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A novela Fina Estampa e a ovodoação

Resumo: O presente artigo traça breves linhas sobre a realidade jurídica por trás do tema reprodução medicamente assistida com recepção de gametas discutido na novela Fina Estampa, exibida no ano de 2012, na emissora TV Globo. Discute a quem pertence a maternidade de criança gerada por via desta técnica reprodutiva e as relações jurídicas existentes, ou não, entre ela e a doadora e a receptora do oócito que lhe deu origem.


Abstract: This article provides a few lines about the legal reality behind the playback theme with medicalization of gametes discussed in the novel desk Faction, displayed in the year 2012, on Globo TV. Discusses who owns the maternity of the child raised through this reproductive technique and the existing legal relations, or not, between it and the donor and the recipient of the oocyte that gave rise.


Sumário: Introdução. 1. A doação/recepção de gametas de doador(a); 2. Da filiação da criança gerada através da doação/recepção de gametas. 3. Da ação de guarda da criança resultante da ovodoação/recepção. Considerações finais. Referências bibliográficas:


Palavras-chave: Ovodoadora; ovoreceptora; filiação; reprodução assistida.


Keyword: Egg donation; egg recipient; parent-child relationship; assisted reproduction.


Introdução:


A novela Fina Estampa apresentada pela emissora Rede Globo conta a história de uma mulher que, decidida a gerar uma criança em seu ventre, se valeu da técnica de reprodução medicamente assistida denominada fertilização in vitro com recepção de gameta doado para conseguir a gestação desejada.


Na história contada, a doadora do óvulo que resultou o nascimento da filha da personagem foi informada desta ocorrência pela própria médica responsável pelo procedimento. Sentindo-se mãe da criança, a doadora deu entrada em ação judicial solicitando a sua guarda.


Uma novela, por óbvio, é uma obra de ficção, não necessariamente tendo respaldo na realidade. Todavia, aproveitamos a oportunidade para tecermos algumas considerações sobre os aspectos jurídicos reais por trás desta obra de ficção.


1. A doação/recepção de gametas de doador(a):


A doação/recepção de gametas de doador é atualmente no país regulada pela Resolução nº 1.957/2010, publicada no D.O.U. de 06 de janeiro de 2011, Seção I, p.79, pelo Conselho Federal de Medicina.


Este dispositivo legal, válido e obrigatório diante da inexistente de lei ordinária que disponha sobre o assunto, pretende harmonizar o uso das técnicas de reprodução medicamente assistida com os princípios da ética médica através da previsão de normas de cunho ético para a sua utilização.


Como princípios gerais a Resolução estabelece que “é proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que não a procriação humana” e que “as técnicas de reprodução assistida podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso” (grifo nosso)


Determina também que “o consentimento informado será obrigatório a todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida, inclusive aos doadores” (grifo nosso). Para tanto “os aspectos médicos envolvendo as circunstâncias da aplicação de uma técnica de reprodução assistida serão detalhadamente expostos”. O consentimento informado deverá ser expresso em documento consistente “em formulário especial e (que) estará completo com a concordância, por escrito, das pessoas submetidas às técnicas de reprodução assistida” (grifo nosso).


Assim, todo aquele que pretenda doar material germinativo seu somente o poderá fazer após ser detalhadamente esclarecido sobre as implicações do seu consentimento, e, principalmente, que tal material será sempre utilizado para a obtenção de gestações que resultarão na geração de indivíduos que portarão a sua carga genética.


Não há, diante da lei que regula a matéria nos dias atuais, como haver doação de material germinativo (oócitos e sêmem) sem que se compreenda e aceite expressa e voluntariamente a geração de indivíduos portadores da carga genética do doador.


A Resolução determina ainda, no que tange à doação de gametas ou embriões, que “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa” e que “obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores”.


É então imposição da norma que se mantenha sigilo quanto às identidades de doadores e receptores quando houver doação/recepção de gametas ou embriões.


Na história a personagem doadora doou seus oócitos, o que, segundo a legislação atual, somente poderia ter feito após ter sido esclarecida exaustivamente quando às implicações de sua decisão, inclusive de que eles seriam utilizados para a obtenção de gravidezes em receptoras que necessitem de gametas doados para realizarem o desejo de gestarem filhos.


Saberia ela também que nunca poderia ter, diretamente, acesso à identidade da receptora e que esta garantia seria recíproca.


Os médicos e funcionários do Centro Médico onde o tratamento fosse levado a efeito estão também obrigados ao sigilo, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.


Não pretendemos tratar de tão complexo assunto nestas breves linhas, limitando-nos unicamente à questão tratada na novela Fina Estampa, na qual a doadora se surpreende com a notícia de que oócito seu doado resultou no nascimento de uma criança gerada no útero de uma receptora.


Diante da legislação em vigor, fora da ficção novelística, impossível tal ocorrência, já que somente poderia ter havido doação mediante declaração voluntária de vontade por parte da doadora, após a indispensável e obrigatória informação das implicações de caráter biológico, jurídico, ético e econômico, sem o que jamais poderia existir doação de gametas.


Ao ser explicada sobre as consequências da doação de gametas, a personagem doadora estaria cientificada de que ela jamais seria, salvo geneticamente, mãe da criança resultante da utilização de oócito seu que tenha voluntariamente doado.


Assim, injustificável o espanto e a revolta demonstrados pela personagem doadora quando, também ficcional, já que vedado pela lei, lhe foi informado pela médica responsável pelo procedimento o nascimento da criança a partir de oócito seu.


Infelizmente esta obra de ficção faz crer ao espectador desavisado que esta é uma reação natural e esperada de uma “mãe” que se vê alijada de um “filho” seu. Melhor teria sido se mostrasse a situação como se apresentaria na realidade não ficcional, esclarecendo assim os telespectadores quanto a este maravilhoso avanço da medicina.


2. Da filiação da criança gerada através da doação/recepção de gametas:


O Código Civil Brasileiro em vigor estabelece, em seu art. 1.593, que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.


A “outra origem” a que a lei faz referência consistem no parentesco socioafetivo. Aquele que resulta do afeto que vincula os membros de uma família uns aos outros. Nele está inclusa a filiação pela adoção e resultante das técnicas de reprodução medicamente assistidas com emprego de gameta doado.


O art. 1.597, V, cria a presunção de terem sido “concebidos na constância do casamento os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.


O dispositivo legal aponta a técnica de reprodução medicamente assistida “inseminação artificial” e faz referência ao consentimento prévio e indispensável do “marido” para que se utilize gameta doado para a obtenção de filhos que serão, por tal presunção legal, legalmente seus.


Apesar de o Código Civil datar de 2002 ao tempo da elaboração do texto do dispositivo em comento, que em muito antecedeu a sua entrada em vigor, as demais técnicas reprodutivas eram no país ainda muito incipientes para merecer a atenção do legislador.


Assim, a interpretação a ser dada ao dispositivo legal amplia sua aplicação a todas as técnicas de reprodução medicamente assistidas hoje existentes, dentre elas a fertilização in vitro. Se deve interpretar como obrigatória a prévia autorização para uso de oócito doado também para a mulher que pretenda dele se valer para obter gestação e filhos próprios.


O art. 1.604 do mesmo Código impõe que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”.


Pela leitura do dispositivo legal temos que a personagem doadora da novela Fina Estampa jamais poderá vindicar a maternidade da criança filha da personagem receptora, já que é presunção absoluta para o direito pátrio que, tendo havido recepção de oócito após a assinatura do indispensável instrumento de consentimento informado, é esta última incontestavelmente mãe da criança assim gerada.


Isso por que as únicas hipóteses que autorizam a contestação da eficácia absoluta do registro civil do nascimento consistem na existência de erro ou falsidade do registro.


O erro, ao qual faz referência o dispositivo legal, é vício do consentimento consistente numa falsa interpretação da realidade a ser feita pelo agente. No caso estudado, teria havido erro caso a receptora registrasse a criança como sua, crendo ser ela sua filha genética, quando na realidade não o era. Ou que a doadora não houvesse dado seu consentimento informado para que a doação ocorresse.


Ou seja, haveria erro no registro de nascimento capaz de autorizar o pedido de rescisão caso as personagens receptora e doadora acreditassem que a criança registrada como filha da primeira fosse geneticamente sua.


Este não é o caso apresentado na novela, pois ambas as personagens sabiam de antemão que ao doar/receber oócitos seriam gerados embriões cuja maternidade, caso resultassem no nascimento de crianças, a lei atribuiria à receptora, excluindo qualquer possibilidade jurídica de reconhecer-se a doadora como mãe de tais indivíduos.


Clóvis Beviláqua é claro ao dizer que “o erro, para viciar a vontade, deve ser tal que, sem ele, o ato não se celebraria”. Ora, o ato fecundação in vitro dos oócitos da personagem doadora para transferência de embriões para o útero da personagem receptora somente ocorreu após ambas as duas terem sido minuciosa e exaustivamente esclarecidas sobre tal procedimento. Se a criança foi gerada e parida pela personagem receptora o foi com a expressa e incontestável anuência de ambas, o que afasta definitivamente qualquer alegação de erro quanto ao assento de nascimento.


Também não se poderia alegar a ocorrência de falsidade no registro. Haveria, exemplicando, falsidade do registro caso a personagem receptora soubesse não ser a criança filha sua, segundo as leis civis, privando-a, e à personagem doadora, do direito ao conhecimento de sua ascendência.


No caso da ficção aqui tratada, a lei civil prevê a filiação da criança em questão como pertencente à personagem receptora, excluindo de forma absoluta a maternidade da personagem doadora.


É mãe da criança em questão, com presunção absoluta ou juris tantum, a personagem receptora, já que a filiação aqui tratada é a civil, ou seja, decorrente da utilização de técnica de reprodução medicamente assistida com emprego de gameta doado que resultou no nascimento de prole que não compartilha com a genitora ascendência genética, mas cujo parentesco civil é a ela atribuído pela lei civilista.


Assim, para o Direito é mãe da criança a personagem receptora, com exclusão absoluta da maternidade da doadora.


Não havendo como se entender ter ocorrido no caso ficcional erro ou falsidade de registro, é vedado à doadora a propositura de ação de rescisão de registro civil de nascimento bem como de ação de investigação de maternidade.


Isso, pois a lei civil atribui com presunção absoluta, logo juris tantum, a maternidade dos filhos resultantes do emprego das técnicas de reprodução medicamente assistidas com uso de gametas doados, desde que cumpridas todas as exigências legais, aos receptores, com exclusão da maternidade/paternidade dos doadores.


3. Da ação de guarda da criança resultante da ovodoação/recepção:


Determina o art. 1.634, I e II, do Código Civil Brasileiro, que “compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores dirigir-lhes a criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda” (grifo nosso), dentre outros direitos e obrigações.


Ora, se a lei civil reconhece com presunção absoluta a maternidade da criança à personagem receptor, com exclusão da da doadora, não há qualquer lastro legal para uma ação onde se solicite, cuja motivação recaia sobre a suposta maternidade da doadora, a guarda da infante.


Não tem ela com a criança qualquer vinculação jurídica sua com a criança que autorize que tal pedido venha a ser julgado procedente. Legalmente não há entre ela e a criança qualquer vínculo de ordem jurídica que dê lastro a tal esdrúxulo pedido.


O pedido não é juridicamente impossível, já que pedir-se a guarda de criança ou adolescente é pedido perfeitamente possível. Todavia, quanto ao seu mérito, consistente na apreciação da relevância do pedido formulado e a sua subsunção às normas legais, é clara a imposição de julgamento que dê pela total improcedência do pedido de guarda.


Não há qualquer respaldo legal que justifique que a personagem doadora formule pedido de guarda da criança, filha reconhecida em lei, da personagem receptora.


Assim o é na realidade, e deverá se confirmar também na ficção.


Considerações finais:


De tudo o quanto se discutiu acima temos que:


O direito reconhece como mãe aquela que, tendo se sujeitado à técnica de reprodução medicamente assistida com ovorecepção, gerou prole com quem não compartilha o DNA.


Tanto é assim que a lei veda que os receptores de gametas doados mediante prévio consentimento esclarecido pleiteiem em juízo ação negatória de maternidade/paternidade.


Quanto aos doadores de gametas somente poderão doar após terem sido esclarecidos minuciosamente sobre as consequências biológicas, jurídicas, éticas e econômicas da doação que pretendam fazer. Dentre elas a vedação legal de futuro pleito que vise o reconhecimento judicial da sua maternidade/paternidade.


Estes são os fatos jurígenos tratados no presente artigo e que vêm sendo retratados na novela Fina Estampa exigida na TV Globo.


O hábito do brasileiro de “seguir” novelas as torna uma fonte importante de formação de conceitos e preconceitos culturais. Este importante veículo de difusão de informações se apresenta hoje como verdadeira ferramenta para a democratização dos saberes.


Todavia, não raro os espectadores confunde a ficção com a realidade, se referindo aos artistas pelos nomes de seus personagens, dedicando-lhes o afeto ou o ódio que a estes dedicam.


É notório e sabido que as informações prestadas nas ficções das novelas televisivas são recebidas pelo público assistente com verdadeiras e fonte confiável de referência.


Assim é que o público alvo da novela Fina Estampa está sendo levado a crer que aquele que consciente, voluntária e informadamente doa gameta poderá um dia vir a clamar sua maternidade/paternidade frente à prole dos receptores que tenham feito uso dele em seus tratamentos reprodutivos.


Fazer tais esdrúxulas afirmações, sobe a alegação de ser a novela Fina Estampa obra de ficção, é um desserviço público, pois gera na mente e corações de inúmeros doadores e receptores a ideia de que os filhos assim gerados lhes pertencem e não pertencem, respectivamente.


Quantos pais e mães hoje, após os episódios onde a questão foi tão fantasiosamente apresentada, não passaram a recear por seus filhos, adquirindo o medo recôndito de um dia depararem-se com “as verdadeiras” mães ou “os verdadeiros” pais de seus filhos. Estes tão longamente desejados e pelos quais abriram mão do vínculo genético para realizarem o sonho da maternidade/paternidade.


Não há que se falar em censura à novela, mas sim na exigência de uma maior eticidade no tratar com questões tão sensíveis ao povo do qual fazem parte os seus espectadores. A mesma ética que inibe que nas novelas globais se valorize o racismo, o chauvinismo, o nazismo e tantos outros “ismos” repudiados pelo povo brasileiro.


Nestas poucas linhas se tentou explicar o real e o legal por trás da ficção televisiva, tornando públicas e acessíveis informações que esclareçam os indivíduos que tendo passado, ou que passaram no futuro, pelas técnicas de reprodução assistida com doação/recepção de gametas sobre a relação reconhecida pelo direito que os ligam ou ligarão às proles que gerarão.


 


Referências bibliográficas:

BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil anotado. Vol. IV. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1916.

BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 09 de fevereiro de 2012.

COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2007.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1.957, 15 de dezembro de 2010. Publicada no D.O.U. de 06 de janeiro de 2011, Seção I, p.79. Disponível em: < http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm>. Acesso em 09 de fevereiro de 2012.

DINIZ, Maria Helena – Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007.

VENOSA, Silvio Salvo Venosa. Direito civil. São Paulo: Atlas, 2008.

Informações Sobre o Autor

Rosana Ribeiro da Silva

Professora universitária na Faculdade de Direito UNIFEOB (http://portal.unifeob.edu.br/novoportal/index.php) nas disciplinas de Direito Processual Civil e Psicologia Aplicada ao Direito, Mestre em Processo Civil pela Universidade Paulista – UNIP, Mestre em Educação do Ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP, advogada.


Equipe Âmbito Jurídico

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