dúvida, uma democratização familiar.


Enxergar essa nova realidade foi, e continua sendo grande mérito do Texto Constitucional de 1988. Formada por pessoas dotadas de anseios, necessidades e sentimentos comuns, a família enquanto ninho deve ser compreendida como ponto de referência central do indivíduo na sociedade, uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente poderá ser substituída por qualquer outra forma de convivência social.


Frustrar o direito personalíssimo à constituição de uma entidade familiar formal entre pessoas do mesmo sexo é atentar contra a dignidade da pessoa humana, consagrada na Constituição Federal. Considerar uma relação afetiva de duas pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar não vai transformar a concepção de família e tampouco vai estimular a prática homossexual, pois é certo que a orientação sexual de alguém não lhe retira direitos conferidos pelo garantismo constitucional.


Pode-se afirmar, certamente, que consoante às evoluções sociais e culturais, novos modelos de entidades familiares surgirão, da mesma forma como os modelos alinhavados neste trabalho, devendo ser protegidos pelo legislador pátrio, como forma de garantia da dignidade da pessoa humana, fundamento estabelecido logo no artigo 1° da Constituição Federal, assim como em homenagem à preservação dos direitos inerentes à personalidade humana, no intuito de garantir, de forma ampla e irrestrita, o bem estar e a felicidade do cidadão brasileiro e os estrangeiros residentes no país, sobre proteção das leis brasileiras.


 


Bibliografia

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a Justiça! Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

_____. União Homossexual: o preconceito e a justiça, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2ª edição, 2003.

_____. Manual do Direito das Famílias. São Paulo: RT, 4ª edição, 2007.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Famílias. São Paulo: Saraiva, 21ª edição, 2006, 5° volume.

FARIAS, Luciano Chaves de; ROSENVAL, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; GUERRA, Leandro Santos. Função Social da Família. In GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.). Função Social no Direito Civil. São Paulo, Atlas, 2007.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família – vol. VI. São Paulo: Saraiva, 2005

LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias Monoparentais. São Paulo: RT, 1997.

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RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.


Notas:

[1] Tepedino, Gustavo. 1999, p. 64.

[2] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; GUERRA, Leandro Santos. 2007, p. 134.

[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. 2005, 342.

[4] FARIAS, Luciano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. 2008, p. 36 – 37.

[5] LÔBO, Paulo. 2008, p. 281.

Informações Sobre o Autor

Patrícia Matos Amatto Rodrigues

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, 2003, Pós-Graduada em Direito Civil pela PUC-MG 2006


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Equipe Âmbito Jurídico

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