Resumo: O presente artigo aborda, em síntese, o papel dos partidos políticos em ambientes democráticos modernos, perpassando pela origem dos mesmos e pela verificação da existência de uma efetiva relação de instrumentalidade da vontade particular e o partido político. Constatada a possibilidade da existência de tal relação instrumental, são abordadas suas características e a modificações no atual momento, o que induz à proposição de novos instrumentos de participação popular na democracia.
Palavras chave: partidos políticos – democracia – degenerações – direito político – vontade popular.
Abstract: This article addresses, in summary, the role of political parties in modern democratic environments, passing through the origin of the goods and the finding of an effective relationship instrumentality of the private will and the political party. Given the possibility of such an instrumental relationship, their characteristics are discussed and modifications to the current moment, which leads to propose new instruments of popular participation in democracy.
Keywords: political parties – democracy – degeneration – political right – the popular will.
Sumário: 1. Introdução 2. Razões da existência dos partidos políticos. 3. Aspecto positivo da relação: funções do partido e a instrumentalidade com a vontade popular. 4. Aspecto negativo da relação: as patologias e a “crise dos partidos e da democracia”. 5. Resgate da efetividade na relação de instrumentalidade do partido político. 6. Conclusão.
1. Introdução.
Pelo presente artigo se objetiva analisar o papel dos partidos políticos nos ambientes democráticos modernos, sendo necessário para a compreensão de tal papel, a investigação do seguinte: a) as razões do surgimento e manutenção dos partidos; b) a existência, ou não, de uma relação de instrumentalidade entre a vontade popular e o partido; c) os contornos dessa relação, principalmente na efetivação da vontade popular nas decisões do Estado e d) a constatação de modificações no desempenho de tal relação, provenientes de várias causas, como degenerações nos partidos, “crise dos partidos” etc.
Na investigação da razão da existência e manutenção dos partidos políticos, são abordados os elementos básicos do conceito da democracia representativa, analisando-se, também, a formação e função do partido nos ambientes democráticos.
Para assimilação do fenômeno no nível local, será também feito o estudo das características do sistema partidário brasileiro, como condicionadoras e influenciadoras da relação de instrumentalidade e a verificação da maturidade e desenvolvimento de um ambiente democrático brasileiro.
Tais características também são verificadas enquanto causas das degenerações vivenciadas pelos partidos políticos, conforme abordagem das diferentes doutrinas políticas e jurídicas.
As degenerações, como aspecto negativo à relação de instrumentalidade estabelecida entre o partido político e a vontade popular, são sopesadas com as características do povo brasileiro, segundo diferentes entendimentos doutrinários.
Finalmente, o estudo não se faria completo sem o lançamento de proposições para o aperfeiçoamento da relação de instrumentalidade, tanto por meio de modificações no sistema partidário brasileiro, quanto no relacionamento dos partidos com as outras formas de representação da vontade popular aptas a influir e direcionar as decisões do Estado.
2. Razões da existência dos partidos políticos.
O artigo 1°, da Constituição Federal de 1988, prevê que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito e, no §1°, do mesmo dispositivo, se prevê que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”.
Segundo Maurice Duverger[1]: “É a seguinte a definição mais simples e mais realista de democracia: regime em que os governantes são escolhidos pelos governados, por intermédio de eleições honestas e livres.”
Para José Afonso da Silva[2]: “O conceito, que se deve a Lincoln, de que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, tem suas limitações, mas é essencialmente correto, se dermos interpretação real aos termos que o compõem.”
Independentemente dos conceitos doutrinários a serem perfilados, é ponto pacífico que a democracia é composta por princípios e valores que dão concreção a uma realidade na qual a vontade do povo, seus anseios, são contemplados na decisão do Estado, como que uma capacidade de se autoguiarem, definindo seu próprio destino.
A igualdade, a liberdade e a regra da decisão alcançada pela opinião da maioria (com respeito às minorias), são considerados elementos do conceito de democracia, cujo sentido prático deve ser investigado na adoção dos mecanismos capazes de dar concreção à representação política.
Assim, chega-se ao conceito de democracia representativa, construído no século XVIII, no Estado liberal burguês, e que, segundo José Afonso da Silva[3]: “ainda como um dos meios de manter distintos Estados e sociedade, e mais uma forma de tornar abstrata a relação povo-governo.”
Há muito tempo é considerada inviável, na prática, a democracia direta, na qual não existiriam intermediários entre a vontade do povo e o exercício do poder político.
Robert Michels[4], já em 1914, afirmou:
“Atos e palavras são menos pesados pela massa que por indivíduos ou por pequenos grupos que a compõem. Este é um fato incontestável. Ele é uma manifestação da patologia das massas. A multidão anula o indivíduo, e, desse modo, sua personalidade e seu sentimento de responsabilidade. Mas o mais formidável argumento contra a soberania das massas é tirado da impossibilidade mecânica e técnica de sua realização. Basta querer reunir regularmente assembléias deliberantes de milhares de membros para nos vermos às voltas com as maiores dificuldades de tempo e de espaço. E a coisa se tornará, do ponto de vista topográfico, completamente impossível, se o número de membros atingir, por exemplo, dez mil”. (g.n.)
Interessante notar que o doutrinador, em 1914, considerava inviável a reunião de dez mil pessoas, o que, nos dias atuais, não parece ser um número exagerado de pessoas.
A idéia da impossibilidade do governo real por todos, cita-se a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[5]:
“Mas, salvo exceções (v.g. Landsgemeinde em cantões suíços), que acima de tudo são curiosidades históricas, a forma mais próxima do governo de todos por todos é o governo de alguns, eleito por todos. Dessa forma, somente na medida em que a eleição dos governantes é deferida ao povo e se acompanha da escolha em linhas gerais da política que vai ser seguida.”
Do transcrito conclui-se que as razões que explicam o surgimento dos partidos políticos são, num primeiro momento, de natureza prática.
A dificuldade de reunião de todo o corpo eleitoral, ou, até mesmo (se pensado um conceito mais amplo) de todo o povo, em assembléia, para definição do destino da nação, é realidade que não se cogitou defender desde o início do século vinte.
Além da razão de natureza prática, nitidamente verificável em qualquer Estado, Maurice Duverger[6], na Introdução de sua obra Os Partidos Políticos, ao abordar a origem dos mesmos defende que seu desenvolvimento “parece associado ao da democracia, isto é, à extensão do sufrágio popular e das prerrogativas parlamentares.”.
Aí um segundo aspecto, no qual o autor, de forma incipiente (denotável pelo uso do termo “parece”), lança a idéia do surgimento dos partidos a partir da extensão, ampliação do sufrágio e das prerrogativas parlamentares.
Tal lição tornou-se clássica na doutrina e a relação entre o aumento do sufrágio popular e das prerrogativas parlamentares uma inegável causa da existência e manutenção dos partidos.
Dentro de uma abordagem mais sociológica e política, tem-se a explicação de Denise Paiva Ferreira[7], que confirma a afirmação de Duverger:
“Os partidos políticos constituem um fenômeno recente; seu surgimento está ligado aos processos de modernização do sistema político, de diversificação de demandas e interesses sociais e do reconhecimento do direito à participação política. Na literatura sobre o tema, há um consenso de que a eclosão dos partidos políticos se encontra intimamente associada à democracia e à expansão do sufrágio.”
A teoria de Duverger, portanto, explica que os partidos políticos possuem duas origens distintas: os comitês eleitorais e os grupos parlamentares. Os comitês eleitorais relacionando-se diretamente com a extensão do sufrágio popular, sua universalização. Os grupos parlamentares relacionando-se com o aumento das prerrogativas dos parlamentares.
Além de tais razões de ordem prática, tem-se claro que o embate dos diferentes grupos políticos exigiu a formação de organizações mais preparadas, conforme uma lógica de “profissionalização” na política, nos moldes do teorizado por Robert Michels, na citada obra Sociologia dos Partidos Políticos.
Demonstrado-se, assim, as razões de ordem prática do surgimento dos partidos, importante a conceituação do partido político:
“O partido político é uma forma de agremiação de um grupo social que se propõe a organizar, coordenar e instrumentar a vontade popular com o fim de assumir o poder para realizar seu programa de governo.; No dizer de Pietro Virga: “são associações de pessoas com uma ideologia ou interesses comuns, que, mediante uma organização estável (Partei-Apparat), miram exercer influência sobre a determinação da orientação política do país.”[8] (g.n.)
Cláudia Sousa Leitão[9] explora o conceito da seguinte forma:
“Veja-se, no entanto, as características do partido político, para que se possa distingui-lo de associações afins. Para tal utilizam-se os critérios definidos por Joseph Lapalombara: a) o partido político é uma organização durável, devendo sobreviver aos seus fundadores; b) o partido político é uma organização completa, com a existência de centro nacional e unidades de base; c) o partido impõe-se pela vontade deliberada de exercer diretamente o poder, só ou com outros, em nível local ou nacional, no presente sistema político ou em um novo; d) o partido político permanece pela vontade de procurar apoio popular, seja ao nível de militantes ou de eleitores. (…) O partido político se constitui de um grupo de indivíduos, representantes de uma comunidade, que, de posse de seus direitos políticos, organizam-se de forma duradoura para a persecução de um programa político. Pode-se concluir com as três premissas de Giovanni Sartori acerca dos partidos políticos: 1 – Os partidos não são facções. 2 – Um partido é parte de um todo. 3 – Os partidos são canais de expressão”.
Dos conceitos transcritos, os seguintes elementos compõem a idéia de partido político: a) agremiação, reunião de pessoas de um grupo social; b) organização, coordenação e instrumentação da vontade destas pessoas e de outras concordantes com a mesma; c) objetivo de assunção do poder para realização de um programa de governo.
Estes elementos trazem em si importantes esclarecimentos quanto às funções dos partidos políticos, seu papel e a própria relação de instrumentalidade, conforme adiante se analisará.
3. Aspecto positivo da relação: funções do partido e a instrumentalidade com a vontade popular.
Tradicionalmente a doutrina admite que os partidos políticos têm por função a organização e expressão da vontade popular na perseguição do poder, por meio da aplicação de seu programa de governo.
Deste fato decorre que, em tese, todo partido político teria que se estruturar conforme uma ideologia definida e um programa de ação voltado à satisfação das necessidades do povo.
Na Constituição Federal de 1988, no artigo 17, se estabelece que essa atuação dos partidos políticos deverá respeitar os seguintes preceitos: a) caráter nacional; b) proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de submissão a estes; c) prestação de contas à Justiça Eleitoral, d) funcionamento parlamentar conforme a lei; e) elaboração de estatutos com normas de fidelidade e disciplina partidárias e f) proibição de uso de organizações paramilitares.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho[10] assim explica o que denonima de “estatuto dos partidos” na Constituição de 1988:
“Em reação ao direito constitucional anterior, a Constituição vigente preferiu, no art. 17, enfatizar a liberdade de criação e funcionamento de partidos políticos. Na verdade, no sistema desse dispositivo constitucional, o partido principia como uma mera associação, adquirindo personalidade de direito privado nos termos da lei comum (civil) (§2°). Depois disto é que devem registrar seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral (§2°), o que é necessário para que possam apresentar candidatos etc. Tem o partido autonomia para definir sua organização e programa (§1°). Este, porém, deve “resguardar” a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais (caput), o que não vai além do nível de recomendação.”
Há um reconhecimento, portanto, de que os partidos políticos são instrumentos indispensáveis para a preservação do Estado Democrático de Direito, tendo o ordenamento brasileiro consagrado plena liberdade para sua criação, organização, funcionamento e extinção.
Em termos mais amplos, a influência dos partidos nos governos dos Estados contemporâneos tem sido tão intensa que a doutrina chegou a conceber um “Estado de Partido”, para realçar a idéia do primado dos partidos nas organizações políticas da atualidade.
Os partidos políticos exercem funções de governo ou de oposição, tanto no sistema partidário brasileiro, quanto no resto do mundo.
Tais funções são, em tese, desempenhadas em conformidade com as diretrizes e princípios dos seus respectivos programas de governo.
No caso brasileiro, pode-se afirmar que as normas constitucionais, que determinam o respeito aos ditames do Estado Democrático de Direito, à fidelidade partidária, ao caráter nacional, entre outras, são balizadoras das normas estatutárias e dos programas de governo dos partidos.
Não poderia ser o contrário, pois a influência dos partidos no governo dos Estados contemporâneos possui amplo reconhecimento na doutrina, que chega a afirmar que existe nos Estados da atualidade um verdadeiro “governo de partido”:
“Daí nasce a concepção do Estado de Partido, que melhor se diria governo de partido, para denotar o primado dos partidos na organização governamental de nossos dias. É que o fenômeno partidário permeia todas as instituições político-governamentais: como o princípio da separação de poderes, o sistema eleitoral, a técnica de representação política. Segundo nosso Direito positivo, os partidos destinam-se a assegurar a autenticidade do sistema representativo. Eles são, assim, canais por onde se realiza a representação política do povo, desde que, no sistema pátrio, não se admitem candidaturas avulsas, pois ninguém pode concorrer às eleições se não for registrado por um partido. Isso agora ficou explícito no art. 14,§3°, V, que exige a filiação partidária como uma das condições de elegibilidade.”[11] (g.n.)
A relação de instrumentalidade reside na estruturação do sistema partidário brasileiro, conforme acima explicado, sendo inegável a sua existência: os partidos são “canais por onde se realiza a representação política do povo”.
Contudo, tal relação de instrumentalidade não é exclusiva do sistema brasileiro, podendo-se afirmar que, certamente, existe em qualquer ambiente democrático.
As razões práticas, já abordadas, justificadoras do surgimento dos partidos políticos sustentam também a sua manutenção e desenvolvimento, independentemente do tempo e espaço no qual se encontrem.
Um mundo cada vez mais complexo, mais populoso, a sociedade de massas, o tráfego intenso da informação, a rápida conexão dos Estados e pessoas, por meio da informática, cibernética, a mídia, globalização, todos estes são elementos que exacerbam a necessidade da manutenção da existência de uma estrutura que possa ser o locus de discussão e sedimentação da vontade popular.
A relação de instrumentalidade se desenvolve e aperfeiçoa na medida em que a estrutura do partido sirva de sustentáculo à vontade popular, dentro de um conjunto de normas que o acomodam, conjunto este que também dá o formato real ao princípio representativo e da maioria em qualquer ambiente democrático.
As normas que estruturam o próprio Estado no qual o partido político se insere influenciam a sua atuação, não podendo ser desconsideradas como balizadoras da relação de instrumentalidade.
Este fenômeno foi comprovado no estudo de Denise Paiva Ferreira, em seu livro “PFL X PMDB: marchas e contramarchas”, que analisou como que as duas arenas de disputa de poder (nacional e estaduais) afetaram a organização interna do Partido da Frente Liberal (PFL) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), no período de 1982 a 2000.
Tal cientista política demonstrou que esses partidos primeiro organizaram-se em nível local, para depois disputarem o poder no nível nacional, justamente porque a organização da estrutura eleitoral nacional influenciou as suas atuações naquele determinado momento histórico.
Com isso, fica demonstrado que os partidos políticos são instrumentos de participação política que não só veiculam a vontade popular nas decisões de governo e oposição, forjando novas regras institucionais, como também são influenciados por elas, amoldando sua atuação ao quadro institucional construído pelo Parlamento.
O papel instrumental dos partidos políticos, nesta linha de raciocínio, se caracteriza como uma via de mão dupla: a vontade popular levada e transformada, pelo partido, na decisão política; a decisão política institucionalizada direcionando a atuação do próprio partido político.
A análise da referida cientista política centrou-se nos dois partidos que tiveram fundamental atuação na condução do processo de transição do governo militar para a democratização, dentro de uma visão pela autora denominada “institucionalista”.
A conclusão da doutrinadora confirma o fato descrito, da seguinte forma:
“As instituições são as regras do jogo. Neste sentido, elas estruturam as preferências dos indivíduos e também limitam o seu campo de ação. As preferências são aqui entendidas como as utilidades e/ou benefícios esperados pelos atores (indivíduos, organizações, Estados) diante de um determinado set de opções e dos cenários possíveis nos contextos em que esses atores se encontram inseridos. As preferências são socialmente construídas, isto é, definidas através dos significados e experiências dos atores ao longo de suas vidas e atuam como filtros e guias mediante os quais os atores percebem o contexto social. Diante disso, é possível afirmar que, na definição de suas estratégias e objetivos, os indivíduos seguem tanto regras sociais definidas quanto suas crenças, políticas ou não.”[12] (g.n.)
Denota-se assim que, a relação de instrumentalidade entre o partido e a vontade popular adquire um novo ingrediente: o elemento pessoal, individual.
Em uma análise de cunho mais sociológico e político fica confirmado que as experiências pessoais, particulares dos atores políticos tem seu valor na relação de instrumentalidade existente com o partido político.
A autora demonstra em sua tese que esta não é uma opinião pessoal sua, isolada, citando: “Para Santos (1994, p.23), os partidos têm como meta atrair o eleitor mediante a agregação de preferências, por conseguinte “o sistema partidário estará sempre e de alguma forma tentando se adequar às bases socioeconômicas”. Assim, a estrutura social deve ser considerada aliada à lógica endógina do jogo político que tem suas próprias regras e dinâmicas.” [13] (g.n.)
Tal ponto é importante, pois realmente são os partidos políticos instituições definidas, não só pelas regras jurídicas e procedimentais pré-estabelecidas, como também pelas regras informais, convenções, que estruturam a conduta e o comportamento humanos, a denominada “lógica endógina do jogo político”, as “bases socioeconômicas”.
Fica assim demonstrado que os partidos políticos são, efetivamente, instrumento de participação política em qualquer ambiente democrático, desempenhando também função de organizadores da competição eleitoral.
É inegável que os partidos políticos, por meio da integração e mobilização do eleitorado, desempenham um papel fundamental nas disputas eleitorais, fato .
Mas não somente durante a disputa, também são as agremiações partidárias cruciais para a formação e sustentação de maiorias governantes, na organização de processos legislativos, no recrutamento de lideranças, no estabelecimento de acordos, em sede do Parlamento, que possibilitam a governabilidade.
Arremata José Afonso da Silva[14]:
“Uma das conseqüências da função dos partidos é que o exercício do mandato político, que o povo outorga a seus representantes, faz-se por intermédio deles, que, desse modo, estão de permeio entre o povo e o governo, mas não no sentido de simples intermediários entre dois pólos opostos ou alheios entre si, mas como um instrumento por meio do qual o povo governa. Dir-se-ia – em tese, ao menos – que o povo participa do poder por meio dos partidos políticos. Deverão servir de instrumentos para a atuação política do cidadão, visando influir na condução da gestão dos negócios políticos do Estado.”
Do geral para o particular, verifica-se que as normas constitucionais e legais que disciplinam o partido político no Brasil determinam que ele desempenhe funções como: a) permitir que os cidadãos participem das funções públicas, por meio da candidatura; b) atuar como representantes da vontade popular e da opinião pública; c) instrumentar a educação política do povo e d) facilitar a coordenação dos órgãos políticos do Estado.
Portanto, fecha-se o círculo dentro da teoria clássica de Duverger: o partido político desempenha funções tanto no momento da designação dos candidatos (eleições), quanto no exercício do mandato.
4. Aspecto negativo da relação: as patologias e a “crise dos partidos e da democracia”.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho aponta como vícios do sistema partidário brasileiro: a) o número excessivo de partidos; b) a inautenticidade dos partidos brasileiros e c) o individualismo brasileiro. Além desses, o caráter oligárquico dos partidos, tema recorrente na doutrina, também é apontado como um fenômeno indesejável, aliado ao desapreço por programas.
O número excessivo de partidos, não só no caso brasileiro, é conseqüência de um sistema partidário de pluripartidarismo e a representação proporcional, que seria o fermento da proliferação de partidos políticos.
O número excessivo de partidos políticos dificultaria a governabilidade do país e obscureceria a definição da vontade política popular.
Quanto à inautenticidade dos partidos políticos brasileiros, o professor chega a afirmar que eles são como “corpos sem alma”, expressão cujo sentido seria a falta de uma estrutura dos partidos em que houvesse intensa participação popular, acarretando uma verdadeira representatividade do povo.
As estruturas partidárias brasileiras, segundo o doutrinador, pecariam pela falta de programas, sendo conglomerados decorrentes das exigências eleitorais.
O individualismo seria uma característica do povo brasileiro, pouco afeito às formas de solidariedade voluntária, portanto não alcançando os partidos políticos a adesão social, a alimentação de sua atuação pelos anseios do povo neles inseridos.
Quanto ao caráter oligárquico, tem-se que não é tema novo na doutrina, tendo sido o objeto de análise de Robert Michels em 1914, conforme já referido.
Tal doutrinador, em sua obra “Sociologia dos Partidos Políticos”, reafirma o caráter oligárquico dos partidos, dominados por um grupo de partidários, responsáveis pela sua condução de forma distanciada da vontade popular:
“Toda organização de partido representa uma potência oligárquica repousada sobre uma base democrática. Encontramos em toda parte eleitores e eleitos. Mas também encontramos em toda parte um poder quase ilimitado dos eleitos sobre as massas que elegem. A estrutura oligárquica do edifício abafa o princípio democrático fundamental. O que é oprimido, o que deveria ser. Para as massas, essa diferença essencial entre a realidade e o ideal é ainda um mistério.” (g.n.)[15]
Os partidos políticos, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, também sofrem de um outro mal, o desapreço aos seus programas. O povo, por seu turno, também faria suas escolhas com base apenas na personalidade dos candidatos, desconsiderando as idéias contidas nos programas dos partidos.
Marcello Baquero[16], de forma magistral, sintetiza tal idéia em seu livro:
“Evidências resultantes de estudos de caráter empírico, conduzidos nos últimos anos em vários países, atestam para um crescente distanciamento dos eleitores em relação aos partidos. Nesse sentido, os processos eleitorais têm-se caracterizado muito mais por disputas entre pessoas do que entre partidos. Esse fenômeno tem implicações na forma como os partidos reagem às pressões da sociedade civil. Se os cidadãos escolhem candidatos em detrimento de partidos, isso cria uma situação em que os representantes eleitos sentem-se livres para se mobilizar à margem das diretrizes dos partidos, enfatizando posturas fisiologistas que pouco ou nada contribuem para a consolidação da democracia, particularmente nas sociedades em desenvolvimento.”
Assim, segundo o autor, os partidos políticos, principalmente na América Latina, estariam vulneráveis o que acarretaria uma verdadeira crise na democracia, chegando-se a ponto de ser questionada a necessidade e importância dos partidos políticos: “O questionamento sobre a importância ou não dos partidos políticos assume maior relevância pelo fato de, pela primeira vez, existirem controvérsias sobre a sua essencialidade no processo democrático, pergunta impensada décadas atrás.”[17]
Conforme se vê, os partidos políticos, apesar de serem os canalizadores da vontade popular e terem, no decorrer de quase dois séculos, contribuído para a construção (e reconstrução) de ambientes democráticos, também sofrem suas patologias.
Os fenômenos da oligarquização e da personalização das escolhas políticas enfraquecem a relação de instrumentalidade do partido político com a vontade popular, sendo questionada até a necessidade da manutenção de tais estruturas.
A crise sofrida pelos partidos, segundo alguns, transmuta-se em crise do próprio sistema representativo. Alexandre de Moraes[18], em seu artigo Reforma política do Estado e democratização, assim aborda o tema:
“O problema central da representação política, portanto, acaba por consistir na impossibilidade de aferir-se a compatibilidade entre a vontade popular e a vontade expressa pela maioria parlamentar. Dentre outras causas, poder-se-ia apontar três primordiais para esse distanciamento entre representantes e representados: o desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar, o total desligamento do parlamentar com seu partido político e a ausência de regulamentação na atuação dos grupos de pressão diante do Parlamento. (…) A crise partidária caracteriza-se, basicamente, pela incapacidade dos partidos em filtrar as demandas e reclamos sociais e transforma-los em decisões políticas. Conforme já ressaltado, a crescente presença do Estado na ordem econômica e o crescimento da burocracia estatal terminaram por fazer dos partidos meros indicadores de burocratas para a ocupação de cargos de relevância e não mais verdadeiros defensores dos ideais populares pelos quais seus representantes foram eleitos. Desta forma, o partido político deixa de constituir-se no único, e talvez deixe também de constituir-se no mais importante coletor das aspirações populares e direcionador das decisões políticas do Estado.” (g.n.)
Conforme bem apontado pelo articulista, o desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar e o total desligamento do parlamentar com seu partido político são causas dessa crise do sistema representativo.
Mas, além das “deficiências” do próprio sistema partidário, das regras que o estruturam, podem ser citadas também outras causas, como o próprio fenômeno da globalização, em que muitas decisões políticas e econômicas são influenciadas, ou mesmo tomadas, em ambientes alienígenas, externos.
O trecho doutrinário abaixo transcrito, de Marcello Baquero[19], confirma tal constatação:
“O processo de globalização, que surge na última década, também irá contribuir decisivamente para que os partidos e sua capacidade já frágil de representação se debilitem ainda mais, como conseqüência do peso crescente das decisões transnacionais ou infranacionais que fragilizam os atores políticos e sociais que se encontram dentro dos limites dos Estados nacionais, como são os partidos e os governos em geral. (…) A globalização produz uma erosão parcial do Estado nacional, como ente regulador da vida social e constituidor de identidades coletivas, gerando uma fragmentação das sociedades nacionais, que potencializa o surgimento de novas expressões políticas inéditas (verdes, pacifistas, feministas, a nova esquerda, a nova direita, o pós-materialismo e os regionalismos, entre outros) que têm como característica fundamental a rejeição aos partidos e à prática política tradicional.”
As questões acima abordadas, relativas à existência de patologias nos partidos políticos que os levam a uma inadequação à realidade atual, induzem a discussão de proposições que possam corrigir tais males, conforme o tópico seguinte.
5. Resgate da efetividade na relação de instrumentalidade do partido político.
Apesar do subtítulo acima apontar para um resgate, uma primeira consideração, no presente tópico, seria a de se questionar se os partidos políticos sempre foram capazes de canalizarem, de forma efetiva e real, a totalidade da vontade popular.
Maurice Duverger[20], na conclusão de seu estudo, assim se manifesta:
“Tem-se de ir mais longe: se se admitir que os partidos sejam dirigidos pelos parlamentares, tornar-se-lhes ilusório o caráter democrático, porque as próprias eleições traduzem muito mal a verdadeira índole da opinião. (…) Vivemos noções absolutamente irreais da democracia, forjadas pelos juristas com base nos filósofos do século XVIII. “Governo do povo pelo povo”, “governo da nação pelos seus representantes”: bonitas fórmulas, próprias para despertar entusiasmo e facilitar os jogos oratórios; bonitas fórmulas que nada significam. Nunca se viu, nunca se verá um povo governar-se a si mesmo. Todo Governo é oligárquico, comportando, necessariamente, o domínio de um grande número por um pequeno. Foi o que percebeu com clareza Rousseau, cujos comentadores se esqueceram de lê-lo: “A tomar por termo no rigor da acepção, jamais existiu uma verdadeira democracia, nem jamais existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e que o pequeno seja governado.”
O mesmo pessimismo é encontrado na conclusão do trabalho de Marcello Baquero, quando da análise dos partidos políticos na América Latina, afirmando que:
“Impõe-se, com urgência, um redirecionamento dos partidos a fim de que possam recuperar o espaço de interlocução entre Estado e sociedade. A indiferença dos partidos quanto ao seu declínio em importância para os eleitores poderá comprometer, a médio prazo, as bases já precárias de institucionalidade democrática, agravando a crise de legitimidade nesses países.”
Todavia, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, pesquisou, sob um enfoque sociológico, a representatividade de grupos sociais no Parlamento brasileiro, consolidando tal pesquisa no livro Partidos, Ideologia e Composição Social. Um Estudo das Bancadas Partidárias na Câmara dos Deputados.
Constatou o cientista que:
“Mas apesar de as análises anteriores apontarem para muitos aspectos que, inegavelmente, revelam coeficientes baixos de representatividade, de estrutura organizatória e de coerência ideológica dos partidos brasileiros, um conjunto de pesquisas mais recente começou a questionar os julgamentos mais negativos e pessimistas, mostrando um outro lado do funcionamento do nosso sistema partidário. Esses estudos encontraram partidos com perfis ideológicos mais nítidos e diferenciados, com patamares mais altos de disciplina e fidelidade partidárias, capazes paradoxalmente de coexistir com altas taxas de migração e fragmentação partidária, corrupção e individualismo de uma parcela ponderável de políticos.”[21]
Tal cientista, atuando muito no sentido da “onda revisionista”, propõe, por meio de uma análise sociológica dos partidos políticos brasileiros, que há sim uma representatividade de grupos bem definidos no Parlamento, decorrente do recrutamento das lideranças dos partidos. Seu estudo indicou que existem diferenças significativas entre os partidos os partidos, singularizando-os e fazendo com que suas cúpulas representem interesses socioeconômicos diferenciados.
Portanto, lança-se uma luz na medida que os partidos políticos, para manterem-se na disputa pelo poder, terão que procurar uma aproximação maior com a massa eleitoral.
São conhecidos os movimentos recentes de determinados partidos políticos que estruturam cursos de cidadania e governança, geralmente ministrados em Câmaras Municipais, denominados “escolas de governo”, cujo conteúdo é voltado para líderes de associações de bairro, sendo candidatos ou não.
Tal fato demonstra a reação dos partidos políticos que constataram o desenvolvimento dos grupos de pressão, das associações de defesa de interesses coletivos e difusos, entre outras formas de organização do movimento social.
Deste modo, muito provavelmente, o caminho para o aperfeiçoamento da relação de instrumentalidade do partido político para com a vontade popular, seja a sua aproximação com tais movimentos sociais, dado o fato deles serem os legítimos interlocutores dessa vontade.
6. Conclusão.
De tudo o que foi analisado, resta a conclusão de que os partidos políticos são legítimos instrumentos de participação política nos ambientes democráticos, aspecto tradicionalmente defendido pela doutrina.
Ficou demonstrado que as próprias razões do surgimento e manutenção de tais estruturas justificam o seu papel de condutores da vontade popular, numa inequívoca relação de instrumentalidade.
Tal relação, assim, possui aspectos positivos e aspectos negativos, os quais devem ser minimizados para que se mantenha um “ponto ótimo”, de equilíbrio, em tal relação.
A aproximação dos partidos políticos com as massas populares, por intermédio de outras manifestações da vontade popular e uso de outras estruturas, pode configurar um remédio às patologias, refinando a relação de instrumentalidade, tema central do presente trabalho.
A conclusão, desta forma, se completa com a certeza de que os partidos políticos são instrumentos que viabilizam a participação popular nos ambientes democráticos, mas deverão aperfeiçoar sua atuação para garantia da efetividade da relação de instrumentalidade com a real vontade popular.
Graduado, Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Ciência Política e Direito, Direito Administrativo e Direito de Construir e Estatuto da Cidade no curso de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie – campus Campinas. Procurador Chefe da Procuradoria da Câmara Municipal de Santa Bárbara d’Oeste/SP. Ex-Advogado da Consultoria Jurídica da USP. Ex-Procurador do Município de Campinas/SP
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