Resumo: a crise no sistema carcerário é algo patente que não somente fragiliza os fins da pena pugnados pelo sistema jurídico, como gera um descrédito incomensurável ao sistema penal. É preciso revisitar os institutos mais pedestres para compreendê-los à luz duma hermenêutica constitucional, apontando-se, para tanto, os principais fatores desta crise.
Palavras-chave: Prisão; Penal; Crise.
Abstract: The crisis in the prison system is something that not only harms the ends of the penalty defended by the legal system, but also generates an unprecedented discredit to the penal system. It is necessary to revisit the most basic institutes to understand them under a constitutional hermeneutics, pointing to the main factors of this crisis.
Keywords: Prison; Criminal; Crisis.
Sumário: Introdução; 1. Premissas terminológicas; 2. Natureza da pena; 3. (res)socialização como justificação; 4. Crise do sistema prisional; 4.1. Abuso de custódia provisória – definição da cautelaridade; 4.2. Inflação do direito penal – a necessidade de definição do bem jurídico-penal; Considerações finais.
INTRODUÇÃO
É sabido que a privação da liberdade como forma de penar fundou o sistema penal moderno consistindo um dos principais avanços no que toca à racionalização das penas. Ora, se a regra era decapitação, mutilações, torturas em praça pública como forma de penar, a segregação do indivíduo consubstancia-se em verdadeiro avanço.[1]
Entretanto, à luz das razões que justificam a sanção criminal moderna, pode-se afirmar que a segregação do delinquente, na maneira em que é realizada, mormente nos países de democracia tardia, enseja uma subversão à legitimação do sistema normativo jurídico, visto que as funções da pena se afastam sobremaneira da teleologia constitucional.
Esta discrepância é inolvidável e irrefutável. Diante desta premissa questiona-se: a finalidade da pena propugnada pelo sistema jurídico hodierno é absolutamente inalcançável em vistas ao instrumento de penar, devendo-se, por conseguinte, reformular toda a metodologia punitiva para que seja alcançado o desiderato defendido pelo sistema; ou é a própria finalidade da pena que deve ser repensada, pois sua justificativa teorética embasa-se num sofisma ardiloso para legitimá-la frente ao sistema axiológico constitucional de difícil superação retórica?
Uma afirmação é certa: é chegada a hora de compreensão dos institutos jurídicos mais pedestres. É preciso que o Direito seja levado à sério, já afirmava Dworkin[2]; para isso é necessário o entendimento de toda estrutura da Norma Jurídica à luz do Pós-Positivismo, bem como os elementos que a diferem de outros sistemas normativos de controle social; a peculiaridade da deontologia jurídica, que a lógica normativa faz criar direitos, deveres e obrigações; a superação do discurso de normas programáticas em legislação ordinária, posto se tratar de recurso para sufragar a incompetência/ineficiência legislativa.
Em síntese, faz-se mister que haja confluência entre as finalidades da sanção criminal que a justificam e a racionalizam diante da ideologia constitucional e o que é concretamente alcançado, vale dizer, os efeitos sociais por esta impresso.[3]
Dito isso, o conhecimento do problema da prisão gira em torno de duas vertentes. Primeiro identifica-se as finalidades da pena e em segundo plano coteja-a com o instrumento que se vale o Estado para alcançá-la. Isso porque a prisão-pena é um instituto jurídico e antes mesmo dos problemas sociológicos, deve-se enfrentar os problemas jurídicos.
Válido consignar, ainda, que toda justificação e teleologia da sanção criminal é estruturada sobre a pena privativa de liberdade: a um que o momento que se clamava por justificativa do sistema penal, à luz do iluminismo, confunde-se com o apogeu da pena de prisão; a dois que pena pecuniária é acessória e de somenos importância no sistema criminal; a três que as restritivas de direitos são assaz recentes e visam colmatar um hiato entre desencarceramento e descriminalização.
1. PREMISSAS TERMINOLÓGICAS
Ferrajoli chama atenção para que a investigação do “por que punir?” seja feita levando em consideração duas vertentes: a) por que existe a pena; b) por que deve existir a pena.[4] Essa dicotomia leva em consideração a pena como um feito social, portanto investigado de forma ontológica por suas bases empíricas e a pena como consequência ética de um comportamento desviado, investigada à luz da deontologia por suas bases axiológicas.
A razão de ser desta classificação é, no bojo de argumentação lógico-jurídica, estabelecer premissas racionais sobre natureza da pena, como feito histórico, sem olvidar seu perfil axiológico-normativo que a legitima dentro do sistema jurídico. Vale dizer, a pena existe como fenômeno ontológico e explica-se, portanto, por critério empírico e a pena é instituto jurídico que se justifica por critérios normativos.
Nesse diapasão, calha segregar a terminologia para que não se crie confusões, de modo que função seria o termo designado para compreender o perfil descritivo da pena, enquanto fim designaria acepção teleológica- normativa da pena.[5]
No mesmo sentido, conforme Bitencourt:
“Adotamos aqui a distinção de base sociológica referida tanto por Ferrajoli como por Feijoo Sánchez, segundo a qual o fim ou finalidade da pena está relacionado com os efeitos sociais buscados desde a perspectiva jurídiconormativa de tipo axiológico, enquanto a função da pena está relacionada com a análise descritiva dos efeitos sociais produzidos, inclusive quando estes se distanciam das finalidades previamente postuladas para a pena.”[6]
Outrossim, ainda no campo da semântica, cumpre salientar que as funções da pena são investigadas por método empírico, tratando-se de questão científica, destarte recebe a alcunha de Teoria[7] (descritivas ou explicativas da pena).
Lado outro, os fins da pena sustentam-se em teses axiológicas de cunho normativo, de modo que devem ser tratadas como Doutrinas normativas, ou simplesmente normas de valoração ou justificação.
Por fim, chamam-se de Ideologia[8] propostas que tratam sem discriminação, ou fazem confusão, sobre os consectários empíricos e deontológicos da pena.
No que toca às doutrinas justificadoras, a pena procura fundamentos que a legitime dentro do sistema normativo. Nesse diapasão, os argumentos giram em torno da conformidade ou desconformidade com as premissas axiológicas do próprio sistema, sendo completamente indiferente à argumentação fática extraídos de observação empírica.
Destarte, faz-se irrelevante o fato de que a pena não atinja o fim propugnado pela doutrina justificadora, pois sua justificação procura guarida na própria axiologia sistêmica e não nos resultados observados. Se o fim designado não é alcançado não acarreta qualquer vício na doutrina justificadora, salvo se materialmente irrealizável, entretanto as práticas punitivas devem ser repensadas, de modo que as críticas devem ser direcionadas ao sistema punitivo.[9]
Contudo, a teleologia designada deve ao menos ser alcançável, viável, pois a possibilidade de realização do comando normativo é “condição de sentido de qualquer norma”.[10]
2. NATUREZA DA PENA
Para responder o que é a sanção criminal deve-se compreender que a identificação da natureza da pena não reverbera na sua justificação normativa. Tem-se observado verdadeiro imbróglio doutrinário, visto que os doutrinadores, no mais das vezes, confundem todas estas premissas conceituais suso referidas.
A pena, como afirma Zaffaroni, é a racionalização da vingança por parte do Estado,[11] o que não significa dizer que a finalidade da pena é somente a vingança para que seja restaurada a justiça ou reequilíbrio jurídico.
Contudo a teleologia, ao menos no sentido etimológico há de se ligar necessariamente à sua natureza, pois se sustenta por pressupostos ontológicos.[12]
Atento a estas questões Welzel chama atenção para a necessidade do estudo da natureza e função da pena sob duas óticas: para a perspectiva do condenado e terceiros que assistem sua aplicação (aspecto pessoal) e pela perspectiva do Estado que a afirma (aspecto estatal).
O aspecto pessoal possui uma função superior intelectivo e racional dos envolvidos chamados por Welzel de “sentido compreensível da pena” e uma função inferior que atuaria no âmago do subconsciente que diriam respeito aos instintos, aspirações e sentimentos, definida como “impressão da pena”.[13]
No que toca ao sentido da pena, Welzel é categórico ao afirmá-la com um mal que se impõe ao autor de um feito culpável baseado em uma retribuição justa.[14]
3. (RES)SOCIALIZAÇÃO COMO JUSTIFICAÇÃO
Na segunda metade do século XIX a segregação do indivíduo, como pena, atinge seu apogeu, tornando-se a principal resposta do sistema penal a violação das normas penais. Nessa conjuntura, estabeleceu-se ambiente fecundo e otimista que propalava a privação de liberdade como forma adequada de ressocializar o delinquente.[15]
Atualmente, contudo, afasta-se desta ideologia, vez em que impera verdadeiro ceticismo no que toca à finalidade ressocializadora da pena e demais teses relativistas pela privação da liberdade. Tem-se observado, inclusive, verdadeiro dissenso entre a teleologia pugnada normativamente e a funções alcançadas pela pena. Outrossim, os estudos criminológicos indicam a inviabilidade de se alcançar qualquer efeito positivo para o custodiado através do cárcere somente.
Há uma tendência hodierna em afirmar que o sistema penal deve se orientar pela prevenção e dissuasão, numa clara tendência em confluir as teses de caráter absoluto e relativo no que toca à finalidade da pena[16].
Ocorre que uma investigação empírica impede a constatação da concreção dos efeitos preventivos da pena, designadamente a ressocialização, chegando-se, até mesmo, refletir efeitos diametralmente desejados, manifestamente, pelo ordenamento jurídico.
Nesse diapasão, ganha ainda mais relevo o debate sobre as funções materiais da pena ao lado de sua ideologia.
A doutrina orienta-se em atribuir efeitos preventivos à pena. Trata-se de uma exigência ideológica, pois o Direito Penal há de se justificar, também, à luz de uma necessidade social.[17] Assim, os fins da pena devem-se ligar à prevenção de novos delitos.
A superação de critérios metafísicos para legitimar a pena faz afirmar, concomitantemente, o caráter de ultima ratio da prisão e do Direito Penal, pois se a pena é orientada para uma finalidade social (utilitarista)[18] e não se podendo olvidar os efeitos negativos do cárcere, havendo outros meios para alcançar este desiderato preventivo a prisão deve ser preterida.
No que toca à ressocialização, já afirmava Carrara no século XIX, que não se compatibiliza com o propósito de punir.[19]
Há certa tendência doutrinária neste sentido ao afirmar que:
“(…) não é a função da pena pública a de ressocializar quem quer que seja. Os meios da execução da pena, sobretudo a pena privativa de liberdade, devem obediência e respeito aos princípios fundamentais dos diversos estatutos civilizatórios, a partir da consideração de que o seu objeto – dolorosa e talvez inadequada expressão! – em verdade é um sujeito, e, mais claramente, o Homem, titular único da dignidade humana, sob quaisquer condições”.[20]
Há um risco que o diagnóstico da necessidade da socialização acarreta, pois “adotar exclusivamente a teoria da prevenção especial (ressocialização) é que ela levaria a penas sem limite de duração, já que estaria o condenado preso ‘o tempo necessário até que estivesse ressocializado.’”[21] Atentado, sem não mais poder, ao Estado de Direito e seus axiomas.
Roxin lembra ainda que a Constituição alemã proíbe a educação forçosa em qualquer circunstância por afetar o núcleo intocável da personalidade de um adulto. Aduz ainda que não é “missão do Estado corrigir seus cidadãos.”[22]
Em que pese as críticas de índole jusfilosóficas, que por si só já seriam suficientes para afastar a ressocialização como missão da pena pública, o cerne da questão é compreender que há uma antinomia insustentável: segregar para reinserir. A inserção se dá pela ambientação e não pela exclusão. A adaptação aos valores morais preestabelecidos pela sociedade depende da vivencia cognitiva desses valores.
4. CRISE DO SISTEMA PRISIONAL
Ferrajoli constata a crise do sistema de penas e arrola os grandes responsáveis por está crise, apontando, mas não se limitando: a) aumento progressivo da prisão cautelar em relação à prisão-pena por ineficácia das técnicas processuais; b) os efeitos deletérios que os meios de comunicação geram ao imputado e ao próprio processo; c) a inflação do direito penal.[23]
No que toca à pena privativa de liberdade confirma-se como verdadeiro sintoma desta crise o desenvolvimento de medidas alternativas e substitutivas que geram um efeito paliativo por não confrontar o verdadeiro problema carcerário, pois “este desenvolvimento é também um sinal da resistência tenaz do paradigma carcerário.”[24]
Em que pese as contundentes críticas ao sistema prisional, adianta-se, desde já, não se poder referendar qualquer proposta abolicionista no que toca à privação de liberdade como pena, pois nenhuma das teorias apresenta método idôneo para que seja substituída a segregação e concomitantemente atingido o desiderato penal. No escólio do mestre Nucci sobre o abolicionismo:
“O método atual de punição, eleito pelo Direito Penal, que privilegia o encarceramento de delinquentes, não estaria dando resultado e os índices de reincidência estariam extremamente elevados. Por isso, seria preciso buscar e testar novos experimentos no campo penal, pois é sabido que a pena privativa de liberdade não tem resolvido o problema da criminalidade.”[25]
O abolicionismo, portanto, reafirma as críticas como usualmente ventiladas, clamando pela superação desta forma de penar olvidando-se, adrede, a missão da pena.[26]
Daí o porquê deve-se compreender que “a história da prisão não é de sua progressiva abolição, mas a de sua permanente reforma”[27], maiormente no que se refere à metodologia punitiva.
É sabido que o cárcere aflora valores negativos por se tratar de ambiente hostil em que se impera uma moral paralela de índole duvidosa. Sendo certo que a prisão propicia o desenvolvimento do que há de pior no homem, por se tratar de local lúgubre, as prisões de curta duração serve de verdadeiro estimulo a novos delitos, não lhe sendo observado qualquer caráter preventivo.[28]
Nesse sentido, deve-se reafirmar a prisão como ultima ratio servindo como artifício para penar os casos mais gravosos, a partir de situações de comprovada necessidade, confirmando-se que não há outros meios idôneos para alcançar o fim almejado pelo Direito Penal.
Deste modo, Anabela Miranda Rodrigues arrola dois critérios que devem orientar a atividade do legislador no que toca ao sistema prisional:
“Em primeiro lugar, o da reconformação da pena de prisão no sentido de minimizar o seu efeito negativo e criminógeno e outorgar-lhe, em contrapartida, uma sentido positivo, prospectivo e socializador.
Em segundo lugar, o da limitação da aplicação concreta da prisão, preconizando a sua substituição, sempre que possível por penas não institucionais.’[29]
Espera-se que num futuro próximo os métodos punitivos sejam todos revisto e que seja implementado “alguma coisa de melhor que direito penal e, simultaneamente, de mais inteligente e mais humano do que ele.”[30] Todavia, o homem não pôde imaginar ainda um sistema melhor, daí o porquê da superação da crise toca em sua reforma e não em sua abolição.
4.1. ABUSO DE CUSTÓDIA PROVISÓRIA – Definição da Cautelaridade
O Código de Processo Penal de 1941, em sua origem, possuía fortes influências do um modelo de persecução penal fascista, de modo que era todo embasado em uma presunção de culpa; a prisão antes do trânsito em julgado era um reclamo legal o que a afastava de sua atual condição de cautelar.
Com advento da Constituição de 1988 há uma mudança paradigmática a partir da extração de todo conteúdo do princípio da presunção de inocência, pois somente se faz admitir uma prisão antes da constituição de culpa acaso a custódia tenha finalidade cautelar.
O princípio da presunção de inocência, portanto, é verdadeira garantia assegurada aos jurisdicionados figurando como importante controle e limitação da atividade punitiva estatal.
Afirma-se, ordinariamente, se tratar de norma de alto conteúdo axiológico calcado numa ideologia civilizatória cujo supedâneo é a estruturação do Estado de Direito.[31]
Em que pese essa referência ideológica, a situação de não culpabilidade se estrutura e se fundamenta, cientificamente, pela constatação do crime como instituto jurídico e não como mero fato social, uma vez que, para epistemologia jurídica hodierna, há pressupostos dogmáticos para afirmá-lo como tal. É dizer, o crime (ao menos à luz do Direito) demanda, além dos requisitos ordinários, a sua afirmação/confirmação por um órgão legitimamente constituído, observado a ritualista da norma legal.[32]
Ora, o crime, inobstante seu substrato fático como realidade ôntica, é instituto jurídico valorado normativamente transcendendo, pois, à possibilidade de subscrevê-lo, em plenitude, de forma ontológica. Assim, a configuração do crime e, por conseguinte, a possibilidade de cercear qualquer direito (no âmbito criminal), através de sanção, condiciona-se pela decretação da culpa pelo órgão legitimamente incumbido do referido desiderato.
Nesse diapasão, reitera-se, qualquer sanção imposta ao indivíduo só há de se justificar por um título adequado. Portanto não é uma ideologia que funda o princípio em tela, mas a própria epistemologia sistêmica, vez em que o método para conhecer do crime reverbera nos consectários do ius puniendi.
Sanção criminal, portanto, só se faz possível com o trânsito em julgado da constituição da culpa.
Contudo, com escopo predefinido de assegurar a efetividade da jurisdição, admitem-se restrições à liberdade de locomoção do agente (que não se confunde com pena, portanto afasta-se substancialmente em quesito teleológico). É dizer, à luz do princípio da não culpabilidade qualquer medida constritiva de direito no curso da persecução só há de se justificar a partir de uma finalidade cautelar.
Malgrado o equívoco em compreender que a aplicação desta norma demanda uma relativização conceitual sob pena de obstar a tutela cautelar no processo penal, afirmando-se, inclusive, que sua interpretação radical inviabilizaria qualquer medida cautelar[33]; é importante deixar consignado que a norma deve ser compreendida em toda sua extensão, não havendo que se falar em hipotética flexibilização para possibilidade de legitimar a custódia cautelar.
Contrário à garantia constitucional faz resistência o interesse de toda a sociedade de reprimir as condutas que violem de forma significativa os bens jurídicos mais relevantes para convívio social. Nesse sentido, legitima-se, desde que de forma ponderada e adequada, restrições à liberdade no curso da persecução criminal desde que observado a sua finalidade cautelar.[34]
Destarte, a natureza cautelar da custódia provisória é uma determinação constitucional; e com o advento da Lei 12.403/11 o legislador ratificou a tendência mundial de afirmar a cautelaridade da constrição antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Portanto, qualquer prisão determinada no curso da persecução criminal que não tenha finalidade de acautelar o processo em curso é abusiva e passiva de ser fulminada por via de HC.
Os abusos na constituição da segregação provisória agravam o sistema carcerário, pois geram uma inflação desmedida que fomenta o ambiente abjeto e repulsivo do cárcere.
4.2. INFLAÇÃO DO DIREITO PENAL – A necessidade de definição do Bem Jurídico-Penal
Há certa uniformidade na doutrina contemporânea em definir o Direito Penal como sendo o conjunto de normas definidoras dos crimes (comportamentos mais repulsivos socialmente, identificando nestes uma violação a um bem jurídico indispensável ao convívio harmónico e pacífico em sociedade)[35], o que traduziria na legitimação do Estado em reprimir tal comportamento de forma igualmente grave por intermédio de uma sanção criminal (instrumento mais agressivo de que se vale o Estado para tutelar interesses legitimamente constituídos).
Percebe-se, com isso, que a despeito de largamente utilizado, inclusive na própria delimitação conceitual deste ramo do Direito, a ideia de bem jurídico-penal (metodologia conceitual e estrutural) é pouco trabalhada pela doutrina (mormente em solo brasileiro).
Quiçá, diante da magnitude do tema, poder-se-ia afirmar se tratar do assunto mais negligenciado pelos operadores do Direito; incompreensível leviandade diante das funções que sua estruturação significativa pode operar junto aos jurisdicionados, afastando intervenções infundadas.
O bem jurídico-penal, neste sentido, é tratado de forma temerária pela doutrina majoritária, uma vez que se limita a dizê-lo como “interesse da vida humana juridicamente protegido”[36], “estado social desejável que o Direito quer resguardar de lesões”[37], dentre outros aforismos que em nada servem para exata compreensão do que seja objeto de tutela da norma penal.
A missão do Direito Penal, definição e o próprio conteúdo normativo gira em torno da ideia de bem jurídico-penal, de modo que causa espécie uma engrenagem de tamanha importância não possuir precisão metodológica em forma de garantia dos cidadãos em face do ius puniendi Estatal. Cumpre salientar que sua definição jurídico-científica, e tão somente, viabilizaria fundamentar, numa acepção material, o princípio da Intervenção Mínima.
Forte em Juarez Tavares, o conteúdo do injusto tem como nobre missão, no regime democrático, garantia em face dos cidadãos de limitação do arbítrio Estatal, de modo que é necessário limitá-lo.[38]
Portanto, faz-se mister atribuir balizas conceituais ao bem jurídico-penal para que essa ideia sirva como limitador à intervenção estatal no âmbito penal funcionando, em última análise, como fundamento material do princípio da intervenção mínima.
Ocorre que a dificuldade de definição do bem jurídico-penal não é algo recente e fundamenta uma das principais críticas à missão do Direito Penal como protetor de bens jurídicos seletivos.[39] Ocorre que essa hipótese, conquanto majoritária na doutrina, não é unânime, vez em que há balizadas teses que pugnam por fins outros.
Entretanto, há quem sustente que malgrado estas outras teses (v.g. afirmação da validade normativa – Jakobs) não esbocem a ideia de missão primeva do Direito Penal como proteção aos bens jurídicos, teriam sempre por objeto, ainda que de forma acessória, a proteção dos mesmos.[40]
Portanto, a definição do bem jurídico-penal como objeto de proteção do direito penal atuaria como importante medida descriminalizadora e, por conseguinte, desencarceradora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crise do sistema carcerário é algo patente e dentre as inúmeras causas pode-se identificar o abuso da custódia preventiva e a hipertrofia do Direito Penal, em razão, sobremodo, duma ausência de critério constitucional para balizar a definição de bem jurídico-penal, relevantes razões.
Entretanto, o primeiro ponto que se deve enfrentar é no âmbito linguístico; vale dizer, deve-se estabelecer coerência lógica no discurso para que seja possível viabilizar a comunicação. Fala-se tudo sobre qualquer coisa de qualquer forma, de modo que a obliterar o próprio diálogo.
Destarte, é preciso que a complexidade da fala não seja olvidada, sob pena de prejudicar a própria comunicação.
No âmbito da dogmática, deve-se revistar os institutos mais pedestres para efeito de reinterpretá-los à luz dos valores constitucionais, de modo a limitar o Ius Puniendi estatal.
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Notas
[1] Sobre os suplícios e demais penas infames: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 38. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
[2] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
[3] É preciso sublinhar que “uma integral justificação exigirá uma avaliação das finalidades em face dos resultados.” RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária. 2. ed. Coimbra Editora, 2002. p. 33.
[4] FERRAJOLI, Luigi. In: RAMÍREZ, Juan Bustos (org.). Prevencion y Teoria de la Pena. Santiago: Editorial Jurídica ConoSur, 1995. p. 26.
[5] No escólio de Ferrajoli: “son teorías explicativas o explicaciones las respuestas a las cuestiones históricas o sociológicas sobre la función (o las funciones) que de hecho cumplen el derecho penal y las penas, mientras son doctrinas axiológicas o de justificación las respuestas a las cuestiones ético-filosóficas sobre el fin (o los fines) que ellas deberían perseguir.” Ibid. Idem.
[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 108. No escólio do mestre Paulo Busato: “A partir dos estudos criminológicos não se pode deixar de reconhecer a existência de objetivos ou missões (propósitos, o que deve almejar) e funções (o que efetivamente provoca, independente de ser ou não a pretensão) do Direito Penal.” BUSATO, Paulo César. Direito Penal – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 5.
[7] A etimologia da palavra vem do grego referindo-se a uma contemplação, olhar para algo, de modo em que se liga ao método empírico.
[8] “Por ideología (…) entiendo, efectivamente, toda tesis o conjunto de tesis que confunde entre ‘deber ser’ y ‘ser’ (o bien entre proposiciones normativas y proposiciones asertivas)”. FERRAJOLI, Luigi. In: RAMÍREZ, Juan Bustos (org.). Prevencion y Teoria de la Pena. Santiago: Editorial Jurídica ConoSur, 1995. p. 27.
[9] Nesse sentido: “las doctrinas de justificación del derecho penal no admiten su crítica sólo porque el fin por ellas indicado como justificador no resulte empíricamente satisfecho. La tesis de que tal fin no es realizado aunque sea realizable es una crítica que debe dirigirse al derecho penal y no a la doctrina normativa de justificación; es decir, debe dirigirse contra las prácticas punitivas —legislativas y judiciales— en cuanto éstas desatienden los fines que las justifican, pero no a sus modelos justificadores.” Ibid. Idem. p. 28.
[10] Ibid. Idem. p. 29.
[11] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Tratado de Derecho Penal – Parte General: Tomo V. Buenos Aires: Ediar, 1988.
[12] Observa-se que: “O verbete teleologia, no Dicionário do Pensamento Contemporâneo, compreende uma explicação mais detalhada, buscando os pressupostos ontológicos que sustentariam uma explicação ou doutrina teleológica. Justifica que entender um acontecimento ou processo como sendo teleológico, implica (1) admitir que o respectivo objeto de estudo não é aleatório ou, então, que a forma atual da totalidade ou estrutura em que se insere tal objeto não é o resultado de processos e acontecimentos aleatórios; (2) a existência de uma meta, fim ou propósito que constitui sua razão, explicação ou sentido e que pode ser (2-a) imanentista, cuja finalidade é admitida no âmago ou essência de cada ser ou conjunto de seres; (2-b) transcendente ao ser da totalidade, como uma razão por detrás do mundo.” VASCONCELOS, Vitor Vieira, et. al. A teleologia e o estudo das ciências da natureza – Contribuições da Filosofia. Em: <http://www.seer.furg.br/ambeduc/article/view/1676/1199>. Acesso em 05/08/2016.
[13] WELZEL, Hans. Derecho Penal: Parte General. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956.
[14] Nesse sentido: “La pena es un mal que se dicta contra el autor por el hecho culpable. Se basa sobre el postulado de una retribución justa, que ‘cada uno sufra lo que sus hechos valen’ (KANT), vale decir, sobre el postulado de la armonía entre merecimiento de felicidad y felicidad, merecimiento de pena y sufrimiento de pena.” WELZEL, Hans. op. cit. p. 233. Percebe-se uma tendência em identificar em Welzel perfil (neo)retribucionista, o que não se pode concordar. Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. e BUSATO, Paulo César. Direito Penal – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
[15] No escólio de Bitencourt: “Durante muitos anos imperou um ambiente otimista, predominando a firma convicção de que a prisão poderia ser um instrumento idôneo para realizar todas as finalidades da pena e que, dentro de certas condições, seria possível reabilitar o delinquente." BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: Análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 28.
[16] BASOCO, Juan Terradillos. In.: RAMÍREZ, Juan Bustos (org.). Pena y Estado: Función simbólica de la Pena. Santiago: Editorial Jurídica ConoSur, 1995. p. 9.
[17] Conforme Rodrigues: “Falar de luta contra o crime significa, hoje, assinalar uma finalidade ao direito penal, designadamente à pena. Só esta intencionalidade teleológica – que tem na realidade social e na proteção de bens jurídicos o seu ponto de referência – responde aos problemas de legitimação do direito penal.” RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária. 2. ed. Coimbra Editora, 2002. p. 30.
[18] O Utilitarismo em Bentham parte de algo inilidível: o móvel do comportamento dos homens é governado por duas forças antagônicas, o prazer e a dor; também afirma que a busca do prazer só teria freio em virtude de ameaça de dor proporcional ao bônus alcançado pela prática do ilícito como forma de inibição do comportamento contrário ao Direito. Nesse sentido: “Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will serve but to demonstrate and confirm it.” BENTHAM, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Oxford: Clarendon Press, 1907. p. 12.
[19] Cf. BUSATO, Paulo César. Direito Penal – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 767.
[20] PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2015. p. 454.
[21] ROXIN, Claus. Strafrecht, Aligemeiner Teil I. 1997. §19, p. 74, apud, SANTOS, Juarez Cirino Dos. Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. Curitiba: ICPC – Lumen Iuris, 2008. p. 464.
[22] Ibid., op. cit. p. 465.
[23] São tantas outras as causas do problema da consequência penal que referendam a inadequação do sistema hodierno. Discorrendo sobre o sistema de penas no Código Penal Italiano aduz: “ni las penas privativas de libertad, ni las penas pecuniarias, en las actuales circunstancias, parecen estar en condiciones de satisfacer los fines que justifican el derecho penal: unas por demasiado aflictivas, las otras por demasiado poco, y tanto unas como otras por ineficaces o, peor aún, contraproducentes. En cuanto a las penas privativas de derechos, su disciplina se va revelando cada vez más inicua e irracional.” FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razon: teoria del garantismo penal. 4. ed. Madrid: Trotta, 2000. p. 411.
[24] Lembra-se ainda que as “medidas alternativas y sanciones sustitutivas no han sustituido en realidad a la pena de cárcel como penas o sanciones autónomas, pero se han sumado a ella como su eventual correctivo, terminando así por dar lugar a espacios incontrolables de discrecionalidad judicial o ejecutiva.” Ibid., op. cit. p. 465.
[25] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 631-632.
[26] Discorrendo sobre os discursos abolicionistas em Direito Penal: “Conquanto seja desejável um futuro em que o Direito Penal não mais figure como instrumento de controle social necessário, essa situação encontra-se ainda no campo das utopias.” BUSATO, Paulo César. Direito Penal – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 2.
[27] BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: Análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 28.
[28] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
[29] RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária. 2. ed. Coimbra Editora, 2002. p. 31.
[30] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1979. p. 324.
[31] Nesse sentido: “Essa opção ideológica (pois eleição de valor), em se tratando de prisões cautelares, é da maior relevância, pois decorre da consciência de que o preço a ser pago pela prisão prematura e desnecessária de alguém inocente (pois ainda não existe sentença definitiva) é altíssimo, ainda mais no medieval sistema carcerário brasileiro.” LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 572.
[32] Encontra-se razão em Vives Antón e Cobo Del Rosal ao afirmarem a necessidade da punibilidade (no que toca às hipóteses em que a extinção da punibilidade se dá antes do trânsito em julgado do decreto condenatório) como elemento da estrutura analítica do crime. COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás S. Derecho penal: parte general. 5. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.
[33] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição da República portuguesa anotada. 3. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1993. p. 203.
[34] No compasso dos dogmas constitucionais se faz hialina a afirmação de que “somente exigências processuais de natureza cautelar podem justificar uma limitação, total ou parcial, à liberdade das pessoas”. SOUZA, José Castro de. Jornadas de Direito Processual Penal. Coimbra: Livraria Almedina, 1988. p. 151 apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 3. p. 549.
[35] Jakobs cujo pensamento sistêmico faz estruturar sob a validade da norma a ideia de objeto de tutela do Direito Penal foge à regra ora apresentada: “La contribución que el Derecho penal presta al mantenimiento de la configuración social y estatal reside en garantizar las normas. La garantía consiste en que las expectativas imprescindibles para el funcionamiento de la vida social, en la forma dada y en la exigida legalmente, no se den por perdidas en caso de que resulten defraudadas.” JAKOBS, Günther. Derecho penal – Parte general: Fundamentos y teoría de la imputación. Madrid: Marcial Pons, 1997. Também em MENDES, Gilmar Ferreira; BOTTINI, Pierpaolo Cruz; PACELLI, Eugênio. Direito Penal Contemporâneo: Questões Controvertidas. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
[36] VON LISZT, Franz. Tratado de direito penal alemão. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1889. p. 219.
[37] WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Chile: Jurídica de Chile, 1987. p. 15.
[38] Consoante o autor: “Caso se tome, entretanto, a norma penal não como categoria imperativa, nos termos autoritários propostos por Thon e seus seguidores, como BINDING, por exemplo, mas unicamente com o sentido de instrumento de garantia individual, perde ela seu caráter ideológico, que, aliás, só o tem porque assim lhe concede a doutrina e passa a ser vista dentro de sua exata dimensão democrática, que se lhe deve prescrever. Entendida a norma penal dessa forma, não cabe ao tipo a função de proteção de bem jurídico.” TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 181.
[39] Constatando as dificuldades em definir bem jurídico-penal: “Y ello porque se trata de un principio inane si no se le somete a ulteriores precisiones. Basta con echar una ojeada a la literatura penal para ver, p. ej., cómo sigue viva, cuando no estéril por el alejamiento de los puntos de partida, la polémica sobre cuál sea el referente material del bien jurídico, o, dicho de otro modo, cuál ha de ser el criterio de selección de los objetos de tutela penal.” BASOCO, Juan Terradillos. In.: RAMÍREZ, Juan Bustos (org.). Pena y Estado: Función simbólica de la Pena. Santiago: Editorial Jurídica ConoSur, 1995. p. 9.
[40] Nesse sentido Hassemer discorrendo sobre as missões do direito penal, em especial a “proteção de bens jurídicos”, “reafirmação dos valores éticos-sociais” e “confirmação do reconhecimento normativo” afirma: “En el fondo, las tres posiciones, que sintéticamente acabamos de exponer, tienen muchas cosas en común y, como seguidamente veremos, son bastante parecidas.” HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al derecho penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989. p. 100.
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