Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade jurídica da rescisão por razões de interesse público superveniente dos contratos administrativos celebrados pelas empresas estatais, em face do regime jurídico imposto pela Lei nº 13.303/2016.
Palavras-chave: Contratos administrativos. Lei nº. 13.303/2016. Rescisão por razão de interesse público superveniente. Interpretação sistemática.
Resumen: El presente artículo tiene como objetivo analizar la posibilidad jurídica de la rescisión por razón de interés público que surgen en los contratos administrativos celebrados por las empresas estatales frente al régimen jurídico impuesto por la Ley Federal n. 13.303/2016.
Palabras-clave: Contratos administrativos. Ley n. 13.303/2016. Rescisión por razón de interés público. Interpretación sistemática.
Sumário: Introdução. 1. Da possibilidade jurídica rescisão unilateral por razões de interesse público pelas empresas estatais. Conclusão.
Introdução
As empresas estatais, com o advento da Lei nº. 13.303, de 30 de junho de 2016, que regulamentou o artigo 173, parágrafo primeiro, da Constituição Federal, passaram a se submeter a um regime jurídico diferente daquele outrora unificado à toda a Administração Pública, regido pela Lei nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, no tocante às licitações e contratos celebrados pelo Poder Público.
A Lei das Estatais, como é conhecida, apresentou em seu texto diversas características mais flexíveis em face do regime jurídico anteriormente vigente, compatíveis com a natureza jurídica híbrida das empresas estatais, com nuances do direito público e do direito privado, havendo a previsão expressa, inclusive, em seu artigo 68, de que os contratos por ela regidos “(…) regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de direito privado”.
Dentre as mudanças mais significativas, tem-se aquela prevista no artigo 72 da Lei nº. 13.303/2016, que previu apenas de modo genérico a necessidade de as empresas estatais, em seus contratos, preverem as hipóteses de rescisão, ensejando questionamentos sobre a possibilidade ou não de se rescindir unilateralmente os contratos administrativos por razões de interesse público, tal como ocorria expressamente no artigo 78, inciso XII, da Lei nº. 8.666/1993, cláusula exorbitante, que lhes conferia tal prerrogativa.
1. Da possibilidade jurídica rescisão unilateral por razões de interesse público pelas empresas estatais
A Lei nº. 13.303/2016, inaugurou no ordenamento jurídico brasileiro a regulamentação do artigo 173, parágrafo primeiro, da Constituição Federal, sobre o regime das empresas estatais, que assim dispõe:
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.”
Sobre o regime jurídico diferenciado para as empresas estatais, cita-se elucidativa explicação do Ministro Benjamin Zymler:
“Da leitura dos aludidos dispositivos constitucionais, depreende-se a necessidade de haver, pelo menos, dois diplomas legais sobre licitações e contratos, ambos dispondo sobre normas gerais e aprovados pela União: um aplicável às administrações direta, autárquica e fundacional da União, Estados e Municípios e outro relativo às empresas públicas e sociedades de economia mista.
Na realidade, a EC 19/1998 estabeleceu bases para uma revisão do regime de atuação das empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica.
O objetivo dessa separação no tratamento a ser dado às licitações e aos contratos firmados pelas entidades referidas no artigo 37, inciso XXI, e aquelas conduzidas pelas entidades de que trata o §1º do artigo 173 é o de buscar para as empresas estatais que exploram atividade econômica regras menos rígidas ou formalistas, de modo a conferir a elas maior flexibilidade gerencial, dado o regime de competição que lhes é imposto.
Assim, em cumprimento à determinação constitucional, em 1º de julho de 2016 entrou em vigor a Lei 13.303, chamada de “Lei das Estatais” por estabelecer o estatuto jurídico das empresas públicas, das sociedades de economia mista e de suas subsidiárias”[1].
Nesse sentido, a fim de esclarecer qual a natureza jurídica das empresas estatais, cita-se, em síntese, a conceituação dada por Hely Lopes Meirelles:
“As empresas estatais são pessoas jurídicas de Direito Privado cuja criação é autorizada por lei específica (…), com patrimônio público ou misto, para a prestação de serviço público ou para a execução de atividade econômica de natureza privada. Serviço público, no caso, entendido seu sentido genérico, abrangendo também a realização de obras (estradas, edifícios, casas populares, etc.).
Na verdade, as empresas estatais são instrumentos do Estado para a consecução de seus fins, seja para atendimento das necessidades mais imediatas da população (serviços públicos), seja por motivos de segurança nacional ou por relevante interesse coletivo (atividade econômica). A personalidade jurídica de Direito Privado é apenas a forma adotada para lhes assegurar melhores condições de eficiência, mas em tudo e por tudo ficam sujeitas aos princípios básicos da Administração Pública. Bem por isso, são consideradas como integrantes da Administração indireta do Estado.”[2]
A Lei das Estatais, em seu artigo 69, trouxe a previsão genérica de obrigatoriedade de algumas cláusulas nos contratos sob sua égide.
No tocante, especificamente, à rescisão contratual, a Lei nº. 13.303/2016, previu em seu artigo 69, inciso VII, o seguinte:
“Art. 69. São cláusulas necessárias nos contratos disciplinados por esta Lei: (…)
VII – os casos de rescisão do contrato e os mecanismos para alteração de seus termos;”
Há, no artigo 82, parágrafo primeiro, na “Seção III – Das sanções administrativas”, a possibilidade de rescisão unilateral decorrente de sanção, por justa causa do contratado. Veja-se:
“Art. 82. Os contratos devem conter cláusulas com sanções administrativas a serem aplicadas em decorrência de atraso injustificado na execução do contrato, sujeitando o contratado a multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato.
§ 1º A multa a que alude este artigo não impede que a empresa pública ou a sociedade de economia mista rescinda o contrato e aplique as outras sanções previstas nesta Lei.”
Porém, quanto aos demais dispositivos da lei, verifica-se que não consta nenhum outro excerto que remeta à previsão expressa de rescisão unilateral do contrato que não seja aquela decorrente de sanção, nem tampouco a possibilidade de rescisão em razão de interesse público superveniente.
A regra do artigo 69, inciso VII, portanto, consiste em uma cláusula geral, que, diferentemente da Lei nº. 8.666/1993, no artigo 58, inciso II e no artigo 78, que elencavam as hipóteses taxativas de rescisão contratual, não as prevê expressamente.
Nesse caso, às empresas estatais, é possível prever tais hipóteses no regulamento, nos contratos, convênios e demais ajustes, conforme autorização do artigo 8º, da Lei nº. 13.303/2016, a saber:
“Art. 8º. (…)
§ 2º Quaisquer obrigações e responsabilidades que a empresa pública e a sociedade de economia mista que explorem atividade econômica assumam em condições distintas às de qualquer outra empresa do setor privado em que atuam deverão:
I – estar claramente definidas em lei ou regulamento, bem como previstas em contrato, convênio ou ajuste celebrado com o ente público competente para estabelecê-las, observada a ampla publicidade desses instrumentos.”
Nessa linha de entendimento, cita-se o entendimento de Benjamin Zymler, no artigo “Considerações sobre as empresas estatais (Lei 13.303/2016)”:
“Além disso, nos contratos administrativos regidos pela Lei 13.303/2016 ganham mais força os princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual. Considerando a própria razão de ser das empresas estatais, qual seja, a exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviço, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, é razoável que a sua atuação esteja sujeita a um regime de maior flexibilidade frente às normas estatutárias comuns.
A maior autonomia da Administração nos contratos regidos pela Lei 13.303/2016 pode ser evidenciada pela liberdade de definir três cláusulas essenciais ao ajuste, a saber: as tipificações das infrações (artigo 69, inciso VI); os casos de rescisão do contrato, entre as hipóteses do artigo 83, e os mecanismos para alteração de seus termos (artigo 69, inciso VII); e a distribuição dos riscos da contratação, mediante a elaboração de uma matriz de riscos (artigo 69, inciso X)”.[3]
Considerando o regime híbrido, ora de direito privado, no tocante à sua atuação no mercado, ora de direito público, na prestação de serviços públicos e na contratação de obras, serviços, compras e alienações, verifica-se ser amplamente necessária, na atuação das empresas estatais, uma cláusula que as autorize a realizarem rescisão por razão de interesse público, em face da natureza da atividade que exercem.
A despeito de a Lei nº. 13.303/2016 ser uma norma que possibilita uma maior liberdade às empresas estatais no tocante às suas contratações, tendo em vista o caráter híbrido de suas atividades, não se pode olvidar que o próprio texto constitucional, neste artigo, condiciona a exploração direta da atividade econômica “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”.
Nesse sentido, a despeito de a rescisão unilateral por razões de interesse público não constar expressamente do texto da Lei nº. 13.303/2016, entende-se ser juridicamente possível a sua aplicabilidade, por meio de uma interpretação sistemática de todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, nessa linha de entendimento é que deve ser interpretada a Lei nº. 13.303/2016.
A empresa estatal, mesmo quando atua no mercado, atua em prol do atendimento ao interesse público, pela própria razão de sua existência ter sido justificada, constitucionalmente, em razão de “segurança nacional” ou de “relevante interesse coletivo”.
Desse modo, haverá situações em seu campo de atuação que não serão regidas regras de mercado, devendo ser balizadas, então, pelas regras de direito público, em prol, sempre, do atendimento ao princípio da supremacia do interesse público.
Nesse sentido, a fim de elucidar o que consiste o “interesse público”, ou, ainda, o “princípio da supremacia do interesse público”, cita-se a doutrina de Hely Lopes Meirelles:
“Interesse público ou supremacia do interesse público – Também chamado de princípio da supremacia do interesse público ou da finalidade pública, com o nome de interesse público a Lei 9.784/99 coloca-o como um dos princípios de observância obrigatória pela Administração Pública (fl. Art. 2º, caput), correspondendo ao “atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competência, salvo autorização em lei” (art. 2º, parágrafo único, II).
O princípio do interesse público está intimamente ligado ao da finalidade. A primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral. Em razão dessa inerência, deve ser observado mesmo quando as atividades ou serviços públicos forem delegados aos particulares.(…)
Como bem ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, o “princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele, como, por exemplo, os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art. 170, III, V e VI), ou tantos outros. Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social”[4].
Na mesma linha, tem-se a eminente administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que assim discorre sobre o princípio da supremacia do interesse público:
“Esse princípio está presenta tanto no momento da elaboração da lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação. (…)
Ligado a esse princípio da supremacia do interesse público – também chamado de princípio da finalidade pública – está o da indisponibilidade do interesse público que, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2004:69), “significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. (…)”.[5]
A Lei nº. 13.303/2016, em todo o seu teor, e especialmente em seu artigo 31, apresenta os princípios que devem nortear as contratações sob sua égide. Veja-se:
“Art. 31. As licitações realizadas e os contratos celebrados por empresas públicas e sociedades de economia mista destinam-se a assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto, e a evitar operações em que se caracterize sobrepreço ou superfaturamento, devendo observar os princípios da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa, da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação ao instrumento convocatório, da obtenção de competitividade e do julgamento objetivo.”
Como se pode verificar, não consta expressamente na Lei das Estatais, o princípio da supremacia do interesse público.
Em outra norma, contudo, qual seja, a Lei nº. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, no seu artigo 2º, caput, há a previsão expressa da obediência do princípio da supremacia do interesse público, de observância pela Administração Pública, na qual as empresas estatais se incluem. Veja-se:
“Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. (grifo nosso)
Entende-se, portanto, que a Lei nº. 13.303/2016 não deve ser analisada isoladamente, mas como uma norma pertencente a um sistema jurídico mais amplo, em que o interesse público é e deve ser resguardado pelo Poder Público, independentemente da natureza jurídica de seus órgãos e entidades.
Sobre a interpretação sistemática, que interpreta a norma sob a perspectiva de todo o ordenamento jurídico, e não isoladamente, tem-se o seguinte:
“Já no início de sua notável exposição, Juarez Freitas coloca em realce que a “interpretação sistemática tem por objeto o sistema jurídico na sua condição de totalidade axiológica” (1), alertando para a circunstância de que “qualquer norma singular só se esclarece plenamente na totalidade das normas, dos valores e dos princípios (2). A autêntica exegese sempre constitui, para além dos atomismos, “uma aplicação do Direito em sua totalidade” (3), isto é, do Direito como “rede axiológica e hierarquizada de princípios gerais e tópicos, de normas e de valores jurídicos” (4). Em outras palavras, a lei se apresenta tão-só como o primeiro e menor elo da encadeada e sistemática corrente jurídica, da qual fazem parte, até como garantia de sua resistência, os princípios e os valores, sem cuja predominância hierárquica e finalística o sistema sucumbe, vítima da entropia e da contradição. Vale dizer, a unidade só é assegurada por obra do superior gerenciamento teleológico, patrocinado pelos princípios e valores constituintes da ordem jurídica. Vai daí que a idéia de sistema jurídico estava a reclamar conceituação mais abrangente, sob pena de se tomar incapaz de surpreender o fenômeno jurídico em toda a sua dimensão, principalmente na esfera decisória. (…)
Aristóteles ensinava que toda ação ou escolha deve corresponder a um bem (ágathon), a uma finalidade (telos) (7). Com o Direito não é diferente: a toda lei corresponde uma finalidade a partir da qual deverá ser interpretada e sem a qual jamais será compatibilizada com os fins últimos e gerais do ordenamento jurídico. “A materialidade é que determina a forma, prévia ou superveniente” (8). No fundo, a coerência formal é apenas a primeira, a mais inferior e a menos sólida expressão de unidade. Unidade das unidades será sempre a que emergir da coerência materialmente valorativa, no permanente e aberto jogo concertado dos fins intrínsecos a cada uma e a todas as normas jurídicas. Em se tratando de sistema jurídico, não se pode, pura e singelamente, pressupor uma coerência normativa anterior ou apartada do mundo da vida. É diante do caso concreto, pleno de contradições axiol6gicas, que se realiza a autêntica e atualizada compatibilização dos múltiplos segmentos do ordenamento jurídico. Ademais, é preciso notar que o Direito, ao contrário do que faz supor o pensamento dedutivo-normativista, não se apresenta – nem poderia se apresentar – como um sistema fechado e completo. Não é fechado porque aberto à mobilidade (Wilburg) e à indeterminação dos conceitos jurídicos (Engisch); não é completo porquanto “as contradições e as lacunas acompanham as normas à feição de sombras…” (9). Trata-se, por conseguinte, de uma unidade axiológica bastante peculiar: subsiste através do conflito e da indeterminação. Se, de um lado, é limite, de outro, é abertura (10). Por isso, longe de obstaculizar, tal natureza assume, no seio do sistema, a condição de um de seus pressupostos lógicos, eis que, abolindo a arbitrária dicotomia entre “interno” e “externo”, assegura, em face do caso concreto e, principalmente, sem recorrer ao moroso legislativo, sua espontânea e natural modernização. Assim, sepultando a utopia do puro e cerrado formalismo, Juarez Freitas toma claro, nesse passo, que todo fechamento desagrega, só a abertura unifica. Em linguagem mais frontal, não há sistema sem correlata abertura.
Tal conceito de sistema jurídico induz simétrico alargamento no de interpretação sistemática. No campo do Direito, como em qualquer âmbito do conhecimento, nenhuma mudança se deixa isolar: tudo repercute em tudo. Uma vez assinalada a natureza aberta, axiológica e hierarquizada do sistema jurídico – formatado não somente por normas, mas, com primazia, por valores e princípios jurídicos -, parece imperioso estender iguais características à interpretação sistemática. Donde resulta – destacando a insuperável precisão do nosso autor – que “interpretar uma norma é interpretar um sistema inteiro”, pois “qualquer exegese comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios gerais, de normas e de valores constituintes da totalidade do sistema jurídico” (18). Se o Direito é, em essência, sistema axiológico, sistemático-axiológica deverá ser a sua exegese. Para conhecer o alcance da lei, convém indagar o alcance teleológico do próprio sistema. É por essa razão que “não se pode considerar a interpretação sistemática, … como um processo, dentre outros, da interpretação jurídica. … Neste sentido, é de se afirmar, …, que a interpretação jurídica é sistemática ou não é interpretação” (19)”.[6]
Desse modo, por meio de um método de interpretação sistemática, entende-se ser juridicamente possível a inserção de cláusula, nos contratos administrativos celebrados pelas empresas estatais, que preveja a hipótese de rescisão em razão de interesse público superveniente, quer seja por força da Constituição Federal, quer seja pela natureza jurídica e pela razão de existência dessas empresas, quer seja pela observância obrigatória da Lei nº. 9.784/1999 na atuação dessas empresas, como entes pertencentes à Administração Pública.
Ressalte-se que no caso dessa hipótese, deverá ser prevista a consequente indenização do particular pelo que já foi executado do objeto do contrato.
A possibilidade jurídica de inserção de uma cláusula de rescisão unilateral por razão de interesse público pode ser analisada, também, sob o prisma do direito privado, fazendo-se, nesse caso um paralelo com o instituto da resilição do contrato, oriundo do Direito Civil, no qual há o ato jurídico da denúncia.
Nesse sentido, o artigo 473 do Código Civil assim dispõe:
“Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte.
Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.”
De Plácido e Silva assim conceitua resilição:
“(…) do latim resilire (desdizer-se, retratar-se) é empregado na linguagem jurídica na mesma significação de rescindir, desfazer, distratar, resolver. Em relação aos contratos, resilir é empregado tanto para indicar ou exprimir dissolver por acordo das partes contratantes, como dissolver o contrato por uma das partes quando firmado por tempo indeterminado. Desse modo, resilição entende-se dissolução seja por mútuo consentimento, seja por provocação de uma das partes quando lhe é atribuído o direito de a pedir.”[7]
No caso da resilição contratual, que seria, mutatis mutandis, a natureza desse tipo de cláusula, impõe-se a indenização à outra parte, a fim de se evitar incorrer na violação da boa-fé objetiva e no locupletamento ilícito.
No mesmo sentido, recomenda-se que a cláusula, nos contratos administrativos, tenha essa previsão de indenização ao particular, fazendo-se, inclusive, uma interpretação analógica com a Lei nº. 8.666/1993, que, no caso da rescisão unilateral por razão de interesse público superveniente, prevista no artigo 78, inciso XII, assim determinava:
“Art. 79 (…)
§ 2º Quando a rescisão ocorrer com base nos incisos XII a XVII do artigo anterior, sem que haja culpa do contratado, será este ressarcido dos prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido, tendo ainda direito a:
I – devolução de garantia;
II – pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão;
III – pagamento do custo da desmobilização.”
A previsão desse ressarcimento ao particular, indubitavelmente, atende ao princípio da vedação ao enriquecimento ilícito que deve ser observado, além das relações privadas, mas, também, pela Administração Pública em suas contratações.
Conclusão
A Lei nº. 13.303/2016, que regulamentou o artigo 173, parágrafo primeiro, da Constituição Federal, previu tão somente a necessidade das empresas estatais estabelecerem, em seus contratos as hipóteses de rescisão, de forma genérica, como cláusula geral, não prevendo as hipóteses expressas de rescisão, diferentemente do regramento que havia no regime previsto pela Lei nº. 8.666/1993.
Nesse sentido, a Lei das Estatais não dispôs, de modo expresso, sobre a possibilidade de rescisão unilateral por razões de interesse público.
Contudo, a inexistência de texto expresso na Lei nº. 13.303/2016, como se pôde verificar, não é causa impeditiva para a sua previsão nos regulamentos, contratos, convênios e ajustes celebrados pelas empresas estatais, tendo em vista que a obrigatoriedade da observância do princípio da impessoalidade e do princípio da supremacia do interesse público são corolários da Constituição Federal, bem como do ordenamento jurídico administrativo brasileiro, na medida em que há a sua previsão expressa na Lei nº. 9.784/1999, e, ainda, fazendo-se um paralelo com o Direito Civil, há a autorização para a rescisão unilateral no artigo 473, do Código Civil.
Desse modo, é juridicamente possível às empresas estatais, com fulcro em uma interpretação sistemática, a rescisão unilateral por razões de interesse público, devendo-se observar, todavia, a necessidade de indenização do contratado em caso de eventuais prejuízos regularmente comprovados.
Procuradora da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – Infraero. Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília 2007. Especialização em Direito do Trabalho – 2008. Atuação profissional na Área de Direito Administrativo
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