A política de criminalização excessiva e relação com as cifras negras de criminalidade

Resumo: O artigo adiante confronta a política de criminalização excessiva a qual o Brasil tem enfrentando desde os anos 90 com a edição da lei dos crimes hediondos com as estatísticas criminais, questionando se a elevação das penas e a previsão de novos tipos penais é a solução para o problema da criminalidade. Aborda entendimentos doutrinários acerca das cifras negras da criminalidade e, ao final, propõe ideias para o enfrentamento do problema com base na moderna política criminal de redução das cifras negras penais.

Palavras chave: crime, criminalidade, cifra negra, hediondos e organizações criminosas.

Abstract: The article below confronts the policy of excessive criminalization that Brazil has been facing since the 1990s with the edition of the law of felony crimes with criminal statistics, questioning whether the increase of sentences and the prediction of new criminal types is the solution for the Crime problem. It addresses doctrinal understandings about black crime figures and, in the end, proposes ideas for tackling the problem based on the modern criminal policy of reducing criminal numbers.

Key words: crime, criminality, black cipher, heinous and criminal organizations.

O presente artigo visa confrontar e questionar a crescente política de criminalização e a sua relação com as cifras negras da criminalidade. É sabido que desde a década de 1990 se intensificou a política de tipificação legal de condutas e endurecimento das penas. A lei 8.072/90 inaugurou a era dos crimes hediondos no Brasil com a política criminal da lei e da ordem. Desde então o direito penal se encarregou de punir crimes que antes eram indiferentes penais como nas leis 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária); lei 9.034/95 (organizações criminosas) já revogada e substituída pela Lei 12850/13; lei 9.296/96 (interceptações telefônicas); Lei 9.437/97 (armas); Lei 9.455/97 (crimes de tortura); Lei 9.503/97 (código de trânsito com uma intensa parte penal); Lei 9.605/98 (crimes ambientais); Lei 9.613/98 (branqueamento de capitais), entre tantas outras.

Não bastassem as mencionadas leis outras foram criadas levando até mesmo nome de pessoas respeitáveis e muito visíveis na sociedade como a lei 12.737 de 2012 apelidada de lei Carolina Dieckmann e que se refere à crimes cibernéticos e lei 12.340 que modificou alguns tipos penais e criou instrumentos de proteção referentes à violência doméstica e familiar denominada Maria da Penha.

A pletora de leis penais e a excessiva criminalização também nos remete a indagação se a mera edição de diplomas punitivos resolve a questão do elevado número das estatísticas criminais com redução de delitos ou se é apenas uma manifestação excessiva de uma política de tolerância zero sem real incidência nas taxas criminais.

A banalização de tipos penais sem estrutura persecutória gera impunidade. Se de um lado alguns criminosos são punidos exemplarmente com o intrincado sistema de leis cada vez mais sofisticadas de outro há uma grande margem de autores de delitos que ficam impunes. E essa impunidade não contabilizada no subsolo do crime é denominada classicamente como cifras negras.

São também conhecidas as expressões “zona oscura” ou “dark number” que é a diferença entre a criminalidade socialmente existente e a criminalidade registrada. No Brasil, em razão da ineficiência da atuação estatal em registros criminais, questionam-se os números das estatísticas sempre com o argumento que a criminalidade registrada não reflete a real. É por esta razão que as taxas de criminalidade sempre aumentam, entretanto, o incremento quantitativo é apenas falsa aparência de que o problema está sendo resolvido pois o que o que ocorre é uma elevação nos registros sem solução efetiva dos casos penais

Na criminologia de Jorge de Figueiredo Dias (2013) encontra-se a expressão que define o fenômeno da impunidade que se esconde nas cifras negras. Trata-se da “criminal case mortality” (mortalidade dos casos criminais ou casos criminais natimortos em tradução livre). Trata-se de expressão ainda pouco debatida no Brasil, entretanto, com elevado impacto tanto de linguagem quanto de suas características.

Van Vechten, citado por Jorge Figueiredo, cujo link do artigo original segue nas referências, menciona sete estágios da administração penal que devem ser percorridos para que haja punição efetiva e, caso contrário, os crimes praticados não serão objeto de resposta penal. Se todos os estágios não forem cumpridos haverá impunidade e ocorrerão os casos criminais natimortos. São eles em tradução livre: 1) crimes conhecidos pela polícia; 2) crimes esclarecidos por prisão; 3) pessoas indiciadas pela polícia; 4) Persecução criminal judicial; 5) condenações criminais; 6) prisão em razão de sentença; 7) presos efetivamente recebidos nas prisões em razão da sentença (Van Vechten, 1942).

 A clareza de detalhes na doutrina do autor mencionado descreve nada mais que as fases ou filtros que são requisitos para se alcançar a resposta criminal. Adaptando-se a realidade do Brasil pode-se dizer que em nossa sociedade há um enorme grupo de pessoas marginalizadas e invisíveis ao sistema por culpa de um processo penal atrasado e institutos falidos como inquérito policial, sistemas de nulidades e recursos.

Na realidade a repressão de crimes pelo Estado ocorre através de toda estrutura penal que faz uma seleção de marginalizados e os pune entrando, assim, para o submundo da criminalidade estatística a fim de manter aquilo que se denomina ordem social. Para Zaffaroni:

(…) Em parte o sistema penal cumpre essa função, fazendo-o mediante criminalização seletiva dos marginalizados, para conter os demais. E também em parte, quando os outros meios de controle social fracassam, o sistema não tem dúvida em criminalizar pessoas dos próprios setores hegemônicos, para que estes sejam mentidos e reafirmados em seu rol, e não desenvolvam condutas prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem, ainda que tal fenômeno seja menos frequente (criminalização de pessoas ou de grupos contestadores pertencentes à classe média alta). (ZAFFARONI, 2002, p. 77)

      Para se debater a questão da criminalidade não se pode apenas abordar apenas a atividade repressiva do Estado. As ações violentas e criminosas praticadas pelos grupos marginalizados são alcançadas prioritariamente por duas formas de controle social. A primeira forma é denominada de controle social primário difuso, onde ainda não entra em cena o sistema repressivo legitimado pelo poder e autoridade e tende a ser muito mais anestésico, posto que, se exerce através de grupos sociais que visam à formação do ser. (ZAFFARONI, 2002, p.61).

O sistema repressivo padece em razão da sua inefetividade e o direito penal não tem sido o melhor instrumento para se exercer o controle social. Ademais, o princípio da prevenção geral não se efetiva face ao aclive progressivo do desprestígio da punição. Necessário, então se pensar em formas diversas de controle social.

Em primeiro lugar tal controle social se exerce de forma primária através da família, da educação, da medicina, da religião, dos partidos políticos, dos meios massivos de comunicação, da atividade artística, da investigação científica etc. O controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos difusos e encobertos até meios específicos e explícitos, como é o sistema penal (polícia, juízes, agentes penitenciários etc.) (ZAFFARONI, 2002, p. 61)

Quando o controle social primário falha, especialmente, em países periféricos de economia instável e desigual em distribuição de rendas vitimando grupos de pobres, negros e minorias, entra em ação o controle secundário institucionalizado realmente punitivo e com discurso político punitivo que é o sistema penal. Demonstra-se com isso que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática segundo a intensidade do controle social adotado. (ZAFFARONI, 2002, p. 62).

No Brasil o Estado não investe seus esforços em formar o cidadão e acredita-se que isso é uma das causas da criminalidade. Luiz Flávio Gomes esclarece (on line) que o Brasil é o 20º país mais homicida do mundo, colocação que ocupa em razão da sua taxa de homicídios em 2010: 27,3 mortes violentas a cada 100 mil habitantes (Fontes: Datasus-Ministério da Saúde e IBGE). Não bastasse ser um país homicida, o Brasil também ostenta o rótulo da impunidade.

 Por tudo isso está claro que a punição, embora necessária, não sido desde os anos 90, data inicial da análise do recorte deste artigo e, até a presente data, o melhor instrumento de controle social. Antes de se pensar em punir deve-se formar a pessoa humana com dignidade. Enquanto a classe política brasileira não se conscientizar que são necessários investimentos maciços na formação de base não haverá mudança no sistema. Ainda há luz no fim do túnel embora quase apagada.

 

Referências
Dias, Jorge de Figueiredo e Andrade, Manuel da Costa Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra. Ed. Coimbra. 2013
Gomes, Luiz Flávio. De 5% a 8% dos homicídios são elucidados no Brasil. Encontrado em http://www.conjur.com.br/2012-ago-30/coluna-lfg-homicidios-sao-elucidados-brasil. Acesso em 05 de abril de 2017
Courtlandt C. Van Vechten. American Sociological Review. Vol. 7, No. 6 (Dec., 1942). Encontrado em https://www.jstor.org/stable/2085408?seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso em 05 de abril de 2017
ZAFFARONI, Eugênio Raùl e outro. Manual de direito penal brasileiro. Parte geral. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2002.

Informações Sobre o Autor

Adriano Gouveia Lima

Mestre e Especialista em Direito Penal. Advogado criminalista. Professor de Direito Penal na UniEvangélica de Anápolis


Equipe Âmbito Jurídico

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