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A possibilidade de alteração do nome e sexo civil do transexual

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Resumo: O presente artigo tem a pretensão de expor um estudo sobre o transexualismo, trazendo a concepção de que o sexo é composto por um conjunto de fatores físicos, biológicos e psíquicos, onde se buscou trazer a lume a existência de um desajuste entre o sexo físico e o psíquico, ocasionando ao indivíduo portador desse transtorno da sexualidade sérias dificuldades de convivência em sociedade. Seu objetivo consiste em examinar o direito à identidade pessoal dos transexuais. O direito à identidade é uma espécie dos Direitos da Personalidade e tem o nome como elemento individualizador da pessoa humana e, no caso do transexual, além do nome, assume também relevância o direito à identidade sexual. Dentro deste tema, foi feita uma abordagem sobre a possibilidade de realizar a cirurgia de redesignação sexual do transexual, a retificação de seu nome e sexo no Cartório de Registro Civil e demais documentos e de como deverá ser tratada a situação anterior no Registro Civil e na Certidão, levando-se em conta a inexistência de legislação brasileira apta a regulamentar a situação do transexual. Neste contexto, é trazido o posicionamento jurisprudencial acerca do tema, além de projeto de Lei que tramita nas Casas Legislativas. Busca-se, com este trabalho, expor a necessidade de debruçar-se na análise do problema do transexual quanto à retificação ou mudança do seu Registro Civil com o fim de preservar o seu bem-estar físico, psíquico e social e garantir ao transexual o livre e concreto exercício dos direitos e garantias fundamentais determinados na Constituição Federal.

Palavras-chaves: Transexualismo. Alteração. Prenome. Sexo Civil. Registro Civil.

Abstract: This article intend to expose a study of transsexualism, bringing the notion that sex is composed of a set of physical, biological and psychological, which sought to bring to light the existence of a mismatch between physical sex and psychic, causing the individual with this disorder sexuality serious difficulties of living in society. Your goal is to examine the right of transsexuals to personal identity. The right to identity is a kind of Personality Rights and is named as an individualization of the human person and in the case of transsexuals, besides the name, is also of relevance of the right to sexual identity. Within this theme, an approach was made ​​about the possibility of performing a sex reassignment surgery transexual, correction of name and sex in the Civil Registry and other documents and will be handled the situation before the Civil Registry and certificate, taking into account the absence of Brazilian law able to regulate the situation of transsexuals. In this context, the positioning is brought jurisprudence on the subject, and the draft law which is being processed in the Legislative Houses. Aim, with this work, exposing the need to look into the problem analysis transexual regarding correction or change their civil registry in order to preserve their physical well-being, psychological and social transsexual to ensure the concrete and free exercise of certain fundamental rights and guarantees in the Federal Constitution.

Keywords: Transsexualism. Amendment. First name. Sex Civil. Civil registration.

Sumário: Introdução. 1. Transexualismo 2. Sexualidade humana: conceitos e diferenças. 2.1. Sexo biológico, sexo psicológico e sexo civil. 2.2. Classificação dos fenômenos da sexualidade. 3. A cirurgia de transgenilização ou de redesignação sexual. 3.1. Critérios. 3.2. Integridade física e responsabilidade médica. 4. Possibilidade de Alteração no Registro Civil do Transexual. 4.1. Possibilidade de alteração do prenome e do estado sexual no Registro Civil. 4.2. Jurisprudência. 4.3. Procedimento. 4.4. Repercussões no Direito de Família. Conclusão. Referências

Introdução

O presente artigo origina-se de monografia inédita apresentada, em Junho de 2010, como requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes, sob a orientação do professor Raimundo Giovanni, e aprovada com distinção e indicação para publicação pela banca. O tema escolhido foi fruto de experiência prática vivida durante o estágio desenvolvido na 5ª Promotoria de Justiça Distrital de Aracaju (Ministério Público de Sergipe). Foi tomando conhecimento de um processo no Fórum Integrados I, em Aracaju, que o tema veio à tona.

O presente trabalho versa sobre a importância do direito à identidade pessoal dos transexuais. É sabido que os elementos individualizadores da pessoa humana são: o nome, o estado e o domicílio.

O nome, em especial, identifica e individualiza um indivíduo dentro da sociedade. O direito à identidade pessoal é o direito que tem todo indivíduo de ser reconhecido em sociedade por denominação própria e está garantido pela Carta Magna e em Legislação Infraconstitucional. O referido direito caracteriza-se por ser um direito absoluto, imprescritível, irrenunciável, inalienável, impenhorável, intransmissível e personalíssimo.

O direito à identidade é uma espécie dos Direitos da Personalidade e tem o nome como o principal elemento individualizador da pessoa humana e, no caso do transexual, além do nome, assume também relevância o direito à identidade sexual, que se traduz, neste caso, no direito de ser reconhecido pelo sexo e de acordo com a sua íntima convicção (sexo psicológico).

Nesta obra, a temática da transexualidade, controvertida, atual e relevante no universo jurídico, é o objeto de estudo, onde serão apresentadas a sua definição, sua classificação, a diferença entre os demais fenômenos da sexualidade, também será visto em que se consiste à cirurgia, além disso, a possibilidade de alterar o nome e sexo no Registro Civil de Nascimento do transexual, submetido à cirurgia de redesignação sexual. Diante da ausência de uma legislação específica no Brasil, o que se objetiva é contribuir para o esclarecimento da questão, colacionando entendimentos doutrinários e jurisprudenciais atuais do assunto, analisando o problema do transexual quanto à retificação ou mudança do seu Registro Civil com o fim de preservar o seu bem-estar físico, psíquico e social e sua inserção na sociedade.

Através de uma ampla pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, utilizando-se de metodologia crítica e hermenêutica, inúmeras reflexões foram tecidas, originando um olhar jurídico diferente acerca dos direitos dos transexuais, onde se perceberá, ao final desse estudo, que a cirurgia, per si, não dará a efetividade necessária aos direitos personalíssimos do transexual. Isso porque, haverá discordância entre o sexo morfológico (pós-cirurgia) e o sexo civil e será mostrado que, mesmo não existindo lei específica para os transexuais, compete ao Estado promover, através dos princípios da dignidade humana, da igualdade, da liberdade e do direito à saúde, o bem estar psicológico e físico desses cidadãos.

1. Transexualismo

O cerne da discussão acerca do transexualismo, ou síndrome da disforia sexual ou do gênero, está em saber se seria possível à cirurgia de redesignação do sexo e se é possível ao juiz deferir a alteração do prenome e do sexo no Assento de Nascimento no Registro Civil do transexual e, mais ainda, como seria esse procedimento: seria feita uma averbação no Registro Civil antigo ou este seria cancelado e haveria a confecção de um novo.

A temática provoca reflexos em várias áreas da Ciência, tais como, a Medicina, a Psicologia e o Direito. O direito à identidade pessoal e o direito à identidade sexual constituem direitos da personalidade inerentes à dignidade da pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal de 1988. O enfoque jurídico que se pretende aqui é mostrar a possibilidade do transexual exercer os seus direitos da personalidade, mesmo com a falta de lei brasileira para protegê-lo, através de esclarecimentos sobre a questão, colacionando entendimentos doutrinários e jurisprudenciais atuais sobre o assunto.

Outras denominações são dadas ao transexualismo, tais como, transexualidade, neurodiscordância de gênero, trangeneralismo, hermafroditismo psíquico, ou síndrome da disforia sexual ou do gênero, etc., e é entendido pela Medicina e, em particular, pela Medicina Legal, como uma patologia da sexualidade humana, e, de acordo com Genival Veloso de França (2004, p.235), citando a definição de Roberto Farina (1982), é:

“[…] uma pseudo-síndrome psiquiátrica, profundamente dramática e desconcertante, na qual o indivíduo se identifica com o gênero oposto. Trata-se, pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de cura através da cirurgia de reversão sexual, assumindo, assim, a identidade do seu desejado gênero.”

O ilustre Silvio Venosa observa que "o transexual não redesignado vive em situação de incerteza, angústia e conflitos o que lhe dificulta, senão impede de exercer as atividades inerentes aos seres humanos." (VENOSA, 2003, p. 223)

A doutrinadora Aracy Augusta Leme Klabin (apud LACERDA, 2007, p.2) define da seguinte forma:

“O transexual é um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao “verdadeiro” sexo, isto é, ao seu sexo psicológico”

Pela Classificação Internacional de Doenças, o transexualismo é considerado um transtorno e é classificado pelo CID10 (F 64.0), como:

“F64 – Transtornos da identidade sexual:

F64.0 – Transexualismo – Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.” (grifo nosso)

Assim, o transexualismo é considerado uma desordem da sexualidade, de ordem psicológica e médica, que se caracteriza por uma inversão da identidade de gênero do indivíduo, que conduz a uma neurose obsessiva, e se traduz em uma identificação psicológica oposta aos órgãos genitais externos e, além de um desejo compulsivo de modificação do sexo morfológico.

A pessoa portadora desse transtorno rejeita o sexo original, não aceita manter relações sexuais com pessoa que possui o mesmo sexo psicológico que o seu e vive em constante estado de insatisfação. Há uma necessidade psicológica imutável de mudar o seu sexo morfológico.

Segundo Berenice Dias (2009, p. 234), o processo de redesignação do sexo, “começa com o vertir-se como o outro sexo, passa por tratamento hormonal e terapêutico e impõe a realização de inúmeras cirurgias. Não é um processo passageiro. É a busca consistente de integração física, emocional, social, espiritual e sexual, conquistada com muito esforço e sacrifícios por pessoas que vivem infelizes e muitas vezes depressivas quanto ao próprio sexo.”

O Dr. Harry Benjamin, um médico norte-americano, cuja especialidade era clínico geral e endocrinologia, mais tarde, veio a interessar-se por temas ligados à transexualidade. Então, em 1966, publicou sua obra de maior importância, O Fenômeno Transexual (BENJAMIN, 1966). Nesta obra, o termo “transexualismo” foi dito pela primeira vez. Nela, também, ele apresentou a “Escala” com os tipos de transexuais, classificando em:

“TIPO I – Pseudo Travesti; TIPO II – Travesti Fetichista; TIPO III – Travesti Verdadeiro; TIPO IV – Transexual do tipo não-cirúrgico; TIPO V – Transexual Verdadeira (Intensidade Moderada); TIPO VI – Transexual Verdadeira (Alta Intensidade)”

Outros cientistas classificam o transexualismo em primário e secundário, a exemplo da professora Aracy Augusta Leme Klabin (apud LACERDA, 2007, p. 4):

“O transexual primário é um indivíduo anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro, este indivíduo é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao verdadeiro sexo, isto é, ao sexo biológico.[…]

O transexual secundário é completamente diferente do transexual primário, sendo que, o secundário aceita sua situação e seu corpo […]”

O transexual é marcado por uma vida de frustrações, angústias, tendo que conviver com problemas na escola, no trabalho, na vida social, no lazer, nas suas relações familiares e amorosas, devido à falta da correta identificação entre o sexo biológico (real) e o psicológico (desejado), devido à pressão social que espera que seu comportamento seja de acordo com o sexo que aparenta ou o anotado em seu Registro Civil. Em decorrência, busca incessantemente o ajustamento jurídico do seu registro como forma de, finalmente, enquadrar-se perante a sociedade. Essa luta compreende duas fases: 1) a realização da cirurgia de correção do sexo; e 2) a posterior alteração do assento de nascimento.

2. Sexualidade humana: conceitos e diferenças

A palavra “sexo” possui duas acepções diferentes: a) é o ato sexual propriamente dito e b) é o gênero (masculino e feminino) que define a pessoa morfologicamente considerada, de acordo com o tipo genital externo.

O sexo é uma categoria anatômico-biológica e o gênero é uma categoria histórico-cultural. O papel do gênero é a expressão pública da identidade. Para a Psicologia, sexo e sexualidade não se confundem. A sexualidade possui um sentido amplo, enquanto o sexo, um sentido restrito. O sexo conota um ato fisiológico. A sexualidade conota a totalidade do ser humano, é um conceito mais complexo que leva em conta aspectos físicos, religiosos, jurídicos, psico-emocionais e sócio-culturais relativos à percepção e controle do corpo, ao exercício do prazer-desprazer, valores e comportamentos afetivos e sexuais. (FAFIBE, 2010)

A transexualidade é um fenômeno da sexualidade humana que gera efeitos na determinação do sexo, pois seu objetivo principal é adequar o seu sexo físico ao sexo psíquico, através da cirurgia corretiva de sexo.

2.1. Sexo biológico, sexo psicológico e sexo civil

Para se compreender a transexualidade é preciso entender como se estabelece a sexualidade humana. Esta resulta de uma combinação de elementos:

1) o sexo biológico – formado pelo sexo morfológico, sexo genético e sexo endócrino (DIAS, 2009, p. 232): a) sexo morfológico ou somático resulta da soma das características genitais (órgão genitais externos, pênis e vagina, e órgãos genitais internos, testículos e ovários) e extragenitais somáticas (caracteres secundários – desenvolvimento de mamas, dos pêlos pubianos, timbre de voz, etc.); b) sexo genético ou cromossômico é responsável pela determinação do sexo do indivíduo através dos genes ou pares de cromossomos sexuais (XY – masculino e XX – feminino) e; c) sexo endócrino é identificado nas glândulas sexuais, testículos e ovários, que produzem hormônios sexuais (testosterona e progesterona) responsáveis em conceder à pessoa atributos masculino ou feminino.

2) o sexo psicológico – formado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo. Pode ser: psicossexual, que é o sentimento individual, intrínseco, do gênero sexual a que se pertence; ou psicossocial (sexo de criação), que é o resultado da combinação de fatores genéticos, fisiológicos e psicológicos que se forma dentro do meio onde o indivíduo se desenvolve. (DIAS, 2009, p. 249)

3) o sexo civil ou jurídico ou legal – é aquele que consta no Registro Civil das Pessoas Naturais, determinado pelo critério do sexo biológico, de acordo com a apresentação de sua genitália externa, atribuindo à pessoa a designação de pertencer ao sexo masculino ou feminino. (DIAS, 2009, p. 232)

2.2. Classificação dos fenômenos da sexualidade

Antes de diferenciar o transexualismo dos outros paradigmas da sexualidade, mister se faz explicar o que seja identidade sexual, orientação sexual e comportamento sexual.

A identidade sexual é o conjunto de características sexuais que diferenciam uma pessoa das outras e que se expressam pelas preferências sexuais, sentimentos ou atitudes em relação ao sexo. É a percepção individual sobre o gênero (masculino ou feminino), que a pessoa tem para si mesma (sexo psicológico). Nem sempre está de acordo com a genitália da pessoa. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30)

A orientação sexual ou opção sexual ou preferência sexual é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra. Ela indica qual o gênero (masculino e feminino) que uma pessoa se sente preferencialmente atraída fisicamente e/ou emocionalmente. A orientação sexual homossexual foi removida da lista de doenças mentais nos Estados Unidos, em 1973, e do CID 10 (Clasificação Internacional de Doenças) editado pela OMS, Organização Mundial da Saúde, em 1993. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30)

O comportamento sexual humano compreende o repertório de experiências e práticas sexuais. É construído a partir de modelos e padrões de condutas. É determinado por três fatores: a) herança genética, que caracteriza biologicamente o indivíduo; b) fator social, composto por influências da sociedade (educação, família) sobre o indivíduo; c) fator psicológico, formado pelos mecanismos psíquicos inconscientes. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30)

Com base nas explicações de Tereza Vieira (2008, p.218-220) e do Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB (2004, p. 29-30), do Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Saúde, a seguir será descrita a diferença entre os transexuais e os outros fenômenos da sexualidade.

a) Homossexuais: são aqueles indivíduos que têm atração sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo. Por entender que depende da orientação sexual e que não se trata de doença, o Conselho Federal de Medicina em 1993, retirou a homossexualidade do rol da Classificação Internacional de Doenças (CID). A diferença entre o transexual e o homossexual é que este está satisfeito com o seu sexo biológico, com a sua genitália de origem, não deseja adequar o seu sexo, sente-se homem (homossexual masculino), por exemplo, e tem como parceiro um outro homem. O transexual masculino, considera-se mulher, não está satisfeito com o seu sexo biológico e tem como parceiro um homem, vendo essa relação como heterossexual.

b) Bissexuais: são indivíduos que se relacionam sexual e/ou afetivamente com homens e mulheres. Seu comportamento sexual é voltado para ambos os sexos.

c) Travestis: são pessoas que, como forma de obter prazer pessoal e sexual, fazem uso de roupas, maneirismos e atitudes do sexo oposto. Tanto podem ter comportamento homossexual como heterossexual. O travesti não sente repulsa por seu órgão sexual externo como o faz o transexual, este não aceita pertencer àquela fisionomia do seu sexo biológico e não admite ser tocado. Apesar de vestir-se como alguém de outro gênero sexual e, muitas vezes, fazer modificações em seu próprio corpo, como no caso de travesti homem que se transforma em mulher (que implanta próteses de silicone nos seios, deixa o cabelo crescer, ingere hormônios femininos), o travesti admite utilizar-se da genitália para obter prazer durante o sexo, admite ser tocado nesta parte do corpo (OLIVEIRA, 2001).

d) Hermafroditas: também chamadas de intersexuais ou sexo dúbio. São pessoas que possuem órgãos sexuais dos dois sexos. O indivíduo possui a genitália externa e/ou a genitália interna indiferenciadas. São indivíduos que possuem, simultaneamente, os órgãos sexuais internos e externos. São geneticamente de uma forma e o seu órgão sexual externo é de outra. Alguns médicos e psicólogos afirmam que o transexual é uma espécie de hermafrodita psíquico.

e) Transexuais: são pessoas que não aceitam o sexo morfológico de origem. Sendo o fator psicológico predominante na transexualidade, o indivíduo possui genitália externa e interna de um único sexo, mas identifica-se com o sexo oposto. O transexualismo, como já dito, é considerado um transtorno e é classificado pelo CID10 (F 64.0).

3. A cirurgia de transgenilização ou de redesignação sexual

O indivíduo portador, após o diagnóstico de transexualismo, necessita de tratamento para que tenha equilíbrio entre o psíquico e físico, para gozar de saúde e bem-estar. Em tese, teria duas opções: a psicoterapia, para adaptar o sexo psicológico ao anatômico ou o inverso. A psicoterapia é ineficaz para os casos de transexuais verdadeiros. Suas gônadas (ovários e testículos), órgãos que produzem células sexuais necessárias para a sua reprodução, tem histologia normal, porém atrofiadas pela incidência de hormônios do sexo oposto, ou produzidos pelo próprio corpo ou aplicados.

Ou a cirurgia de redesignação de sexo, considerando que o seu distúrbio psíquico possui caráter permanente e imutável. Até agora, esta é a única comprovadamente bem-sucedida.A cirurgia é complexa e irreversível, como será, sucintamente, descrita mais adiante. Antes de ser realizada, o processo de correção de sexo começa da seguinte maneira: o paciente é analisado por uma equipe multidisciplinar de profissionais especializados no assunto e é feita uma avaliação do diagnóstico onde se emite pareceres e laudos, a seguir o paciente recebe tratamento psicoterápico, analisa-se a experiência de vida real, se preciso é feito um tratamento com hormônio e, por fim, a cirurgia. Vale registrar que a primeira cirurgia realizada no Brasil foi em 1971, pelo cirurgião plástico Roberto Farina.

A operação corretiva é do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sob gônadas e caracteres sexuais secundários.

A neocolpovulvoplastia (autorizada em hospitais públicos ou privados) é uma cirurgia composta de duas etapas. Na primeira, há ablação do pênis e são retirados os testículos do paciente, após, faz-se uma cavidade vaginal. Na segunda etapa é realizada a constituição plástica, com a pele do saco escrotal são formados os lábios vaginais. (LACERDA, 2007, p. 9-10)

A neofaloplastia (autorizada em hospitais em hospitais públicos ou universitários) é o procedimento cirúrgico no qual um pênis é construído a partir de um tecido sensível retirado do próprio corpo, como o antebraço. A pele do antebraço, então é anexada à região vaginal juntamente com os seus nervos, artérias e veias e formado em torno de um cateter de tubo plástico, que servirá como a uretra e, dessa maneira, permitir a micção, uma vez que foi conectado à uretra feminina. Além da uretra, são formados o eixo e a glande (cabeça). Os nervos do clitóris estão ligados aos nervos enxertados e vai crescer dentro do pênis após a cirurgia. A pele e o tecido dos lábios vaginais são usados para criar um escroto. Apesar disso tudo, não há garantia de que a aparência e o funcionamento do novo órgão serão normais ou razoáveis. (LACERDA, 2007, p. 10-11)

3.1. Critérios

No Brasil não há previsão legal para que as intervenções cirúrgicas corretivas sejam realizadas em transexuais. O Conselho Federal de Medicina reconheceu essa cirurgia como correta e adequada para adequação de sexo e libera eticamente aos médicos a realização da operação desde 2002, quando expediu a Resolução nº. 1.652/02, estabelecendo os critérios de definição do transtorno e os critérios para realização da cirurgia, nos arts. 3º e 4º:

 “Art. 3º – Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:

1) Desconforto com o sexo anatômico natural;

2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;

3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;

4) Ausência de outros transtornos mentais.”

“Art. – 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:

1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;

2) Maior de 21 (vinte e um) anos;

3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.”

A avaliação é por dois anos, nesse tempo o paciente recebe terapia psicológica, a depender, aplica-se hormônios e a equipe multidisciplinar ao constatar que o quadro é irreversível, autorizará a cirurgia. A equipe multidisciplinar é formada por médico, cirurgião plástico, endocrinologista, psiquiatra, neurologista, além de psicólogos e assistentes sociais, que acompanham o paciente durante dois anos. Essa cirurgia pode ser realizada em hospitais públicos ou universitários ou hospitais privados. Inclusive, pelo SUS (Sistema Único de Saúde – Portaria nº. 1.707 de 20/08/2008).

O art. 4º, item 2, da Resolução supramencionada exige que o paciente tenha 21 anos para ingressar no tratamento. Ela é de novembro de 2002 e não levou em consideração que a lei civil, publicada em janeiro de 2002 e em vigor desde 2003, estabeleceu que a maioridade civil ocorre aos 18 anos. A cirurgia leva em conta, ainda, a possibilidade de disposição do corpo humano e o consentimento válido do paciente (capacidade de discernir, maioridade).

3.2. Integridade física e responsabilidade médica

Para alguns julgadores, a cirurgia de adequação do sexo biológico ao sexo psicológico do transexual violaria o princípio da indisponibilidade do corpo humano, por considerá-la mutilante, e o médico cometeria, então, o crime do art. 129, §2º, III, do Código Penal Brasileiro (VIEIRA, 2008, p. 241), que preceitua:

 “Art. 129 – Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.[…]

§ 2º – Se resulta:[…]

III – perda ou inutilização de membro, sentido ou função;[…]

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.” (grifo nosso)

Este foi o crime que o cirurgião plástico Roberto Farina foi condenado pelo juiz a quo por realizar a cirurgia de redesignação em Waldir Nogueira (Waldirene), em 1971, a primeira no Brasil. Porém, o Tribunal de Alçada Criminal, da 5ª Câmara, de São Paulo o absolveu, por votação majoritária, em 1979, com o argumento de que o médico não agiu com dolo, querendo provocar um dano ao corpo do paciente (mutilá-lo), mas sim pretendia curá-lo ou reduzir o seu sofrimento físico ou mental. O médico praticou o ato no exercício regular de um direito (art. 23, III, do Código Penal).

Analisando o princípio da indisponibilidade do corpo humano que está inserido no direito à integridade física, espécie dos direitos da personalidade, verifica-se que se trata de uma proteção jurídica do corpo humano, vivo ou morto, abrangendo tecidos, órgãos e partes separáveis (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 118-122).

O indivíduo que desrespeita a incolumidade corporal de outrem, desrespeita a norma constitucional, em conseqüência responde, na seara penal, por crimes contra a vida e por lesão corporal (arts. 121 a 129, do Código Penal).

Entretanto, a Constituição Federal demonstra que esse princípio não é absoluto quando preceitua no seu art. 199, § 4º:

“Art. 199 – […]

§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” (grifo nosso)

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 admite atos de disposição do corpo, de forma gratuita e para fins de tratamentos terapêuticos ou pesquisa científica, nos limites legais estabelecidos. A legislação Civil demonstra exatamente essa indisponibilidade relativa, no seu art. 11 e no Enunciado 4, da I Jornada de Direito Civil (2002):

“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” (grifo nosso)

“Enunciado 4 – Art.11: o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.” (grifo nosso)

Assim, admite-se a disponibilidade do corpo pelo titular desde que não seja em caráter absoluto, permanente, genérico, violando a dignidade do titular. Seguindo a análise na lei civil, os seus arts. 13 e 14, do Código Civil e o Enunciado 6, da I Jornada de Direito Civil (2002), preceituam:

“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. […]” (grifo nosso)

“Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.”

“Enunciado 6 – Art. 13: a expressão “exigência médica” contida no art. 13 refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente.” (grifo nosso)

Dessa “exigência médica” infere-se que deve haver pareceres médicos e psicológicos indicando e autorizando a realização da cirurgia. A interpretação literal do artigo 13, do novo Código Civil, proíbe a cirurgia de mudança de sexo, problema este solucionado diante do Enunciado 6 da Jornada de Direito Civil.

Adiante, no art. 15, do Código Civil Brasileiro está estabelecido, expressamente, que é vedada a realização de qualquer tratamento médico ou intervenção cirúrgica que possa trazer risco para a pessoa, sem o seu consentimento, é o chamado consentimento informado, esclarecido (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 119): “Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”

O Código de Ética Médica (definido pelo Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1.246/88), lei infraconstitucional, no Capítulo V, ao regular a relação de médico com pacientes e familiares, proíbe-o de práticas terapêuticas menosprezando a vontade de seu paciente, descrito no art. 56: “É vedado ao médico: Art. 56. ‘Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida’” (grifo nosso)

O que se observa, é que há um conflito entre o interesse no progresso da Medicina e o de integridade da pessoa humana. Ambos são, simultaneamente, interesses da coletividade e do indivíduo. Devem ser analisados tanto sob o ponto de vista Direito, quanto sob o ponto de vista da Medicina, na busca da solução mais adequada.

O limite para a utilização do corpo humano, seja para experiência científica, seja para conduta médica terapêutica para curar ou aliviar o sofrimento, leva em consideração, necessariamente, a possibilidade de disposição do corpo humano, parcial ou totalmente e o consentimento válido do sujeito na utilização do seu próprio corpo. Além disso, a disponibilidade do corpo humano é limitada pela proporção entre o interesse individual ofendido (dano ao corpo) e a potencial vantagem psicológica e social esperada (harmonização).

Seguindo essa linha de raciocínio, o consentimento do sujeito de direito à integridade física tem validade limitada em sua expressão, conteúdo e extensão. Pois, só é válido o consentimento: obtido sem vícios na manifestação da vontade (vícios advindos de coação, fraude, dolo ou simulação); o sujeito deve estar esclarecido sobre o procedimento da cirurgia e de todas as circunstâncias e fatos de determinada situação jurídica, para que possa validamente manifestar-se; deve ter capacidade de compreender os fatos, discernir e manifestar-se de modo livre e espontâneo.

A professora Tereza Vieira (2008, p. 243) entende que nem o médico, a família ou o representante do paciente transexual podem suprir a manifestação de vontade deste para a realização da operação.

Assim, a necessidade terapêutica e o consentimento válido do paciente transexual derrubam a tese de que a cirurgia violaria o princípio da indisponibilidade do corpo humano e o direito à integridade física, pois não há dolo por parte do médico, não é intenção dele mutilar o paciente transexual, mas de curar ou amenizar o sofrimento deste paciente.

4. Possibilidade de alteração no Registro Civil do transexual

O direito à identidade pessoal é o direito do indivíduo de ser conhecido como ele é. Neste direito está o direito do transexual de realizar a cirurgia de adequação de sexo com a finalidade de se buscar a sua real identificação. A adequação do sexo implica na mudança de prenome para adequar ao seu sexo real. O exercício completo da cidadania do transexual não se obtém somente com a correção cirúrgica do sexo, resta, ainda, a autorização para adequar os registros civis desses indivíduos.

4.1. Possibilidade de alteração do prenome e do estado sexual no Registro Civil

O portador de transexualismo encontra dificuldades de inserção social, seja no aspecto familiar ou profissional, em decorrência da sua não identificação sexual. A sociedade, através do preconceito, ridiculariza-o e coloca-o à margem dela. O Direito deve garantir a essas pessoas condições para uma vida digna, o que somente é possível, segundo a Medicina, com a adequação do sexo biológico ao psicológico do transexual e, segundo este, a conseqüente retificação do seu Registro Civil.

Com base nisso, verifica-se que a luta pela inserção social do transexual tem dois momentos: 1) a realização da cirurgia; e 2) a posterior alteração do assento de nascimento.

No Brasil, a falta de norma jurídica específica para proteger o desenvolvimento pleno do transexual como ser humano possuidor de personalidade só faz agravar a sua situação desconfortante. O direito a adequação do sexo do transexual, para a maioria dos doutrinadores e pela jurisprudência atual, encontra respaldo na Constituição, nos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, nos direitos da personalidade, tais como, direito à vida, direito à liberdade, direito à igualdade, direito à saúde, direito à identidade pessoal, além da Lei de Introdução do Código Civil (art. 4º) e na Lei de Registros Públicos.

A Constituição Federal de 1988 tem como princípio nuclear a dignidade da pessoa humana que, segundo Cristiano Chaves (2007), é a cláusula geral de proteção e desenvolvimento da personalidade do indivíduo que assegura ao cidadão que direcione sua vida íntima de maneira que melhor lhe convir, permitindo-lhe receber respeito do Estado e dos demais cidadãos. A Constituição garante a cidadania, o direito a ter direitos, de votar e ser votado e não se pode ter cidadania onde há um conflito entre o seu ser e o dever ser social.

O tratamento igualitário que deve ser dado ao transexual deve pautar-se no não impedimento a cirurgia e o não impedimento a alteração no seu Registro Civil, segundo o ideal de Justiça, dando a cada um o que é seu por direito.

Ato contínuo, a cirurgia de redesignação de sexo reintegra o indivíduo à sociedade, permitindo que ele tenha, enfim, o direito à saúde (direito social), indispensável ao desenvolvimento da personalidade, disposto nos arts. 6º e 196, da Constituição Federal, estabelecendo:

 “Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (grifo nosso)

“Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (grifo nosso)

O direito à saúde é o elemento incentivador do direito da adequação do sexo e do prenome do transexual. A falta de identidade adequada do transexual provoca desajuste psicológico, não se podendo falar em bem-estar físico, mental e social.

É através da cirurgia e da adequação do sexo e do nome no Registro Civil de Nascimento que o transexual terá estabilidade psicológica.

Importante registrar que, a cirurgia de adequação de sexo só ocorre por exigência médica, conforme preceituam o caput do art. 13, do Código Civil Brasileiro e o Enunciado nº. 276 da IV Jornada de Direito Civil (2007), do Conselho de Justiça Federal:

“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.” (grifo nosso)

“CJF, Enunciado Nº. 276.: Art. 13: O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil.” (grifo nosso)

Tais cirurgias que modificam o sexo do transexual são consideradas intervenções terapêuticas, essenciais a saúde, porém, sem autorização escrita, o cirurgião não realiza a cirurgia. Por outro lado, a cirurgia independe de autorização judicial, por se tratar de um direito à saúde e já estar em vigor na Resolução do Conselho Federal de Medicina. O transexual não precisa ingressar com ação em juízo para obter autorização para realizar a cirurgia, por ser a questão de competência da área da saúde, resolvendo-se de acordo com os princípios éticos.

No Registro Civil estão escriturados os fatos importantes da vida do indivíduo: nascimento, casamento e suas alterações e morte. De acordo com a Lei de Registros Públicos (LRP), em seu artigo 1º, a finalidade dos serviços concernentes aos Registros Públicos é a autenticidade, a segurança, a publicidade e a eficácia dos atos jurídicos. Há que se ressaltar a oponibilidade “erga omnes” dos atos registrados.  (CENEVIVA, 2009, p. 3-6).

O Registro Civil de Nascimento da pessoa natural dota de formalidade e publicidade aquele fato jurídico que é o nascimento com vida, início da personalidade civil. Com isso, apresenta o indivíduo à sociedade, dando eficácia à sua personalidade. Neste sentido, sua natureza é declaratória, pois o ser humano não precisa do Registro Civil para receber a sua qualidade de pessoa. Ele se presta a fazer prova segura, certa e correta do estado da pessoa.

Alguns juristas negavam a possibilidade de alteração do estado sexual, muitos eram os argumentos, e um deles é o do art. 1.604, do Código Civil: “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.” (grifo nosso)

A norma coloca o erro como exceção à imutabilidade do estado. Uma interpretação que poderia ser dada é no sentido de que a cirurgia de redesignação sexual, como tratamento terapêutico, veio a gerar, após sua realização, um erro no registro. Na acepção vulgar de erro, poderia dizer que aquele registro não corresponder à realidade. É um fato superveniente que, estando a situação anterior registrada, produz um erro de registro do estado atual.

Nesse momento, faz-se necessário tecer comentários acerca do estado individual, onde se enquadra o sexo (status sexual). O estado individual, em geral, é atributo da personalidade. O registro gera a presunção relativa do estado da pessoa. É ele que reveste as situações jurídicas da pessoa, perante a sociedade, de oponibilidade “erga omnes”. Contudo, em determinados casos, a realidade jurídica não retrata a realidade fática e, por isso, existem as ações de estado, que objetivam tanto criar, modificar ou extinguir um estado, neste caso, a sentença será constitutiva, como reconhecer um estado pré-existente, o guarnecendo de eficácia jurídica – aqui, a sentença será declaratória. (TRAVAGLIA, 2005, p. 3)

No caso do transexual, ao nascer e ser registrado, o Oficial lança o seu sexo, no livro de Registro Civil, classificado segundo o seu órgão genital externo como pertencente a um dos sexos, ou feminino ou masculino. Este sexo, assentado em registro público, é o sexo civil, que é o levado em conta no ordenamento jurídico brasileiro.

Porém, neste momento, abre-se um parêntese, para chamar atenção ao fato de que a avaliação da fisionomia não é a única forma para a determinação do sexo de um indivíduo, conforme explicitado anteriormente neste capítulo.

A averiguação do status sexual ou do sexo da pessoa requer a conjugação dos aspectos biológico, psíquico e comportamentais (DIAS, 2009, p. 231-232). Somente o conjunto desses aspectos será capaz de apontar com maior fidelidade e compromisso a qual dos dois sexos pertence a pessoa. A regra, contudo, é que os três aspectos correspondam revelando uma identidade sexual, mas esta convergência harmônica pode não ocorrer. Com os transexuais isso não acontece.

Verifica-se, então, que a principal inadequação é a realidade dos fatos com a realidade jurídico-formal. É através do Registro Civil que a pessoa ingressa no mundo jurídico, disposto a conferir segurança e estabilidade nas relações jurídicas e que marca o indivíduo em sua vida social. Se o registro tem publicidade, segurança, autenticidade e eficácia, não existe, observando a situação do transexual, principalmente se operado, o reconhecimento social do seu estado. A identidade sexual transcende o aspecto morfológico, encontra-se no campo da identificação psíquica de se pertencer a determinado gênero sexual que se externa, de acordo com as suas íntimas convicções e comportamento sexual.

O Direito é uma Ciência Social, devendo sempre estar em marcha, assim, não pode o operador do Direito ignorar as informações fornecidas por médicos, psicólogos, sociólogos e antropólogos, pois elas enriquecem o seu raciocínio.

Levando em consideração a tríade dignidade-solidariedade-igualdade e sendo a pessoa humana o bem jurídico primeiro a ser protegido pelo Estado, o magistrado deve dar efetividade, limitada pelos princípios constitucionais, às normas, captando sempre o espírito da lei, sem apegar-se inteiramente à interpretação literal da lei. Se assim não for, o Direito se desviará da justiça e pode inviabilizar a operacionalização do Direito.

Não há lei brasileira que acolha expressamente o pedido de adequação do sexo e do prenome do transexual no Registro Civil. A falta de previsão legal expressa não é motivo suficiente para que os julgadores recusem os avanços da Medicina.

A doutrina majoritária vem entendendo que o pedido de alteração feito pelo transexual operado deve ser acolhido. A jurisprudência a partir da metade da década de oitenta vem julgando procedentemente o pedido de adequação no Registro Civil do transexual redesignado.

A jurisprudência e a doutrina, como por exemplo, os doutrinadores Cristiano Chaves (2007, p. 123-126), Tereza Vieira (2008, p. 258) e Berenice Dias (2009, p. 238-240), se posicionam favoravelmente a alteração do prenome do transexual operado, com base no art. 55, parágrafo único (exposição ao ridículo, mesmo que o ridículo seja resultante de fato superveniente, o operador do Direito lança mão desse artigo), no art. 57 (mudança de sexo e nome é caso excepcional e justifica a alteração), no art. 58 (apelidos públicos notórios, quando uma pessoa é reconhecida publicamente por um prenome diverso ao que consta do seu Registro Civil. É uma regra geral que possibilita a extensão para o caso do transexual). Todos estes artigos são da Lei de Registros Públicos, pois o Registro Civil deve espelhar a realidade.

Em virtude de haver a possibilidade de alteração no Registro Civil do transexual, grandes polêmicas surgem, uma delas é a seguinte: deve ou não o Judiciário autorizar a alteração do prenome e do sexo ou só o prenome de transexual não operado?

Essa situação é a do transexual que não realizou a operação por temer uma cirurgia mal realizada, não tiver condições físicas para realizá-la ou não possua condições financeiras para custeá-la. Há doutrinadores e jurisprudência que entendem que, em se tratando de transexual feminino, por ser a neofaloplastia complicada e por não garantir a funcionalidade do membro inserido, deve sim o juiz permitir a alteração do prenome e do sexo, independente da realização da cirurgia. (Vieira, 2008, p. 264-265)

Outrossim, outra polêmica rende calorosas discussões: deve-se averbar o novo prenome e o sexo no Registro Civil antigo ou a produção de um novo Registro?

A solução jurídica não é simples de ser alcançada, tendo em vista ter que atender aos interesses do transexual e proteger os interesses de terceiros. O passado do transexual não pode ser ignorado, inclusive para comprovar o seu passado escolar e profissional. A cirurgia de adequação do sexo não culminou com a morte real do indivíduo, assim, continua sujeito de direitos e obrigações.

O cancelamento do registro anterior e a confecção de um registro totalmente novo não parece ser a decisão mais acertada, pois os direitos dos transexuais e de terceiros estariam assegurados se somente no livro do Cartório de Registro Civil constasse a alteração ocorrida, através de averbação, por tratar-se de ação modificadora do estado da pessoa. (VIEIRA, 2008, p. 262-263). Na nova Certidão de Nascimento é mais sensato que não se faça nenhuma referência à aludida alteração, para que não conste na Carteira de Identidade, CPF, Passaporte, Carteira de Trabalho, etc. A alteração poderá vir na Certidão de inteiro teor, pois são pedidas apenas pelo interessado ou autoridade competente.

4.2. Jurisprudência

Na década de setenta e na década de oitenta, algumas decisões eram contrárias ao pedido de alteração do prenome e do sexo do transexual, principalmente por considerar que a cirurgia teria um caráter mutilador e que não altera a situação biológica, o seu código genético. A imputação de um caráter mutilador, ao invés de transformador, à cirurgia de redesignação é que embasava a imutabilidade do registro. A ementa deste acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) exemplifica:

 “EMENTA: Registro Civil. RETIFICACAO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. ALTERACAO DE SEXO. MUTILACAO CIRURGICA CONSISTENTE NA EXTIRPACAO DA GENITALIA EXTERNA COM A FINALIDADE DE AJUSTAMENTO A TENDENCIA FEMININA. PERSISTENCIA DAS CARACTERISTICAS SOMATICAS QUE INFORMARAM O ASSENTO. IMPOSSIBILIDADE DE MUDANCA DE SEXO PARA SOLUCIONAR CONFLITO DO PSIQUICO COM O SOMATICO. PRELIMINAR REPELIDA. SENTENCA DESCONSTITUIDA. RECURSO PROVIDO.” (TJRS – Apelação Cível Nº. 585049927, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mário Rocha Lopes, Julgado em 19/12/1985) (grifo nosso)

O julgamento que mais chamou a atenção no Brasil foi o de Roberta Close. Ela realizou a cirurgia corretiva, na Inglaterra, em 13.08.1989 e entrou com a ação em 1991 e o pedido foi indeferido em 1994. Neste primeiro processo, a Juíza deferiu o pedido de alteração do prenome e sexo, determinando, porém, que fosse discriminado, ao lado do sexo feminino, entre parênteses, a palavra “operada”. No entanto, recorreu o Ministério Público de tal sentença e, devido à reforma da decisão de primeira instância, o seu pedido sucumbiu, por força do não conhecimento do Agravo de Instrumento, interposto em face da decisão que inadmitiu Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF), por ausência de prequestionamento da matéria constitucional alegada.

Após 10 anos, em 2001, Roberta buscou novos advogados para atingir seu objetivo de retificar os documentos e, finalmente, em 2005, foi reconhecido o estado sexual feminino de Roberta Gambine Moreira, conhecida publicamente como Roberta Close. Com a averbação da retificação do nome e do sexo no registro de nascimento, pôde trocar seus documentos. Destaca-se o trecho da juíza responsável pela sentença que lhe outorgou a vitória na luta pela adequação do prenome e do sexo, que esclarece: “esta ação é diversa daquela promovida em 1991 por possuir nova causa de pedir e se fundamentar em diagnósticos resultantes de recentes descobertas médicas”. (VIEIRA, 2008, p. 287-296)

Realizando uma pesquisa jurisprudencial sobre a possibilidade de alteração, são encontrados diversos posicionamentos acerca do deferimento ou indeferimento da pretensão de retificação de prenome e sexo do transexual operado. Existe uma tendência à uniformização de entendimentos no sentido de acolher o pedido, mas a falta de legislação específica conduz a jurisprudências em sentido diversos.

Vale transcrever, por oportuno, a ementa do acórdão do TJSP, que decidiu reformar a sentença do Juiz a quo, quanto ao prenome e sexo do Apelante, decidindo por sua alteração, e o voto divergente:

“EMENTA: APELAÇÃO – Retificação de Registro Civil – Transexual que se submeteu à cirurgia de adequação ao sexo feminino – Obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana – Harmonização dos direitos e garantias fundamentais com a segurança jurídica e a verdade registraria – Modificação de nome e sexo que, no entanto devem ser processadas pela via da averbação, para que se preserve a continuidade do Registro Civil e os direitos de terceiro – Recurso provido.

“Declaração de voto parcialmente divergente. Divirjo da douta maioria em relação à retificação do sexo do apelante junto ao Registro Civil,ainda que derivada de singela averbação. O requerente, pese a submissão â cirurgia de redesignação sexual, ainda pertence ao gênero masculino. A retificação pretendida afrontaria a autenticidade do registro exigida pelo artigo 1º da Lei n. 6.105/73. Prevalece a identidade biológica do apelante;, que é imutável. Nesse sentido, o entendimento que adotei no julgamento da Apelação Cível n. 440.843.4/0, de São Paulo, voto vencido. Isto posto, com a devida vênia, mantenho o indeferimento do pedido quanto à alteração do sexo do apelante junto ao Registro Civil, desprovendo o recurso no referido ponto. Donegá Morandini/Juiz" (TJSP – 3ª Câmara de Direito Privado – Apelação Cível n. 994.08.04577-8 – da Comarca de Guarulhos – Data do julgamento: 23/02/2010)” (grifo nosso)

Vale registrar que vários projetos de Lei aguardam votação no plenário, na tentativa de esclarecer a licitude da cirurgia e a modificação no Registro Civil do prenome e sexo.

O Projeto de Lei nº. 70-B, de 1995, de autoria do Deputado José Coimbra, é um deles. Este projeto pretende acrescentar um parágrafo ao artigo 129 (lesões corporais), do Código Penal, estabelecendo excludente do crime a operação destinada alterar o sexo, bem como o acréscimo de dois parágrafos ao art. 58, da LRP, possibilitando a alteração do prenome no caso da alteração do sexo, mediante autorização judicial e averbação no registro de nascimento e no documento de identidade de que se trata de um transexual, só que tal averbação viola o art. 5º, X, da Constituição Federal.

4.3. Procedimento

Na doutrina e, principalmente, na jurisprudência, há uma grande discussão quanto ao juízo competente, tipo de procedimento e a via processual (o tipo de ação) a ser usada para o caso de alteração de prenome e sexo do transexual.

A doutrina, a Lei de Introdução do Código Civil (art. 4º) e o art. 126, do CPC, ensinam que, em caso de lacuna na lei, o juiz deve utilizar a analogia, os costumes, os princípios gerais de direito e a eqüidade, como se vê nos artigos supramencionados:

“Art. 4o – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. (grifo nosso)

“Art. 126 – O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.” (grifo nosso)

No caso concreto, o fato social, como transexualismo, não pode ficar sem amparo jurisdicional. O procedimento a ser seguido é o especial da jurisdição voluntária, arts 1.103 a 1.111, do Código de Processo Civil, ouvido o representante do Ministério Público (fiscal da lei, art. 82, II, Código de Processo Civil), sob pena de nulidade. A sentença que alterar o prenome e o sexo é declaratória e tem efeito “ex nunc”.

Quando a alteração for somente do prenome no Registro Civil, serão aplicadas as regras gerais de procedimento para alteração de prenome (VIEIRA, 2008, p.254). E a ação será a Ação de Retificação de Registro Civil. Geralmente, a jurisprudência, vem utilizando como argumento, para a mudança de prenome, os arts. 55, parágrafo único (por exposição ao ridículo), art. 57 (por exceção e motivadamente) e art. 58, caput (por apelido público notório), da Lei de Registros Públicos (Lei nº. 6.015/73).

No entender de Tereza Vieira (2008, p. 249), havendo a possibilidade de alteração do prenome utilizado anteriormente não deve obrigatoriamente ser transformado do gênero feminino para o masculino e vice-versa. A não ser que o requerente queira que seja assim. Acrescenta, ainda, a ilustre professora, que o novo prenome deve ser escolhido livremente, evitando a homonímia e a exposição ao ridículo. O ridículo aqui está no fato da desconformidade da aparência física e psíquica com o exarado na documentação legal. O nome deve existir para identificar de forma correta e perfeita a pessoa humana e não o contrário.

Quando bem aparelhada a petição inicial com pareceres médicos e psicológicos, juntamente com outras provas robustas, os julgadores tem acolhido o julgamento antecipado da lide, não havendo necessidade de perícia. Caso o juiz não tenha formado o seu convencimento através dos documentos acostados aos autos, pode ele requerer uma audiência de justificação, para colher o depoimento pessoal do interessado.

A Jurisprudência tem entendido que quando se trata de alteração de prenome por entender que é um procedimento administrativo por se tratar de mera adequação o registro ao fato, a competência da Vara Especializada de Registros Públicos, quando esta existe, assim se conduz a Justiça da Bahia e de São Paulo, do contrário a Competência é da Vara de Família.

Quando for alteração do sexo no Registro Civil, não será realizada mediante ação de retificação de Registro Civil, não se aplicando o art. 109 da LRP (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 179). A ação é denominada Ação de Redesignação do Estado Sexual, como ensina Cristiano Chaves (2007, p. 179).

Para alguns operadores do Direito, a competência para julgar a ação de alteração do sexo do Registro Civil do transexual não está definida, se é na Vara de Família ou na Vara dos Registros Públicos.

Porém, para a maioria dos doutrinadores, como Tereza Vieira (2008, p. 322-330), Cristiano Chaves (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 124-125) e Berenice Dias (2009, p. 245-246) e para a jurisprudência dominante, está claro que o foro competente para processar e julgar pedido de adequação do sexo e, também, do prenome, será a Vara da Família, do domicílio do requerente, por se tratar de ação de estado das pessoas que é matéria de ordem pública, tramitando em segredo de justiça.

Por se tratar de alteração de estado da pessoa e não de mera retificação de Registro Civil, a competência é absoluta e pode ser declarada de ofício (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 124-125). A competência da Vara de Registros Públicos limita-se a processar e julgar as controvérsias sobre a regularidade registral, é o entendimento jurisprudencial e doutrinário.

A pretensão do interessado equivale a uma ação de estado (alteração de estado da pessoa), de cunho declaratório e desconstitutivo, que tem por objetivo criar, modificar ou extinguir. No julgamento das ações de mudança de estado sexual, o juiz também pode requerer a perícia médico-fisiológica e a realização de laudo psicossocial com o intuito de se convencer da irreversibilidade da identificação psicológica ou para constatar a realização da cirurgia alegada pela parte.

Quanto à averbação, os juízes vem fazendo a determinação de não dar publicidade da situação anterior do requerente quando do fornecimento de certidões a terceiro, salvo ao próprio interessado ou no atendimento de requisição judicial, sob pena de ser mantido o preconceito e a discriminação.

Deverá, então, ser feita uma averbação apenas no livro dos Registros Públicos constando que o indivíduo X passou oficialmente, a partir daquele momento, a se chamar fulano de tal, pertencente ao sexo “X”. Na Certidão do Registro Civil nada deve conter, nem nos demais documentos, pois do contrário, vai de encontro ao seu direito de personalidade e ao artigo 5º, X da CF/88, em seus princípios do direito à intimidade, à privacidade, à honra, à vida íntima. (DIAS, 2009, p. 246-248)

Sobre a averbação, o TJSP traz o interessante acórdão, aqui colacionado a ementa:

EMENTA: Processo Civil. Retificação de Registro Civil. Transexual. Obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana. Aplicação do artigo I o , III, da Constituição Federal. Modificação de nome e sexo que, no entanto devem ser averbadas, para que se preserve a continuidade do Registro Civil e os direitos de terceiros. Recurso provido para tal fim.” (TJSP – APELAÇÃO CÍVEL n° 617.871-4/2, da Comarca de São José do Rio Preto – Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado – Data do julgamento: 19/02/2009) (grifo nosso)

4.4. Repercussões no Direito de Família

Após a cirurgia e a alteração do sexo e prenome no Registro Civil do transexual, alguns desdobramentos poderão acontecer e gerar reflexos no Direito de Família, tais como:

a) direito ao casamento do transexual

A partir do momento que a doutrina e jurisprudência reconhecem ao transexual a adequação do seu sexo no Registro Civil subtende-se que ele pode contrair matrimônio com pessoa de sexo oposto ao adequado. (VIEIRA, 2008, p. 299)

É por isso que, mais acertado, é que no livro do Cartório de Registro Civil constasse a alteração ocorrida, que fosse feita apenas a averbação, pois os direitos dos transexuais e de terceiros estariam assegurados. Não correria o risco de uma pessoa contrair casamento com o transexual desconhecendo a sua condição. Uma parte da doutrina entende que o casamento existe e é válido, pois a identidade de sexo não é causa para desconstituição do casamento, pois o sexo psíquico prepondera sobre o sexo biológico, nem a inexistência de capacidade procriativa é motivo para a desconstituição (DIAS, 2009, p.249-250). Em sentido contrário, Maria Helena Diniz, afirma que:

 “O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexos dos nubentes, embora não haja nenhuma referência legislativa a respeito, ante a sua evidência essa condição impõe-se por si mesma. Se duas pessoas do mesmo sexo, como aconteceu com Nerus e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa”.

b) transexual casado

Pode a cirurgia de redesignação sexual ser motivo de dissolução do casamento? É necessário o consentimento do outro cônjuge para realizá-la? A resposta para o Direito não é simples de ser encontrada. Na época da celebração do casamento, a identidade de sexo não existia, então não poderá ser invocada a anulação do casamento, nem há que se invocar erro sobre a pessoa.

O divórcio por consentimento mútuo e o divórcio por separação de fato são duas possibilidades coerentes, haja vista que em havendo cirurgia na constância do casamento, a vida em comum torna-se difícil, além da identidade de sexo dos cônjuges. (VIEIRA, 2008, p. 305)

A professora Tereza Vieira diz que para evitar constrangimento, o reconhecimento da adequação ao sexo deve ser dado ao transexual solteiro, divorciado ou viúvo. Porém, o problema continua presente, pois poderia haver o questionamento se haveria nesta hipótese de tratamento diferenciado a violação à igualdade constitucional.

A cirurgia de adequação do sexo não culminou com a morte real do indivíduo, assim, continua sujeito de direitos e obrigações. A morte deve ser registrada, como dispõe o art. 9º, I, do Código Civil: “Art. 9º – Serão registrados em registro público: I – os nascimentos, casamentos e óbitos; […]” (grifo nosso)

Assim, se é pela certidão de óbito que comprova a morte do indivíduo e não pela cirurgia e pela alteração do prenome e sexo no Registro Civil, a nova designação legal não dissolve, por si só, o vínculo matrimonial ou extingue o pátrio poder e nem a obrigação de prestar alimentos, no caso do transexual que já era casado ou tinha filhos. Quanto ao consentimento, entende-se, que este não é necessário por se tratar de um problema de saúde.

c) erro essencial sobre a pessoa do cônjuge

Na hipótese de uma pessoa X desconhecer o fato de que a pessoa Y é um transexual operado, e casa-se com este, há indagação se a transexualidade é causa de anulabilidade do casamento, levando-se em conta um erro essencial sobre a pessoa do cônjuge.

O Código Civil define que o erro essencial capaz de macular a vontade matrimonial e consequentemente ensejar a anulação do casamento, está disposto nos arts. 139, 1.556 e 1.557, do novo Código Civil:

“Art. 139. O erro é substancial quando:[…]

II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;[…]” (grifo nosso)

“Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.” (grifo nosso)

“Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:

I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; […]”(grifo nosso)

O cônjuge enganado pode invocar erro sobre a identidade sexual do seu cônjuge. Assim, pode se aplicar ao caso, o mesmo tratamento legal que os tribunais vem dando ao homossexual que escondeu a sua condição, onde o erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge, em particular quanto à sua identidade psíquica, moral e social, enquadra-se na hipótese de anulação do casamento, devendo o cônjuge observar o prazo decadencial de três anos para exercer o seu direito de anular.

d) filiação e adoção

É mais salutar considerar também que deverá constar o prenome utilizado anteriormente (princípio da irretroatividade da mudança de estado) no assento de nascimento dos filhos havidos ou adotados pelo transexual, no assento de casamento do cônjuge, etc., antes da sentença que julgou procedente constar o seu novo prenome. Após a sentença, no Registro Civil dos filhos adotados deverá conter o novo prenome. Aqui não há uma mudança no pai ou na mãe.

Esses são apenas alguns dos muitos questionamentos que giram em torno do transexualismo.

Conclusão

Os direitos da personalidade são o mínimo imprescindível para o ser humano desenvolver-se dignamente e deve ser encarado como um valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada. É, por isso, que a Constituição Federal de 1988 tem como princípio nuclear a dignidade da pessoa humana que, segundo Cristiano Chaves (2007), é a cláusula geral de proteção e desenvolvimento da personalidade do indivíduo que assegura ao cidadão que direcione sua vida íntima de maneira que melhor lhe convir, permitindo-lhe receber respeito do Estado e dos demais. A Constituição garante a cidadania, o direito a ter direitos, de votar e ser votado e não se pode ter cidadania onde há um conflito entre o seu ser e o dever ser social.

O direito ao nome deve ser reconhecido e respeitado pelo ordenamento jurídico por configurar como um dos maiores direitos da personalidade. O nome é o sinal externo que identifica e individualiza a pessoa na sociedade e na família. Ele nasce com a pessoa e a acompanha durante toda a vida, até pós-morte. Não se extingue com a morte. Pois, permanece vivo na memória daqueles que a conheceram. A inalterabilidade do nome vem sendo relativizada, pois se tem admitido a autonomia jurídica do titular em relação ao nome.

Neste trabalho, foi analisado a transexualidade, diferenciando-a de outros fenômenos da sexualidade, discorrendo sucintamente sobre a cirurgia, os critérios para realizá-la. Após, fora avaliado o âmbito jurídico da cirurgia, o direito à realização da cirurgia, sobre aspectos médicos e psicológicos para elucidar a possibilidade de sua realização.

Pautado no entendimento de profissionais da Medicina e na Psicologia, segundo a doutrina e jurisprudência, que a cirurgia de transgenitalização se apresenta como a melhor e única opção de cura desse desvio de identificação do sexo psíquico com o físico, verifica-se que a ablação dos órgãos genitais tende a beneficiar o paciente transexual, biológica, psicológica e socialmente. Importa registrar que essa intervenção cirúrgica não encontra óbice para a sua realização, no ordenamento jurídico brasileiro, pois o objetivo principal é a harmonização do sexo biológico com o sexo psicológico e a inserção social e profissional do transexual, contribuindo com a sua cura ou a melhora da sua saúde, já que a Medicina atual não apresenta outra solução a não ser a correção cirúrgica do sexo para os casos de transexualismo.

Inclusive, o Conselho Federal de Medicina reconheceu essa cirurgia como correta e adequada para adequação de sexo e libera eticamente aos médicos a realização da operação desde 2002, quando expediu a Resolução nº. 1.652/02, estabelecendo os critérios de definição do transtorno e os critérios para realização da cirurgia. Essa cirurgia pode ser realizada em hospitais públicos ou universitários ou hospitais privados. Importante registrar que pode ser realizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde – Portaria nº. 1.707 de 20/08/2008).

Foi dito que a necessidade terapêutica e o consentimento válido do paciente transexual derrubam a tese de que a cirurgia violaria o princípio da indisponibilidade do corpo humano e o direito à integridade física, pois não há dolo por parte do médico, não é intenção dele mutilar o paciente transexual, mas de curar ou amenizar o sofrimento deste paciente. O transexual pode realizar a cirurgia, desde que por exigência médica, sem necessidade de autorização judicial.

O Direito é uma Ciência Social, devendo sempre estar em marcha, acompanhando as transformações sociais e científicas. Não pode o operador do Direito ignorar as informações fornecidas por médicos, psicólogos, sociólogos e antropólogos, pois elas enriquecem o seu raciocínio. Se o Direito procura ser justo, de toda norma jurídica deve-se extrair o seu fim social e aplica-la no caso concreto.

Levando em consideração a tríade dignidade-solidariedade-igualdade e sendo a pessoa humana o bem jurídico primeiro a ser protegido pelo Estado, o magistrado deve dar efetividade, limitada pelos princípios constitucionais, às normas, captando sempre o espírito da lei, sem apegar-se inteiramente à interpretação literal da lei. Se assim não for, o Direito se desviará da justiça e pode inviabilizar a operacionalização do Direito.

O exercício completo da cidadania do transexual não se obtém somente com a correção cirúrgica do sexo, resta, ainda, a autorização para adequar os registros civis desses indivíduos. Tema bastante polêmico na doutrina e jurisprudência.

A falta de legislação específica brasileira para proteger o transexual e possibilitá-lo a exercer os seus direitos da personalidade não é motivo suficiente para que os julgadores recusem os avanços da Medicina. A doutrina majoritária vem entendendo que o pedido de alteração feito pelo transexual operado deve ser acolhido. A jurisprudência a partir da metade da década de oitenta vem julgando procedentemente o pedido de adequação no Registro Civil do transexual redesignado. A doutrina, a Lei de Introdução do Código Civil (art. 4º) e o art. 126, do CPC, ensinam que, em caso de lacuna na lei, o juiz deve utilizar a analogia, os costumes, os princípios gerais de direito e a eqüidade.

Assim, conclui-se que cirurgia, aliada à posterior compatibilização do Registro Civil ao novo gênero sexual, adequando o aspecto sexual físico ao sexo psicológico do indivíduo transexual trará ao indivíduo o almejado bem-estar: 1) por possuir uma identidade e, então, reconhecer-se e ser reconhecido, tal qual se sente; 2) de ter liberdade para sentir quem realmente sempre foi sem sofrer preconceitos e sem lhe ser exigido comportamento diverso; 3) de sentir, no âmago, a satisfação e o conforto de pertencer fisicamente ao gênero sexual psíquico, de não precisar esconder sua condição física originária, sentindo vergonha ou humilhação. (TRAVAGLIA, 2005, p. 1)

Seguindo essa linha de raciocínio, não se pode interpretar uma norma sem se ter em vista um fato concreto. O Direito não pode obstacularizar a regularização a identidade de gênero do transexual, pois seria insistir que ele permaneça com sua perturbação psíquica (sem direito à integridade psíquica, direito à saúde); na perpetuação da situação vexatória e constrangedora (sem direito à honra); na negação do direito à identidade sexual (integrante do direito à identidade); na desigualdade com os demais, posto que todo homem e mulher têm direito ao registro do seu estado sexual tal qual se mostra para a sociedade (sem direito à igualdade); sem qualidade de vida, meio ambiente equilibrado, paz (sem direito à solidariedade); no aprisionamento ao estado sexual registrado no assento de nascimento, sem o direito à opção sexual (direito à liberdade) e acima de tudo sem direito à sua dignidade.

Através de uma pesquisa jurisprudencial, foi possível concluir que o entendimento majoritário da Jurisprudência é no sentido de que após a cirurgia de correção de sexo, é de dar procedência ao pedido, e, assim poder alterar o prenome e o sexo no Registro Civil.

O cancelamento do registro anterior e a confecção de um registro totalmente novo não parece ser a decisão mais acertada, pois os direitos dos transexuais e de terceiros estariam assegurados se somente no livro do Cartório de Registro Civil constasse a alteração ocorrida, através de averbação, por tratar-se de ação modificadora do estado da pessoa. (VIEIRA, 2008, p. 262-263)

Na nova Certidão de Nascimento é mais sensato que não se faça nenhuma referência à aludida alteração, para que não conste na Carteira de Identidade, CPF, Passaporte, Carteira de Trabalho, etc. A alteração poderá vir na Certidão de inteiro teor, pois são pedidas apenas pelo interessado ou autoridade competente.

Disso surgem vários questionamento e reflexos no Direito de Família: O transexual, que já é casado, poderá se submeter à cirurgia? Como fica o Registro dos filhos naturais e adotivos? Precisa pedir o divórcio? Precisa da anuência do cônjuge para realizar a cirurgia? O cônjuge poderá pedir separação alegando erro sobre a pessoa do outro cônjuge? Poderá o transexual, após a cirurgia, resolver utilizar o útero remanescente para gerar um filho? Ente outros.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou que o transexual que tenha se submetido à cirurgia de mudança de sexo pode trocar nome e gênero em registro sem que conste anotação no documento. Em uma decisão inédita (REsp 1.008.398), em 15/10/2009, o STJ julgou que o caso de um transexual em São Paulo, que realizou a cirurgia de redesignação sexual. Após não ter conseguido a mudança no registro junto à Justiça paulista e ele recorreu ao Tribunal Superior. A decisão da Terceira Turma do STJ é inédita porque garante que nova certidão civil seja feita sem que nela conste anotação sobre a decisão judicial. O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente poderá figurar apenas nos livros cartorários. A ministra relatora do recurso, Nancy Andrighi, afirmou que a observação sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias. Anteriormente, em 2007, a Terceira Turma analisou caso semelhante (STJ – REsp 678.933) e concordou com a mudança desde que o registro de alteração de sexo constasse da certidão civil. Após, a recente decisão do STJ, não é mais raro encontrar outras decisões, posteriores, iguais, pois o objetivo principal é a harmonização do sexo biológico com o sexo psicológico e a inserção social e profissional do transexual.

Diante do exposto, acredita-se que a finalidade do presente trabalho alcançou e terá sido alcançada se houve alguma contribuição a respeito do tema, com eventuais aplicações práticas, como a citada acima.

 

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Informações Sobre o Autor

Aricele Julieta Costa de Araujo

Advogada militante nas áreas trabalhista, cível, previdenciária e tributária, além de prestar consultoria jurídica. Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT), de Aracaju/SE


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Equipe Âmbito Jurídico

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