1. Princípio da prevalência dos interesses do menor[1]
Antes de adentrarmos ao tema central do presente artigo, qual seja, a Proteção Integral da Criança e do Adolescente, necessário se faz uma rápida caminhada ao encontro de um dos maiores princípios balizadores dos Direitos Fundamentais dos Menores, qual seja, o princípio de prevalência dos interesses do menor. Aliás, não poderia ser diferente, uma vez que os menores, por serem considerados pessoas ainda em desenvolvimento são carentes de cuidados especiais e, com isso, devem ter prioridade quando em confronto com outros segmentos da sociedade, desde que se tratando de direitos iguais.
Por certo que não teria sentido, ao falarmos da doutrina da proteção integral do menor, não o prover de condições jurídicas para que, em combate de igual para igual, possam ver prevalecidos seus direitos. Discorrendo sobre o tema, quando da enumeração de vários princípios contidos na Lei Estatutária, PAULO LÚCIO NOGUEIRA[2], assim preleciona, verbis:
“Princípios Fundamentais do Estatuto
O Estatuto é regido por uma série de princípios genéricos, que representam postulados fundamentais da nova política estatutária do direito da criança e do adolescente.
Em regra, o direito é dotado de princípios gerais genéricos, que orientam a aplicação prática dos seus conceitos.
Assim, o Estatuto contém princípios gerais, em que se assentam conceitos que servirão de orientação ao intérprete no seu conjunto, sendo os principais os seguintes: (…)
6) Princípio de prevalência dos interesses do menor; pois na interpretação do Estatuto levar-se-ão em conta os fins sociais a que ele se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 6º).”
Interessante notarmos que esse princípio possui plena relação com o artigo 5º da Lei de Introdução do Código Civil, que estabelece que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Para WILSON DONIZETI LIBERATI[3] “Não resta a menor dúvida de que por essa interpretação busca-se descobrir qual o sentido atribuído ao texto, pela vontade do legislador. No ensinamento de Sílvio Rodrigues ‘a lei disciplina relações que se estendem no tempo e que florescerão em condições necessariamente desconhecidas do legislador. Daí a idéia de se procurar interpretar a lei de acordo com o fim a que ela se destina, isto é, procurar dar-lhe uma interpretação teleológica. O intérprete, na procura do sentido da norma, deve inquirir qual o efeito que ela busca, qual o problema que ela almeja resolver. Com tal preocupação em vista é que se deve proceder à exegese de um texto’ (Rodrigues, S., 1979, p. 26)”.
O que devemos observar, na verdade, quando da interpretação do texto legal, nada mais é do que a proteção dos interesses do menor, os quais deverão sobrepor-se a qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado, levando em conta a destinação social da lei e o respeito à condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Interessante notarmos que a intenção do legislador, com referido dispositivo, foi proteger, integralmente, os direitos dos menores, utilizando-se o aplicador do direito, se necessário, de todas as formas que lhe são peculiares para a análise da matéria e dos dispositivos legais que deverão ser aplicados. Por certo que essa proteção integral depreende-se do fato de estarmos lidando com uma pessoa ainda imatura, em fase de desenvolvimento e, por esta razão, todos os cuidados devem ser tomados visando a melhor aplicação do direito.
JOSÉ DE FARIAS TAVARES[4], em comentários ao artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim nos ensina, verbis:
“Este é o dispositivo-eixo pelo qual se há de mover todo o Estatuto. A regra básica dessa hermenêutica é a consideração que o intérprete terá sempre em mente de que o direito estatutário é especialmente protetor.
A redação defeituosa de alguns dispositivos, os erros de técnicas legislativas em outros, impropriedades de expressões, por vezes encontradas no texto desta lei provocam dúvidas que o intérprete deve dirimir recorrendo a este art. 6º, como bússola que indica o Norte.
A lição lapidar de Carlos Maximiliano, sobre a necessidade de boa hermenêutica: “ninguém ousará dizer que a música escrita ou o drama impresso dispensem o talento e o preparo do intérprete.”
Advertindo sobre os despropósitos de interpretação: “Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos como também o excesso contrário.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Ed. Freitas Bastos, Rio, 1965, os. 114 e 115).
Vale nesta área, como para todo o campo do direito legislador em nosso País o princípio cristalizado na norma-guia: “Na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ele se dirige e às exigências do bem comum” (Lei de Introdução do Código Civil, art. 5º).
Ao que se chega com o cuidado que o bom senso recomenda, para não se resvalar por extremos contraproducentes.
Por fim, uma definição do que é, para os fins do Estatuto, pessoa em desenvolvimento: pessoa humana em fase de imaturidade biopsíquico-social por ser menor de 18 (dezoito) anos de idade, segundo a presunção legal. “
Para SILVIO RODRIGUES[5], “a lei disciplina relações que se estendem no tempo e que florescerão em condições necessariamente desconhecidas do legislador. Daí a idéia de se procurar interpretar a lei de acordo com o fim a que ela se destina, isto é, procurar dar-lhe uma interpretação teleológica. O intérprete, na procura do sentido da norma, deve inquirir qual o efeito que ela busca, qual o problema que ela almeja resolver. Com tal preocupação em vista é que se deve proceder à exegese de um texto.”
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quando do julgamento da Apelação Cível nº 15350-0, originária de Campinas-SP, de 05 de novembro de 1992, tendo como relator o Des. Lair Loureiro, apresenta a seguinte decisão, envolvendo a aplicação do artigo 6º do ECA:
“Decisão: Lei: ECA, art. 33 – Menor –Guarda – Postulação com vistas a fins previdenciários – art. 33 do ECA – ADM – Menor que necessita de cuidados urgentes para sua sobrevivência – aplicação do art. 6º do ECA – recurso provido. Recomenda o art. 6º que, na interpretação desta lei devem ser levados em conta os fins sociais a que ela se dirige e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento.”
ANTÔNIO CARLOS GOMES DA COSTA[6], ao comentar o disposto no artigo 6º da Lei Estatutária, apresenta um brilhante estudo, o qual, data vênia, merece ser transcrito em sua íntegra, tamanha importância e objetividade de conteúdo. Vejamos:
“Este artigo é chave, do ponto de vista teleológico, para a leitura e a interpretação do ECA. Ao arrolar os aspectos a serem levados em conta na sua correta compreensão, o primeiro item refere-se aos “fins sociais” por ele perseguidos, inscrevendo o Estatuto num movimento mais amplo de melhoria, ou seja, de reforma da vida social no que diz respeito à promoção, defesa e atendimento dos direitos da infância e da juventude.
Sem dúvida alguma, o traço comum entre os juristas, trabalhadores sociais, ativistas da luta dos direitos, educadores, médicos, policiais e outros profissionais que participam da elaboração desse novo instrumento legal é a sua condição de reformadores sociais, emprenhados na luta pelos direitos da criança no campo do Direito.
O segundo aspecto a ser levado em conta na interpretação do Estatuto é aquele referente às “exigências do bem comum”. Neste ponto identificamos a explicação clara de que o propósito que presidiu a luta pelo novo ordenamento jurídico foi o da superação de toda forma de corporativismo, de elitismo, de basismo, de dogmatismo religioso ou ideológico e de partidarismos de toda e qualquer espécie. Trata-se da afirmação, no plano positivo, dos direitos da criança e do adolescente (das novas gerações, portanto) como um valor ético revestido de universalidade, capaz, por isso mesmo, de sobrepor-se às diferenças inerentes à conflitividade natural e saudável da vida democrática.
O terceiro aspecto a ser levado em conta na interpretação do Estatuto são os “direitos e deveres individuais e coletivos”. É importante, ao comentar este ponto, lembrar que o artigo 227 da Constituição Federal, que trata dos direitos da criança e do adolescente, começa falando em dever. Os direitos da criança e do adolescente são deveres da família, da sociedade e do Estado. Esta articulação direito-dever perpassa todo o corpo do Estatuto e se adensa de forma instrumental no Capítulo VII, que trata, precisamente, de proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos.
Finalmente, a afirmação da criança e do adolescente como “pessoas em condição peculiar de desenvolvimento” faz do art. 6º o suporte do novo Estatuto ontológico da infância e da juventude na legislação brasileira. O reconhecimento da peculiaridade dessa condição vem somar-se à condição jurídica de sujeito de direitos e à condição política de absoluta prioridade, para constituir-se em parte do tripé que configura a concepção de criança e adolescente do Estatuto, pedra angular do novo direito da infância e da juventude no Brasil.
A condição peculiar de pessoa em desenvolvimento implica, primeiramente, o reconhecimento de que a criança e o adolescente não conhecem inteiramente os seus direitos, não têm condições de defendê-los e fazê-los valer de modo pleno, não sendo ainda capazes, principalmente as crianças, de suprir, por si mesmas, as suas necessidades básicas.
A afirmação da criança e do adolescente como “pessoas em condição peculiar de desenvolvimento” não pode ser definida apenas a partir do que a criança não sabe, não tem condições e não é capaz. Cada fase do desenvolvimento deve ser reconhecida como revestida de singularidade e de completude relativa, ou seja, a criança e o adolescente não são seres inacabados, a caminho de uma plenitude a ser consumada na idade adulta, enquanto portadora de responsabilidades pessoais, cívicas e produtivas plenas. Cada etapa é, à sua maneira, um período de plenitude que deve ser compreendida e acatada pelo mundo adulto, ou seja, pela família, pela sociedade e pelo Estado.
A conseqüência prática de tudo isto reside no reconhecimento de que as crianças e adolescentes são detentores de todos os direitos que têm os adultos e que sejam aplicáveis à sua idade e mais direitos especiais, que decorrem precisamente do seu estatuto ontológico próprio de “pessoas em condição peculiar de desenvolvimento”.”
Facilmente entendemos, depois dessa brilhante exposição, a razão pela qual os interesses dos menores devem prevalecer, necessitando, ainda, de uma proteção integral, a qual será alvo de estudos no próximo tópico.
2. Da proteção integral da criança e do adolescente
Quando o assunto em debate é a proteção integral, muitos têm a impressão, equivocada, que o tema é extremamente inovador, apresentado tão-somente pela Lei Estatutária. Muitos, ainda, vêem essa proteção como algo totalmente distante e inatingível, como se fosse uma verdadeira utopia.
Assim, temos que olhar o Estatuto da Criança e do Adolescente com outros olhos, para que a proteção integral dos menores não cause indignação ou espanto, uma vez que todos esses direitos são extremamente necessários para o desenvolvimento físico, psíquico e mental da criança e do adolescente.
Pois bem, a questão em estudo é sabermos se essa Proteção Integral é uma novidade utópica ou uma realidade esquecida. Desta forma, para solucionarmos essa dúvida, necessário se faz uma pequena retrospectiva ao passado, onde constataremos que a mesma já fez parte da vida cotidiana de muitas famílias brasileiras, mesmo sem a exigência legal, como hoje consta do Estatuto. Essa realidade era vivida, por exemplo, nos idos de 1960, por diversas comunidades, as quais eram detentoras dessa proteção, mesmo que por outro enfoque. Vejamos.
Muitos empresários, no passado, tinham uma visão extremamente diferenciada dos demais, fazendo com que se destacassem. O que se destacava nesse grupo era o enfoque voltado não somente para o lucro pessoal, mas, ainda, para o empregado e sua família, atingindo, desta forma, a comunidade e a sociedade como um todo. Existia, então, para alguns, uma preocupação muito grande com o bem-estar dos seus empregados, para que estes, como “moeda de troca”, por assim dizer, trabalhassem com afinco, tornando-se defensores ferozes do empregador.
Esse, com certeza, é o sonho e a luta de muitas empresas na atualidade, ou seja, que seus funcionários se transformem em verdadeiros parceiros, lutando com unhas e dentes na defesa do empregador, visando, sempre, uma maior lucratividade e um grande crescimento. Sabemos, na verdade, que na sua maioria esmagadora das empresas atuais isso não ocorre. Todavia, no passado, como salientamos, essa era uma realidade vivida por muitos brasileiros.
Mas afinal de contas, o que diferenciava esses empresários dos demais? Podemos dizer que a visão de alguns era a da “Proteção Integral”, apresentada pelo Estatuto, só que no enfoque familiar. Isso mesmo, já nos idos de 1960 essa visão já fazia parte da vida de muitos e, por incrível que pareça, não com um enfoque apenas estatal, mas, sim, do próprio empreendedor que, posteriormente, servia das opções do poder público para a sua continuidade.
Por certo que aqueles que não viveram essa experiência no passado talvez não entendam essa realidade. Indagamos, desta forma, como se dava essa proteção? E a resposta é extraordinária, pois era realmente impressionante a visão do empreendedor, posto que não estava única e exclusivamente preocupado com o lucro pessoal, mas, sim, com a manutenção desse lucro, mesmo que em menor quantidade, mas, de forma prolongada. Assim, a visão do empreendedor era, se necessário, ganhar menos, mas, por mais tempo. Explicamos.
Como já salientamos, havia, por parte de alguns empresários, uma visão totalmente diferenciada dos empreendimentos, a qual era extremamente similar com a visão apresentada pelo ECA. Com essa visão, o empreendedor, ao elaborar seu projeto para construir, por exemplo, uma fábrica, não se preocupava apenas em construí-la e, posteriormente, buscar, no mercado de trabalho, a mão de obra necessária. Sabia esse empreendedor que somente isso não seria suficiente para que a empresa fosse um sucesso, havendo, desta forma, uma preocupação muito maior, muito mais ampla. Desta forma, o que se tinha em mente era uma visão macro da situação, visto que tinha ele plena ciência de que, juntamente com a mão de obra necessária para o seu empreendimento, viriam os núcleos familiares.
Com esse pensamento o que se projetava – e efetivamente se realizava – era a construção, juntamente com a fábrica, de um bairro residencial, com casas populares, para que pudesse abrigar todas essas famílias, dos funcionários que efetivamente seriam contratados. Esses empregados, assim, uma vez contratados, com registro em carteira, tinham a possibilidade de adquirir um imóvel residencial, devidamente financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação. Com o trabalho e com a moradia, próxima ao emprego, tudo ficava mais fácil.
Esse, todavia, era somente o primeiro passo, de muitos que eram dados, pelo empreendedor que possuía essa visão da “proteção integral”. Ora, tinha-se plena convicção de que apenas um emprego e uma moradia não seriam suficientes para a tranqüilidade do empregado e, com isso, a conquista de ótimos resultados na produção, não somente num curto espaço de tempo, mas, sim, a médio e longo prazos. Para que esses resultados fossem alcançados o empreendedor procurava proteger não somente essa necessidade do empregado, mas, de forma mais ampla, sabia que essas famílias seriam constituídas de filhos, que, da mesma forma, necessitariam de cuidados especiais.
Com essa visão e procurando abarcar outras necessidades dos empregados para que os mesmos se tornassem verdadeiros parceiros, o empreendedor oferecia, ainda, um plano de saúde familiar completo, buscando, desta forma, uma maior tranqüilidade para o desenvolvimento do trabalho. Mas, tinha o empreendedor plena ciência, que somente o plano de saúde não seria suficiente, pois tornava-se necessário um local para a utilização desse convênio. Assim, visando a satisfação do quesito saúde, de forma plena, esse empreendedor, além da construção da fábrica e do conjunto habitacional, edificava, ainda, um hospital, no qual todos os empregados e seus familiares poderiam, pelo convênio integral, satisfazer suas necessidades de saúde.
Desta forma, a mão de obra contratada possuía trabalho, habitação e saúde. Todavia, apenas esses itens não eram suficientes. Pensando assim, o empreendedor tinha em mente que essas famílias, compostas também de filhos, necessitavam de um lugar para brincar e para praticar esportes, necessidades essas, aliás, conforme previsão Estatutária, tão necessárias para o bom desenvolvimento dos menores. Com isso, seu projeto incluía a construção, no mesmo bairro, de uma praça pública, para a recreação de toda a família, além de um centro esportivo, contando com campo de futebol, quadra poliesportiva e pista de caminhada, para que toda a família, inclusive as crianças e os adolescentes, pudessem viver em plena harmonia, usufruindo de todo o sistema de lazer e esporte, tão necessário para o desenvolvimento dos menores e da interação da família.
Além dessas necessidades, sabia perfeitamente o empreendedor que toda a família necessitava também de cultura, razão pela qual constava ainda de seu projeto a edificação de um cinema, onde tanto os adultos como os menores, poderiam assistir filmes e peças teatrais.
Podiam contar, desta forma, com trabalho, habitação, saúde, lazer, esporte e cultura. Mas, como é cediço, pela visão do Estatuto da Criança e do Adolescente somente essas conquistas não seriam suficientes para o desenvolvimento do menor, face previsão da proteção integral, pela qual nenhum setor da vida dessa categoria poderia restar desatendido. Assim, com essa mesma visão, só que no âmbito familiar, tornava-se necessário preencher outras lacunas, razão pela qual edificava no bairro uma igreja, dando à comunidade um contra-ponto frente ao mundo, o que é de extrema importância para as crianças e os adolescentes.
Com trabalho, habitação, saúde, lazer, esporte, cultura e religião, o círculo ainda não estava fechado, pois outros pontos ainda deveriam ser protegidos. Por essa razão, o empreendedor ainda levava ao bairro, toda a infra-estrutura, como asfalto, energia elétrica, água encanada, esgoto e ônibus urbano. Ainda assim, outros setores da vida dessa comunidade ainda necessitavam de proteção. Com esse pensamento, edificava, no bairro, um prédio, onde seria instalada uma delegacia, para que o Estado fornecesse todo o efetivo policial para que a comunidade pudesse desfrutar de um local seguro e harmonioso.
Pois bem, mesmo com trabalho, habitação, saúde, lazer, esporte, cultura, toda a infra-estrutura e segurança, ainda existiam pontos que necessitavam de proteção. Desta forma, o empreendedor ainda edificava no local, prédios para futuras escolas, contando, vez mais, com a participação do poder público para a tarefa. Desta forma, os núcleos familiares poderiam matricular seus filhos menores, o que revertia em benefício geral, inclusive para o próprio empreendedor. Através da educação, próxima ao lar, as famílias poderiam ver seus filhos crescerem com perspectivas, uma vez que lhes era oferecido o que denominamos hoje de ensino médio e fundamental.
Ora, as famílias que ali residiam tinham habitação, saúde, lazer, esporte, cultura, toda a infra-estrutura, segurança e educação, mas, ainda assim não estavam totalmente protegidas. Pensando assim, o empreendedor tratava de trazer para o local um supermercado do SESI, para que os funcionários pudessem adquirir bons gêneros alimentícios e com ótimos preços. Tratava de trazer, ainda, um açougue, uma padaria, um armazém, uma loja de tecidos, a preço de custo, uma barbearia, enfim, todo o comércio necessário para que aquela comunidade se servisse plenamente no bairro onde morava.
Mas, ainda faltava o que fazer, por incrível que pareça. E, desta forma, tendo o empreendedor fornecido ao empregado, habitação, saúde, lazer, esporte, cultura, toda a infra-estrutura, segurança, educação e comércio próximo, transporte, percebia que ainda estava ausente a esperança profissional do futuro. Isso mesmo, unindo o útil ao agradável, providenciava condições para cursos técnicos voltados aos adolescentes, onde poderiam aprender um ofício – por certo necessário para o empreendimento -, através de cursos do SENAI.
Com isso, crescia a criança feliz em sua casa, no seio da família, totalmente estruturada, podendo desfrutar de brincadeiras, esportes, religião, lazer, cultura, segurança, saúde, habitação, fácil acesso ao comércio e meios de locomoção, e ainda dispunha, quando da adolescência, de cursos técnicos profissionalizantes, através do SENAI, para que pudessem, com o término dos mesmos, adentrar ao mercado de trabalho, já com uma profissão definida.
Desta forma, esses adolescentes, após o curso profissionalizante do SENAI, já tinham um emprego garantido junto ao empreendedor, o qual, por sua vez, sempre era servido de mão de obra especializada, e, em curto espaço de tempo, o sonho de um casamento feliz e seguro, se realizava de forma tranqüila e natural.
Esses empregados tinham exatamente tudo que precisavam e sonhavam para si e seus familiares, uma verdadeira “proteção integral”, tal qual a prevista no ECA. O resultado não poderia ser outro, senão o de famílias felizes, lares estruturados, onde crianças e adolescentes cresciam vivendo em alegria e com muita esperança no futuro. Lucravam todos, o empreendedor, com ótimos empregados, as famílias, sempre bem estruturadas, os filhos, com esperança e longe da criminalidade, a comunidade e a sociedade que colhiam ótimos frutos, e, por fim, o próprio Estado que não necessitava dispor de enormes gastos com a recuperação de delinqüentes e desajustados.
Na verdade, muitas vezes o que a criança e o adolescente necessitam é de, apenas, esperança e perspectiva, o que pode ser dado com a aplicação da proteção integral prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, mesmo que pareça essa visão uma utopia.
Todavia, com o decorrer dos anos, o empreendedor foi mudando gradativamente o seu enfoque, deixando de lado essa visão mais social e preocupando-se, cada vez mais, com a sua situação pessoal, fazendo com que esses direitos se perdessem no tempo, resultando, com isso, em enormes prejuízos para todos os lados. Por certo que a majoração dos impostos pelo Poder Público e o mínimo de retorno esperado serviu para agravar ainda mais essa situação.
A visão apresentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 1º, ao dispor que “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”, não é nova, mas, ao contrário, é apresentada para tentar como que resgatar algo já vivido no passado, onde a família, a comunidade, a sociedade e o próprio Estado andavam juntos, trabalhando e lutando para o fortalecimento da família e, com isso, dos menores.
O que vimos, com o passar do tempo, pelo caminho percorrido, foi um enfraquecimento desses segmentos, resultando em famílias destruídas, em uma comunidade ausente, uma sociedade omissa e um Estado não mais voltado para a prevenção e, até mesmo, distante da recuperação.
Nesse momento histórico entra em cena o Estatuto da Criança e do Adolescente, para resgatar e fortalecer a família, a comunidade, a sociedade e o próprio Estado, através da proteção integral da criança e do adolescente.
D. LUCIANO MENDES DE ALMEIDA[7], Bispo de Mariana, Minas Gerais, em comentários à proteção integral apresentada pelo artigo 1º da Lei Estatutária argumenta que “O Estatuto tem por objetivo, a proteção integral da criança e do adolescente, de tal forma que cada brasileiro que nasce possa ter assegurado seu pleno desenvolvimento, desde as exigências físicas até o aprimoramento moral e religioso. Este Estatuto será semente de transformação do País. Sua aplicação significa o compromisso de que, quanto antes, não deverá haver mais no Brasil vidas ceifadas no seio materno, crianças sem afeto, abandonadas, desnutridas, perdidas pelas ruas, gravemente lesadas em sua saúde e educação”.
Para CURY, GARRIDO & MARÇURA[8] “A proteção integral tem como fundamento a concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao Estado. Rompe com a idéia de que sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento”.
Abordando o tema da proteção integral, WILSON DONIZETI LIBERATI[9], esclarece que “A Lei 8.069/90 revolucionou o Direito Infanto-juvenil, inovando e adotando a doutrina da proteção integral. Essa nova visão é baseada nos direitos próprios e especiais das crianças e adolescentes, que, na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral (TJSP, AC 19.688-0, Rel. Lair Loureiro). É integral, primeiro, porque assim diz a CF em seu art. 227, quando determina e assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo; segundo, porque se contrapõe à teoria do “Direito tutelar do menor”, adotada pelo Código de Menores revogado (Lei 6.697/79), que considerava as crianças e os adolescentes como objetos de medidas judiciais, quando evidenciada a situação irregular, disciplinada no art. 2º da antiga lei”.
ANTÔNIO CARLOS GOMES DA COSTA[10], discorrendo sobre a teoria da proteção integral, argumenta que “De fato a concepção sustentadora do Estatuto é a chamada Doutrina da Proteção Integral defendida pela ONU com base na Declaração Universal dos Direitos da Criança. Esta doutrina afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos”.
Em brilhante trabalho apresentado por TÂNIA DA SILVA PEREIRA[11], discorrendo sobre a proteção integral à criança e aos adolescentes, a Coordenadora expõe os estudos apresentados por DEODATO RIVERA, em debate “A Criança e seus Direitos”, debate promovido pela PUC-Rio e Funabem e publicada pela PUC, 1990, o qual demonstra, de forma clara e direta, os princípios fundamentais constantes desta proteção. Vejamos:
“DEODATO RIVERA demonstra que esta nova orientação em relação à criança e ao adolescente é baseada em princípios fundamentais:
1 – UNIVERSALIZAÇÃO – “Todos são sujeitos de Direito independentemente de sua condição social. A proteção não é só ao menor pobre, ou ao menor em situação irregular. O novo ordenamento atingirá a todos.”
2 – HUMANIZAÇÃO – “Este é o princípio previsto no art. 227 da Constituição de 1988. Neste princípio cabe sobretudo uma mudança de mentalidade. Tradicionalmente, a defesa social, a proteção de interesses dominantes na sociedade, é dado àquilo que é normal, regular. E os pobres são considerados anormais e irregulares.”
3 – DESPOLICIALIZAÇÃO 1– “A questão da criança e do adolescente não é questão de polícia. Ela tem um aspecto policial quando o adolescente ou a criança são vítimas de violação de seus direitos ou quando são autores de violência, e isso porque, em primeiro lugar, foram vítimas. Nesses casos, há um ângulo policial, no caso de alto risco para essa criança, de protegê-la, com armas se for preciso, proteger sua integridade ou proteger as pessoas da sociedade, de sua violência. Mas é um aspecto secundário, não é fundamental.”
4 – DESJURIDICIONALIZAÇÃO – “A criança e o adolescente não são questão de Justiça. Somente naqueles casos de lide, de conflitos de interesses.”
5 – DESCENTRALIZAÇÃO – “O atendimento fundamental é no Município. É ali que a criança nasce, é ali que ela vive, é ali que ela está. Nenhuma criança nasce ou vive na União. A União é uma abstração, não tem geografia. A geografia da União é o somatório das geografias municipais, então a criança tem que ser atendida ali onde ela está.”
6 – PARTICIPAÇÃO – “Esse princípio é fundamental. O art. 227 da Constituição Federal de 1988, convoca a família, a sociedade e o Estado para assegurar a criança e ao adolescente os seus direitos fundamentais. Os Conselhos Tutelares são um resultado desta convocação do cidadão para participar na nova sistemática.”
Por certo que esse novo caminho, ou, para alguns, apenas um retorno, diante de uma realidade esquecida, não será de fácil acesso, pois implica em verdadeira transformação cultural, o que, como sabemos, não depende de simples letra fria da lei, mas, ao contrário, de mudanças efetivas de comportamento.
Mesmo assim, o desafio está lançado e o Estatuto da Criança e do Adolescente, em razão disso, deve ser divulgado, estudado e os direitos ali estabelecidos exigidos por todos aqueles que estão sob a sua proteção, para que, um dia, esses direitos sejam ou voltem a ser uma realidade na vida de toda a sociedade.
formado pela Faculdade de Direito de Itu, em 1986. Possui pós-graduação “Lato Sensu” em Direito Processual Civil, pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (1998), especialização em Direito Ambiental, pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, especialização em Direito da Criança e do Adolescente, pela ESA – Escola Superior da Advocacia e Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na subárea de Direito Difusos e Coletivos, concluída em dezembro de 2005. É advogado autônomo em Sorocaba e professor universitário pela UNISO – Universidade de Sorocaba – Fundação Dom Aguirre e UNIP Universidade Paulista – Campus Sorocaba
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