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A nova era dos microssistemas jurídicos

Resumo: O presente artigo visa apresentar uma nova era, repleta de microssistemas jurídicos voltados à tolerância dos direitos em conflito, acarretando notória evolução hermenêutica e a necessidade dos atuais operadores do Direito de estudar minimamente o Princípio da Razoabilidade.

Palavras-chave: microssistemas jurídicos – conflito normativo – evolução hermenêutica – Princípio da Razoabilidade.

Abstract: This article presents a new era, full of legal microsystems aimed at the legal toleration of conflicting rights, resulting in noticeable hermeneutics changes and in the need of students examine minimally the Principle of Reasonableness.

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Keywords:  legal microsystems –  conflicting rights – hermeneutics changes –  Principle of Reasonableness

Sumário: 1. Introdução. 2. Pontos Ensejadores da Criação dos Microssistemas Jurídicos. 3. Entendendo os Microssistemas Jurídicos Existentes: suas características, qualidades e conflitos

1. Introdução

O estudo proposto visa constatar uma nova era de microssistemas jurídicos, era esta que afeta em muito a interpretação e aplicação das normas dentro de nosso ordenamento pátrio, revelando uma ideia de tolerância e harmônia aos diversos interesses sociais existentes, preponderando de forma evidente a necessidade do contemporâneo operador do Direito ter em mente e conhecer minimamente a essência do Princípio da Razoabilidade, tão estudado por juristas de renome, como Robert Alexy, Ronald Dworkin e, no Brasil, Humberto Ávila.

Com efeito, pretendemos aqui apresentar os pontos marcantes ensejadores da evolução ocorrida – mudança da função legislativa, que passa a dar maior valor aos microssistemas em detrimento das grandes codificações, bem como intentamos também explanar de forma sucinta e didática o que vem a ser um microssistema jurídica, tão falado e repetido, mas quase nunca explicado; finalizando o tema com a nossa opinião sobre as vantagens e desvantagens de um microssistema.

2. Pontos Ensejadores da Criação dos Microssistemas Jurídicos

Basicamente os microssistemas jurídicos passam a ser evidenciados diante do início das sociedades repletas de valores plúrimos, de interesses contrapostos, contraposições estas que, no entanto, não mais eram possíveis de serem resolvidas por meros critérios de solução de antinomias aparentes, vez que tais interesses colidentes não se mostravam, a priori, ilegítimos, o que ensejou a necessidade do desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica.   

Não obstante a melhor evidência dos microssistemas jurídicos no contexto atual de sociedades repletas de valores multilaterais, podemos identificar que as mudanças nos ordenamentos jurídicos e também na hermenêutica se iniciam com a Revolução Francesa e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão em 1.789, a qual estabeleceu como lema: liberdade, igualdade e fraternidade; lema este que mais tarde foi traduzido em três dimensões de Direitos Fundamentais.

 Destarte, na perspectiva de Karel Vazak, repetida por Norberto Bobbio e nacionalizada por Paulo Bonavides, as três dimensões ou gerações de Direitos Fundamentais seriam assim sistematizadas: Primeira Dimensão – Direitos Civis e Políticos; Segunda Dimensão – Direitos Sociais, Culturais e de Lazer e Terceira Dimensão – Direitos Difusos.

Neste diapasão, é somente com o início da evidência dos Direitos de Segunda Geração, notoriamente percebidos após a Primeira Guerra Mundial, com as experiências constitucionais da Constituição Mexicana de 1.917 e da Constituição de Weimar de 1.919 – esta verdadeiro marco da criação de novos Direitos Sociais, que se denota uma original crise do sistema liberal econômico existente, o que é agravado em 1.929 com o crack da bolsa de valores de Nova Iorque, que acaba de vez com o ideal trazido por Adam Smith, no sentido de que a economia seria totalmente autorreguladora.

Nesta esteira, e ante a crise econômica existente, impulsionada principalmente pelos EUA, surge o “New Deal Welfare State Policies”, implementado pelo Presidente Norte-americano Frank Roosevelt na década de 30, inspirado nos modelos já antes existentes na Europa, que defendiam a intervenção do Estado na economia como forma de se garantir igualdade de oportunidades a todos, distribuição de riquezas e responsabilidade pública pelo mínimo existencial ao ser humano.

A economia, com isso, afetando diretamente o Direito, acaba por mitigar em muito a causa material do Direito, que dividia classicamente esta ciência em Direito Público e Direito Privado.

 O Direito Público, então, tratava das relações jurídicas, nas quais o Estado participava, tendo por princípio informador o Princípio da Estrita Legalidade, estabelecendo uma nítida relação de subordinação para com os particulares de uma forma geral. Já o Direito Privado tratava apenas das relações entre particulares, era baseado no Princípio da Autonomia da Vontade – que se traduzia de forma absoluta pelo brocardo pacta sunt servanda, não raras as vezes traduzido como o contrato faz lei entre as partes, sendo tal Direito Privado primordialmente caracterizado em uma relação de coordenação entre as partes envolvidas.

Não obstante, com a ideia de intervenção Estatal, surge o que no Brasil o jurista Orlando Gomes achou por bem chamar de “Publicização do Direito Privado”, o que se torna ainda mais explícito quando eclode a Segunda Grande Guerra. As atrocidades nazistas, então, revelam a necessidade de se buscar uma revitalização dos Direitos Humanos, donde surgem inúmeras Constituições pródigas em Direitos Fundamentais, analíticas e dirigentes, marcando a era do Constitucionalismo Contemporâneo ou Neoconstitucionalismo.

Daí se dizer que já neste momento muitos Direitos Difusos foram lançados nas inúmeras Cartas Magnas ao redor do Mundo, e no Brasil não foi diferente, sendo certo que a Constituição Federal de 1.988 estampa com todas as letras a ideia de se tutelar o consumidor (art. 5º, inciso XXXII), as crianças e os adolescentes (art. 229), os idosos (art. 230).

Logo, o que se percebe é que a antiga summa diviso existente entre Direito Público e Direito Privado perde a razão de existir, sendo cabalmente demonstrada a sua imperfeição, uma vez que o Estado passa a intervir, inclusive, nas relações jurídicas privadas, ainda mais quando o Neoconstitucionalismo firma a força normativa constitucional e o STF declara de forma explícita que hoje vivemos uma era de eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais previstos na Constituição Pátria.

 Portanto, é diante deste contexto histórico, legislativo e social que surgem os microssistemas, eis que a divisão do Direito nos dois troncos acima aludidos não mais se sustenta, assim como a sociedade de uma forma geral urge pela concretização de Direitos Coletivos em sentido amplo, Direitos estes que são, por natureza, repletos de conflituosidade interna, ainda mais quando falamos em sociedades, repita-se, marcadas pela diferença de valores.

3. Entendendo os Microssistemas Jurídicos Existentes: suas características, qualidades e conflitos

Os microssistemas, desta feita, marcam um movimento de descodificação de inúmeras leis – no Brasil, surgem o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90); o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90); o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03); o Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671/03), dentre outras leis; todas em íntima ligação processual com a Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85).

Ademais, tais microssistemas possuem finalidade precípua de garantir a defesa das minorias, entendidas como os grupos hipossuficientes, motivo pelo qual os referidos microssistemas jurídicos passam a trazer à baila princípios específicos inerentes aos temas positivados – surgem, com efeito, legislações sistematizadas insertas em um sistema jurídico maior (em um ordenamento jurídico nacional), que se reportam diretamente à Constituição Federal.

Assim, a especificidade da proteção concedida pelas leis formadoras de cada microssistema mostra-se essencial para que o Estado possa intervir nas relações privadas sem qualquer grau de arbitrariedade e sempre levando-se em conta a necessidade de tratamento igualitário (isonomia real) entre os particulares envolvidos em uma ou outra relação jurídica. E essas são a ideias primordiais a se justificar a necessidade de criação de leis ensejadoras dos diversos microssistemas – a busca pela igualdade substancial e a proteção das minorias.

Cumpre-nos agora atacar a questão dos conflitos normativos entre os diversos microssistemas. Nestes termos, verificamos que muitas vezes ambas as leis conflitantes serão legítimas, especiais e buscarão vetores de validade previstos na Constituição, de modo que o critério de especialidade, construído por Savigny, será inútil, eis que estaremos diante de um conflito de leis de mesma ordem de grandeza, de mesmo valor.   

 Trata-se, deste modo, de uma antinomia real, isto é, de uma antinomia não solucionável pelos critérios de resolução das antinomias aparentes (critérios da especialidade, hierarquia, subsidiariedade, cronologia). Didático, com isso, é o seguinte exemplo: duas pessoas, “José” – pessoa idosa e “João” – criança, encontram-se gravemente feridas, não sendo possível precisar qual está em situação mais precária. Ambos procuram atendimento hospitalar em local onde existe apenas um médico de plantão, que deverá escolher atender um em detrimento do possível óbito do outro. Qual pessoa o médico deverá primeiro atender?   

Lembremos que diante deste exemplo, o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), em seu art. 3º, estabelece ser “obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.”

 Não outra é a disposição prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que em seu art. 4º, estampa ser “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”

Pois bem, de imediato já se denota restar impossível a aplicação do princípio da especialidade, vez que o que está em jogo é o Direito à Vida e à Saúde de um idoso versus o Direito à Vida e à Saúde de uma criança, sendo certo que ambas as leis – Estatuto do Idoso e Estatuto da Criança e do Adolescente garantem os direitos envolvidos. Da mesma forma, o Direito à Vida e à Saúde também é assegurado na Constituição Federal – art. 196, restando inviável como forma de solução da antinomia o critério hierárquico.

 Em verdade, ambos os direitos (da criança e também do idoso) deveriam ser tutelados pelo Estado, não obstante, faticamente isto não ocorra, deixando nas mãos do médico – profissional treinado a salvar vidas – a escolha trágica de ter que optar pela vida de um em desfavor da vida de outro. Mas, críticas a parte, o que deverá o médico fazer, se diante do conflito normativo, os critérios acima aludidos não são suficientes a solução da questão?

A solução será dada pela aplicação do Princípio da Razoabilidade, de modo que os conflitos existentes entre leis formadoras de microssistemas, ao contrário do que se denota da aplicação do Princípio da Especialidade em que lex specialis derogat legi generali, não resultarão na derrogação de uma lei por conta do conflito com outra lei. Assim, os microssistemas, quando em conflito, ensejarão soluções decorrentes do caso concreto, interpretações ab-rogantes, em que uma lei se torna ineficaz por conta da aplicação de outra, mas nem por isso a lei ineficaz ao caso concreto quedar-se-á revogada. 

A razoabilidade, então, trabalhará sob duas vertentes:

A primeira inerente à adequação do comportamento ao resultado pretendido, valendo-se a indagação, no exemplo dado, se o atendimento do médico a um dos pacientes será o único meio determinante a salvar sua vida? Se sim, passamos a segunda indagação abaixo formulada.

 A segunda vertente – razoabilidade em sentido estrito – possuirá a função de verificar se o bem jurídico tutelado com o atendimento do médico é maior ou equivalente ao bem jurídico preterido? Aqui, diante do caso concreto exemplificado, encontraremos uma resposta de alta complexidade, que demandará muita argumentação jurídica, valendo antecipar que a criança e o adolescente possuem prioridade absolutíssima em relação a qualquer outro sujeito, conforme doutrina e jurisprudência majoritária, discussão esta que, ainda que interessante, não faz parte do cerne inerente aos microssistemas.

 Aliás, que seja dito, somente será necessária a realização da interpretação ab-rogante antes citada quando inviável a harmonização dos microssistemas conflitantes, harmonização esta realizada por conta da utilização do dialogo das fontes. Disso tudo cabe  frisar que os microssistemas jurídicos implementaram não somente uma nova forma de se fazer leis, mas também uma nova maneira de interpretá-las.

Com efeito, resta completamente elogiável a ideia de microssistemas na seara cível (no plano do Direito Material Cível), vez que, ainda que possam suscitar alguns conflitos normativos, como o exemplificado, são meios eficazes de se garantir a tutela de hipossuficientes de forma isonômica, assim como também garantem a tutela de Direitos de Segunda e Terceira Dimensões.

 Desta feita, o Código Civil de 2.002 vem na contramão da evolução suscitada, embora mereça respeito o entendimento do ilustre mestre Miguel Reale, ao defender sua elaboração sob o argumento de que somente estariam sendo positivados pontos inerentes à matéria civil já consolidados ao longo de inúmeros anos; o que não se retira a força dos argumentos, ainda que alguns destes pontos sejam passíveis de crítica.

 A bem da verdade, o que precisamos é realizar um contrabalanço entre os microssistemas jurídicos e os códigos existentes, sob pena de, se exagerarmos nas codificações, perderemos a noção de defesa isonômica dos hipossuficientes; de outra banda, se exagerarmos na criação de microssistemas, decerto perderemos a noção das regras mínimas suficientes à solução dos conflitos originários destes microssistemas, o que descambará na arbitrariedade e falta de segurança jurídica, sem contar na inefetividade social das normas criadas, que servirão como bela vitrine de algo impossível de ser aplicado ao mundo do ser. Certamente o equilíbrio é extremamente delicado, mas deverá ser buscado.

 Todavia, a evolução elogiável e ponderada na seara cível não poderá ser estendida ao campo penal, pois é da essência do Direito Penal que o legislador tenha uma visão conglobada de todas as leis que versam sobre o campo criminal para que possa guardar uma noção de razoabilidade entre as condutas tipificadas como crime e as penas a elas aplicadas.  A ideia de leis esparsas acaba por prejudicar em muito tal visão, a ponto de surgirem infindáveis discussões jurídicas sobre normas penais em conflito, sem contar o fato de que nem mesmo os operadores do Direito Penal sabem precisar quantas são as condutas tipificadas como crimes no país e muito menos se estas condutas guardam relação de proporcionalidade de pena em relação a condutas até mesmo mais graves. Por isso, entendemos saudável a ideia de um novo Código Penal, que vise englobar a grande maioria das condutas tipificadas, pois somente assim teremos noção se as penas a estas aplicadas são justas e razoáveis quando comparadas com condutas mais gravosas. 

Por derradeiro, e ressalvando-se a seara penal, entendemos que os microssistemas jurídicos no Direito Cível representam avanço notável à proteção das minorias, desde que não sejam tais microssistemas generalizados ao ponto de se perder a conexão com o sistema geral existente – com o ordenamento jurídico existente e, mais especificamente, com a Constituição Federal. Não outra é a conclusão, então, que os microssistemas jurídicos fincam uma nova era de proteção e concretização de novos direitos, estabelecendo uma verdadeira tolerância ao pluralismo de valores sociais, o que certamente ensejará uma melhor adaptabilidade destas leis microssistemáticas aos anseios sociais.

 

Referências
ÁVILA, Humberto.Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª edição. São Paulo: Malheiros
ALEXY, Robert.. Direito, Razão, Discurso – Estudos para a Filosofia do Direito. 1ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
———————-. Teoria da Argumentação Jurídica. 3ª edição. São Paulo: Forense, 2011.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª edição. Brasília: Editora UNB, 1999.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4ª edição. São Paulo: Malheiros, 1993.
FERRAZ JUNIOR. Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2002.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. 1ª edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
REALE, Miguel. Estudos Preliminares do Código Civil. 1ª edição. São Paulo: Revista dos Tribuanais, 2003.
RIZZATTO, Nunes. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
Internet – sites:
http://en.wikipedia.org/wiki/Welfare_state – acesso em 11 de julho de 2012.
http://www.planalto.gov.br – acesso em 11 de julho de 2012.

Informações Sobre o Autor

Bruno Servello Ribeiro

Advogado formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, militante nas áreas de Direito Civil, Direito Empresarial e Direito do Consumidor, pós graduando pela Escola Paulista da Magistratura em Direito Empresarial e professor em Direito Comercial.


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Equipe Âmbito Jurídico

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