A propriedade privada e as desapropriações à luz da Constituição Federal

O tema que me foi proposto, A PROPRIEDADE PRIVADA E AS DESAPROPRIAÇÕES À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL,[1] é,  no meu modesto entender, o mais relevante no âmbito das relações sociais, e, por conseqüência, do direito, pois a propriedade é preceito fundamental na vida humana. Não seria concebível que os frutos do trabalho não possibilitassem a aquisição do básico para uma existência digna, essa inclusive é a determinação constitucional para a composição retributiva do salário mínimo. Mesmo que se possa afirmar que os direitos sociais da pessoa humana (art. 6° e 7°, CR), bem como os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, (artigo 3°, inc.I e Ill, CR.), sejam normas programáticas e até de dificil concretização, não se pode por isso ignorá-Ias ou negá-Ias, mormente, quando, no caso concreto, a sua adoção se fizer plausível, uma vez que as políticas governamentais pouco se preocupam com tal consecução.

Nessa linha, a concepção de propriedade vem sofrendo evidentes transformações, e, no nosso entendimento, quiçá, evolução, muito embora a concepção de função social seja relativamente contemporânea, desde Jesus Cristo, que entre outros atos, repartiu o pão, passando por São Tomás de Aquino, na Idade Média, que na Summa Contra Gentiles, via na propriedade algo mais do que apenas a vontade do proprietário, até as reflexões das encíclicas papais de LeãoXIII Rerum Novarum, onde fixou que aqueles que têm recebido de Deus maior abundância saibam dividir com os demais como ministros da Divina Providência, já, João XXIII, Mater et Magistra, reconhece expressamente que o direito à propriedade privada é intrinsecamente inerente à função social e o mesmo Papa, na encíclica PoPulorum Progressio, afirma que um irmão que vê outro passado necessidade e não o atende, não reside aquele no amor de Deus, por último, João Paulo II, Laborem Exercens, preceitua a propriedade não mais como uma hipoteca social, tendo um alcance bem mais amplo do que simples limitações, admitindo expressamente a socialização da propriedade, como fruto do trabalho humano.

Marx e Engels (1848) e Comte (1850), pode-se dizer, influenciaram essa ruptura com o conceito tradicional de propriedade, em termos sociológicos, em razão da Teoria Negativista que é contra a propriedade natural, mas foram: DUGUIT, ao afirmar que a propriedade não é um direito subjetivo do proprietário, mas sim função social do detentor de riqueza, e JOSSERAND, ao defender limites ao exercício da propriedade, fixando que o direito de abusar seria desvio à função social da coisa, que no plano jurídico influenciaram a nova concepção de domínio. E aqui cabe um parêntese para brevemente diferenciar propriedade, que é a mera titulação da coisa em nome de alguém, enquanto que o domínio é o exercício substancial segundo a função social, de acordo com a doutrina de Ricardo Aronne.

Em termos legislativo-constitucional a primeira carta a inserir o princípio da função social da propriedade, mesmo que de forma não expressa, em seu texto foi a Mexicana em 1917,(art. 27, § 3º), já a de Weimar em 1919, (art. 14, alínea 2), repetido pela atual Constituição Alemã (1949), fixa primeiramente que a propriedade obriga e que o seu uso deve concorrer também para o bem da coletividade.

Por outro lado, a propriedade clássica tinha como características fundamentais o absolutismo, a exclusividade e a perpetuidade, elementos estes que tiveram seu cume no código napoleônico (Estado Liberal), que serviu de modelo ao nosso Código Civil de 1916, com uma visão eminentemente patrimonialista, o que só mudou, efetivamente, entre nós, após a constituição de 1988.

No entanto, no Brasil, essas características, principalmente o absolutismo que assegurava ao proprietário a liberdade de dispor da coisa da forma que melhor lhe aprouvesse, foi sofrendo ao longo do século passado uma relativização, através de microssistemas, como por exemplo o Estatuto da Terra e o Estatuto da Desapropriação. Esse processo de publicização do privado e de privatização do público, em face da repersonalização do sujeito de direito no nosso ordenamento jurídico, fez com que culminasse com uma nova constitucionalização do direito de propriedade na atual Carta Magna, (Estado Social), impondo ao próprio Estado o dever de exercício funcional da propriedade, sob pena de ofensa à legitimidade de seu domínio. Veja-se o caso da Medida Provisória 2220/2001, que reconhece direito real sobre o domínio útil de área pública urbana, para fins de moradia, desde que preenchidos os mesmos requisitos do usucapião individual ou coletivo previsto nos artigos 9º e 10º do Estatuto da Cidade. Assim, pode se verificar que o direito de propriedade, ainda que reconhecido como direito, exige seu exercício com objetivo de função social, o que foi expressamente consagrado nos termos do artigo 5°, XXII, XXIII, que assegura o direito de propriedade desde que atendida a sua função social, e tal exegese é reforçada quando se realiza uma interpretação sistemática, nos moldes preconizados pelo nosso eminente juspublicista Juares Freitas, aos incisos II e III do artigo 170 da mesma CF, que fixa: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios, propriedade privada e função social da propriedade”, e ainda na mesma CARTA ao instituir desapropriações por interesse social urbana e rural, nos termos do artigo 182 e 184 e seguintes, a fim de dar uma melhor funcionalidade à propriedade privada.

A primeira Constituição Brasileira, a Imperial, de 1824, em seu artigo 179, inciso Xll, garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude,      ressalvando, pórem, que se houvesse necessidade do bem público empregar a propriedade privada, isso só se daria após a prévia indenização.

A atual Constituição Federal, nomina cinco tipos de desapropriações:

1. desapropriação por necessidade pública ou utilidade pública (art.5°, XXIV)[2];

2. desapropriação por interesse social (art.5°, XXIV);

3. desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária(art.184);

4. desapropriação por interesse social urbana( art.182, §. 4, Ill);

5. desapropriação/ expropriação das glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, disciplinadas pela Lei nº 8.257, de 26.11.91.

Retirando desse rol a última, por não se tratar propriamente de expropriação, sob um ponto de vista do direito administrativo, mas sim de confisco punitivo, uma vez que não há qualquer indenização pelo perdimento do bem, as demais desapropriações serão analisadas a seguir:

1. A desapropriação por necessidade/utilidade pública, regulada atualmente pelo D-Lei 3.365/41, foi instituída pela Lei 422, de 09/09/1826, tendo como objetos as hipóteses previstas de necessidade: a defesa do Estado, a segurança pública, o socorro público em tempo de fome ou outra extraordinária calamidade e a salubridade pública; e o decreto 353, de 12/07/1845, inclui entre os casos de utilidade pública a construção de edifícios e estabelecimentos públicos de qualquer natureza, a fundação de povoações, hospitais e casas de caridade ou de instrução, a abertura, alargamento ou prolongamento de estradas, ruas, praças e canais, a construção de pontes, fortes, aquedutos, portos, diques, cais, pastagens e de quaisquer estabelecimentos destinados a comodidade ou servidão pública e às construções ou obras destinadas a decoração ou salubridade pública.

2. A desapropriação por interesse social nasce na égide da Constituição de 1946, sendo regulada pela Lei Federal 4132, de 10/04/62, onde, em seu artigo 1º, fixa: “será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem-estar social…” A introdução de tal espécie de desapropriação ocorreu na Constituição de 1946, como já dito, através de Emenda de autoria do Senador Ferreira de Souza, que deu redação ao §16 do artigo 141 que em consonância com o artigo 147, assim fixavam: ” O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no artigo 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. A essa desapropriação subsidiariamente adotam-se todos os ditames legais da desapropriação regulada no D-Iei 3365/41, por força do artigo 5º da Lei 4132/62, que diz: “No que esta lei for omissa aplicam-se as normas legais que regulam a desapropriação por utilidade pública, inclusive no tocante ao processo e à justa indenização devida ao proprietário”, por sua vez, o artigo 2º do D-Iei 3365/41, dispõe: “Mediante declaração de utilidade pública todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Distrito Federal e Territórios”.

3. Já a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária foi criada, também na Constituição de 1946, através da Emenda Constitucional n° 10, de 09/11/64, que introduziu o § 1º no seu artigo 1472, que contemplava como competência exclusiva da União, incidindo sobre a propriedade territorial rural, com pagamento de prévia e justa indenização, em títulos especiais da dívida pública. A Constituição de 1969 suprimiu o requisito de prévia indenização, e a Constituição atual no seu artigo 184 estabelece que” compete à UNIÃO desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão e cuja utilização será definida em lei”, Leis estas: 8.629/93 e LC 76 de 06/07/1993, que foi posteriormente alterada pela LC 88, de 23 de dezembro de 1996. Cabe ressaltar que neste tipo de desapropriação, como já referido, a competência é exclusiva da União.

Aqui se faz necessário abrir outro parêntese para realizar uma análise sobre a desapropriação por interesse social da lei 4132/62 e a de interesse social do artigo 184 da CF/88. Até porque o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul recentemente suspendeu, liminarmente, decretos expropriatórios de terras produtivas para fins de reforma agrária, porque o Estado estaria usurpando competência da União. E, ademais, existem entendimentos doutrinários de que tal Lei teria sido revogada pela atual Magna Carta, o que nesse aspecto já é um equívoco, pois não se trata de caso de revogação, mas sim de recepção ou não, conforme entendimento do STF e da melhor doutrina, além do que a lei 4132/62 foi integralmente recepcionada pela Constituição da República, não se confundindo com a desapropriação sanção do art.184, conforme veremos:

A desapropriação por interesse social do artigo 184 da CF:

a) é de natureza manifestamente sancionadora, pois somente incide sobre imóveis rurais que não estejam cumprindo sua função social, a teor do art.186 que determina como deveres: ter aproveitamento racional e adequado; utilizar adequadamente os recursos naturais disponíveis e preservar o meio ambiente, observar as disposições que regulam as relações de trabalho e efetuar exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, e é indenizável mediante títulos da dívida agrária;

b) é forma de desapropriação peculiar/especial no âmbito da reforma agrária tendo como objeto a propriedade rural que descumpre a finalidade da sua função social.

Já a desapropriação por interesse social da Lei 4132/62:

a) não tem caráter sacionador, porque não tem como objeto imóveis que descumpram a função social, nos termos do artigo 186 da CF, e em face disto, a indenização devida não ocorre através de títulos da dívida pública resgatáveis em até longos 20 anos, mas sim em prévia e justa indenização em dinheiro, nos termos do art.5°, XXIV da Constituição da República.

b) além do mais, tem como objetivo “o estabelecimento e manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícolas”, totalmente alheio ao contexto da Reforma Agrária, conforme disposto expressamente no inciso III, do artigo 2° da respectiva Lei.

Ainda não seria aplicável à última espécie o §6 do art.2° da Lei 8.629/93 que aduz:

“O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do imóvel”, por ser esta última uma desapropriação comum nos moldes da conveniência e oportunidade do Poder Público sobre o interesse privado, como ocorre em todas as desapropriações ordinárias.

Assim, no nosso modesto entender, não há qualquer entrave hermenêutico que fundamente a incompatibilidade das espécies de desapropriações por interesse público, até por que, se assim o quisesse, o legislador, ao editar as leis intraconstitucionais que regulamentam o disposto no artigo 184 da CF, deveria, expressamente, tê-Io feito.

Tal entendimento é embasado, entre outros, na Doutrina de Carlos Mario da Silva Velloso, “Desapropriação Para Fins de Reforma Agrária – Apontamentos”, in Revista de Informação Legislativa, v. 49, pags.265-282, bem como de Celso Bandeira de Mello, Apontamentos sobre a Desapropriação no Direito Brasileiro, RDP 23/20-21, e pela Jurisprudência de nossos Tribunais Superiores. RTJ92/746 e STJ nos RESP n.20.896/SP e 39.636/SP.

Trago à colação a ementa desta última que assim aduz:

ADMINISTRATIVO – DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL – LEGITIMIDADE DO ESTADO.

1. A desapropriação pode ser por utilidade pública, regida pelo DL n.3365/41, ou porinteresse social (Lei n. 4132/62).

2. A desapropriação por interesse social abriga não somente aquela que tem como fmalidade a reforma agrária, de competência privativa da União, como também aquela que objetiva melhor utilização da propriedade para dar à mesma uso de interesse coletivo.

3. Decreto estadual que se pautou no artigo 20 da Lei n. 4132/62, tendo      o Estado absoluta    competência para a expropriação.

4. Recurso especial conhecido e provido (STJ -2 . Turma, Resp. n. 39.636-SP, processo n.1993/0028348-0), ReI. Min. Eliana Calmon, decisão de 22/02/2000, unânime, DJ de 20/03/2000)” .

4. A última desapropriação que analisaremos também é por interesse público de cunho sancionador, prevista no inc. III do parágrafo 4º, do artigo 182 da Constituição Federal, regulamentada através do artigo 8º da Lei 10.257 de  10/07/2001 (ESTATUTO DA CIDADE), de competência exclusiva do MUNICÍPIO, que é forma progressiva de sanção ao proprietário do prédio não edificado, subutilizado ou não utilizado, que não promoveu seu adequado aproveitamento, após notificação para parcelamento, edificação ou a utilização compulsória.

O disposto no artigo 8° do Estatuto da Cidade determina que decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o” proprietário tenha cumprido com a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública de prévia aprovação do Senado Federal, e resgatáveis no prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização, mais os juros legais de 6% ao ano.

Como se verifica, a desapropriação prevista no Estatuto da Cidade, assim como a prevista na Lei 4132/62, muito embora com natureza jurídica diversa, ambas têm como objetivo fundamental o aproveitamento funcional e racional da propriedade imóvel, no primeiro caso sempre em área urbana, já no segundo não havendo tal restrição. Assim, o instituto da Desapropriação, que se origina como ato de império em razão do Domínio Eminente do Estado, começa a ceder lugar a novas espécies de Desapropriações, essas voltadas expressamente à realização da função social da propriedade e na busca da concretude do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento do Estado Social Brasileiro (art. 1°, inciso III da CR), bem como a inclusão da Moradia como fundamento basilar do nosso ordenamento jurídico (artigo 6° da CF, através da  emenda nº 26, de 14-2-2000), o que RIPERT qualificava como Humanização da propriedade, em razão do movimento de democratização ou popularização da mesma.

Notório, então, que o direito de propriedade vem sofrendo uma série de restrições tanto no âmbito privado quanto no público, passando assim a ser muito mais obrigações do que direitos, conforme preceitua a Constituição Alemã. No entanto é de se observar que a função social não é um mero limite ao exercício do domínio, mas sim um preceito fundamental que integra a sua estrutura e que concretamente define como ela, propriedade, deve realizar a sua função social, segundo as diretrizes do ordenamento jurídico e observe-se no atual contexto TODA A PROPRIEDADE DEVE CUMPRIR A SUA FUNÇÃO SOCIAL, MESMO A PÚBLICA, E INCLUSIVE SOBRE COISAS MÓVEIS, pois este é o comando emanado da Magna Carta, a fim de implementar-se um verdadeiro Estado Social e Democrático de Direito.

MUITO OBRIGADO A TODOS PELA ATENÇÃO!

 

Notas:
[1] ‘Palestra de encerramento no V Encontro de Direito Constitucional da Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – 2002.’
[2]segundo, SEABRA FAGUNDES, in Da Desapropriação no Direito Brasileiro, Freitas Bastos, RJ, 1942, pag.36, o conceito de utilidade compreende a de necessidade.
2 “§ 1°. -Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de correção monetária, segundo índice fixado pelo Congresso Nacional, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação a qualquer tempo, como meio de pagamento de ate cinqüenta por cento do Imposto Territorial Rural e como pagamento de terras pública.”

 


 

Informações Sobre o Autor

 

João Paulo Veiga Sanhudo

 

Advogado da União do primeiro concurso, Coordenador do Centro de Estudos Victor Nunes Leal da Advocacia Geral da União no Estado do Rio Grande do Sul, Professor Universitário PUC/RS, Especialista em Metodologia Científica pela ULBRA/RS, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Direito de Estado ambos pela PUC/RS

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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