A nova interptetação constitucional e o juízo de ponderação

Resumo: o presente artigo tem por escopo definir o contexto social em que se difundiram as primeiras idéias do juízo de ponderação, bem como avaliar seu conceito e sua relevância para o exercício da atividade jurisdicional.


Palavras-chave: princípios, conflito de princípios, hard cases, juízo de ponderação.


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Sumário: Introdução.  O conflito de interesses e o juízo de ponderação. Conclusão. Referências bibliográficas.


I. INTRODUÇÃO


Traçando uma linha evolutiva acerca das bases filosóficas que subsidia(ra)m o estudo e a interpretação do Direito, pode-se considerar, de imediato, o jusnaturalismo, seguida do positivismo jurídico, e por fim, do pós-positivismo.


O jusnaturalismo, constituído a partir do século XVI, se fundava na existência de um direito natural, na idéia de que em toda sociedade existe um conjunto de valores sobre-humanos, que independem e que não decorrem de norma jurídica escrita, emanada do Estado. Seriam normas ínsitas, regidas por uma ordem superior ou ditadas pela razão.


A crença na existência de direitos naturais do homem, como sendo garantias imunes ao poder de interferência do Estado, que deveria respeitar esse espaço de liberdade, fomentou as revoluções liberais da época, que enfrentaram a ordem absolutista vigente. Cite-se, como exemplo emblemático dessa nova visão social, a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Veja-se o conteúdo do artigo 2 da Declaração:


“O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis ao homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”


Para expor a transição desse ideal naturalista para o positivista, utilizam-se as palavras de Luís Roberto Barroso[1]:


“O advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, sua superação histórica. No início do século XIX, os direitos naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais dois milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX.”


O positivismo, marcado pela idéia de que o Direito reduzia-se a um conjunto de normas em vigor, prescindia de qualquer justificação, bastando sua própria existência.


Após a segunda metade do século XX, o positivismo jurídico foi ultrapassado pelo ideal pós-positivista, que representou


“a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais”[2]


Nessa nova fase, se exaltou o papel dos princípios, que tiveram reconhecimento pela sua normatividade, passando a sintetizar os valores ínsitos no ordenamento jurídico, espelhando a ideologia e os postulados basilares de uma sociedade e dando unidade e integração a um ordenamento específico. A atividade de interpretação das normas constitucionais se voltou para esse foco, de modo a se valorizar não apenas “o que se está escrito”, mas também “o que se quis dizer”.


II. O CONFLITO DE INTERESSES E O JUÍZO DE PONDERAÇÃO


Questão mais complexa se apresenta quando se constata, em um caso concreto, aparente conflito de princípios, como o direito à informação e a proteção à intimidade. Válida é a leitura das premissas de Robert Alexy:


“Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não é só possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação”[3].


Persistindo a problemática de se firmar critério para solucionar casos de conflitos de normas constitucionais, a doutrina desenvolveu a teoria da ponderação de valores ou ponderação de interesses, técnica mediante a qual se intenta estabelecer “peso” para cada um dos valores envolvidos na questão, de modo a, mediante concessões mútuas, se produzir um efeito favorável, mediante o mínimo sacrifício dos princípios contrapostos.


Ana Paula de Barcellos, citando José Maria Rodriguez de Santiago, informa que


“a doutrina em geral está de acordo que a solução de casos como esses não passa por uma subsunção simples, mas por um raciocínio – ainda misterioso e pouco estudado – pelo qual se atribuem pesos aos elementos em conflito para, ao fim, decidir por um deles ou ao menos decidir pela aplicação preponderante de um deles.”[4]


O que deve reger essa ponderação de princípios é, na verdade, outro princípio: o da razoabilidade “e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo”.[5] Não existe supremacia de princípios, haja vista estarem todos no mesmo nível constitucional; o corolário que deve reger qual valor deve preponderar sobre o outro é aquele que melhor atenda à ideologia ínsita da Carta Política, evitando-se, no entanto, o banimento total de um deles.


Robert Alexy ensina que quando houver convergência entre princípios, um deles:


“[…] tem que ceder ante o outro. Porém isto não significa declarar inválido o princípio afastado nem que no princípio afastado tenha que se introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede, mais exatamente, é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede o outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. É isto o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar para além da dimensão da validade, na dimensão do peso”[6].


Assim, a atividade jurisdicional não pode ser entendida, na atualidade, como a mera aplicação da norma ao caso concreto que lhe é submetido (subsunção è norma, incidindo sobre os fatos = aplicação do teor da norma à situação fática). Impõe-se que a decisão promova a justiça, contribuindo, de modo mediato, para o alcance de resultados, de fato, equânimes. 


Nos conflitos de princípios, termos como “sopesamento”, “peso”, “proporcionalidade” ganham destaque no cenário jurídico, nas decisões, nos julgamentos, na tentativa do Poder Judiciário em prolatar decisões justas, que alcancem o ideal de justiça, solucionando conflitos de valores da forma menos “traumática”.


III. CONCLUSÃO


A ponderação consiste, portanto, em método para se tomar decisões jurídicas nos denominados “casos difíceis” ou “hard cases”, nos quais tenha restado insuficiente ou impossibilitado o juízo de subsunção, mormente quando a mesma situação ampara a aplicação de normas da mesma hierarquia jurídica, mas que indicam direções completamente opostas, tal como o direito à liberdade de imprensa e de expressão face ao direito à honra e à intimidade ou o direito à livre manifestação cultural em relação à proteção à fauna (como se constata nas denominadas “Farras do Boi”)


Em 2002[7], o STF decidiu caso envolvendo conflito entre o direito à honra e os direitos à intimidade e integridade física. Sob custódia da Polícia Federal, enquanto estava aguardando julgamento do Supremo acerca de seu pedido de extradição, a cantora mexicana Glória Trevi acusou os carcereiros de terem-na estuprado, fato que deu causa ao seu estado de gravidez. Quando do nascimento da criança, os acusados solicitaram à Corte exame de DNA do recém-nascido para provar que nenhum deles era pai da criança. O tribunal deferiu o pedido, considerando que haveria invasão mínima à integridade física do bebê e de sua mãe (já que o material genético seria colhido da placenta), em contraposição ao direito dos policiais acusados, de serem inocentados do crime e, assim, preservarem sua dignidade e honra.


Na lição de Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcelos[8], a ponderação “ingressou no universo da interpretação constitucional como uma necessidade, antes que como uma opção filosófica ou ideológica” e, embora tenha sua denotação vinculada a algumas críticas[9], revela-se uma ferramenta que, ainda que esteja em processo de delimitação e definição pela doutrina e jurisprudência, representa meio eficaz de combate aos abusos na aplicação dos princípios e aos excessos na apreciação do caso concreto, enaltecendo, assim, o juízo de valoração, o bom-senso e contribuindo para a correta e justa aplicação do direito necessário para aquela demanda específica.


 


Referências bibliográficas

ALEXY, Robert apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997

BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional (Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas). 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008;

BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, apud SANTIAGO, José Maria Rodrigues. La ponderación de bienes e intereses em El derecho administrativo, Madrid: Marcial Pons, 2000

FREITAS, Juarez de. Tendências atuais e perspectivas da hermenêutica constitucional”. Ajuris 76/397;

MENDES, Gilmar Ferreira, et alli. Curso de Direito Constitucional. 4º edição. São Paulo: saraiva: 2009.


Notas:

[1] BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional (Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas). 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 22.

[2] Idem, p. 25.

[3] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

[4] BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, apud SANTIAGO, José Maria Rodrigues. La ponderación de bienes e intereses em El derecho administrativo, Madrid: Marcial Pons, 2000, p 74.

[5] FREITAS, Juarez de. Tendências atuais e perspectivas da hermenêutica constitucional”. Ajuris 76/397.

[6] ALEXY, Robert apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 33.

[7] STF, RCL 2.040-DF, Rel. M. Néri da Silveira, 21/02/2002.

[8] BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional (Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas). 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 348.

[9] Ex: o elevado grau de subjetividade para sua aplicação ou a não-fixação de referências para que a valoração seja feita.

Informações Sobre o Autor

Fernanda Cunha Gomes

Procuradora Federal, especialista em Direito Público pela UNB/AGU


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Equipe Âmbito Jurídico

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