I. Introdução
O Poder é uno e indivisível, e o exercício de todas as suas funções, inclusive as precípuas, devidamente distribuídas, obedecem ao interesse público, pois é esta a norma fundamental da Administração Pública como reflexo da norma constitucional fundamental da sistematicidade jurídica: todo poder emana do povo[1].
A clareza da linguagem do Poder é quando podemos com clareza afirmar aquilo que está do que não está de acordo com o direito, como bem elucidou Luhmann[2].
Conjugando a detenção do poder do povo com a necessidade de clareza do poder, temos, indubitavelmente, a base da formação do Estado Democrático de Direito, que conforme Lênio Luiz Streck, será concretizada com a participação popular:
“Já a forma/modelo de Estado Democrático de Direito está assentado nos dispositivos que estabelecem os mecanismos de realização da democracia – nas suas diversas formas – e dos direitos fundamentais. Não esquecemos que o Estado Democrático de Direito constitui uma terceira forma de Estado de Direito exatamente porque agrega um plus às formas anteriores (Liberal e Social), representado por esses dois pilares: democracia e direitos fundamentais. Assim, o art. 1º estabelece que o Brasil é uma República que se constitui em Estado Democrático de Direito. A soberania popular, prevista no parágrafo único do art. 1º, é o sustentáculo do Estado Democrático, podendo ser exercida sob diversas formas, inclusive diretamente, tudo ancorado no pressuposto do pluralismo político garantido pela Lei Fundamental.”[3](Grifo nosso)
A previsão de participação popular em todos os atos decisivos no exercício do poder é justamente a diferença entre o mero Estado de Direito, e um concreto Estado Democrático de Direito, conforme leciona Carlos Ari Sunfeld[4].
Assim o fluxo de diretrizes do Estado, deixou de ser meramente burocrática, para atingir o nível democrático, no qual as ordens partem de baixo para cima e não de cima para baixo, como bem já descreveu José de Albuquerque Rocha[5].
Assim ao estabelecer os critérios para caracterização de todo e qualquer processo democrático Robert Dahl coloca como indispensável a possibilidade do controle do programa de planejamento governamental pela comunidade: “Os membros devem ter a oportunidade exclusiva para decidir como e, se preferirem, quais as questões que devem ser colocadas no planejamento.”[6]
A evolução atual do Estado, com a inserção do modo democrático organizativo, aprimorou os mecanismos de fiscalização pela sociedade, caracterizando como de importância fundamental. Para a concretização do controle social, como sucedâneo da participação popular, é imperioso que exista a transparência dos atos governamentais. É inadmissível no Estado Democrático de Direito que o governo fique enclausurado, hermético, sem dar satisfação de seus atos, estes são os ensinamentos de Hélio Saul Mileski[7].
O controle social emerge como imperativo de estatura constitucional, mas não pode receber contornos apenas teóricos, mas sim uma expansiva vinculação ético-jurídica entre a atuação do controlador social e a daqueles que exercem poderes-deveres no seio do aparato estatal, como já bem ressaltou Juarez Freitas[8].
A cidade como a nação vive o descalabro da miséria em algumas localidades, e a riqueza em outras poucas, portanto para que possamos melhor distribuir a riqueza com o equacionamento da divisão do bolo arrecadado necessitamos basearmos em indicadores objetivos, como o próprio Índice de Desenvolvimento Humano – IDH.
Assim o Estado Democrático de Direito Social, última versão filosófica da tentativa do homem dar ao homem aquilo que minimamente o homem precisa (princípio da dignidade humana), incluiu em seu bojo mecanismos de transparência, participação popular e controle social.
II. A Participação popular na gestão pública
A participação popular deve estar inserida na gestão da cidade, somente com esta inclusão de forma efetiva dos cidadãos nas tomadas das decisões poderemos ter um comprometimento social com o próprio desenvolvimento, conforme coloca Janaína Rigo Santin.[9]
O princípio da participação popular, com o advento da Constituição Federal de 1.998, norteia toda a organização da Administração Pública, tem como características ser implícito, derivado e estruturante, como bem leciona Evandro Martins Guerra e Manuella Lemos Ribeiro[10].
Gilmar Ferreira Mendes destaca, de muitos, dois efeitos positivos da participação popular quanto a elaboração dos instrumentos de responsabilidade fiscal: o primeiro deles é a maior legitimidade que adquirirão tais instrumentos, uma vez que sua confecção foi feita com respaldo da sociedade; o segundo tem a ver com o fato de que os esboços de tais instrumentos podem ser maximizados em sua qualidade com a interação entre sociedade e Poder Público, tanto porque, diversas vezes, este não possui a devida acuidade para perceber as carências sociais, tanto porque, tecnicamente, eles podem ser aprimorados com a colaboração dos diversos entes sociais.[11]
A Constituição Estadual de Mato Grosso, por exemplo, evidencia-a no inciso VI do artigo 3º, e no inciso V e do artigo 5º como objetivo prioritário do Estado, acredito que entendido como de uma forma a integrar o próprio Município, a participação social nas decisões como forma efetiva de aperfeiçoamento democrático das instituições[12].
A Lei Federal no 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, estabelece, para efeitos de analogia, na alínea f) do inciso III do artigo 4º a gestão orçamentária participativa. Já nos incisos II e IV do artigo 43 que a gestão democrática da cidade realiza-se através de debates e consultas públicas, inclusive com a iniciativa popular de planos de desenvolvimento[13].
A participação efetiva das comunidades na elaboração dos planos já é realidade em muitas cidades do Brasil, e principalmente nos países ditos desenvolvidos, mas como ressalta a obra coordenada por Flávio da Cruz, para que se torne prática seria necessário incentivar, e uma Lei específica é um importante meio para tal fim[14].
Ruy Samuel Espíndola esclarece a existência do princípio da legitimidade da despesa pública como um dos setoriais da administração pública:
“O Princípio da Legitimidade está previsto no artigo 70, caput, da Constituição Federal. Por ele, nosso Direito positivou, de forma mais peremptória, um olhar mais substancialista, material, não meramente formal por sobre os atos administrativos e sua fiscalização. Nele se fundamenta a necessidade de o Administrador consultar a aspiração geral, a vontade dos cidadãos, auscultar suas carências e desejos vertidos em interesse público. Atos, despesas e receitas legítimas são aquelas que atendem aos anseios populares, anseios estes, em uma federação, medidos em cada unidade federativa, em cada povo nela existente. (…) Também esse princípio é paramétrico no controle de constitucionalidade, servindo de invalidação às leis que lhe contrariem o significado.”[15] (grifo nosso).
Assim a participação popular na definição da priorização dos investimentos estará legitimando diretamente a despesa pública como gasto de interesse público.
III. O Controle social como efeito da participação popular
A razão de existir do controle social é bem explicada por José de Ribamar Caldas Furtado como uma questão de direito natural, pois todo aquele que administra coisa alheia fica naturalmente obrigado a prestar contas ao verdadeiro proprietário[16].
A res sendo pública é natural que todos aqueles que a administram prestem contas ao restante da sociedade. È direito de todos os administrados por deterem a legitimidade de escolha dos administradores controlarem a administração, exigindo que o bem público seja finalisticamente usado somente para atendimento do interesse público.
O controle social está inserido no texto magno, entre outros, no inciso XXXIII, do artigo 5º[17]. A Lei Orgânica do Município de Cuiabá traz em seu bojo as diretrizes básicas para a orientação do planejamento municipal, e no inciso I do artigo 94 está a necessidade de democracia e transparência na elaboração, já no inciso II o interesse social como questão a ser considerada[18]. A Constituição Estadual também prevê que a sociedade terá função corregedora sobre o exercício das funções públicas[19].
Um dado que exemplifica a tomada desta consciência é a Carta dos Procuradores Municipais Brasileiros que em 2001 na cidade de Foz do Iguaçu declararam que o controle social do orçamento público é indispensável para dar cumprimento à Constituição e à Lei de Responsabilidade Fiscal, devendo ser assegurado pelos agentes públicos, adotando-se uma gestão plenamente democrática e participativa.
IV. A transparência fiscal como objetivo da participação popular
A transparência fiscal como aprofundamento evolutivo setorial do princípio da publicidade é própria do regime democrático. Em uma democracia a disponibilização da informação para a livre discussão é um componente jurídico prévio necessário para tomada da decisão que afeta a coletividade e é imprescindível para sua legitimação, como pondera Têmis Limberger[20]. O sigilo torna-se uma exceção de caráter estrito, somente possível quando o próprio interesse público, diante da divulgação da informação corre um grave risco, como nos casos de segurança nacional.
A transparência fiscal como efeito especifico no orçamento do princípio constitucional da publicidade, pode ser detalhadamente consubstanciada no parágrafo 2º do artigo 16 da Constituição Estadual[21]. A Lei Orgânica Municipal também descreve com especificidade que o Município organizará toda a sua contabilidade de forma transparente[22].
A Lei Complementar n.º 101/2000, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, no parágrafo único do artigo 48 estabelece que a transparência será assegurada mediante incentivo à participação popular durante os processos de elaboração e de discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos[23].
O artigo 74 da Constituição Federal traz os conceitos de eficiência e eficácia inseridos no sistema de controle interno, mas não determina especificadamente tal abrangência[24]. Os princípios basilares do presente projeto, da efetividade, eficiência e eficácia, são conceitos já difundidos pelo Tribunal de Contas da União no auxílio da ação fiscalizadora junto ao Poder Executivo.
Os fins pretendidos com a transparência fiscal são exatamente a efetividade da gestão pública, a eficiência administrativa e a eficácia dos gastos públicos. Estes conceitos apesar de não serem determinados em outras normas, estão implicitamente ou explicitamente previstos, como no inciso II do artigo 94 da Lei Orgânica Municipal de Cuiabá[25].
A avaliação da efetividade refere-se ao exame da relação entre a implementação de um determinado programa e seus impactos e/ou resultados, isto é, seu sucesso ou fracasso em termos de uma efetiva mudança nas condições sociais prévias da vida das populações atingidas pelo programa sob avaliação, como bem ensina Ieda Frasson[26], trazendo este conceito para a elaboração do orçamento temos a efetividade da gestão pública como a capacidade de atendimento das reais prioridades sociais.
A eficiência administrativa seria a capacidade de promover os resultados pretendidos com o dispêndio mínimo de recursos, por isso, determina-se que um projeto torna-se mais eficiente quanto menor for a relação custo/benefício para o atingimento dos objetivos estabelecidos no projeto, como coloca Frasson.
Já na avaliação de eficácia, analisa-se até quais pontos estão sendo alcançados os resultados, representando assim a “medida do grau em que o programa atinge os seus objetivos e metas”, e por esta razão que o presente projeto tem a eficácia dos gastos públicos como a capacidade de promover os resultados pretendidos com o alcance máximo da meta traçada.
V. O Combate a corrupção como causa da Participação Popular
A Associação Amigos de Ribeirão Bonito – AMARRIBO, entidade destacada nacionalmente pela difusão do combate a corrupção, ao elaborar uma Cartilha colocou que um dos sinais de acontecimento de corrupção na Administração Municipal é o alheamento da comunidade quanto ao processo orçamentário[27]. Ao inversamente considerarmos tal assertiva temos que quanto mais o processo de elaboração do orçamento for transparente, com a participação e sucessivo controle social teremos um maior combate a corrupção.
Este modo preventivo de combate a corrupção pelo controle social já é defendido pela Organização das Nações Unidas – ONU, através da Convenção contra a corrupção, assinada em 11 de dezembro de 2.003 na cidade mexicana de Mérida[28].
No artigo 5º da convenção, sobre políticas e práticas de prevenção da corrupção, há a obrigação dos Estados signatários de formular políticas que promovam a participação da sociedade na gestão dos assuntos e bens públicos.
Já no artigo que trata sobre a informação pública, o artigo 10º, temos que o Estado Parte adotará medidas que sejam necessárias para aumentar a transparência em sua administração pública, inclusive no relativo a organização e funcionamento dos processos de decisões. Neste dispositivo existem algumas medidas que poderiam ser tomadas como: a instauração de procedimentos ou regulamentações que permitam ao público em geral obter, quando proceder, informação sobre a organização, o funcionamento e os processos de adoção de decisões de sua administração pública, com o devido respeito à proteção da intimidade e dos documentos pessoais, sobre as decisões e atos jurídicos que incumbam ao público.
VI. Apontamentos Conclusivos
O alcance prático da participação popular deve estar inserido em todos os meandros do poder público, salvo aquele em que o próprio interesse público corre risco como nos caso de segurança nacional. Seria de todo modo ilógico em um Estado Democrático de Direito faz qualquer tipo de indiferença a participação popular na gestão da coisa pública.
Além das possibilidades jurídicas concretas de participação popular temos que conquistar a consciência de todos gestores do poder público de que o fim último do Estado é alcançar a justiça social.
Advogado militante em Cuiabá em direito público, sócio-gerente da Boaventura Advogados Associados S/C; Assessor Jurídico do Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso – SINTEP/MT; Assessor Jurídico da Presidência da Câmara Municipal de Campo Novo do Parecis/MT e Associações ligadas a radiodifusão comunitária. Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Constitucional, pela Escola Superior de Direito de Mato Grosso.
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