Resumo: O artigo trata do fenômeno histórico do surgimento das penas, a reforma que ocorreu nas penalidades e como a pena privativa de liberdade assume o protagonismo que possui em nossa sociedade.
Palavras chave: Criminologia; Pena; Prisão; Origem.
Abstract: The article discusses the historical phenomenon of the emergence of penalties, the reform that took place in the penalties and how the custodial penalty assumes the role it has in our society.
Keywords: Criminology; Penalty; Prison; Origin.
Sumário: Introdução. 1. O surgimento. 2. A pena privativa de liberdade. Conclusão
Introdução
O ser humano tende a naturalizar o cotidiano e, muitas vezes, acreditamos que as instituições atuais, como as prisões, sempre existiram, ainda que numa versão primitiva. Em outras palavras, é comum acreditar que as coisas sempre foram do jeito que são; e portanto, continuarão sendo assim sempre. Quando a produtora de desenhos Hanna-Barbera imaginou uma um grupo familiar na Idade Pedra, o resultado foi uma típica família norte-americana de classe média com animal doméstico, carro, eletrodomésticos e outros bens de consumo. A mesma produtora criou um desenho sobre como se daria a vida no futuro e o resultado é a mesma estrutura familiar que a descrita, mas com modernos adereços. Essa ilusão é a mesma cortina de fumaça que ainda paira sobre as discussões acerca da história das prisões e da pena privativa de liberdade.
Para traçar a origem das penas e do direito de punir, Cesare Beccaria (1764) voltou-se aos primeiros homens selvagens forçados a se reunir pelas ameaças e obstáculos que encontravam naqueles tempos. A forma que teriam encontrado de se proteger e abrir possibilidade para uma vida em sociedade foi o sacrifício das porções de liberdade de cada indivíduo em prol de uma nação. O embrião do direito de punir foi a estrita necessidade e, portanto, esses homens cederam só a menor fração necessária. Por isso, Beccaria afirmava que “todo exercício do poder que se afasta dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é usurpação e não mais poder legítimo”[1].Foi ao longo do século V, que o povo começou a se apoderar “do direito de julgar, do direito de dizer a verdade de opor a verdade aos seus próprios senhores e de julgar aqueles que os governam”[2]. E, então, desenvolveu-se as formas racionais da prova e da demonstração com regras e condições para produzir uma verdade. Ainda que só venha a se desenvolver plenamente na idade média, surge também um novo tipo de conhecimento, que é o por testemunho, lembrança ou inquérito. No direito feudal, o litígio era regulamentado pelas provas que poderiam ser sociais, verbal, de juramento e, também, corporais. Não se tratava de uma procura pela verdade, mas tão somente “uma espécie de jogo de estrutura binária”[3] cabendo ao juiz atestar a regularidade do procedimento e não a verdade.
1. O surgimento
O Poder Judiciário ainda não havia se estruturado na alta Idade Média. A tarefa de resolver os litígios e proceder com a liquidação cabia aos indivíduos, e aos senhores soberanos somente o papel de atestar a regularidade do procedimento. A acumulação de riqueza e do poder das armas e a constituição do poder judiciário nas mãos de alguns, ambos partes de um mesmo processo histórico ligado ao momento medieval, só vem a amadurecer no final do século XII com a formação da primeira grande monarquia medieval. Com isso a justiça passou a ser imposta do alto, e a ofensa a um indivíduo passou a ser considerada uma ofensa também ao Estado, a ordem, a lei e ao poder soberano. A reparação já não pode concluir-se com a satisfação do ofendido, sendo necessária a reparação da ofensa contra o soberano, razão do surgimento dos mecanismos de multas e confiscações.
Esse processo de estatização da justiça penal ocorrido ao longo da Idade Média abriu espaço para o surgimento da “sociedade disciplinar”[4]. Assim chamada pelo Foucault, surge no fim do século XVIII e início do século XIX com a reorganização do sistema judiciário e penal na Europa. Influenciada por autores como Beccaria, Bentham e Brissot, o sistema teórico da lei penal passa a ter como princípio fundamental o crime, no seu sentido técnico, cortando relação com a falta moral ou religiosa. A infração vem atrelada a ideia de violação a uma lei, devidamente formulada e cumprida por um poder político. Outra mudança é a ideia da lei penal como protetora do que é mais importante pra sociedade, e da necessidade de ser clara a definição do crime. Nesse período, ocorre o surgimento do Direito Penal moderno, um direito codificado atribuindo penas a crimes específicos com uma metodologia de aplicação da lei. Sua principal fonte e o contratualismo, em especial com Locke. Ligada a crença no indivíduo e sua liberdade individual, abriu espaço para a transformação do direito de punir com base na vontade divina ou do senhor para um direito de ser punido na medida da responsabilidade sobre violação ao pacto social
Ainda assim, a futura centralidade que terá a pena de prisão reforça a ideia de que houve uma contrarreforma. O professor Louk Hulsman a chama de “filha da escolástica”[5], por sua relação uma visão religiosa do mundo. O componente ideológico do aprisionamento, afirma, está ligado à cosmologia da teologia escolástica medieval. A centralidade de ambos é a existência de um “ponto absoluto”[6], onipotentes e onisciente, que se apresenta ou como Deus ou como a lei. A aceitação quase que natural da dicotomia inocente-culpado pode ser explicada pelo maniqueísmo da pregação religiosa.Sobre a essa relação, Pasukanis explica que:
[…] a Igreja quer associar ao momento material da indenização o motivo ideológico da expiação e, portanto, fazer do direito penal, baseado sobre o princípio de vingança privada, um meio eficaz de manutenção da disciplina pública, isto é, da dominação de classe[7].
A partir da reforma do sistema penal, se passa a considerar criminoso aquele que rompe o pacto social. A consequência de descumprir esse contrato é ser reconhecido como um inimigo da sociedade. Uma vez que a perturbação da vida em sociedade se configura como crime, os penalistas da reforma defendem que a pena deve objetivar na reparação dessa perturbação. Para eles, a punição deveria abandonar a tentativa de expiar a redenção de pecados ou exercer a vingança, e tornar-se um desincentivo para que outros membros rompam o pacto social. Nessa época da reforma da penalidade são apontados quatro tipos possíveis de punições: a deportação; o desprezo público, que se tratava de expor publicamente a falta cometida buscando a humilhação do autor; a reparação forçada do dano, sendo inclusive apontada a ideia de trabalho forçado; e, por fim, a pena de talião, que trata-se de responder ao infrator na medida exata do dano.
A reforma buscou atribuir um caráter técnico às penas, reforçando o princípio da proporcionalidade desta com o delito. Buscava-se a adoção de penas mais humanas e a consequente abolição da tortura, das penas corporais e infamantes, das execuções capitais barbaras, etc. A pena cruel e atroz passa a ser vista como afronta ao pacto social, sendo caracterizada como prática dos Estados absolutistas. Enquanto, a pena pecuniária é apontada como solução para os eventos criminalizáveis praticados sem violência. Dessa forma, o Estado reforça seu patrimônio exercer permanentemente seu poder de punir. A eterna vigilância e a certeza da punição era apontadas como mais eficaz que a dor corporal. Nesse sentido, um dos autores mais expressivos dessa época, Beccaria afirma: “Não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são brandas”[8]. Embora tenha obtido grandes, a abolição das penas corporais não ocorreu em todo lugar permanecendo, por exemplo, o açoite na Inglaterra, o castigo corporal aos presidiários na França, e até a introdução de castigos corporais para alguns delitos na Dinamarca de 1905[9]. Pasukanis lembra que, após a queda da repúblicasoviética da Hungria, já em 1919, o acoite passou a ser usado como pena para certos delitos contra a pessoa e a propriedade.
Essa é a história de como “constituiu-se progressivamente o complexo amalgama do direito penal moderno, no qual podemos distinguir sem dificuldade as raízes históricas que lhe deram origem”[10]. Pasukanis afirma que a burguesia continuou se servindo do sistema penal para dominação de classe através do seu sistema de direito penal oprimindo as classes exploradas, pois "o conjunto da sociedade"[11] só existe na imaginação dos juristas, esquecendo que, na realidade, são classes com interesses opostos, contraditórios. O processo, que Álvaro Reis chama de surgimento da “racionalidade penal moderna no iluminismo”, foi a tônica do sistema penal durante muitos anos. Foi no pós guerra, período de estabelecimento do Estado de Bem Estar Social, a sociologia sobre a questão criminal sofre profundas alterações. A grande viradafoi o resgate do pensamento de Durkheim[12] do debate teórico sobre o crime constituir um fato social, contrariando a lógica que existia dele se constituir umadecisão individual. Com o neoliberalismo, o papel do indivíduo na sociedade retoma a centralidade e a importância que possuíam no passado, reutilizando-se da racionalidade penal moderna e recuando a ideia do crime como decisão individual.
2. A pena privativa de liberdade
Entretanto, entre as penas apresentadas e discutidas pelos autores e legisladores da reforma da penalidade ocorrida no século XVIII, a que veio a tornar-se dominante é justamente a pena privativa de liberdade. Beccaria só viria a comentar sobre o aprisionamento de forma sucinta, na sua forma processual, afirmando que "a prisão, entre nós, é antes um suplício que um meio de deter um acusado”[13]. Foucault observa que ela "surgiu no início do século XIX, como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica”[14]. Essa nova penalidade se atém ao controle do psicológico e da moral dos indivíduos e faz disso o principal objetivo do direito de punir, substituindo a ideia de defesa da sociedade e do que pode ser nocivo à ela. É então que a preocupação com a periculosidade do indivíduo, ou seja, a valoração de suas virtudes antes de seus atos, irrompe como algo generalizado. O poder único da justiça e a instrumentalização do controle penal punitivo é partilhado com uma série de outras instituições que surgem, como a policial, de vigilância, psiquiátricas, médicas e pedagógicas para correção.
O aprisionamento, que vem a se tornar a penalidade principal do século XIX, não era usada até então como punição. Sua natureza na origem erade prática para-judiciária da lettre-de-cachet[15], não se tratando, ainda, de uma pena do direito. Esta era enviada junto com um indivíduo que, no lugar de ser diretamente enforcado, queimado ou outra sorte, deveria ficar retido até nova ordem do poder real. Neste caso, se houvesse o entendimento de que o aprisionado pudesse ter se corrigido, a autoridade que requisitou a lettre-de-cachet poderia retirar o pedido. Ou seja, desde seu princípio a prisão tem como objetivo, não só a resposta a uma infração, mas também a correção do indivíduo. Para Foucault, essa ideia de corrigir um indivíduo nasce da prática policial, de forma paralela e exterior a justiça. Não surge dos grandes reformadores nem da teoria jurídica, mas sim da necessidade de controle social pelos que exerciam o poder.
A importância desses mecanismos de controle social possui forte relação com o surgimento da burguesia e de uma nova forma de acumulação de riqueza. Pasukanis resume que “a política penal traz a marca dos interesses da classe à qual serve”.No caso específico da origem da pena de prisão teria sido com as comunidades religiosas dissidentes do anglicanismo ao praticarem assistência e vigia sobre seu grupo. Considera-se, também, a influência das sociedades organizadas pela moralidade, que exerciam controle sobre os vícios e condutas, assim como os grupos de autodefesa de caráter paramilitar e, ainda, das sociedades econômicas que possuíam seus próprios meios de controle social, como as polícias privadas quer serviam para proteger o patrimônio, o estoque e as mercadorias que se acumulavam nos portos.
Antes representada pela fortuna de terras e monetária, no fim do século XVIII a riqueza passa a se materializar em máquinas, matérias-primas, mercadorias. A proteção desse patrimônio incentivou a criação de formas de controle social a serem exercidas pela classe detentora do poder, ou seja, a industrial. Os controles, que até então eram estabelecidos pelas classes proletárias, foram estatizados[16] e atribuído a eles um caráter mais autoritário pelas classes dominantes. A partir desse momento essa classe deixa de tratar o sistema penal comomais uma forma de acumular patrimônio, e passa atribuir o papel de“repressão impiedosa e brutal, sobretudo, dos camponeses que fugissem da intolerávelexploração dos senhores e de seu Estado, assim como dos vagabundos pauperizados, dos mendigos, etc."[17]Quando as classes mais altas se apropriam desse controle da moralidade, deflagra-se o processo de estatização dos grupos de controle e de penalidade. Desse modo, aponta Foucault:
[…]esse controle moral vai ser exercido pelas classes mais altas, pelos detentores do poder das classes ricas sobre as classes pobres, das classes que exploram sobre as classes exploradas, o que confere uma nova polaridade política e social a essas instâncias de controle.
Conclusão
A partir da metodologia marxista, com a análise das expressões da consciência humana baseadas nas condições econômicas de uma sociedade, percebe-se que a materialidade da riqueza é a origem dessa estruturação dos controles políticos e sociais. E, particularmente, que o processo de fortalecimento da pena de prisão ocorreu de forma paralela à formação da sociedade capitalista[18] no final do século XIX.
A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada a classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção.[19]
Ao contrário da forma como é apresentada, a prisão trata-se de um castigo corporal ainda não abolido. Não há como prevenir os efeitos da privação do sol, de ar, de espaço, de luz no corpo humano. Bem como o confinamento entre quatro paredes, as condições sanitárias e todo tipo de humilhação que a instituição imprime no corpo do condenado, faz da prisão um “sofrimento estéril”. Hulsman explica que é um mal social que despersonaliza e dessocializa os homens, não os faz progredir no conhecimento deles mesmos, nem os torna melhor. A criação da pena de prisão, de certa forma, transforma as relações humanas, a justiça e, acrescenta Foucault[20], a subjetividade e nossa relação com a verdade.
Advogado e mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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