I – INTRODUÇÃO
Foi promulgada a Lei nº. 12.403/2011, publicada no Diário Oficial da União do dia 05 de maio de 2011, com a previsão de um período de vacatio legis de sessenta dias. Nada obstante esta limitação temporal para a vigência da lei, e especialmente no que diz respeito à aplicação das medidas cautelares previstas na lei, mais benéficas do que a prisão, entendemos que os novos dispositivos terão aplicação imediata, especialmente à luz do art. 5º., § 1º., da Constituição Federal, pelo qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
Neste sentido, oportuna é a lição de Alberto Silva Franco, segundo a qual “a retroatividade da lei penal incriminadora e a retroatividade da lei penal benéfica são princípios constitucionais paralelos e de igual grau, conexionados na proteção do direito de liberdade do ser humano, direito que se erige como uma das expressões mais significativas do princípio da intangibilidade da dignidade da pessoa humana… bem por isso não se compreende que um princípio constitucional em relação ao qual inexiste reserva de lei possa sofrer restrições por parte do legislador ordinário. Não há, portanto, como compatibilizar o princípio constitucional da retroatividade penal elisiva da figura criminosa, redutora da sanção punitiva, ou de qualquer modo beneficiadora do agente, com a norma da Lei de Introdução ao Código Civil, que cuida da vacatio legis. Quando o legislador ordinário defere ao réu, em lei posterior ao fato criminoso, uma posição mais favorável, é evidente que o dispositivo beneficiador constante da lei penal sancionada, promulgada e publicada deve ser, em respeito ao princípio constitucional, de cogente e imediata eficácia, não suportando uma vigência sustada no tempo.”[1] (grifamos).
Vejamos, também a propósito, o ensinamento do saudoso Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro:
“Na vacatio legis, a lei carece de vigência. Em outras palavras, ainda não compõe (materialmente) o ordenamento jurídico. A Lei de Introdução ao Código Civil estatui no art. 1º. que, salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o País quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. O Direito é uno. Os setores dogmáticos, entretanto, evidenciam características próprias. O Direito Penal não se confunde com o Direito Civil. Mais pelos princípios do que pelas leis. O raciocínio, logicamente, também é distinto. A Constituição da República, tradicionalmente, registra a chamada (tecnicamente, imprópria) retroatividade benéfica da lei penal (art. 5º, XL). Aplica-se sempre a lei mais favorável ao réu. Também aqui deve ser entendida a teleologia da norma. Cumpre sacrificar o aspecto meramente literal. O enunciado do tipo é feito pelo Estado através de lei em sentido formal. Só assim, gera efeito. Na vacatio legis, a elaboração da lei foi escorreita. Nenhum vício a macula. Apenas o tempo fixado ainda está em curso. Ideologicamente, contudo, há formal e solene declaração de aplicar a lei penal mais favorável. Não faz sentido, por isso, por mero apego à letra do texto, aguardar a respectiva fluência. O argumento de, nesse meio tempo, a lei pode ser revogada (aconteceu com o Código Penal de 1969) não influi no raciocínio. O comando da Constituição é incondicional, no sentido de beneficiar. (…) Recorde-se ainda. A vacatio legis busca, antes da vigência, favorecer a pessoa, a fim de não ser surpreendida com a nova disciplina. Seria contrasenso deixar de aplicar, imediatamente, lei que se destina a favorecer. No caso em comento: porquê esperar 60 dias para início de vigência, se no segundo mês haverá a nova disciplina! Seria manter a lei mais rigorosa durante esse tempo e, escoado o prazo, de ofício, conferir o novo tratamento. Sem dúvida, evidente exemplo de raciocínio de aplicação formal da lei, escorada apenas no sentido gramatical do texto legal! Apesar de aproximar-se o século XXI! A elaboração da lei pode apresentar vício de procedimento. Evidenciar-se inconstitucional. Em outras palavras, o texto exterioriza a posição oficial (representa a sociedade), todavia, de maneira, legislativamente, defeituosa. Significa, porém, a diretriz a ser adotada nesse setor. Evidente, o raciocínio é válido quando a norma posterior for mais favorável. Materialmente, ocorre abolitio criminis, ou foi amenizado, de qualquer modo, o tratamento até então em vigor. O tema ganha amplo espaço na literatura italiana e a Corte Constitucional decidiu que, no caso, se está de frente a um conflito entre interesse individual e favor libertatis e o interesse da tutela da comunidade.”[2] (também sublinhamos).
Pierpaolo Cruz Bottini, comentando especificamente a nova lei, também entende que a vacatio legis “não impede a aplicação imediata das medidas cautelares mais benéficas do que a prisão.” Para ele, “tratando-se de reformatio in melius, podem ser antecipadas, como assente na doutrina e na jurisprudência.”[3] Acertada a afirmação!
Ainda outrora, e nada obstante a repetida lição dos civilistas, o jurista Vicente Ráo também já admitia, ainda que excepcionalmente, “a validade dos atos praticados de acordo com a nova lei, durante a vacatio legis, quando esta lei disciplina matéria nova, isto é, não contemplada pela lei anterior.”[4] Ora, a nova lei dispõe sobre medidas cautelares muitas das quais até então desconhecidas em nosso ordenamento jurídico, portanto, matéria nova, e mais: de natureza material e benéfica! No final deste artigo trataremos com mais detalhes sobre o Direito Intertemporal e a aplicação dos novos dispositivos aos processos pendentes na data da efetiva vigência dos novos dispositivos legais.
II – DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
A nova lei alterou substancialmente o Título IX do Livro I do Código de Processo Penal que passou a ter a seguinte epígrafe: “Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”. No Capítulo I – Das Disposições Gerais – foram modificados os artigos a seguir comentados:
O novo art. 282 estabelece que as medidas cautelares previstas em todo o Título IX deverão ser aplicadas observando-se um dos seguintes requisitos: a necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (periculum libertatis).
Além destes requisitos (cuja presença não precisa ser cumulativa, mas alternativamente), a lei estabelece critérios que deverão orientar o Juiz no momento da escolha e da intensidade da medida cautelar, a saber: a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado (fumus commissi delicti). Evidentemente, merecem críticas tais critérios, pois muito mais condizentes com as circunstâncias judiciais a serem aferidas em momento posterior quando da aplicação da pena, além de se tratar de típica opção pelo odioso Direito Penal do Autor.[5]
Procura-se, portanto, estabelecer neste Título os requisitos e os critérios justificadores para as medidas cautelares no âmbito processual penal, inclusive no que diz respeito às prisões provisórias, incluindo-se a prisão temporária[6], “pois são regras abrangentes, garantidoras da sistematicidade de todo o ordenamento.”[7]
Assim, quaisquer das medidas cautelares estabelecidas neste Título (repetimos: inclusive as prisões provisórias codificadas ou não) só se justificarão quando presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis (ou o periculum in mora, conforme o caso) e só deverão ser mantidas enquanto persistir a sua necessidade, ou seja, a medida cautelar, tanto para a sua decretação quanto para a sua mantença, obedecerá à cláusula rebus sic stantibus.
Dispõe a lei que poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente[8] e serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.
Observa-se que as medidas cautelares só poderão ser decretadas de ofício pelo Juiz durante a fase processual; antes, no curso de uma investigação criminal, apenas quando instado a fazê-lo, seja pelo Ministério Público, seja pela Polícia. Ainda que tenha sido louvável esta limitação, parece-nos que no sistema acusatório é sempre inoportuno deferir ao Juiz a iniciativa de medidas persecutórias, mesmo durante a instrução criminal. É absolutamente desaconselhável permitir-se ao Juiz a possibilidade de, ex officio, ainda que em Juízo, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal (restritiva de direitos, privativa de liberdade, etc.), pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo[9].
É evidente que o dispositivo é perigoso, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. (…) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.[10]
Claro que há efetivamente certo distanciamento dos postulados do sistema acusatório, mitigando-se a imparcialidade[11] que deve nortear a atuação de um Juiz criminal, que não se coaduna com a determinação pessoal e direta de medidas cautelares. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.[12]
Dentro desta perspectiva, o sistema acusatório é o que melhor encontra respaldo em uma democracia, pois distingue perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal, a saber: o julgador, o acusador e a defesa. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a chamada defesa técnica[13].
Observa-se que no sistema acusatório estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo o professor da Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer, “hay necesidad de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar, para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar”[14], proibindo-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora”[15], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento”[16].
Dos doutrinadores pátrios, talvez o que melhor traduziu o conceito do sistema acusatório tenha sido José Frederico Marques:
“A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão-somente, da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (…) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[17]
Ainda como corolário dos princípios atinentes ao sistema acusatório, aduzimos a necessidade de se afastar o Juiz, o mais possível, de atividades persecutórias[18]. Um dos argumentos mais utilizados para contrariar esta afirmação é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal[19]. Ocorre que este dogma está em franca decadência, pois hoje se sabe que a verdade a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico.
Como ensina Muñoz Conde, “el proceso penal de un Estado de Derecho no solamente debe lograr el equilibrio entre la búsqueda de la verdad y la dignidad de los acusados, sino que debe entender la verdad misma no como una verdad absoluta, sino como el deber de apoyar una condena sólo sobre aquello que indubitada e intersubjetivamente puede darse como probado. Lo demás es puro fascismo y la vuelta a los tiempos de la Inquisición, de los que se supone hemos ya felizmente salido.”[20]
Com efeito, não se pode, por conta de uma busca de algo muitas vezes inatingível (a verdade…)[21] permitir que o Juiz saia de sua posição de supra partes, a fim de auxiliar, por exemplo, o Ministério Público a provar a imputação posta na peça acusatória. Sobre a verdade material ou substancial, ensina Ferrajoli, ser aquela “carente de limites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida ´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”. Para o mestre italiano, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada “mediante el respeto a reglas precisas y relativa a los solos hechos y circunstancias perfilados como penalmente relevantes. Esta verdad no pretende ser la verdad; no es obtenible mediante indagaciones inquisitivas ajenas al objeto procesal; está condicionada en sí misma por el respeto a los procedimientos y las garantías de la defensa. Es, en suma, una verdad más controlada en cuanto al método de adquisición pero más reducida en cuanto al contenido informativo de cualquier hipotética ´verdad sustancial´[22]”.
Vê-se, portanto, que se permitiu um desaconselhável “agir de ofício” pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o sistema inquisitivo caracterizado, como diz Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[23]
Parece-nos claro que há, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade que deve nortear a atuação de um Juiz criminal (e não neutralidade, que é impossível)[24]. Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Como notou Eros Roberto Grau, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”[25] São inconfundíveis a neutralidade e a imparcialidade. É ingenuidade acreditar-se em um Juiz neutro, mas é absolutamente indispensável um Juiz imparcial.
Um Magistrado imparcial, como afirmam Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberhardt, implica em um “formal afastamento fático do fato julgado, não podendo o Magistrado ter vínculos objetivos com o fato concreto colocado à discussão processual. Coloca-se daí na condição de terceiro estranho ao caso penal. (…) Já a neutralidade é a assunção da alienação judicial, negando-se ingenuamente o humano no juiz. Este agente político partícipe da vida social sente (a própria sentença é um ato de sentir), age, pensa e sofre todas as influências provocadas pela sociedade pós-moderna. Afirmar que o juiz é neutro é ocultar uma realidade.”[26]
Sobre o sistema acusatório, afirmava Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[27]
A propósito, relembramos o art. 3º. da Lei nº. 9.296/96 (interceptações telefônicas) que permite ao Juiz, mesmo na primeira fase da persecutio criminis, determinar de ofício a quebra do sigilo telefônico, o que também representa uma quebra flagrante dos postulados do sistema acusatório, bem como o art. 311 do Código de Processo Penal, possibilitando ao Juiz Criminal a decretação, de ofício, da prisão preventiva (ver adiante), decisões que (pasmen!), ainda o tornam prevento (art. 75, parágrafo único e art. 83 do Código de Processo Penal).[28]
Com inteira razão Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…) ”[29]
Continuando…
Atendendo à exigência constitucional do contraditório, dispõe o § 3º. do art. 282 que, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida (quando, então, será tomada inaudita altera pars), o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias; neste caso, os autos devem permanecer em juízo. Parece-nos que mesmo no caso da medida ser determinada de ofício pelo Juiz, deve assim também se proceder, ou seja, ouvir-se a parte a quem a medida possa trazer algum prejuízo, ressalvadas, evidentemente, as hipóteses de urgência ou de perigo para a eficácia da decisão. Não há devido processo legal sem o contraditório, que vem a ser, em linhas gerais, a garantia de que para toda ação haja uma correspondente reação, garantindo-se, assim, a plena igualdade de oportunidades processuais. A respeito do contraditório, Willis Santiago Guerra Filho afirma “que não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário (cf. Nery Jr., 1995, p. 25). Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães.” (grifos no original).[30]
Segundo Étienne Vergès, a Corte Européia dos Direitos do Homem (CEDH) “en donne une définition synthétique en considérant que ce principe ´implique la faculté, pour les parties à un procés penal ou civil, de prendre connaissance de toutes pièces ou observations présentées au juge, même par un magistrat indépendant, en vue d´influencer sa décision et de la discuter` (CEDH, 20 févr. 1996, Vermeulen c/ Belgique, D. 1997, som. com. P. 208).”[31]
O contraditório será fundamental (ressalvada a urgência e a possibilidade de ineficácia da medida), até para que o investigado ou acusado tenha a oportunidade de, por exemplo, requerer “a decretação de medida menos gravosa do que aquela sugerida pela parte contrária.”[32]
Aliás, ainda que a medida tenha sido tomada inaudita altera pars, “a observância do contraditório, nesses casos, é feita depois, dando-se oportunidade ao suspeito ou réu de contestar a providência cautelar (…). Fala-se em contraditório diferido ou postergado.”[33]
Pois bem.
Caso haja descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o Juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do art. 312, parágrafo único do Código de Processo Penal. Observa-se que a lei é expressa ao considerar a prisão cautelar (incluindo-se a temporária) como ultima ratio. É imposição legal a excepcionalidade da prisão provisória, que somente deverá ser decretada quando não for absolutamente cabível a sua substituição por outra medida cautelar. E na respectiva decisão, esta imprescindibilidade deve restar claramente demonstrada, nos termos do art. 93, IX da Constituição.
Como dissemos acima, a medida cautelar decretada poderá ser revogada ou substituída quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a ser decretada, se sobrevierem razões que a justifiquem (é a velha cláusula rebus sic stantibus).
Ainda neste Capítulo I, o art. 283 estabelece que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária[34] ou prisão preventiva. Evidentemente, ressalvam-se os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, em cumprimento ao disposto no art. 5º., LXI da Constituição.
Portanto, é direito do réu aguardar em liberdade o seu recurso interposto, inclusive os recursos constitucionais, nada obstante o disposto no art. 27 da Lei nº. 8.038/90, não aplicável nos processos criminais, não impedindo que, excepcionalmente, aguarde-se preso o julgamento, caso no acórdão condenatório mantenha-se ou se decrete fundamentadamente a prisão provisória; neste último caso, terá o acusado direito à fruição dos benefícios da Lei de Execução Penal, à vista do disposto no seu art. 2º., bem como no Enunciado 716 da súmula do Supremo Tribunal Federal e na Resolução nº. 19/2006 do Conselho Nacional de Justiça)[35].
Observa-se, outrossim, que todas as medidas cautelares estabelecidas no Título IX (incluídas as prisões, insista-se) não podem ser aplicadas à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. Portanto, não será possível aplicá-las em relação às contravenções penais a que a lei comina, isoladamente, pena de multa, como, por exemplo, aquelas previstas nos arts. 292, 303, 304, do Código Eleitoral (dentre várias outras).
Dispõe o § 2º. do art. 283 que a prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. Neste sentido, observar-se-á o disposto no art. 5º., XI da Constituição, bem como o art. 150 do Código Penal.[36]
Também foi alterada a redação do art. 289, prescrevendo que quando o acusado estiver no território nacional, fora da jurisdição do juiz processante, será deprecada a sua prisão, devendo constar da precatória o inteiro teor do mandado. Neste caso, havendo urgência, o juiz poderá requisitar a prisão por qualquer meio de comunicação, do qual deverá constar o motivo da prisão, bem como o valor da fiança se arbitrada, devendo a autoridade a quem se fizer a requisição tomar as precauções necessárias para averiguar a autenticidade da comunicação. Ainda aqui, o juiz processante deverá providenciar a remoção do preso no prazo máximo de trinta dias, contados da efetivação da medida. Com as cautelas devidas, cremos ser possível aplicar-se no processo penal a Lei nº. 11.419/2006 que trata de estabelecer a realização de atos processuais por meios eletrônicos.
A nova lei acrescentou o art. 289-A, dispondo que o juiz competente providenciará o imediato registro do mandado de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, devendo o Conselho regulamentar este registro. Esta nova disposição legal permite que qualquer agente policial possa efetuar a prisão determinada no mandado de prisão registrado no Conselho Nacional de Justiça, ainda que fora da competência territorial do Juiz que o expediu. Outrossim, qualquer agente policial poderá efetuar a prisão decretada, ainda que sem registro no Conselho Nacional de Justiça, adotando as precauções necessárias para averiguar a autenticidade do mandado e comunicando ao Juiz que a decretou, devendo este providenciar, em seguida, o registro do mandado. Nestes casos, a prisão será imediatamente comunicada ao Juiz do local de cumprimento da medida o qual providenciará a certidão extraída do registro do Conselho Nacional de Justiça e informará ao juízo que a decretou, devendo o preso ser informado de seus direitos, nos termos do inciso LXIII do art. 5o. da Constituição Federal; caso o autuado não informe o nome de seu advogado, deve ser comunicada a prisão à Defensoria Pública; se existirem dúvidas das autoridades locais sobre a legitimidade da pessoa do executor ou sobre a identidade do preso, poderão por em custódia o preso, até que fique esclarecida a dúvida.
Sobre tais disposições, mais uma vez entendemos pertinentes as observações de Pierpaolo Bottini, ao ressaltar “que tais informações não devem restar guardadas apenas no âmbito do Poder Judiciário, pois consistem em instrumento importantíssimo para a elaboração de estratégias de políticas de segurança pública. (…) Como tais informações, em regra, não são sigilosas, poderiam e deveriam ser compartilhadas em sua inteireza com órgãos da Polícia Federal, com o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, dentre outros, estruturando um sistema de inteligência e de desenvolvimento estratégico de ações nesta seara.” E o autor vai mais além, com toda razão: “seria importante que constassem do Cadastro Nacional não apenas as ordens de privação de liberdade, mas também as determinações a respeito de outras cautelares, (…) para que as autoridades policiais ou judiciais de outras comarcas ou de outras unidades da Federação tivessem ciência das restrições impostas, auxiliando em sua fiscalização e cumprimento.”[37]
A captura poderá ser requisitada, à vista de mandado judicial, por qualquer meio de comunicação, tomadas pela autoridade, a quem se fizer a requisição, as precauções necessárias para averiguar a autenticidade desta.
As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da Lei de Execução Penal.[38] O novo art. 300 repete a regra estabelecida na Lei de Execução Penal (art. 84) e na que dispõe sobre a prisão temporária (art. 3º.), disposições que, na prática, nem sempre são obedecidas, apesar de constarem nas Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas (nº. 8.b): “As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas.” Com o nosso atual sistema carcerário muito dificilmente tal artigo será observado, como não o são os artigos das Leis nºs. 7.210/84 e 7.960/89.
Em relação ao militar preso em flagrante delito, após a lavratura dos procedimentos legais, será recolhido a quartel da instituição a que pertencer, onde ficará preso à disposição das autoridades competentes. Por fim, neste primeiro capítulo, foi expressamente revogado o art. 298.
III – DA PRISÃO EM FLAGRANTE
Passemos agora a analisar as alterações feitas no Capítulo II – Da Prisão em Flagrante; aqui apenas foram modificados os arts. 306 e 310. No art. 306 determina-se que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre sejam comunicados imediatamente ao Juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada, em conformidade com o disposto no art. 5º., LXII e LXIII da Constituição.
Determina-se, outrossim, que em até vinte e quatro horas após a realização da prisão, será encaminhado ao Juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. Neste mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas. Entendo que a não observância de qualquer das exigências acima referidas enseja o relaxamento da prisão, por evidente ilegalidade ou abuso de poder; caso o Juiz não o faça, será o caso de cabimento de impetração de habeas corpus, sem prejuízo do disposto no art. 4º., “d”, da Lei nº. 4.898/65 (Crimes de Abuso de Autoridade).
No art. 310 estabelece-se que o Juiz de Direito deverá, fundamentadamente, ao receber o auto de prisão em flagrante, tomar uma das três seguintes decisões: a) relaxar a prisão ilegal (aquela cujo auto de prisão em flagrante não observou os requisitos legais acima indicados); b) converter a prisão em flagrante (legalmente lavrado) em prisão preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão[39]; c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (ver adiante).
Neste momento, se o Juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Código Penal (causas excludentes de ilicitude), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória (sem fiança), mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação. Trata-se, aqui, de liberdade provisória, sem fiança, vinculada, porém ao comparecimento aos atos processuais. Nada impede, igualmente, que a liberdade provisória aqui prevista seja cumulada com outra medida cautelar.
IV – DA PRISÃO PREVENTIVA
No Capítulo III – Da Prisão Preventiva, foram modificados os arts. 311 a 315, restando incólume apenas o art. 316 que continua a estabelecer a cláusula rebus sic stantibus em relação à prisão preventiva.
O primeiro dos artigos deste Capítulo estabelece que em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. Observa-se que a prisão preventiva só poderá ser decretada de ofício pelo Juiz durante a fase processual; antes, ou seja, no curso de uma investigação criminal, apenas quando instado a fazê-lo, seja pelo Ministério Público, seja pela Polícia (como se sabe, na fase inquisitorial não há querelante nem assistente). Como já afirmamos acima a respeito das demais medidas cautelares, ainda que haja esta limitação, parece-nos que no sistema acusatório é absolutamente desaconselhável permitir-se ao Juiz a possibilidade de, ex officio, ainda que em Juízo, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal (veja-se o que foi acima escrito sobre o assunto).
Entendemos que caso a prisão preventiva tenha sido determinada ainda na fase investigatória, urge que a peça acusatória seja oferecida em até cinco dias (art. 46 do Código de Processo Penal), pois se há justa causa para a decretação da prisão preventiva (fumus commissi delicti), obviamente que também há para o exercício da ação penal (indícios suficientes da autoria e prova da existência do crime). Caso não haja tempestivamente o oferecimento da peça acusatória, a prisão deverá ser revogada, pois patente o constrangimento ilegal. Se não o for, cabível será a ordem de habeas corpus.
Em relação à possibilidade do assistente da acusação requerer a decretação da prisão preventiva, entendemos como uma possibilidade limitada, apenas quando for por conveniência da instrução criminal ou quando for cabível como substituição de medida cautelar anteriormente decretada, especialmente aquelas indicadas no art. 319, IV e VIII. Este entendimento baseia-se no fato de que “a razão de se permitir a ingerência do ofendido em todos os termos da ação penal pública, ao lado do Ministério Público, repousa na influência decisiva que a sentença da sede penal exerce na sede civil”, como explica Tourinho Filho embasado nas lições de Florêncio de Abreu e Canuto Mendes de Almeida[40]. Para nós, acertada é esta posição, pois só entendemos legítima a atuação do ofendido como assistente quando configurado estiver o seu interesse em uma posterior indenização pelo dano sofrido. Logo, sempre que da infração penal advier prejuízo de qualquer ordem para o ofendido, este estaria legitimado a se habilitar como assistente para pleitear depois a ação civil ex delicto, executando a sentença penal condenatória[41]. Logo, não há interesse por parte do assistente em requerer a prisão preventiva invocando outros requisitos que não tenham relação com a sua intervenção no processo penal (para a aplicação da lei penal, por exemplo, ou garantia da ordem pública…).
Observa-se que de há muito a intervenção do ofendido no processo penal vem sendo questionada, muitos a contestando sob o argumento de que caberia ao Estado exclusivamente exercer as funções persecutórias em matéria penal, pois se admitir a intervenção do particular seria aceitar que “su papel en el proceso parece estar teñido de una especie de sentimiento de venganza”.[42]
Analisando o Direito português, por exemplo, o mestre lusitano Germano Marques da Silva esclarece que a “intervenção dos particulares no processo penal é por muitos contestada por poder constituir um factor de perturbação, pois não é de esperar deles a objectividade e a imparcialidade que devem dominar o processo penal, mas é também por muitos outros considerada como uma excelente e democrática instituição e assim o entendemos também”.[43]
Feitas estas observações, voltemos à análise do texto legal…
Continuam sendo requisitos para a prisão preventiva: a) garantia da ordem pública (desgraçadamente); b) garantia da ordem econômica (idem, mas menos mal); c) por conveniência da instrução criminal; d) para assegurar a aplicação da lei penal.
Além destes, podem ser também indicados como requisitos legais para a decretação da prisão preventiva, nos termos da nova lei, os seguintes: a) o descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (tal como já previsto no art. 282, § 4o.); b) a garantia para a execução de medidas protetivas de urgência estabelecidas em relação a determinadas vítimas (mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência).
Aqui está consubstanciada a necessidade indispensável para a decretação da prisão preventiva, o chamado periculum libertatis.
Lamentavelmente continuamos a ter como um dos requisitos para a decretação da prisão preventiva a “garantia da ordem pública”, conceito por demais genérico e, exatamente por isso, impróprio para autorizar uma custódia provisória que, como se sabe, somente se justifica no processo penal como um provimento de natureza cautelar (presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis). Há mais de dois séculos Beccaria já preconizava que “o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime”[44], o que coincide com dois outros requisitos da prisão preventiva em nosso País (conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal).
Decreta-se a prisão preventiva no Brasil, muitas vezes, sob o argumento de se estar resguardando a ordem pública, quando, por exemplo, quer-se evitar a prática de novos delitos pelo imputado ou aplacar o clamor público. Não raras vezes vê-se prisão preventiva decretada utilizando-se expressões como “alarma social causado pelo crime” ou para “aplacar a indignação da população”, e tantas outras frases (só) de efeito.
A respeito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez:
“Tampoco puede atribuirse a la prisión provisional un fin de prevención especial: evitar la comisión de delitos por la persona a la que se priva de libertad. La propia terminología más frecuentemente empleada para expresar tal idea – probable comisión de ´otros´ o ´ulteriores´ delitos – deja entrever que esta concepción se asienta en una presunción de culpabilidad. (…) Por las mismas razones no es defendible que la prisión provisional deba cumplir la función de calmar la alarma social que haya podido producir el hecho delictivo, cuando aún no se ha determinado quién sea el responsable. Sólo razonando dentro del esquema lógico de la presunción de culpabilidad podría concebirse la privación en un establecimiento penitenciario, el encarcelamiento del imputado, como instrumento apaciguador de las ansias y temores suscitados por el delito. (…) La vía legítima para calmar la alarma social – esa especie de ´sed de venganza´ colectiva que algunos parecen alentar y por desgracia en ciertos casos aflora – no puede ser la prisión provisional, encarcelando sin más y al mayor número posible de los que prima facie aparezcan como autores de hechos delictivos, sino una rápida sentencia sobre el fondo, condenando o absolviendo, porque sólo la resolución judicial dictada en un proceso puede determinar la culpabilidad y la sanción penal.”[45]
Ressaltamos que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, deferiu em parte a liminar pedida no Habeas Corpus nº. 84548, pois considerou que o decreto de prisão preventiva do acusado teria se desviado dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, por lhe faltar as indicações do que consiste a periculosidade do paciente e a quais riscos a ordem pública estaria exposta se ele respondesse à ação penal em liberdade, salientando, outrossim, que o entendimento do STF não permite que clamor público sirva como fundamento para a prisão preventiva. Ele observou que o acusado sempre colaborou com a instrução criminal e as investigações. Assim, o Ministro deferiu a liminar para revogar a prisão preventiva, se por outro motivo o acusado não estiver preso.
Na Itália, o Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Pádua, Palombarini, assim decidiu acerca da prisão preventiva:
“Pena e prisão preventiva têm diversa natureza jurídica, diferentes objectivos, diversa função… Para decidir se uma certa garantia individual deve aplicar-se a um determinado instituto, é necessário atender, em primeiro lugar, à incidência do mesmo instituto sobre a esfera do indivíduo. Ora a prisão preventiva – embora diversa, como se disse, da pena – traduz-se para o indivíduo numa restrição total de sua liberdade. Diferentes os institutos, idênticos os valores em jogo e o perigo de lesão do fundamental direito da liberdade.”[46]
Em outra oportunidade, a 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus (Processo nº. 84778) a um servidor público que responde a processo pela prática de três crimes de concussão (art. 316 do Código Penal). O Ministro Sepúlveda Pertence, relator do processo, concedeu a ordem para revogar o decreto de prisão preventiva e permitir que o réu aguarde o julgamento da apelação em liberdade. Consoante Pertence, não há como falar em conveniência da instrução criminal se esta já terminou, nem invocar a garantia da ordem pública para não comprometer a imagem do Poder Judiciário. “Já repisei minha convicção acerca da ilegitimidade constitucional da prisão preventiva fundada na necessidade de satisfazer a ânsias populares de repressão imediata em nome da credibilidade das instituições públicas, dentre elas o Poder Judiciário“, afirmou. Para o Ministro, tais considerações “desvelam o abuso da prisão processual para fins não cautelares, seja o de antecipação da pena, que aborrece a presunção da não-culpabilidade, seja a instrumentalização do encarceramento do acusado para a popularização do Judiciário, que repugna o princípio fundamental da dignidade humana“. Por fim, sustentou o relator não ser motivo idôneo para a prisão preventiva a invocação da gravidade do crime ou o prestígio e a credibilidade do Judiciário. O voto do ministro-relator foi acompanhado pelos demais integrantes da Primeira Turma.
Em um outro caso, um advogado acusado de participar da organização que operava fraudes fiscais no ramo do comércio de combustíveis respondeu às acusações em liberdade. A decisão foi tomada pela 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal. Nesta oportunidade, todos os Ministros da Turma seguiram o voto do relator, Ministro Sepúlveda Pertence, salientando “que o Supremo tem negado a manutenção de prisão preventiva quando o motivo é a invocação da gravidade do crime imputado.” O Ministro Marco Aurélio sustentou que “há de se aguardar a comprovação do fato criminoso a cargo do Ministério Público para posteriormente ter-se as conseqüências.” (HC nº. 85068).
Em outra decisão recente, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, concedeu duas liminares, em habeas corpus, a dois condenados por seqüestro, emasculação e assassinato de menores em Altamira, no Pará, entre 1989 e 1992. Nas decisões monocráticas, o Ministro Marco Aurélio destacou que os condenados são réus primários, têm bons antecedentes e estão presos há mais de um ano. Afirmou que a circunstância de os condenados viverem em unidades da Federação diversas daquela em que foram julgados não é motivo para ensejar, por si só, a custódia, “afigurando-se o recolhimento como execução precoce, açodada, temporã do título judicial, sujeito ainda a modificação, em face da recorribilidade ordinária”, observando, ainda, que “o barulho da turba, a repercussão dos acontecimentos na sociedade, na mídia, não podem servir à execução precoce da pena”. (HC-85223).
Também a 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal confirmou liminar do Ministro Eros Grau que concedeu liberdade provisória para um policial acusado de assassinar um Delegado da Polícia Civil em Minas Gerais. O Ministro Eros Grau, ao deferir o pedido de habeas corpus e libertar o acusado, afirmou que os fundamentos no clamor público e na repercussão do caso não são “idôneos” para a manutenção da prisão preventiva. Na decisão, ele relacionou julgamentos do Supremo nesse sentido. (HC-85046).
Ainda sobre este requisito da “ordem pública”, anota Bruno César Gonçalves da Silva (no artigo intitulado: “Uma vez mais: da ´Garantia da ordem pública` como fundamento de decretação da prisão preventiva”):
“Entre os juristas brasileiros que se insurgiram contra a prisão preventiva com fundamento na “garantia da ordem pública”, destaca-se Gomes Filho (1991), que demonstrou-nos não possuir a idéia de “ordem pública” caráter instrumental relacionado com os meios e fins do processo, veja-se: À ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em “exemplaridade”, no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes; uma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente propenso a práticas delituosas ou, ainda, indicar a possível ocorrência de outras, relacionadas à supressão de provas ou dirigidas contra a própria pessoa do acusado. (GOMES FILHO, 1991, p. 67-68). Delmanto Júnior (1998), comentando a decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem pública, considera ser indisfarçável que nesses termos a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental – de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado – ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de instrumento de justiça sumária, vingança social etc. (DELMANTO JUNIOR, 1998, p.156). sim, dúvida não resta que falta à prisão preventiva decretada com base na “garantia da ordem pública” caráter instrumental inerente a toda medida cautelar, pois, esta visa assegurar os meios e os fins do processo, ao passo que na “ordem pública” não se vislumbra este caráter, não possuindo tal expressão limites rígidos para a sua definição, dando azo ao arbítrio e a casuísmos na restrição da liberdade. O apelo à forma genérica e retórica da “garantia da ordem pública” representa a possibilidade de superação dos limites impostos pelo princípio da legalidade estrita, propiciando um amplo poder discricionário ao juiz com “uma destinação bastante clara: a de fazer prevalecer o interesse da repressão em detrimento dos direitos e garantias individuais”. (GOMES FILHO, 1991, p. 66).”
E conclui este autor:
“A garantia da ordem pública não possui caráter cautelar propriamente dito, tendo na verdade finalidades que ora são meta-processuais, ora são exclusivas das penas. As interpretações dadas à expressão “garantia da ordem pública” são violadoras do princípio da presunção de inocência, pois, ou desconsideram a avaliação da necessidade da medida, ou se fundam em presunções e antecipações do juízo de culpabilidade. Devemos na interpretação e aplicação das medidas cautelares, nos libertarmos dos resquícios do autoritarismo e assimilarmos a nova orientação constitucional, lembrando-nos sempre que, dentro deste novo paradigma, os fins nunca podem justificar os meios.”
Não esqueçamos, igualmente, que o art. 30 da Lei nº. 7.492/86, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, estabelece estupidamente mais uma possibilidade de se decretar a prisão preventiva: a “magnitude da lesão causada”, termo que, assim como “ordem pública”, é por demais genérico e, por conseguinte, desaconselhável em se tratando de norma privativa da liberdade.
Nada obstante esta observação, o certo é que a jurisprudência vem reiteradamente decretando a prisão preventiva com fulcro neste requisito; assim, por exemplo, o Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, negou pedido de liberdade provisória solicitado por um acusado de participar de uma organização criminosa envolvida com crimes financeiros e lavagem de dinheiro em vários estados brasileiros. Em sua decisão, o relator lembrou que as investigações dão conta de que os presos participariam “de uma sofisticada organização criminosa, de aprimorado modo de atuação”. Essa quadrilha contaria inclusive, ressaltou o Desembargador, com o auxílio de servidores públicos, o que dificultaria a fiscalização por parte dos órgãos competentes. Assim, afirmou, a prisão apresenta-se como imprescindível para a garantia da ordem pública. “Em liberdade, tudo leva a concluir que o agente continuará na prática delituosa”, salientou o Magistrado. A necessidade de imposição da prisão também se justifica para garantir a coleta de provas “sem a interferência dos integrantes da organização” e a eventual aplicação da lei penal, uma vez que os membros da quadrilha possuem “enorme facilidade” para fugir. O Desembargador ainda lembrou que, de acordo com a decisão da 1ª. Vara Federal Criminal, parte dos valores arrecadados através dos delitos teriam sido enviados para o exterior, destacando, outrossim, o resguardo da ordem econômica e a magnitude dos danos econômicos decorrentes da atuação delituosa como justificativa para a manutenção da prisão. (Processos nºs. 2005.04.01.013110-1; 2005.04.01.015015-6 e 2005.04.01.015066-1).
Em outra decisão, a 7ª. Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região negou habeas corpus a dois acusados de crime contra o sistema financeiro nacional. No julgamento do mérito do habeas corpus, a Turma, por maioria, negou o pedido de liberdade. Os Desembargadores Federais Tadaaqui Hirose e Maria de Fátima Freitas Labarrère argumentaram que a magnitude da lesão (os réus teriam movimentado cerca de 530 milhões de dólares nas contas no exterior) e o risco à ordem pública justificam a decretação da prisão. (HC 2005.04.01.015120-3/PR).
Em sentido contrário, veja-se:
“TRF 4ª REGIÃO – HABEAS CORPUS Nº. 2004.04.01.017015-1/PR (DJU 09.06.2004, SEÇÃO 2, P. 634, J. 18.05.2004) – RELATOR: Des. Federal JOSÉ LUIZ B. GERMANO DA SILVA – Não obstante o art. 30 da Lei nº 7492/86 determine que a prisão preventiva do acusado da prática de crime contra o sistema financeiro nacional poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada, sua legitimação depende da satisfação dos pressupostos insculpidos no art. 312 do CP.”.
“A elevada monta da sonegação fiscal não justifica a decretação da prisão preventiva do agente, tratando-se, sim, de elemento a ser considerado por ocasião da dosimetria da pena, em eventual condenação.” (TRF 3ª R. 2ª T. – RSE 2008.61.05.008828-2 – rel. Nelton dos Santos – j. 21.07.2009 – DJU 06.08.2009).
Evidentemente que este requisito não pode ser levado em conta para se decretar uma prisão preventiva, mesmo porque, “nota-se que a magnitude da lesão é conseqüência do crime, fator que deve ser levado em consideração para a aplicação da pena (art. 59, CP).” Logo, “este dispositivo é flagrantemente inconstitucional, sua aplicação virá a macular todos os atos que se lhe seguirem”: eis a lição de Roberto Podval.[47] Manoel Pedro Pimentel já perguntava: “Como se há de aferir esse elemento normativo – magnitude da lesão causada – se não for através de critério subjetivo, que pode variar amplamente, já que a lei não define quantitativa ou qualitativamente tal magnitude?”[48]
Neste sentido, por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus (HC 99210). A decisão confirmou liminar concedida pelo relator do processo, Ministro Eros Grau. O juiz levou em conta o poderio econômico do acusado e a magnitude da lesão gerada aos cofres públicos, que alcançaria a cifra de R$ 241 milhões. “O decreto prisional funda-se na magnitude da lesão e na presunção de que os pacientes [os acusados] reiterariam nos crimes a eles imputados, o que, na linha de entendimento consolidado nesta Corte, não se presta à decretação da prisão preventiva”, disse o Ministro Eros Grau. O Ministro citou ainda precedentes do STF no sentido de que a magnitude da lesão causada por um suposto crime não justifica de maneira autônoma a prisão cautelar. Todos os ministros presentes à sessão seguiram o voto do relator.
A propósito, vejamos a lição de Robert Dworkin:
“O direito penal poderia ser mais eficiente se desconsiderasse essa distinção problemática e encarcerasse homens ou os forçasse a aceitar tratamento sempre que isso parecesse ter probabilidade de reduzir crimes no futuro. Mas isso, como sugere o princípio de Hart, significaria cruzar a linha que separa tratar alguém como ser humano e como nosso próximo e tratá-lo como um recurso para o benefício dos outros. Para as convenções e práticas de nossa comunidade, não pode haver insulto mais profundo que esse. O insulto é da mesma grandeza quando o processo recebe o nome de punição ou tratamento. É verdade que algumas vezes impomos restrições e submetemos a tratamento um homem apenas porque acreditamos que ele não tem controle sobre sua conduta. Fazemos isso com base em leis que regem a custódia de civis e, de modo geral, após um homem ter sido absolvido de um crime sério com base numa alegação de insanidade. Mas devemos reconhecer o compromisso de princípio que essa política implica. Deveríamos tratar um homem contra a sua vontade apenas quando o perigo que ele representa é real e não sempre que calculamos que o tratamento poderá reduzir a ocorrência de crimes, se for adotado.”[49]
Pois bem. Vistos os requisitos, analisemos o pressuposto da prisão preventiva.
Como pressuposto da medida extrema temos o fumus commissi delicti, ou seja, a demonstração cabal e induvidosa de prova da existência de determinados crimes e indício suficiente de autoria (o que coincide com a justa causa para a ação penal, nos termos do art. 395, III do Código de Processo Penal).
Ainda em relação ao fumus commissi delicti, a prisão preventiva, em regra, só poderá ser decretada em relação aos supostos autores de crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos, a não ser se o indiciado ou acusado tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado (ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Código Penal), ou se o delito envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (aqui está um requisito específico para esta última hipótese). Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.
Observa-se, portanto, que, excepcionalmente (mesmo porque a prisão preventiva só será decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, nos termos do art. 282), permite-se a prisão preventiva mesmo em crime culposo e qualquer que seja a pena privativa de liberdade cominada. Não seria mais necessária a demonstração daqueles outros requisitos (garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal).
Obviamente, mais uma vez não se observou o princípio da proporcionalidade[50], perfeitamente exigível quando se trata de estabelecer requisitos e pressupostos para a prisão provisória; aqui, pode-se prender preventivamente quando, muito provavelmente, não haverá aplicação de uma pena privativa de liberdade quando da sentença condenatória.
Como ensina Alberto Bovino, não é possível “que a situação do indivíduo ainda inocente seja pior do que a da pessoa já condenada, é dizer, de proibir que a coerção meramente processual resulte mais gravosa que a própria pena. Em conseqüência, não se autoriza o encarceramento processual, quando, no caso concreto, não se espera a imposição de uma pena privativa de liberdade de cumprimento efetivo. Ademais, nos casos que admitem a privação antecipada da liberdade, esta não pode resultar mais prolongada que a pena eventualmente aplicável. Se não fosse assim, o inocente se acharia, claramente, em pior situação do que o condenado. ”[51]
Entendemos, pois, incabível a decretação da prisão preventiva naqueles casos, pois, “não obstante o fato de ocorrer exclusivamente em sede parlamentar a atuação do princípio da proporcionalidade, isso não significa que as disposições normativas penais não possam ser submetidas a um eventual controle constitucional acerca da proporção nelas contidas. Não apenas isto é permitido, mas, acima de tudo, é recomendável quando alguma dúvida houver neste sentido.”[52]
Com o mesmo entendimento, Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Domínguez, advertem que “las medidas cautelares son homogéneas, aunque no idénticas, con las medidas ejecutivas a las que tienden a preordenar.”[53]
Segundo Humberto Ávila, “um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fim com o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitos fundamentais.”[54]
Antonio Scarance Fernandes:
“(…) Se o réu apenas pode ser considerado culpado após sentença condenatória transitada em julgado, a prisão, antes disso, não pode configurar simples antecipação de pena, somente se justificando quando tiver natureza cautelar. Em suma, qualquer prisão durante o processo, para não haver ofensa ao princípio da presunção de inocência, deve ter natureza cautelar e não pode significar antecipação de pena, pois esta, necessariamente, deve ocorrer de sentença condenatória transitada em julgado.”[55]
O entendimento esposado decorre da incidência do princípio da homogeneidade, tratado com bastante propriedade por Paulo Rangel[56]:
“A homogeneidade da medida é exatamente a proporcionalidade que deve existir entre o que está sendo dado e o que será concedido. Exemplo: admite-se prisão preventiva em um crime de furto simples? A resposta é negativa. Tal crime, primeiro, permite a suspensão condicional do processo. Segundo, se houver condenação, não haverá pena privativa de liberdade face à possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos. Nesse caso, não haveria homogeneidade entre a prisão preventiva a ser decretada e eventual condenação a ser proferida. O mal causado durante o curso do processo é bem maior do que aquele que, possivelmente, poderia ser infligido ao acusado quando do seu término. Entendemos, em uma visão sistemática do sistema penal como um todo, que, nos crimes de médio potencial ofensivo, ou seja, aqueles que admitem a suspensão condicional do processo (cf. art. 89 da Lei 9.099/95,) não mais se admite prisão cautelar.”
Em sentido convergente, é o escólio de Roberto Delmanto Júnior[57]: “Aliás, a garantia constitucional de que o acusado não pode ser considerado culpado antes de passada em julgado a condenação jamais poderia admitir interpretação que acabasse por impor-lhe encarceramento com intensidade mais grave daquele que lhe seria infligido caso ele fosse realmente considerado culpado”.
Vejamos a doutrina estrangeira, a começar por Julian Lopez Masle e Maria Inês Horvitz: “(…) el principio de inocência no excluye, de plano, la posibilidad de decretar medidas cautelares de carácter personal durante el procedimiento. En este sentido, instituiciones como la detención o la prisión preventiva resultan legitimadas, en principio, siempre que no tengan por consecuencia anticipar los efectos de la sentencia condenatória sino asegurar fines del procedimiento”[58]
Também Alberto M. Binder: “Já vimos que todas as medidas de coerção penal são, em princípio, excepcionais. Dentro dessa excepcionalidade, a utilização da prisão preventiva deve ser muito mais restringida e, para assegurar essa restrição devem ser considerados dois tipos de suposição. Em primeiro lugar, não se pode aplicar a prisão preventiva se não existe um mínimo de informação que fundamente uma suspeita sobre limite essencial e absoluto: se não existe sequer uma suspeita racional e com fundamento de que uma pessoa possa ser autora de um fato punível, de maneira nenhuma é admissível uma prisão preventiva. Porém, este requisito não é suficiente. Por mais que se tenha uma suspeita com fundamentos, tampouco seria admitida constitucionalmente a prisão preventiva se não houverem outros requisitos, os chamados ‘requisitos processuais’. Estes se fundamentam em que a prisão preventiva seja direta e claramente necessária para assegurar a realização do julgamento ou assegurar a imposição da pena.”[59]
No Brasil, Eugênio Pacelli de Oliveira afirma que “se o efeito de prevenção positiva diz respeito ao estímulo e renovação da confiança no Direito (Roxin), bem como na preservação da identidade normativa da comunidade juridicamente organizada (Jakobs) – abstraído o respectivo conteúdo do Direito, mas pressuposta a sua legitimação -, a idéia da evitação urgente e acautelatória da permanência de atividades criminosas pode ser um referencial para a compreensão de semelhante modalidade de prisão.Obviamente, para impedir a prática de delitos, em tese, já existe a proibição da Lei penal. Mas, isso, como é óbvio, apenas no plano abstrato. Não evitada, porém, concretamente, há um lapso temporal absolutamente indispensável para a aplicação da sanção correspondente, até por exigência do citado devido processo penal, por meio do qual se buscará a comprovação da existência material do crime e de sua autoria. Nesse passo, empiricamente demonstrada e, por isso, considerada a possibilidade de reincidência delituosa, presente em todo o mundo ocidental e pelas mais variadas razões – aliás, a questionar todo o universo punitivo (eficácia preventiva da pena, a privação da liberdade e tudo o mais) -, a previsão de uma prisão anterior à condenação poderá se instituir como válida, para fins de garantia da ordem pública, desde que delimitada rigorosamente a sua extensão.”[60]
Vejamos a jurisprudência:
“Imperioso observar a possível desproporcionalidade de se atingir a liberdade pessoal do acusado, como custódia cautelar ante a bastante provável aplicação de condenação final apenas restritiva de direitos. Ordem de habeas corpus concedida” (TRF 3ª R. – 5ª T. HC 2008.03.00.050617-2 – rel. Erik Gramstrup – j. 02.02.2009 – DJU 20.02.2009).
“Mesmo em caso de condenação, ao paciente, será aplicado regime menos severo do que aquele em que se encontra, sendo, portanto, a manutenção de sua segregação cautelar afronta ao princípio da homogeneidade. Diante do deferimento de medidas protetivas em favor da vítima e da inexistência de qualquer dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, não há como manter a prisão preventiva do paciente que, todavia, poderá ser novamente decretada, nos termos do art. 316 do mesmo diploma legal, se sobrevierem motivos ensejadores da espécie. Constrangimento ilegal configurado. Ordem concedida” (TJMT – 2ª C. – HC 115068/08 – rel. Paulo da Cunha – j. 26.11.2008 – DOE 10.11.2008).
“TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO – PRIMEIRA TURMA – 2006.03.00.073226-6 25097 HC-SP – RELATOR: DES. FED. LUIZ STEFANINI –Uma vez fixado o regime aberto é o caso de se aplicar o princípio da proporcionalidade quanto à prisão cautelar no caso dos autos. As pacientes foram condenadas a penas privativas de liberdade inferiores a 4 anos a serem cumpridas em regime inicial aberto, tendo, ainda, a nobre juíza a quo as substituído por penas restritivas de direitos, nos termos do artigo 44 do CP. 2- A sentença transitou em julgado para o Ministério Público conforme informação contida nos autos. Considerando-se a proibição da reformatio in pejus, constante do artigo 617 do CPP e o trânsito em julgado da citada sentença para o Ministério Público, a pena máxima prevista para o crime das pacientes não poderá ser maior do que o já estipulado, nem o regime inicial de cumprimento outro que não o aberto, não sendo nem mesmo possível a revogação da substituição da penas por outras restritivas de direitos. 3- É de se aplicar na hipótese o princípio da proporcionalidade, não havendo que se falar em decretação da prisão preventiva.”
Vejamos este trecho do voto:
“(…) A Constituição Federal vigente, ao consagrar o princípio da presunção de inocência no inciso LVII de seu artigo 5º, determinou grande restrição interpretativa à chamada prisão cautelar, na medida em que tornou exceção a segregação de um acusado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória. Este princípio deve também ser aplicado ao instituto da prisão preventiva, que só será admitida para fins processuais, jamais como forma de antecipação de pena, pelo que, para sua ocorrência, devem estar preenchidos os requisitos do artigo 312 do CPP. Na consagração do princípio da presunção de inocência, vemos a preocupação do legislador constituinte no resguardo de um direito dos mais importantes, fundamental a cada cidadão: a liberdade. Com efeito, deve o aplicador do direito ter em mente sempre o supremo valor dado pelo constituinte ao direito de liberdade do indivíduo ao interpretar as normas legais, só consentindo em restringi-la quando profundamente necessário. Ora. Em decorrência deste raciocínio, surge o princípio da proporcionalidade na aplicação da segregação cautelar. De acordo com este princípio, a prisão cautelar (como são a prisão preventiva, a prisão em flagrante, etc.), que é expediente lesivo à esfera jurídica do acusado ou investigado, na medida em que lhe restringe a liberdade, não deve ser aplicada quando impossível a privação da liberdade no caso de eventual condenação, ainda que presentes os requisitos autorizadores. É o que leciona, entre outros, Maurício Zanoide de Moraes (in Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, v. 3, ed. Revista dos Tribunais, São Pulo, 2004, pg. 208), a respeito da prisão em flagrante:”Em outras situações, caberá ao julgador fazer essa análise de necessidade e oportunidade em cada caso concreto: por exemplo, quando verificar que à infração imputada àquele agente haverá, mesmo em caso de condenação, a substituição da pena privativa de liberdade eventualmente aplicável por outra pena restritiva de direito e/ou multa.(…) Não poderá o juiz manter a prisão em flagrante (neste caso), sob pena de tornar o processo mais punitivo que a sanção penal abstratamente prevista para o crime. Em termos ilustrativos: tornará os efeitos colaterais do remédio (a prisão em flagrante) pior do que os efeitos da própria doença (pena a ser imposta em eventual condenação futura).” Este entendimento, não há dúvida, deve ser aplicado à prisão preventiva, não obstante a ausência de disposição expressa neste sentido quanto a esta modalidade de prisão cautelar, como a que existe quanto ao flagrante em delitos de menor potencial ofensivo (parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/95). É o caso de se aplicar o princípio da proporcionalidade quanto à prisão cautelar nestes autos. As pacientes foram condenadas a penas privativas de liberdade inferiores a 4 anos a serem cumpridas em regime inicial aberto, tendo, ainda, a nobre juíza a quo as substituído por penas restritivas de direitos, nos termos do artigo 44 do CP (sentença às fls. 16/40). Além disso, transitou a sentença em julgado para o Ministério Público em 31 de julho de 2006, conforme informação de fl. 69. Pois bem. Considerando-se a proibição da reformatio in pejus, constante do artigo 617 do CPP e o trânsito em julgado da citada sentença para o Ministério Público, a pena máxima prevista para o crime das pacientes não poderá ser maior do que o já estipulado, nem o regime inicial de cumprimento outro que não o aberto, não sendo nem mesmo possível a revogação da substituição da penas por outras restritivas de direitos. Assim, pelo princípio da proporcionalidade, impossível de faz a decretação de prisão preventiva no caso em questão. Ante o exposto, meu voto é pela CONCESSÃO DA ORDEM.”
A 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região concedeu habeas corpus aos presos na Operação Big Brother da Polícia Federal. A defesa argumentou ainda que a pena para esses crimes seria provavelmente inferior a quatro anos, ou seja, os réus, ainda que condenados, teriam o benefício de prestarem pena alternativa, em regime aberto, sendo desproporcional a manutenção da prisão preventiva. Após analisar o recurso, o Desembargador Néfi Cordeiro decidiu submeter o pedido à 7ª. turma, que entendeu não haver mais necessidade da medida cautelar, decidindo, por unanimidade, conceder a ordem. (HC 2005.04.01.0011606-9/PR).
Destarte, será preciso muito cuidado dos Juízes ao decretarem a prisão preventiva em crimes punidos com prisão (reclusão ou detenção) com pena máxima inferior ou igual a quatro anos, pois é preciso que se faça uma interpretação sistemática com o art. 282 do Código, sendo preferível optar-se por outra medida cautelar menos gravosa.
Por fim, tomou a lei o cuidado de lembrar aos Juízes que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada, advertência, aliás, absolutamente desnecessária, à luz da exigência já constante no art. 93, IX da Constituição.
Igualmente, a prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Código Penal (excludentes de ilicitude).
V – DA PRISÃO DOMICILIAR
O novo Capítulo IV passa a ter uma nova epígrafe – Da Prisão Domiciliar, espécie de medida cautelar consistente no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial. Não se trata de novidade em nosso ordenamento jurídico, tendo em vista o art. 117 da Lei de Execução Penal[61].
Esta medida cautelar também (e não somente) poderá servir como substitutiva da prisão preventiva quando o agente for maior de oitenta anos (por que não se estabeleceu idade igual ou superior a sessenta anos, coerentemente com o sistema? Veja-se o disposto no art. 1º., da Lei nº. 10.741/2003 – Estatuto do Idoso); quando estiver extremamente debilitado por motivo de doença grave; quando sua presença (física, moral ou psicológica) for imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos de idade (por que não se estabeleceu a idade até doze anos incompletos, também coerentemente com o sistema? Veja-se o disposto no art. 2º., da Lei nº. 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente) ou com deficiência, e, por fim, se for gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. Esta substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar somente será deferida se houver prova idônea dos requisitos acima referidos, sendo um direito subjetivo público do indiciado ou acusado se preenchidas as exigências legais, passível de ser garantido por meio de habeas corpus.
Importante ressaltar, interpretando-se de maneira conjugada os arts. 317 e 318 que a prisão domiciliar não é meramente uma medida cautelar substitutiva da prisão preventiva, podendo ser determinada de maneira autônoma, consoante os requisitos gerais previstos no art. 282.[62]
VI – DAS OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES
Também com nova epígrafe está o Capítulo V – Das Outras Medidas Cautelares, englobando os arts. 319 e 320 e acabando definitivamente com a previsão legal (e inconstitucional) da prisão administrativa. Neste Capítulo estão previstas outras medidas cautelares diversas da prisão preventiva e da prisão domiciliar.
A primeira delas consiste no comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo Juiz, para informar e justificar atividades. A segunda é a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações. A terceira é a proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante (esta medida será cabível, especialmente, quando se tratar de crime praticado contra a mulher em situação de violência doméstica e familiar, contra descendentes, ascendentes, irmãos etc.).
A quarta trata da proibição de se ausentar da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução (aqui, é preciso atentar para aqueles casos em que o indiciado ou réu trabalhe em local muito próximo de seu domicílio, como nas regiões metropolitanas das grandes cidades; neste caso, impor esta medida, convenhamos, não é nada razoável). Caso a proibição seja de se ausentar do País, a medida cautelar deverá ser comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de vinte e quatro horas.
A quinta é o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos (aqui não se trata exatamente de uma medida cautelar privativa da liberdade, como a prisão cautelar, mas sim restritiva da liberdade).
A sexta consiste na suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais. Evidentemente que esta medida acautelatória deve ser aplicada em casos de crimes praticados contra a administração pública, contra a ordem econômico-financeira, fiscais, previdenciários ou contra a economia popular.
Igualmente a internação provisória do acusado pode ser decretada nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração (risco concretamente demonstrado e não meramente presumido, mesmo porque a única presunção admitida pela Constituição é a de inocência). Portanto, é preciso que fique claro na decisão o periculum libertatis. Ademais, a internação provisória deve ser em Hospital de Custódia e Tratamento, jamais em estabelecimento prisional comum.
A oitava medida cautelar é a liberdade provisória com fiança (nas infrações afiançáveis, óbvio), com as seguintes finalidades: a) assegurar o comparecimento a atos do processo; b) evitar a obstrução do seu andamento; c) em caso de resistência injustificada à ordem judicial; a liberdade provisória com fiança poderá ser cumulada com outras medidas cautelares. Adiante, trataremos mais minudentemente da matéria.
E, por fim, temos a previsão da monitoração eletrônica, que não chega a ser novidade em nossa legislação, pois os arts. 122, 124, 146-B, 146-C e 146-D da Lei de Execução Penal já a disciplinam.
Entendemos que esta medida cautelar deve ser usada com bastante parcimônia[63] e exclusivamente para evitar o encarceramento provisório, mesmo porque, como afirma Denise Provasi Vaz, “ela não é capaz de evidenciar qualquer reiteração criminosa por parte do condenado nem sua eventual falta de adaptação social.” Ademais, “é intuitiva a ideia de que um equipamento atrelado ao corpo em tempo integral afeta o estado psicológico da pessoa e impede a superação da lembrança da má conduta, prejudicando sua readaptação. Constitui, ainda, forma de cumprimento de pena incidente sobre o próprio corpo do condenado.”[64]
A propósito, estudando o monitoramente eletrônico no Canadá, Marion Vacheret e Josiane Gendrou concluíram negativamente em relação à sua adoção naquele País. Segundo elas, “a visibilidade de mídia desta medida é desproporcionada em relação ao lugar que ela ocupa no plano penal. Do mesmo modo, o seu valor acrescentado é extremamente limitado senão inexistente em razão da sua ausência de impacto tanto nas taxas de encarceramento como sobre a reincidência”.[65]
François Fevrier, ao analisar a medida no sistema francês, adverte-nos que “a aplicação de um dispositivo de monitoramente eletrônico requer certamente uma reflexão ética e social prévia; pressupõe, além disso, uma definição muito clara dos objetivos de política penal e penitenciária para acompanhamentos, o seu nível de satisfação esperado bem como os seus efeitos perversos.”[66]
Estudando esta mesma medida nos Estados Unidos, Steven W. Becker, afirma: “Se o monitoramento eletrônico for escolhido como uma opção deve ser empregado com o consentimento do detento, pois ele pode ter uma carga substancial de invasão, estigma e potenciais riscos de saúde, dependendo do dispositivo de monitoramento usado. (…) embora a tecnologia possa fornecer à Polícia ferramentas novas e eficientes na luta contra o crime, tais inovações também são sujeitas a abuso no sistema de justiça penal, como demonstrado pelos exemplos dos Estados Unidos. Espera-se que essas experiências sirvam como aviso, assim como uma ajuda, para se moldar soluções sensatas e práticas para o desafio do monitoramento eletrônico no Brasil.”[67]
Em relação a estas medidas cautelares, entendemos que uma observação deve ser feita: como é possível a decretação da prisão preventiva em caso de descumprimento injustificado de outra medida cautelar, é perfeitamente cabível a utilização do habeas corpus para combater uma decisão que a aplicou. Como se sabe, o habeas corpus deve ser também conhecido e concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Logo, se a medida cautelar foi abusiva (não necessária), cabível a utilização do habeas corpus que visa a tutelar a liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Como já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica sobre a matéria, é uma ação preponderantemente mandamental dirigida “contra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir.”[68]
Para Celso Ribeiro Bastos “o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal.”[69] Aliás, desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar.[70]
Questão interessante é a da detração penal em caso de cumprimento de medida cautelar diversa da prisão provisória ou domiciliar. Neste aspecto, Pierpaolo Cruz Bottinio afirma que “a previsão de novas medidas cautelares, diferentes da prisão, apresenta situações inéditas sobre a detração. (…) Aqui seria adequada ao menos de uma compensação, um desconto na pena de prazo ao menos proporcional à gravidade da cautelar aplicada.”[71] Para estes casos, entendemos cabível, por analogia in bonam partem, a aplicação dos arts. 8º. e 66 do Código Penal, servindo o cumprimento da medida cautelar como causa obrigatória da atenuação da pena, quando não possível a sua compensação nos termos do art. 42 do Código Penal.
VII – DA LIBERDADE PROVISÓRIA, COM OU SEM FIANÇA
O Capítulo VI continua a tratar da liberdade provisória, com ou sem fiança. Neste Capítulo foram modificados os arts. 321 a 325, os arts. 334 a 337 e o art. 341, os arts. 343 a 346, além do art. 350.
Dispõe o primeiro dos artigos que ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código (acima referidas) e observados os critérios constantes do art. 282. Aqui, extingue-se a possibilidade da concessão da liberdade provisória sem fiança e sem qualquer obrigação para o indiciado ou acusado (por ser o crime inafiançável e não caber a prisão preventiva).
Pela nova disposição do art. 322, a autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos; nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em quarenta e oito horas. Caso a autoridade policial recuse ou retarde a concessão da fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o Juiz competente, que decidirá em quarenta e oito horas
A lei estabelece como crimes inafiançáveis, em consonância com a Constituição Federal, os crimes de racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, hediondos e os cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Ademais, independentemente do crime praticado, não será, igualmente, concedida fiança: a) aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 (ver adiante); b) em caso de prisão civil (alimentante faltoso); c) em caso de prisão militar; d) quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).
O valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder entre um a cem salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau máximo, não for superior a quatro anos e de dez a duzentos salários mínimos, quando o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a quatro anos. Nada obstante tais limites, se assim recomendar a situação econômica do preso, a fiança poderá ser dispensada na hipótese do art. 350 (ver adiante), ser reduzida até o máximo de dois terços ou ser aumentada em até mil vezes. A fiança poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória.
Determina-se como finalidade da fiança (o dinheiro ou objetos dados) o pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado, mesmo no caso da prescrição depois da sentença condenatória (art. 110, Código Penal).
Se a fiança for declarada sem efeito ou passar em julgado sentença que houver absolvido o acusado ou declarada extinta a ação penal, o valor que a constituir, atualizado, será restituído sem desconto, salvo no caso da prescrição depois da sentença condenatória (art. 110 do Código Penal).
Considerar-se-á quebrada a fiança quando o acusado, regularmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem motivo justo; quando deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo ou descumprir medida cautelar imposta cumulativamente com a fiança; se resistir injustificadamente a ordem judicial ou, por fim, se vier a praticar nova infração penal dolosa. Neste caso, caso seja injustificado o quebramento, o acusado perderá metade do valor prestado, cabendo ao juiz decidir sobre a imposição de outras medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva. No caso de quebramento de fiança, deduzidas as custas e mais encargos a que o acusado estiver obrigado, o valor restante será recolhido ao fundo penitenciário, na forma da lei.
Entender-se-á perdido, na totalidade, o valor da fiança, se, condenado, o acusado não se apresentar para o início do cumprimento da pena definitivamente imposta. Neste caso, o seu valor, deduzidas as custas e mais encargos a que o acusado estiver obrigado, será recolhido ao fundo penitenciário, na forma da lei.
Nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória (sem fiança), sujeitando-o, porém, às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 do Código (não alterados), além de outras medidas cautelares, se for o caso. Se o beneficiado descumprir, sem motivo justo, qualquer das obrigações ou medidas impostas, o Juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente (ver observação sobre a figura do assistente no processo penal) ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do art. 312, parágrafo único do Código de Processo Penal.
É preciso, no entanto, que interpretemos este dispositivo à luz do direito ao silêncio (constitucionalmente assegurado) e o de não auto-incriminação, ou seja, é possível que o não comparecimento do réu ou indiciado deva-se ao seu direito de não produzir prova contra si mesmo, opção que, obviamente, não poderá prejudicá-lo (não comparecer a uma acareação ou a um reconhecimento de pessoa, por exemplo). Neste sentido, conferir o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova York, em 19 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Governo brasileiro através do Decreto nº. 592/92, assim como o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
VIII – DA PRISÃO ESPECIAL PARA OS JURADOS
O legislador aproveitou o ensejo para modificar a redação do art. 439, que passou a estabelecer que o exercício efetivo da função de jurado constituirá serviço público relevante e estabelecerá presunção de idoneidade moral, não mais dando direito à prisão especial.
Outrossim, revogou os já inválidos arts. 393 e 595 do Código de Processo Penal, pois de há muito desautorizados pelo Supremo Tribunal Federal, à luz do princípio da presunção de inocência.
IX – DO DIREITO INTERTEMPORAL
Finalizando, devemos observar que as novas disposições legais inserem-se naquele rol das leis processuais penais materiais, razão pela qual, quanto à sua aplicação no tempo, não devemos aplicar em todos os processos pendentes a regra estabelecida no art. 2º., do Código de Processo Penal (tempus regit actum), e sim observar o disposto no art. 2º., da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal e o art. 2º., do Código Penal.
Neste sentido, veja-se que há duas regras que regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal: o primeiro afirma que a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal). Se é certo que a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isto ocorre por uma questão de segurança jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que se a lei penal for de qualquer modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos pretéritos, retroagindo.
Esta regra insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e, como garantia fundamental, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[72], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada de caráter jurídico-positivo”.[73]
A segunda regra é a da aplicação imediata da lei processual penal, preconizado pelo art. 2°. do Código de Processo Penal e que proclama a regra da aplicação imediata (tempus regit actum).
Desta forma, à vista destas duas regras jurídicas, haveremos de analisar as novas disposições. Para que se manifeste um entendimento correto, urge que procuremos definir a natureza jurídica das novas normas: seriam elas de natureza puramente processual ou, tão-somente, penais; ou híbridas (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há falar-se em irretroatividade ou ultratividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultratividade dos artigos revogados e a irretroatividade da nova lei impõe-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar a regra da aplicação imediata da lei processual penal.
Atentemos que quaisquer normas que tratem de relativizar o princípio da presunção de inocência (admitindo a prisão provisória) e que tratem de medidas cautelares em matéria penal dizem respeito ao Direito Constitucional. Nestas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais.
O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[74]
Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.”[75]
Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[76]
Feitas tais considerações, lembra-se que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.[77]
A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano: “Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[78]
Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[79]
Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[80]
Não é apenas o fato de uma norma está contida em um Código de Processo Penal que a sua natureza será estritamente processual (e dever ser aplicada a regra do tempus regit actum). Como afirmava Vicenzo Manzini, “estar uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho material.”[81]
Diante do exposto, entendemos que os novos dispositivos, quando mais gravosos, apenas terão incidência em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal posteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto no art. 2º. da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal e no art. 2º. do Código Penal[82], considerando “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio.”[83] Se mais benéficos devem ser imediatamente aplicados, inclusive em relação aos processos relativos a crimes praticados anteriormente à vigência da lei nova. Neste caso, como já afirmamos no início deste trabalho, não deve ser respeitado, sequer, o período da vacatio legis.
Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite lógico e natural de tudo quanto foi dito, pois se já houve o trânsito em julgado, não pode se cogitar de retroatividade para o seu desfazimento, pois neste caso já há um processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2º., parágrafo único do Código Penal[84].
Enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, tratando-se “de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal.” (STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01).
Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
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