Resumo: Desenvolver-se-á uma pesquisa científica acerca da antiga ação de querela nullitatis insanabilis com a finalidade de averiguar sua sobrevivência no direito brasileiro, seu histórico, quais são suas hipóteses de cabimento, regime jurídico adotado, se possui previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro, bem assim seus efeitos, no caso de julgada procedente. Será realizada uma análise detida acerca dos elementos que compõe a relação jurídica processual. Ademais, esta obra visa demonstrar que a aludida ação também será cabível ante a coisa julgada inconstitucional. Será, por fim, realizado um estudo tendente a verificar a existência de colisão entre o princípio da segurança jurídica, vinculado à coisa julgada, com o devido processo legal, mormente pela natureza imprescritível da ação de querela nullitatis, ou, ainda, entre o princípio da segurança jurídica e o valor da justiça.[1]
Palavras-chave: Querela nullitatis insanabilis. Segurança jurídica. Inexistência.
Abstract: It will develop a scientific research about the ancient querela nullitatis insanabilis action in order to determine their survival in Brazilian law, its history, what are your chances of appropriateness, legal system adopted, it has legal provision in Brazilian law, as well as their effect in the case of upheld. There will be a detailed analysis on the elements that make the relationship legal proceedings. Moreover, this work aims to demonstrate that this suit will also be applicable before the thing judged unconstitutional. Will ultimately performed a study to check for collision between the principle of legal certainty, linked to res judicata, with due process of law, including by the action of nature imprescriptible querela nullitais, or even between the principle of legal certainty and the value of justice.
Keywords: Querela nullitatis insanabilis. Legal certainty. No.
Sumário: Introdução. 1. Querela nullitatis. 1.1. Histórico da querela nullitatis. 1.2. Dicotomia da querela nullitatis: sanabilis e insanabilis. 1.3. Subsistência da querela nullitatis no ordenamento jurídico brasileiro. 1.4. Peculiaridades: natureza jurídica, competência, objeto, efeitos e hipóteses de cabimento. 1.5. A querela nullitatis e a afinidade com o instituto jurídico da ação rescisória. 2. A coisa julgada. 2.1. Sobrevivência à coisa julgada inconstitucional: imprescritibilidade da querela nullitatis insanabilis. 2.2. A coisa julgada inconstitucional. 2.3. Meios de impugnação da coisa julgada inconstitucional. 3. Segurança jurídica. 3.1. Institutos componentes do principio da segurança jurídica. 3.2. Conflito aparente de normas: querela nullitatis X segurança jurídica. 3.3. Compatibilização hermenêutica. Conclusão. Referências
INTRODUÇÃO
Já se imaginou acordando de manhã, com um oficial de justiça batendo à sua porta, dizendo que possui uma sentença condenatória e que vai te executar o montante pecuniário de três milhões de reais, sem que você sequer saiba que se realizou um procedimento judicial? O que fazer? Qual seria o instituto jurídico que o ordenamento brasileiro assegura a seus cidadãos diante de um fato de tamanha gravidade e arbitrariedade como esse? Pois bem. O presente trabalho tem a finalidade demonstrar qual é o meio mais adequado para estas sentenças que não contém todos os elementos substanciais que as constituem. A aplicação prática, no referido caso, como se pretende demonstrar, será ação de querela nullitatis insanabilis.
Para tanto, o presente trabalho científico será fundamentado através da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e de leis positivadas, tudo em consonância, com o ordenamento jurídico vigente, da análise de obras, artigos jurídicos e jurisprudências, bem como se realizará discussões críticas com o objetivo de averiguar a possibilidade de subsistência da querela nullitatis insanabilis no ordenamento jurídico brasileiro, discorrer em quais hipóteses referida ação pode ser intentada, qual é o regime jurídico aplicável e, ainda, pretende-se suscitar a aparente colisão com o princípio da segurança jurídica, assegurado na Constituição Federal, face ao valor da justiça.
A pesquisa científica será escrita utilizando-se do método indutivo, eis que permite ao construtor do conhecimento científico, partir de concepções específicas e formular proposições genéricas. Além do mais, o trabalho será enriquecido com jurisprudências dos mais diversos Tribunais, de modo a extrair quais as hipóteses em que estes órgãos têm admitido a ação de querela na atualidade.
Analisar-se-á, diante do caso concreto em que foi prolatada sentença inexistente, qual seria a parte que teria tido um maior prejuízo: aquela que a teve declarada em seu desfavor a sentença inexistente ou aquela parte que resta na insegurança de ver, a qualquer tempo, declarado inexistente referido provimento jurisdicional, haja vista, nestes casos, a sentença inexistente sobrevive à formação da res iucata, ao argumento de que aquilo que não existiu com o tempo não passa a existir.
O motivo da escolha do tema como fonte de estudo e reflexão é, pois, a necessidade de abordar esta ação, criada nos Estatutos italianos, no direito do intermédio, vez que, ainda hoje, esta encontra aplicabilidade nos ordenamentos jurídicos, bem como se nota que por ser um tema de pouca erudição por parte da doutrina, existem poucos escritos inviabilizando seu conhecimento por parte dos acadêmicos do Direito. Dessa forma, a obra em tela tem por fim expandir o conhecimento da presente ação impugnativa e auxiliar, criando argumentos e fundamentos, para que repercutam na sua aplicabilidade prática.
Portanto, acrescente-se que a presente obra jurídica possui a pretensão de desenvolver um trabalho acadêmico científico que auxilie e oriente o operador do direito atuar nesse tipo de processo. Ademais, observa-se que a querela nullitatis tem sido objeto de discussão na doutrina, não se podendo precisar suas hipóteses de cabimento e quais seriam a natureza dos vícios que a circundam. Daí é que se pode falar que o tema-problema é controvertido e merece exame.
No decorrer do trabalho, pretende-se, ainda, abordar o histórico da querela nullitatis insabilis, bem como explicar, detalhadamente, o porquê desta ação sobreviver à coisa soberanamente julgada, a qual é assegurada pela Constituição da República. Além do mais, o trabalho de conclusão de curso visa distinguir nitidamente os atos que geram nulidade dos atos inexistentes, eis que para a construção desta obra jurídica científica é mister a diferenciação entre eles, tendo em vista que a grande discussão gira em torno das premissas de cabimento da referida ação.
O tema em apreço mostra, pois, relevância teórico-prático, eis que se depreende a necessidade de coexistir no direito vigente uma ação capaz de retirar do mundo jurídico sentenças que faltam algum elemento que as tornam inexistentes. Destarte, uma vez verificada a persistência desta ação no direito brasileiro, ela se revelará como uma forma instrumentalizada de concretização dos princípios e direitos constitucionais como contraditório e ampla defesa, garantindo ao cidadão mais uma ação para se proteger contras as arbitrariedades do Estado-juiz.
Como forma de crítica construtiva, a pesquisa direciona-se aos Tribunais e alguns doutrinadores que, corriqueiramente, tem confundidos as hipóteses da querela nullitatis com ação rescisória ou anulatória, de maneira que o presente trabalho tentará demonstrar as diferenças.
Ademais, o tema encontra respaldo na atualidade, uma vez que, muito se discute na doutrina e jurisprudência os direitos de magnitude constitucional, como a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais, destacando-se entre estes, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos inerentes ao processo (art. 5º, inciso LV, da CRFB/88), dentre outros.
Referente à estrutura desta obra conclusiva de curso, ela foi dividida em três capítulos, sendo que todos estes possuem de três à cinco subtópicos, conforme o capítulo, de modo a esclarecer e trazer o maior número de informações possíveis direcionadas ao leitor. Conterá, ainda, na monografia, citações de nobres juristas com forma de enriquecer este trabalho acadêmico, bem como demonstrar pensamentos atualizados de processualistas.
Insta ressaltar que toda a problematização e construção jurídica aqui desenvolvida é de grande contribuição para a ciência do Direito, haja vista, a ação de querela nullitatis insanabilis retirar do mundo jurídico sentenças que lhes faltam algum dos pressupostos de existência e que, aparentemente, estão produzindo efeitos, o que, por conseguinte, acabam por ferir direitos materiais e formais dos cidadãos. Nesta esteira, tentar-se-á resolver a possivel colisão entre a ação de querela nullitatis e o princípio constitucional da segurança jurídica, mormente no que tange à coisa julgada material.
1. QUERELA NULLITATIS
O capítulo do qual se cuida abordará uma profunda análise sobre a ação surgida no Direito da Idade Média – a ação de querela nullitatis insanabilis – bem como sua sobrevivência no ordenamento jurídico brasileiro. No ponto, serão trazidas à baila discussões críticas acerca da sua natureza jurídica, competência para processamento, objeto, efeitos e suas hipóteses de cabimento. Durante o desenvolver das teses científicas, serão dissertados sobre os atos inexistentes e as nulidades do processo e da sentença, de forma a verificar quais são os atos atingidos pela ação impugnativa em apreço. Analisar-se-á ainda, um estudo da jurisprudência no Brasil com o fito de aferir o que os Tribunais brasileiros têm entendido sobre a querela nullitatis.
A querela nullitatis, segundo José Cretella Neto, (apud LIMA, 2005) é uma expressão latina que pode ser entendida com “nulidade do litígio”, tendo surgido na Idade Média, como forma de impugnação da sentença, ajuizada através de uma via autônoma, não sendo considerado recurso.
Devido a sua terminologia etimológica, o intérprete muitas vezes incorre em erro, pois tende a associar a palavra “nullitatis” ao substantivo nulidade, o que é um grande equívoco, uma vez que a querela nullitatis refere-se aos vícios de existência contidos na sentença.
Ressalte-se que no direito romano a expressão “nullum” significava inexistência (MACEDO, 2005, p.19). Destarte, “querela nullitatis insanabilis” pode ser entendida como demanda inexistente insanável, isto é, um processo em que se verifica ato inexistente e que não se sana com o decurso temporal.
Nos dias atuais, verifica-se sua subsistência através da ação declaratória de inexistência, conforme será demonstrado nos tópicos infra.
A querela tem por escopo declarar a inexistência de uma sentença judicial ou da relação jurídica processual, eis que lhe faltam elementos mínimos que lhe dão suporte jurídico. É de se destacar, que ela pode ser argüida a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, tendo em vista, que os vícios não se sanam com o decurso temporal, de modo, que não há a formação da coisa julgada, sendo inoperante o efeito da sanatória geral, como se verifica na ação rescisória.
1.1. Histórico da querela nullitatis
No direito romano não havia, inicialmente, previsão de qualquer ação ou até mesmo recurso com a finalidade de se anular uma sentença, eis que tais decisões eram irrecorríveis. Quando se verificava qualquer nulidade no processo (entenda-se como inexistência) no campo de direito material, não havia, pois, necessidade de declará-las, uma vez que estas se operavam de pleno iure. Durante esse período, verificou-se dois sistemas: o ordo iudiciorum privatorum e o cognitio extra ordinem (MACEDO, 2005, p. 19). O primeiro possuía dois períodos diferentes: o da legis actiones (de 754 a.C a 149 a.C), em que a ação era ajuizada perante o pretor e se findava com a litiscontestatio, não cogitando de qualquer espécie de recurso, e, o formulário, consagrado pela Lex Aebutia (de 149 a.C a 209 d.C) o qual se delegava a um terceiro, elegido pelas partes (iudex privatus), a função de julgar a lide.
Ressalte-se que, em ambos os períodos, tanto os vícios decorrentes da inobservância do direito, regras materiais e processuais importantes, quanto os provenientes de decisões injustas eram consideradas nullae sententiae, ou seja, para os romanos a sentença era inexistente, não havendo necessidade de recorrer, uma vez que se podia alegar o vício em qualquer oportunidade (MACEDO, 2005, p. 19).
Não obstante, neste período formulário, em que a fórmula é o escrito, atribuiu-se ao conceito de nulidade um novo entendimento, qual seja, uma sanção pelos atos realizados de maneira não condizente com as regras jurídicas vigentes positivadas. Neste período, há que se ressaltar que o sistema era extremamente formalista, não se podendo fugir dos moldes da lei, de maneira que qualquer ato em desconformidade ao direito ensejava nulidade.
Assim, podia um devedor condenado ao cumprimento de uma obrigação, confessar o débito ou contestar sua a existência ou ainda a negar a validade da sentença à condenação imposta pelo pretor mediante apresentação de caução. Todavia, corria o risco de ser condenado ao valor em dobro. Essa premissa, hoje, assemelha-se aos embargos à execução. Referido devedor, podia, então, provocar o Judiciário almejando declarar a sentença nula, por meio da denominada revocatio in duplum, que podia ser demandada a qualquer tempo (GAJARDONI, 2004).
Com o surgimento da ação acima citada (que não era recurso), que possuía natureza especial, de forma a negar o provimento jurisdicional (assemelhando-se, hoje, com a ação declaratória negativa), percebeu-se a necessidade de se discutir qual via seria mais adequada para declarar nula uma sentença, eis que essa ação fugia ao rigor predominante na época.
Já o segundo sistema, havia a figura do magistrado – funcionário – pelo qual se passava o processo em única fase. Durante este período desenvolveu-se a primeira possibilidade de atacar uma sentença, a qual se dava pela apellatio, oposta contra as decisões iniustas, ou seja, sentenças com erro de direito, enquanto as sentenças eivadas de vícios in procedendo persistia a desnecessidade de interposição de recurso, porque eram consideradas nullae sententiae, isto é sentença juridicamente inexistente[2] (MACEDO, 2005, p. 20).
A apellatio era oposta nos casos de error in iudicando, isto é, erro no julgamento, o qual trouxe às partes uma decisão injusta, sendo um erro na questão jurídica abstrata. Esta ação visava a reforma da sentença e era ajuizada pela via ordinária. Em contraposição, as hipóteses de error in procedendo eram um equívoco na atividade jurisdicional, ou seja, o magistrado não observava as regras e garantias processuais, devendo o provimento judicial ser nulo.
Ampliando ainda mais o sistema recursal, surgiu a restitutio in integrum. Esta possuía a mesma finalidade da apellatio de corrigir erro substancial nos fatos, isto é, injustiças, porém, a ela era ajuizada pela via excepcional, vez que era concedida pelo pretor e magistrado imperial, porém sua declaração não reformava a sentença, mas apenas a cassava (GAJARDONI, 2004). Surgiu também a intercessio com o fim de destruir os decreta dos magistrados.
Por influência do direito germânico e dos institutos acima abordados do direito romano, surgiu a querela nullitatis durante o período do direito intermediário, mais precisamente nos estatutos italianos em 568 d.C e 1500 d.C, sendo considerada germe das ações autônomas de impugnação, utilizadas para combater os errores in procedendo. Ela era exercida autonomamente, não por meio de ação, mas através de imploratio officii iudicis. Neste período, todo aparato impugnativo começou a se fundir gerando uma grande confusão entre os conceitos de nulidade e existência (as nulidades podiam ser apeladas e a matéria reservada à apelação podia passou a abarcar as nulidades[3]), uma vez que, as sentenças nulas foram erigidas ao mesmo patamar das sentenças inexistentes e os glosadores deixaram de verificar suas peculiaridades, de modo que, acabaram também sendo atacadas por meio da querela nullitatis. Assim, as sentenças inexistentes ficaram, então, sem uma via autônoma própria. Em suma, tanto os vícios de existência e de nulidade passaram a ser impugnados via querela nullitatis (GAJARDONI, 2004).
Em função desta fusão entre os referidos conceitos, muitos estatutos da época começaram a compreender que, uma vez passado o tempo legal para ajuizamento da querela nullitatis, tanto o vício de nulidade quanto o de existência contido na sentença era sanado, porque nenhum deles subsistia à preclusão, mesmo sabendo que eram diferentes e que cada qual possuía características peculiares (GAJARDONI, 2004). Sendo assim, verifica-se, pois, grande atraso nos estatutos da época, eis que os graves vícios de existência, após decorrido o prazo trazido pela lei, não mais podiam ser alegados.
Contudo, há que se ressaltar que não foram todos os estatutos em que ocorreu a junção acima mencionada. Ressalvam-se os ordenamentos de Perugia e Carrara. Nestes sim havia uma perfeita distinção entre os conceitos de anulabilidade e existência, de modo que as nulidades podiam ser alegadas durante determinado tempo, enquanto aqueles vícios mais graves, os de inexistência, podiam ser atacados a qualquer tempo.
Confirma esta sentença Roque Komatsu (apud GAJARDONI. 2004) ao prescrever que “a antítese entre o conceito de anulabilidade e o de nulidade “ipsu iure” foi resolvida de modo mais lógico: enquanto se acolhe de uma parte a noção de anulabilidade para quase todos os vícios da sentença e para estes se prefixa um prazo peremptório dentro do qual devia ser exercida a querela nullitatis em via principal; de outra parte em se acolhendo a noção de inexistência do julgado para alguns vícios mais graves admite-se a qualquer tempo o exercício da ‘exceptio nullitatis’”.
Nesse espeque, pode-se considerar que a querela nullitatis é um instituto genuinamente italiano, conforme se expressa Calamandrei (apud RABELO; ZAGANELLI. 2010).
Não obstante, com a evolução do direito processual e o desenvolvimento dos institutos recursais, e considerando a superveniência de novos estatutos sobre o italiano, surgiram novas espécies de recursos, o que, de forma reflexa fez com que a querela nullitatis fosse aos poucos desaparecendo. Outras vezes, referida ação impugnativa, ficava escondida por detrás das hipóteses de cabimento da ação rescisória.
Atualmente, muitos Tribunais têm confundido as hipóteses de cabimento da querela nullitatis insanabilis com a querela nullitatis de nulidade a qual encontrava fundamento no período acima, o que é um grave equívoco, pois como já dito, a sentenças nulas no direito romano significavam sentenças juridicamente inexistentes[4].
Portanto, através de uma análise sobre a ação em tela, bem como seu histórico, percebe-se que, hoje, não mais existe a querela de nulidade, cuja possibilidade, encontrava fundamento nos vícios menos graves, aqueles que infringiam norma de ordem imperativa, a qual traçava a forma a ser seguida. Esta ação impugnativa, atualmente, foi incorporada à ação rescisória. Contudo, persiste a querela nullitatis, cuja alegação se consubstancia e se sustenta nos atos inexistentes, a qual no tempo oportuno pretende ser demonstrada.
Verifica-se ademais, a presença da querela nullitatis em vários outros ordenamentos jurídicos. Em Portugal percebe-se a querela nullitatis, conforme se nota das Ordenações Manuelinas e Filipinas exaradas de Gajardoni (2005) “das Ordenações Manuelinas extrai-se que da sentença que per direito he ninhuma, se non requere seer apellado, e em todo tempo pode ser revogada. Nas Ordenações Filipinas observa-se que a sentença que é por Direito nenhuma, nunca em tempo algum passa em cousa julgada, emas em todo o tempo se pode opor contra ela, que é nenhuma e de nenhum efeito, e, portanto, não é necessário ser dela apelado”.
Atualmente, o Código de Processo Civil português não possui dispositivos semelhantes, ressalvando-se o procedimento em que o réu não tenha sido citado.
Na Itália, Calamandrei (apud RABELO; ZAGANELLI. 2010) defende que é persiste a querela nullitatis, uma vez que, em seu Código processual Civil no art. 161, existe uma ressalva quanto ao efeito da sanatória geral da apelação e do recurso de cassação, tendo como hipótese de cabimento, a sentença não assinada pelo juiz. Implicitamente, o doutrinador assevera que há ainda a possibilidade jurídica de se impugnar as sentenças não escritas, ausente de parte dispositiva, a de conteúdo incerto ou impossível.
O Direito Canônico – Codex Iures Canonici – promulgado pelo Papa João Paulo II (BRASIL. Código de Direito Canônico[5]), contém dispositivos expressos de nulidade sanável e insanável. A estes, pode-se atribuir os efeitos da querela, previstos no art. 1.620 e seguintes, em que se verifica a possibilidade de impugnação do provimento jurisdicional tanto por via de ação, pelo prazo de 10 anos, como por via de exceção a qualquer tempo, extrai-se, então, que a sentença é viciada por nulidade insanável, se: “a) foi proferida por juiz absolutamente incompetente; b) foi proferida por alguém destituído do poder de julgar no tribunal em que a causa foi definida; c) o juiz proferiu a sentença coagido por violência grave; d) o juízo foi feito sem a petição judicial, ou não foi instaurado contra alguma parte demandada; e) foi proferida entre as partes, das quais, ao menos uma não tinha capacidade de estar em juízo; f) alguém agiu em nome de outro sem mandato legítimo; g) foi negado a alguma das partes o direito de defesa; h) a controvérsia não foi definida sequer parcialmente”.
Observe-se, porém, que neste estatuto ocorre grande confusão assim como nos estatutos italianos, pois como se nota, confundem-se os conceitos de nulidade e de existência, uma vez que, as hipóteses de existência não deveriam sofrer o efeito da sanatória geral, independente do modo como seria ajuizada, se por via de ação ou de exceção, como se percebe pelo dispositivo acima. Portanto, o ajuizamento por via ordinária de ação, não deveria operar-se sanada, tendo em vista a gravidade do ato perpetrado. Além do mais, referido código emprega o termo “querela de nulidade”, o que parece estar equivocado, pois, salvo melhor juízo, algumas das premissas acima previstas neste Código, no artigo 1.620, são considerados tão graves que tornariam a sentença inexistente.
Ainda com base no Código acima os vícios de nulidade sanável ocorrem quando prolatadas por número de juízes não legítimo, ou embasada em ato judicial nulo, cuja nulidade não tenha sido sanada, ou ainda, for proferida com a ausência de parte legítima, dentre outras possibilidades, conforme disposto nos Cânones 1.622 e 1.623 do Codex Iures Canonici (BRASIL. Código de Direito Canônico)[6]. Nestes casos, pode ser oposta no máximo em três meses da publicação da sentença.
Compulsando o ordenamento jurídico brasileiro, verifica-se que o fato de o Brasil ter sido colonizado por Portugal, as regras lá vigentes, aplicaram-se aqui. Assim, possuiu vigência em todo território nacional as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas, ora já tratadas. Consequentemente, é cabível afirmar que, inicialmente havia previsão da querela no ordenamento jurídico do Brasil, não se podendo, portanto, rechaçar ou refutar essa idéia.
Atualmente, não há dispositivo expresso na legislação ordinária brasileira que demonstre a querela. Contudo, demonstrar-se-á, em tempo oportuno, que subsiste no ordenamento pátrio, podendo a qualquer tempo ser ajuizada, desde que presentes as suas premissas.
1.2. Dicotomia da querela nullitatis: sanabilis e insanabilis
Naqueles ordenamentos jurídicos, como o de Perugia e Carrara, em que se fazia nítida a distinção entre os conceitos de anulabilidade e existência, urge destacar que a querela nullitatis se desdobrou criando um caráter dúplice e dicotômico. Tem-se, desse modo, a querela nullitatis sanabilis e a querela nullitatis insanabilis.
A primeira, a querela nullitatis sanabilis (MACEDO, 2005, p.21) era empregada sempre que se verificava um vício menos grave, vício este que deveria ser alegado em prazo certo, sob pena de preclusão, ou seja, decorrido determinado período, o vício se sanava de “pleno iure”. A segunda tinha por objetivo atacar as decisões que não possuíam todos os seus elementos constitutivos e existenciais de modo que a querela nullitatis insanabilis podia ser alegada a qualquer tempo, tendo em vista a gravidade do vício perpetrado, de maneira que impedia a constituição res iucata.
Para Liebman (apud MACEDO, 2005, p. 21), a querela nulltatis insanabilis pode ser entendida “como remédio extremo que, por analogia com uma verdadeira ação, ficava sujeita apenas à prescrição ordinária”. Isto é, para o processualista, a querela nullitaits insanabilis é passível do instituto da prescrição ordinária, persistindo, portanto, os prazos taxativos e pré-fixados no Código Civil.
Ocorre que, com o passar do tempo, a querela nullitatis sanabilis foi absorvida pela apelação, bem como algumas de suas hipóteses de ajuizamento foram acolhidas pela ação rescisória. Assim, o aperfeiçoamento do sistema recursal fez com que a apelattio se fundisse com aquela. No que tange a insanabilis, esta foi entrando em desuso e aos poucos desaparecendo, persistindo, contudo, em alguns ordenamentos como o austríaco e o alemão (MACEDO, 2005, p. 21). No Brasil, como abaixo se demonstrará, sobrevive ainda a esta última.
1.3. Subsistência da querela nullitatis no ordenamento jurídico brasileiro
A Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 5, inciso LV, prevê que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 26). Cuidou ainda, o Constituinte originário de prever que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 26). A ação de querela nullitatis ora em apreço, mostra-se, pois, um meio, isto é, uma forma necessária para que o sujeito de direito possa se proteger das arbitrariedades do Estado-juiz, eis que referida ação é o único instrumento hábil a destruir sentenças em que não estão presentes todas as suas elementares, permitindo assim, ao cidadão o direito a uma reanálise do caso em que houve grave violação de direitos fundamentais. Desse modo, como a norma Ápice garante os meios necessários e inerentes ao processo, bem como o direito de ação, não restam dúvidas de que a querela nullitatis é uma forma de ação que deve imperar e coexistir, paralelamente, ao Estado Democrático de Direito, haja vista ser inerente a este garantias fundamentais sejam elas materiais ou processuais. Além de mais, referida ação impugnativa[7] demonstra ser uma forma de resguardar e implementar o devido processo legal, mormente compreendidos através do contraditório, ampla defesa e a isonomia entre as partes.
Pois bem, a doutrina e jurisprudência têm reconhecido a presença da ação de querela nullitatis no ordenamento brasileiro. Todavia, existe divergência quanto sua previsão, não se sabendo precisar em qual dispositivo do Código de Processo Civil está prevista, se em lei esparsa, ou ainda, se está prevista de forma explícita ou implícita. Para Macedo (2005, p. 52) ela está prevista de forma explícita no art. 741, inciso I do CPC[8] brasileiro. Isto porque, pode ser proposta a qualquer tempo, sem sofrer a formação da coisa julgada.
No mesmo sentido, manifesta-se Alexandre Câmara (2007, p. 277) preconizando que, ainda com a alteração introduzida pela Lei 11.232/2005, persiste a possibilidade de o autor interessado intentar a rescisória ou a querela até dois anos, contados do trânsito em julgado da sentença. Após este prazo, a sentença não pode mais ser rescindida, podendo, entretanto, ser oposta apenas este último remédio. Ademais, quando a sentença tiver eficácia de título executivo cabe impugnação à execução ao cumprimento de sentença, como regra geral, ou embargos contra a Fazenda Pública de forma excepcional, conforme art. 741, I do CPC.
Acrescenta também Alexandre Câmara (2007, p. 279-280), que a querela nullitatis deveria ser cabível no Juizado Especial Cível, pois como existe a vedação expressa contida no art. 59 da Lei 9.099/95[9] de que não cabe rescisória, não poderia da mesma forma alçar a querela à categoria da rescisória e, consequentemente, impossibilitar seu ajuizamento. Neste viés, o autor retrocitado pensa que “isto não pode, porém, querer significar que as decisões ali proferidas fiquem inteiramente imunes a qualquer tipo de controle mesmo que eivadas dos vícios enumerados no art. 485 do CPC” (2007, p. 278).
A defesa do autor encontra respaldo e deve ser acolhida, uma vez que não podem as decisões proferidas ali ficar sem qualquer tipo de controle, ofendendo preceitos constitucionais, conforme seria possível aferir.
Outra parte da doutrina entende que sua previsão não está prevista de forma expressa, porém, subsiste no direito brasileiro, quando da análise detalhada das hipóteses de cabimento da ação rescisória – art. 485 do CPC – sendo perfeitamente possível identificar quais teriam fisionomia mais parecida com a querela nullitatis insanabilis (GAJARDONI. 2004). Ou seja, dá-se a entender que algumas das hipóteses de ajuizamento da rescisória não seriam típicas destas, mas sim da querela.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais[10] reconhece a presença da querela nullitatis a partir da interpretação dos artigos 214[11] e 741, inciso I, do CPC, para se declarar a inexistência jurídica da sentença quando o decisum transitado em julgado estiver maculado de vício insanável. Desse modo, é perfeitamente possível sustentar uma das hipóteses de cabimento da querela nullitatis insanabilis através do dispositivo legal elencado no art. 214 do CPC brasileiro, vez que referida disposição legal cuida da citação, preceituando que esta é indispensável para a validade do processo. Assim, num procedimento em que não tenha ocorrido a citação da parte demandada, deve a sentença ser declarada inexistente, uma vez que se o ato de chamar a parte ao processo para se defender não existiu, toda a seqüência de atos processuais que se seguem, por conseqüência, deve ser declarados inexistentes.
Frise-se bem, a citação deve ser inexistente ou não possuir todos os elementos de se ato constitutivo de forma sequer chegar a existir, pois, a citação nula padece de vício de forma e convalesce[12] com o comparecimento espontâneo e com decurso do tempo.
Talvez a posição mais acertada seja aquela que entenda pela subsistência da querela nullitatis insanabilis através da ação declaratória de inexistência, nos moldes do art. 4, inciso I, do CPC que reza “o interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência ou inexistência de relação jurídica (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 263).
Ora, se impera no Direito brasileiro a impossibilidade de se negar o acesso a jurisdição a qualquer cidadão aqui domiciliado ou estrangeiro e existe a previsão na lei de que pode o autor da demanda limitar-se à declaração de inexistência de uma relação jurídica, resta demonstrada a subsistência de uma ação de natureza declaratória que visa desconstituir sentenças que foram proferidas ante a ausência de algum de seus pressupostos de existência. Em tais sentenças inexistentes, nota-ser que foram desrespeitadas as garantias processuais e materiais inerentes ao Estado Democrático de Direito.
Ademais, analisando o período histórico, nota-se que no direito do intermédio, nos estatutos italianos, a querela nullitatis, segundo José Carlos Barbosa Moreira (citado por GAJARDORNI. 2004), ensejava a perda da existência jurídica da sentença nula (entenda-se inexistente), dessa mesma forma, subsiste a referida ação de natureza impugnativa no ordenamento jurídico, tendo em vista que ela tem por finalidade declarar a inexistência e desconstituir um provimento jurisdicional, cassando-a do ordenamento jurídico pátrio. Não se pode negar a essência da ação em tela, sob pena de retirar-lhe todo o seu substrato material. Portanto, se a referida ação tinha por escopo declarar inexistente a sentença, deve, hoje, possuir os mesmos traços e pressupostos de quando surgiu.
Há que se ressaltar que, por mais que seja uma ação declaratória, deve o interessado nos pedidos, requerer, cumulativamente, a declaração nesta nova sentença, a desconstituição daquela outrora proferida em que se verificou não conter todos os seus elementos mínimos para ingressar no mundo dos fatos, bem como se deve requerer o rejulgamento da matéria fixada nesta sentença. Isto se justifica sob o fundamento de que a causa em que foi decidida por sentença inexistente não pode ficar sem julgamento de mérito, devendo, pois, haver nova reanálise do caso.
Impende ainda salientar que, é perfeitamente possível defender a presença da querela nullitatis insanabilis, no processo de execução[13], através dos meios de defesa do executado. Esta afirmativa decorre da regulamentação prevista no artigo 475-L[14], que versa sobre a impugnação ao cumprimento de sentença. Este dispositivo trata de duas possibilidades: a primeira pela ausência de citação e a outra da nulidade de citação aliada à revelia. A partir de uma análise nos planos de existência e validade, nota-se que esta última hipótese, apesar de existente está maculada de vício, portanto, salvo melhor juízo, não pode ser considerada como uma das formas de ajuizamento da querela, posto que a declaração de inexistência, por conseguinte, incide tão-somente sobre atos inexistentes. Com efeito, nas hipóteses de ausência de citação é que se verifica a subsistência da querela, haja vista esta ter por escopo, a declaração da inexistência da relação jurídica ou da sentença inexistentes.
Insta mencionar ainda, a premissa contida no artigo 741, inciso I, do CPC, que repete praticamente a redação do artigo supramencionado, uma vez que esta se refere, da mesma forma, sobre a falta ou nulidade de citação se o processo correu à revelia. Como já explicitado, Alexander dos Santos (2005, p. 52) defende, firmemente, a querela nullitatis por meio deste dispositivo legal. Realmente, é inegável sua sobrevivência no ordenamento jurídico atual, mas, saliente-se, apenas quando da ausência de citação, não se podendo alçar à categoria de citação inexistente a citação maculada de vício de nulidade absoluta, ainda que tenha ocorrido à revelia.
Por derradeiro, destaca-se a possibilidade firmada pela doutrina[15] e jurisprudência[16] conhecida como exceção de pré-executividade ou objeção à execução. Esta é uma forma de defesa do executado dentro do processo de execução. Em que pese não haver legislação específica acerca do tema, o tema já está bem pacificado. Tal entendimento decorre da Súmula 393 do Superior Tribunal de Justiça que reza: ”a exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória” (BRASIL. Vade Mecum. 2010, p. 1.995). Apesar da literalidade da súmula abranger a execução fiscal, pode ser utilizada dentro de qualquer processo de execução. Destaca-se que a exceção de pré-executividade não abrange matérias de mérito (por exemplo, se o exeqüente possui ou não o crédito excetuado), eis que estas já foram tratadas no processo de conhecimento e processo executivo.
Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini (2010, p. 475-476) enumeram as matérias alegáveis via exceção de pré-executividade: a) as defesas destinadas a proteger o princípio do menor sacrifício do devedor; b) as matérias de defesa atinentes que o juiz poderia conhecer de ofício relativas à própria admissibilidade da atuação executiva (pressupostos processuais executivos e condições da ação executiva); c) defesas relativas à nulidade absoluta de atos do procedimento executivo.
Observe que, no que tange aos dois primeiros artigos acima trabalhados, mostram-se como modalidades de defesa do executado, as quais perfazem nítida distinção, feita pelo legislador infraconstitucional, entre a citação inexistente e a citação eivada de vício de nulidade vinculada à revelia. Desta monta, os efeitos também deverão, por óbvio, ser diferentes. Quanto à hipótese de exceção de pré-executividade ou objeção à execução, apesar de não haver legislação específica e não tratar diretamente da hipótese de citação inexistente adentra na hipótese em que o juiz deve conhecer de ofício determinadas matérias. Isto porque, se a lei[17] em várias passagens permite ao juiz conhecer de ofício as nulidades absolutas, tão mais a atos inexistentes que são mais graves do que aqueles.
Nestes termos, deve-se acrescentar que, por mais que referidos artigos prevejam a hipótese de impugnação ao cumprimento de sentença, ou embargar a execução contra a Fazendo Pública, ou ainda, na exceção de pré-executividade por nulidade da citação, aliada à revelia, denota-se que, após realizada a penhora e não alegada aludida mácula na citação, restará verificado o efeito preclusivo, ou seja, não mais poderá ser argüida. Assim, em que pese a gravidade de tal vício, desde que não alegado na primeira oportunidade não haverá outro momento oportuno para suscitá-la, de maneira que o vício se convalidará. Corrobora esta alegação Nelson Nery Júnior ao informar que se o réu “[…] não alegou a nulidade de citação a tempo, a irregularidade se convalidou” (2010, p. 771).
Efeito diferente possui a citação inexistente. Esta poderá ser alegada a qualquer tempo, inclusive de ofício pelo magistrado, não havendo prazo certo e definido. Isto porque, se o ato processual ainda não foi realizado, por mais que o transcorra o tempo, não passará a existir.
Neste viés, destaca-se ainda com propriedade, os dizeres de Fernando Gajardoni (2004) que a “citação nula não equivale a citação inexistente, mesmo que aquela esteja aliada ao fenômeno da revelia. A sentença proferida em processo cujo requerido foi citado por edital, quando o endereço era certo, não pode ser reputada inexistente, senão nula. Houve formação, mesmo que viciada, da relação jurídica processual, embora por presunção legal. Tanto é assim que o próprio sistema, prevendo a possibilidade desse vício, lhe deu especial guarida, admitindo que o executado, nesses casos oponha embargos à execução (art. 741, I, do CPC). Note-se que se trata de indiscutível caso de rescindibilidade não sujeita ao prazo decadencial da ação rescisória. O único inconveniente é a necessidade do asseguramento do juízo, através da penhora, para tanto. Mas isso é uma mal suportável do sistema, facilmente agastado pela prevalência da segurança jurídica”.
Destarte, deve ser rechaçada qualquer tese que venha a defender, como hipótese de cabimento da ação impugnativa em comento, a premissa de citação nula, vinculada à revelia.
Pois bem, diante de tantas opiniões doutrinárias e fundamentações jurídicas acerca do tema, que sustentam a perpetuação da querela nullitatis insanabilis no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que de forma implícita em várias passagens da lei, não restam dúvidas de que a mesma ainda subsiste e pode a ser invocada diante de determinadas hipóteses de cabimento.
1.4. Peculiaridades: natureza jurídica, competência, objeto, efeitos e hipóteses de cabimento
Defendida a sobrevivência da querela nullitatis no ordenamento jurídico brasileiro e visto que ela, no período da Idade Média quando do seu surgimento, não era considerada ação nem recurso, isso porque era exercida através de imploratio officii iudicis, ou seja, por meio de um requerimento ao Estado-juiz, em que o pedido principal tinha como finalidade extinguir do mundo jurídico a sentença inexistente, nota-se, pois, que nos dias atuais deve prevalecer a querela nos mesmos moldes arraigados em seu nascedouro.
Para compreender sua natureza jurídica[18] é necessário analisar todos os remédios que podem ser opostos contras as sentenças. A doutrina clássica coloca três modalidades: recursos, sucedâneos recursais e ação impugnativa (GAJARDONI. 2004). Na mesma esteira, coaduna Araken de Assis (2011, p. 874). Para Alexandre Barros podem ser opostos os seguintes remédios contra sentenças: os recursos e os sucedâneos recursais externos ou internos (BARROS, 2008). Contudo, essa diferenciação é apenas classificatória e doutrinária, de modo que para este último autor, os sucedâneos recursais externos, que se dão em novo processo são denominados por aquele como ações impugnativas e os sucedâneos internos são classificados terminologicamente como sucedâneos, por continuarem no mesmo processo.
Resta no momento definir e conceituar cada qual. Para o processualista Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 555) recurso é o “[…] meio ou remédio impugnativo apto para provocar, dentro da relação processual ainda em curso, o reexame de decisão judicial, pela mesma autoridade judiciária, ou por outra hierarquicamente superior, visando a obter-lhe a reforma, invalidação, esclarecimento ou integração”.
Por outro lado, os sucedâneos são meios dentro do procedimento, que objetivam a reforma, invalidação, o esclarecimento ou a integração da decisão, do mesmo modo que os recursos, mas, que não possuem características destes, eis que lhes faltam previsão legal.
Por fim, Bernardo Pimentel Souza (apud Câmara, 2007, p. 39) assevera que “as demandas autônomas de impugnação caracterizam-se por provocar a instauração de processo novo, autônomo em relação àquele em que se proferiu a decisão impugnada”.
Destarte, conclui-se que a querela nullitatis prossui natureza jurídica de uma ação impugnativa, eis que forma nova relação jurídica processual autônoma e diversa daquela primitiva. Ademais, como já noticiado, a querela nullitatis foi o embrião das ações impugnativas e a partir dela é que se criaram diversos meios de impugnar decisões judiciais, como ação rescisória, embargos do devedor, mandado de segurança contra decisão judicial. Ao intentar a ação de querela nullitatis insanabilis, esta será inaugurada por uma petição inicial em que deverá ser distribuída e autuada, o que demonstra, pois, que esta nova demanda se distingue daquela, em que, outrora, foi prolatada decisão judicial sem a presença de algum pressuposto processual de existência. Além do mais, ao ser distribuída, referida ação não está sujeita ao preparo que é típico dos recursos, mas sim às custas iniciais do processo.
Aferida a natureza jurídica da ação em comento, resta saber se haverá algum pressuposto de admissibilidade a ser averiguado. No caso dos recursos, tem-se que, por mais que não seja o juiz de primeira instância quem irá reapreciar o caso, deve ele analisar os pressupostos de admissibilidade do recurso, realizando o juízo de prelibação. Neste espeque, nota-se, primeiramente, que por ser uma ação impugnativa, a querela nullitatis não está sujeita ao preparo que é típico dos recursos. Além do mais, por ter a ação de querela caráter declaratório, ela se mostra ser imprescritível, não havendo, pois, que se falar em prazo certo ou determinado para que ela seja ajuizada. Terá legitimidade para ajuizar a parte prejudicada pelo ato inexistente, e, por se tratar ato gravíssimo, o MP poderia ser parte, atuando para proteger direitos individuais indisponíveis, bem como poderia ser instaurada ação de ofício pelo magistrado, eis que o interesse de agir nesse caso é público, o que demonstra que o prejuízo é evidente, sendo, até mesmo, presumido.
A ação de querela nullitatis insanabilis deverá ser proposta observando-se os requisitos contidos nos artigos 282 e 283 do CPC. Assim, juntamente com a interposição da inicial, deve vir acompanhada a esta, os documentos necessários à sua propositura, como forma exemplificativa, deve ser protocolizado junto à petição inicial, a cópia da sentença ou acórdão, bem como alguma prova de que o ato não se consumou, demonstrando sua inexistência.
Cumpre relatar que esta referida ação de natureza impugnativa possui caráter declaratório de inexistência, ou seja, pressupõe, primeiramente, uma declaração da inexistência da relação jurídica ou da sentença para, então, desconstituir um provimento jurisdicional e ensejar sua perda jurídica do mundo jurídico. É claro, que uma vez desconstituída a sentença, outra deverá ser proferida em seu lugar, substituindo a decisão primeira, dando nova solução ao litígio.
No que tange à competência, após análise detida na jurisprudência, depreende-se que será competente o juízo primevo, o qual prolatou a sentença ausente algum pressuposto de existência, haja vista que a querela nullitatis possui natureza de ação, bem como visa declarar a inexistência de relação jurídica ou decisão que jamais sequer chegaram a existir, podendo, ademais, ser ajuizada a qualquer tempo, vez que ela não transita em julgada. Além do mais, observar-se-á o processo de cognição, se comum, poderá ser ajuizado no procedimento sumário ou ordinário, conforme se estabelecer o valor da causa – competência relativa em razão do valor da causa ou no processo de execução. Se proferida por Tribunal, este é competente para conhecer a querela nullitatis. Do mesmo modo terão competência dos Tribunais Superiores quando prolatadas por estes mesmos, inclusive o Supremo Tribunal Federal, quando a causa envolver matéria afeta à Constituição[19].
Todavia, não é pacífica na doutrina esta questão. Para Leonardo de Faria Beraldo (apud LIMA. 2005) a questão deve ser resolvida pura e simplesmente no STF, eis que este é o órgão que possui competência para julgar e processar as causas de matéria constitucional e a querela demonstra-se de grande relevância, uma vez que é a única ação capaz de relativizar a grande garantia da coisa julgada. Ele mesmo reconhece a enorme dificuldade pragmática disso acontecer, tendo em vista a grande quantidade de processos que a Corte Máxima tem que julgar. Entretanto, reconhece também que até que seja promulgada uma emenda à Constituição, a querela nullitatis deverá ser apreciada pelo juiz de primeira instância. Para a própria autora Brenda Lima, deve a querela nullitatis sempre ser intentada no juízo de primeiro grau, ainda que tenha sido prolatada por órgão de segunda instância, por se tratar de nova demanda.
Ora, poderia uma sentença de primeira instância declarar inexistente um acórdão? A questão é complexa. Todavia, deve ser analisada num contexto amplo. Todas as vezes que um acórdão é proferido em sede de recurso, pelo princípio da substitutividade, este substituirá a sentença de primeira instância, haja vista a impossibilidade de coexistência de dois provimentos judiciais tratando acerca da mesma lide. Portanto, em consonância com este fundamento, é que exsurge o disposto no art. 512 do CPC[20]. Assim sendo, se um acórdão substitui uma sentença e mantêm o ato inexistente, deve a ação de querela nullitatis insanabilis ser ajuizada perante o Tribunal. Não havendo recurso deverá ser intentada em sede de primeiro grau de jurisdição.
Deveras, não seria possível utilizar-se das formas de competência, por analogia, da ação rescisória, uma vez que a ação declaratória de inexistência não visa a rescisão da coisa julgada, mas sim o reconhecimento de inexistência de uma relação jurídica que não se formou ou de uma sentença proferida sem substrato mínimo que lhe dê suporte para ingressar no mundo jurídico. Na ação rescisória, ainda que o vício se dê na sentença, esta deverá ser ajuizada perante o Tribunal competente. Diferentemente do que ocorre com a querela nullitatis, pois, se assim não ocorresse, entende-se, salvo melhor juízo, que haveria supressão de instância, de forma que a primeira instância seria suprimida pela segunda.
Uma vez definida a competência para processar e julgar a ação de querela nullitatis, cumpre construir, neste momento, uma discussão crítica acerca dos diversos vícios nos atos que ensejam a declaração de nulidade ou de inexistência, sendo eles classificados em: atos nulos e dos atos inexistentes. O processualista Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 288), entende que “entre os atos jurídicos e o ordenamento jurídico deve haver uma relação de conformidade. Se a declaração de vontade se harmoniza com a lei, será válida […]. Se entra em atrito com a lei, será inválida”. Desse modo, fala-se em nulidade do ato, sendo esta a conseqüência que recairá sob a declaração de vontade contrária a premissas legais.
A grande finalidade de distinguir os atos considerados inexistentes dos atos nulos (absoluta ou relativamente)[21] é que, como já dito, a querela nullitatis insanabilis abarca as hipóteses de existência, enquanto as anulabilidades e as nulidades que, devem ser declaradas inválidas, podem ser objeto de ação anulatória ou ação declaratória de nulidade, ou ainda, rescisória, conforme previsão legal dentre as hipóteses descritas no art. 485 do CPC. Assim, é mister deixar bem nítida a diferenciação entre elas para saber quais seriam ou não as hipóteses de cabimento de se intentar a ação de querela nullitatis.
A doutrina moderna diferencia as nulidades absolutas de nulidades relativas. As primeiras referem-se a defeitos de norma cogente, violando o interesse público ou norma constitucional, que pode ser declarada ex officio pelo juiz ou através de manifestação da parte interessada a qualquer momento durante o curso do processo. As segundas relacionam-se com um defeito em desconformidade com norma que tutela o interesse dos particulares, que não pode ser conhecida de ofício, mas deve ser oposta pela parte interessada na primeira oportunidade que tiver de falar em juízo, devendo, ademais, esta demonstrar prejuízo efetivamente sofrido. Então, se a parte quedar-se inerte, o ato se convalida tacitamente.
Ressalte-se que as nulidades absolutas poderão ser convalidadas durante o tramitar do procedimento, salvo, após o trânsito em julgado da decisão, ocasião em que incide o efeito da sanatória geral, acobertada pela coisa julgada material, em que o ato viciado convalida-se. Dessa forma, tendo em vista o interesse público devem tais nulidades serem declaradas inválidas pelo juiz ao tramitar do procedimento[22], bem como o magistrado determinará a repetição dos atos que se seguirem ou dele dependerem. As relativas devem demonstrar o prejuízo efetivamente sofrido[23].
Há na doutrina grande divergência entre as nulidades absolutas e os atos inexistentes alegando que aquelas são insanáveis e não passam em julgado. Entretanto, a questão não é bem assim. Esgotando o tema, Ada Pelegrini (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1990, p. 344-345) pontua acerca desta questão relatando que “parte da doutrina nega que haja essa categoria de atos inexistentes, falando antes, em nulidade absoluta. Falam alguns autores em atos anuláveis (para o que chamamos de nulidade relativa), atos relativamente nulos (para o que chamamos de nulidade absoluta) e atos absolutamente nulos (para o que chamamos de inexistência jurídica). A divergência como se vê, é porém mais terminológica que real. Mas como se poderia chamar de nulidade relativa aquela que o juiz decreta de ofício e que muitas vezes sobrevive à própria coisa julgada?”.
Na mesma esteira, Alexandre Câmara (2007, p. 37) esclarece esta confusão. Como visto acima, as nulidades relativas são aquelas que incorrem em vício de norma que é de interesse dos particulares, devendo ser demonstrado o prejuízo e, desse modo, sanam-se se não alegadas na primeira oportunidade. Referente às nulidades absolutas são aquelas que ferem norma de natureza constitucional ou norma cogente que tutela o interesse público, sendo considerados vícios insanáveis apenas ao longo do processo, sanando-se com o trânsito em julgado. Ocorre que o legislador ordinário, em casos muito graves, criou hipóteses expressas que, no momento do trânsito em julgado da sentença, (quando fica sanada a invalidade), surge a possibilidade de rescindir referido provimento judicial através da rescisória.
Ou seja, a grande confusão foi ocasionada porque diversos doutrinadores[24] ao se referir às nulidades absolutas como sendo insanáveis, levavam a entender que esta poderia ser objeto da querela nullitatis, eis que ao utilizar-se a expressão “insanável” davam a entender que jamais o ato ou processo eivado de vício se convalidavam.
Todavia, elas são insanáveis apenas durante o processo, isto é, podem ser levantadas de ofício ou arguidas pela parte ainda que não resulte prejuízo, pois este é presumido, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição até que não se opere os efeitos da coisa julgada material, ou seja, transitem em julgado, ocasião em que defeitos contidos no processo são sanados pelo efeito geral da sanatória. No que tange às nulidades relativas, estas sofrem a preclusão quando não alegadas na primeira oportunidade em que as partes se depararam com ela, vigorando, ademais, o princípio do interesse, o qual preceitua que a parte que causou o defeito não se pode aproveitar dela.
Não obstante, Ada Pellegrini (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1990, p. 339-340) ao abordar os vícios no processo, preceitua que nem todos possuem a mesma gravidade, havendo, pois, vícios que sequer geram nulidade. Ela classifica da seguinte forma: irregularidade sem conseqüência (como exemplo, citam-se os termos abreviados); as irregularidades com sanções extraprocessuais (retardamento de atos do juiz); irregularidades que acarretam nulidades (absolutas e relativas) e irregularidades que geram inexistência. Mas por que a lei estabelece exigências quanto à forma do ato? A referida autora acrescenta que é porque “a necessidade de fixar garantias para as partes, de modo a celebrar-se um processo apto a conduzir à autêntica atuação do direito, segundo a verdade dos fatos e mediante a adequada participação de todos os seus sujeitos” (1990, p. 340).
Devido ao nosso sistema legal ser principiológico e axiomático, deve-se, pois, obedecer a valores e princípios. O CPC consagrou no art. 244[25], o princípio da instrumentalidade das formas, o qual alega que serão anulados os atos imperfeitos se o objetivo não tiver sido alcançado. Desdobra-se, então, que o juiz de ofício não determinará a repetição do ato quando não houver prejuízo para a parte, ou quando puder decidir a favor de quem possa tirar vantagem da decretação de nulidade. Aqui, percebe-se que se trata de nulidade relativa.
Dessa maneira é possível dizer que como regra as nulidades relativas deverão ser argüidas pela parte prejudicada, enquanto as absolutas podem ser alegadas ou decretadas de ex officio pelo juiz.
Contudo, como toda regra no campo jurídico possui exceção, destaca-se como forma de ilustração, o exemplo da citação que contenha um vício de nulidade (citação feita por um oficial de justiça antes das seis horas da manhã). Suponha-se que neste caso o demandado não se defenda da imputação que lhe é feita, correndo-lhe o processo à revelia, porém, a sentença que decidiu a causa lhe aproveita, neste caso, o demandado não terá interesse em anulá-la, configurando, dessa forma, uma exceção à regra de que as nulidades absolutas podem ser decretadas e ofício. A parte não terá interesse em ver tal provimento judicial ser declarado nulo.
Saliente-se que, quanto aos atos inexistentes, diferentemente do que acima ocorre, alega Maurino (apud WAMBIER, 1997, p. 168) que “mesmo quem deu causa à inexistência pode argui-la. Isto não ocorre com as nulidades”.
É possível, então, dizer que as nulidades relativas são a regra trazida pelo Código de Processo Civil, sendo as nulidades absolutas consideradas exceções, devendo a lei especificar as hipóteses que o juiz deve reconhecê-las.
Quanto ao ato inexistente é aquele que não consegue reunir elementos que lhe são inerentes, isto é, não possuem substrato para constituí-lo. Couture (citado por THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 288) relata que “o problema da inexistência, dessa forma, não se situa no plano da eficácia, mas sim no plano anterior do ser ou não ser, isto é, da própria vida do ato”.
Nesta esteira, coloca Aury Lopes Júnior (2009, p. 415) que o ato inexistente é aquele que “teoricamente concebido como a “falta” (e não como “defeito”, ainda que muitos confundam defeito com falta) de elemento essencial para o ato, que sequer permite que ele ingresse no mundo jurídico, ou ainda, o suporte fático é insuficiente para que ele ingresse no mundo jurídico”.
Ora, fica cristalina a distinção entre ato nulo e inexistente segundo as lições de Pontes de Miranda (apud LOPES JÚNIOR, 2009, p. 431) ao aduzir que “defeito não é falta. O que falta não existe. O que foi feito, mas tem defeito, existe. O que não foi feito não existe e, pois, não pode ter defeito. O que foi feito, para que falte, há primeiro, de ser desfeito”. Portanto, frise-se, defeito não é falta. Defeito é aquilo que foi feito, todavia, realizado de forma errada, com imperfeição, há um vício ou desarranjo. Falta não tem defeito, eis que ainda não foi feito. Acrescente-se, a diferença entre defeito e falta resta verificada nos planos de existência e validade, ou seja, a falta é inexistente antecedendo os planos de validade e eficácia e o que foi feito equivocadamente existe, sendo que esta deve ser declarada inválida.
Insta mencionar que o ato com defeito pode ser refeito sem defeito e é o que deve acontecer. Agora, o ato inexiste não pode ser refeito, haja vista não ter sustentação fática que reflita no mundo jurídico.
Em suma, os atos, sejam relativamente ou absolutamente nulos, não se confundem ora alguma com os atos inexistentes, devendo, pois, ficar clara a distinção, haja vista, para cada ato haver uma cominação legal.
Quanto à discussão acerca do objeto da querela nullitatis insanabilis, observa-se que tem por finalidade a declaração de inexistência de sentenças que estão produzindo efeitos no mundo jurídico, já que estão contaminadas por uma mácula presente no plano existencial, faltando-lhe algum elemento substancial fundamental que deveria ser aferido para concretizar o ato. Assim, fala-se que inexistiu determinado ato no mundo fático, mas que foi sentenciado e, portanto, produziu efeito jurídico.
Brenda Corrêa preleciona que seu objeto “é o exame da inconstitucionalidade de decisão judicial” (LIMA, 2005), haja vista, entender que a querela nullitatis fere princípios e garantias de natureza constitucional inerentes ao processo. Segundo ensina Caleb de Melo Filho (MELO FILHO, 2007) a querela nullitatis insabanilis visa atacar “[…] o ato processual propriamente dito, atacando a relação jurídica de direito processual, com arrimo em vício de citação do processo de conhecimento que tramitou à revelia do réu, que não foi comunicado da instauração daquela relação processual que contra ele foi instaurada”.
Referente às hipóteses de cabimento da querela nullitatis, observa-se que a doutrina é totalmente divergente, não havendo, pois, um consenso entre os jurisconsultos, apesar de defenderem a perpetuação dela no ordenamento jurídico atual. Dessa forma, mostra-se necessário analisar o posicionamento e entendimento de vários doutrinadores que dissertam acerca da ação impugnativa em questão para melhor identificar, precisamente, quais hipóteses seriam mais corretas.
Para Teresa Arruda Alvim Wambier (1997, p. 354-356), apesar de não se referir expressamente à querela nullitatis, cuidou de apresentar a distinção entre as hipóteses de nulidade e de existência. Ao ver da autora as sentenças inexistentes ou frutos de processo inexistentes, nunca transitam em julgado, vez que sequer chegaram a ter suporte fático e ingressar no campo jurídico, sendo passíveis de ação declaratória de inexistência que só resta caracterizada pela ação de querela nullitatis, interposta a qualquer tempo. Referida autora, trata a espécie como ação declaratória de inexistência. Ela parece ser a mais liberal aduzindo que seriam casos de sentenças inexistentes tais como os processos com ausência de ato decisório, por consistir na falta da essência do ato sentencial; as sentenças proferidas em processos instaurados por meio de ação, faltando uma de suas condições da ação (possibilidade jurídica do pedido, interesse processual e legitimidade da parte), pois as condições da ação são requisitos constitutivos da ação e também serão inexistentes os processos a que tenha faltado pressuposto processual de existência por ligarem-se fundamentalmente à idéia da relação processual trilateral.
Em que pese as considerações retromencionadas, observa-se que dentre as hipóteses da ação de querela nullitatis, como abaixo se demonstrará, estas situam-se no plano da inexistência, ao mesmo passo que as condições da ação, verificam-se ter ultrapassado aludido plano, adentrando para o de validade. Tais sentenças são existentes, motivo pelo qual devem ser rescindidas e não declaradas como inexistentes. No ponto, devem as sentenças, com ausência das condições da ação serem rescindidas no prazo legal, sob pena de decadência. Hipótese esta que o sistema prefere a segurança jurídica à justiça da decisão.
Neste sentido (GAJARDONI, 2004) “a ausência de uma das condições da ação, da mesma forma, não leva à inexistência da sentença e, consequentemente, à possibilidade de ajuizamento da ‘actio nullitatis’. Como já dito, o sistema prefere a segurança jurídica do que a justiça/legalidade em certos casos. Diante de uma sentença de mérito, quando o caso era de carência de ação, tem a parte possibilidade de interpor recursos. E mais, ainda no prazo de dois anos, pode ajuizar a competente ação rescisória, com fundamento no art. 485, V, do CPC. Se inerte durante todo esse período, mesmo diante da gravidade do vício da sentença, o sistema prefere a pacificação das relações sociais. A sentença se torna, perpetuamente, imodificável”.
Imagine por exemplo o caso de um procedimento que tenha sido processado por um juiz que era absolutamente incompetente. Nesta hipótese, apesar do vício ser insanável, pode a parte se valer da ação de querela nullitatis, ainda que já tenha se formado a coisa soberanamente julgada? Parece que não. O processo sendo existente, em que pese ocorrer um vício gravíssimo de incompetência absoluta, o ordenamento jurídico parece preferir a segurança jurídica à conviver eternamente com a possibilidade de rediscutir o caso. Este é o grande dilema do Direito. Desta forma, terá a parte o prazo decadência de até dois anos, a contar do trânsito em julgado da decisão. Entretanto, poderia, em tese, ser rediscutida a questão diante de uma possível colisão de direitos individuais[26], em que seria afastado o valor da segurança jurídica face ao ideal de justiça.
Para Espinosa (apud WAMBIER, 1997, p. 357) enumera, em sua opinião, quais são as causas que geram inexistência da sentença: “1.0 Inexistência da ação; pleito apresentado perante órgão não jurisdicional; ausência de petição (pedido); inexistência de citação (e atos de comunicação); 2.0 Inexistência da sentença; sentença a non judice; sentença não assinada”.
Segundo Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 722-724) trata, terminologicamente, os atos inexistentes como sendo nulidade ipsu iure. Isto é perceptível, uma vez que ambas possuem as mesmas características e peculiaridades. A partir dessa colocação pode-se dizer que as hipóteses, para o processualista, de nulidade de pleno direito da sentença seriam as mesmas da querela nullitatis. Dessa forma, defende ele, citando Liebman, que tais vícios são maiores, são essenciais, que sobrevivem à coisa julgada e afetam a sua própria existência, e apesar de ter a sentença tornado-se definitiva é coisa vã, mera aparência e carece de efeitos no mundo jurídico. Ainda cita exemplos como a falta ou nulidade da citação do réu revel, o processo que correu sem a participação de todos os litisconsortes necessários, o decisório proferido com a violação da partilha constitucional da jurisdição (incompetência ratione materiae) e a sentença em que o decisório é ofensivo à Constituição.
A partir da análise das proposições formuladas pelo professor citado, nota-se que as hipóteses de inexistência de sentença para ele, então, estariam abarcados dentre os pressupostos processuais de existência, como a citação e jurisdição.
Macedo (2005, p. 50) sustenta a subsistência da querela nullitatis na hipótese contida no art. 741, I, do CPC[27], ou seja, por meio da defesa exercida através dos embargos do executado, não adentrando em detalhes qual a forma do ato que ensejaria a possibilidade de ajuizar a ação de querela. Critica-se tal posicionamento rebatendo-o fundamentando que os embargos do executado seriam uma forma de defesa, não se revestindo como uma verdadeira ação impugnativa, além do mais, estaria depreciando as bases sedimentadas da querela nullitatis insanabilis.
Acredita Fernando da Fonseca (GAJARDONI, 2004) que a única possibilidade de se ajuizar a ação de querela nullitatis será apenas quando ausente qualquer dos pressupostos processuais de existência e em nenhum mais. Ademais, ressalta que as hipóteses de nulidade não se confundem com inexistência, de modo que “não se concebe que sentenças frutos de processo sem que a citação tenha sido viciada (pressuposto processual de validade), em que não estejam presentes condições da ação ou imotivadas dêem guarida à declaração de inexistência”. Através desta colocação, resta cristalina que a citação nula é diferente da citação inexistente e, por conseqüência, também possui efeitos distintos, devendo a esta ser lhe declarada a nulidade absoluta, enquanto aquela, por não ter existido, pode ser alegada a qualquer momento.
Para que se consiga identificar as hipóteses em que será possível o ajuizamento da ação de querela nullitatis é mister deixar claro que se deve levar em conta a distinção entre os planos de existência, validade e eficácia, haja vista a sentença comportar referido exame tríplice.
Para se aferir a vida de determinados atos, estes poderão existir ou não, sendo existentes poderão ser válidos ou não, caso sejam válidos poderão ou não produzir efeitos.
O primeiro deles diz respeito à incidência dos elementos estruturais de uma relação jurídica. Se faltar, qualquer suporte fático de um dos elementos, para Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 310) “o fato não ingressa no mundo jurídico: é inexistente”. Referido plano liga-se aos elementos, eis que elemento é tudo que incorpora o essencial de alguma coisa, ou seja, tudo que entra na composição de alguma coisa, cada parte de um todo.
Já no plano de validade são requisitos que devem estar presentes para que determinada relação jurídica seja considerada válida, de modo a alcançar-lhe o fim almejado. Se a regra jurídica prevê que o ato seja realizado de determinada forma, deve-se, pois, obedecê-la, haja vista que o seu descumprimento enseja nulidade do ato perpetrado.
Referente ao plano de eficácia são os efeitos produzidos em decorrência da aplicação da norma jurídica.
A Teoria trabalhada pelo CPC brasileiro é a da Relação Jurídica insculpida por Oscar Von Bülow. Aludida teoria pauta-se na idéia de que o processo é uma relação entre as partes – autor e réu – e o juiz. Ela foi transposta do direito material para o processual[28]. “O desenvolvimento teórico da categoria ‘pressupostos processuais’ deve-se a Oscar Bülow e tem origem na identificação do processo como relação jurídica distinta daquela que constitui o seu objeto. Assim como o reconhecimento da relação jurídica deduzida (a cujo respeito discutem os litigantes) pressupõe a verificação de certos fatos, ‘também o surgimento da relação jurídica processual, analogamente, depende da presença de determinados elementos, que condicionam em termos globais, a sua existência. Tais seriam os pressupostos processuais’” (DIDIER JÚNIOR, 2005, p. 100-101)”.
Portanto, não restam dúvidas de que caberá a ação de querela todas as vezes que ausente elemento essencial inerente ao ato, eis que referida ação tem o escopo de declarar a inexistência de atos. Ainda que se cogitasse que as hipóteses de cabimento da ação em apreço se desse no âmbito de validade, seria um grave equívoco, eis que quando o ato adentra para o âmbito de validade, quer dizer que, já passou do plano de existência, de forma que, se existe, está a sofrer os efeitos da sanatória geral, podendo transitar em julgado. Neste viés, será cabível ação rescisória no prazo de dois anos contados do trânsito em julgado da sentença a qual se operou a nulidade.
Então, a título de exemplificação, todas as vezes que ocorrer um procedimento em que não houve a citação do demandado é inquestionável a inexistência da relação jurídica processual (por não chegar a formar referida relação), de maneira que a sentença proferida neste feito não pode existir, entretanto, deverá ser declarada inexistente a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição.
Destarte, coaduna-se com a melhor doutrina de Gajardoni (2004) que entende que só há que se cogitar a querela nullitatis insanabilis nos casos em que faltar suporte fático a qualquer elemento essencial à formação da relação jurídica, ou seja, ausente qualquer dos pressupostos processuais de existência a relação jurídica[29], esta é, por conseguinte, inexistente. Com efeito, a sentença fruto de uma relação inexistente, da mesma forma, é inexistente. Por isso é que se fala que poderá ser declarada inexistente tanto a relação jurídica quanto a sentença proferida fruto da referida relação.
Demonstrado que o objeto da querela nullitatis tem por finalidade a declaração de sentenças inexistentes e que suas hipóteses de cabimento dizem respeito ao plano existencial, saliente-se que, apenas os pressupostos processuais de existência, e em mais nenhuma possibilidade, haverá a possibilidade de se intentar a ação de querela nullitatis[30].
Assim, os pressupostos processuais de existência “são aqueles requisitos mínimos para a própria constituição da relação jurídica processual, sem os quais essa não existe, e consequentemente, o fruto dela, a prestação jurisdicional veiculada na sentença, também não” (GAJARDONI, 2004). Ou seja, a falta de qualquer um dos pressupostos processuais[31] implica na inexistência da relação jurídica, eis que o processo jamais sequer chega a existir.
Dessa forma, podem ser classificados como pressupostos processuais de existência[32]: a) a citação; b) procedimento[33]; c) jurisdição e d) capacidade postulatória.[34]
Registre-se que, comumente, a expressão pressupostos processuais é empregada tanto para os pressupostos processuais de existência, quanto para os requisitos de validade, bem como para as condições da ação. Afirma a assertiva Fredie Didier Jr. (2005, p. 72) relatando que os “pressupostos processuais (expressão que envolve tanto os pressupostos de existência como os requisitos de validade do processo), as condições da ação e questões de mérito”.
Todas as vezes que uma sentença for proferida ausente qualquer desses pressupostos, a relação processual será inexistente, surgindo, desse modo a possibilidade de se argüir a ação declaratória de inexistência.
A relação processual inicia-se com a citação[35]. Este é o ato pelo qual se chama o demandado ou o interessado a juízo para se defender. Ou seja, é o ato de informar ao réu que contra ele está correndo um processo judicial para que ele apresente defesa.
Com efeito, se a citação não é feita, o ato é inexistente e não se pode falar que foi formada a relação processual trilateral – autor, juiz e réu. Ademais, conforme preceitua o art. 214 do CPC[36], a citação inicial é indispensável para a validade do processo. O plano de validade vem depois do de existência, ou seja, para que o processo possa ser válido, ele deve, ao menos, existir.
Caso a citação seja feita com defeito de nulidade absoluta, deverá ser declarada inválida. A título de ilustração, cita-se o exemplo da citação realizada por oficial de justiça feita antes das 06:00h (seis horas) da manhã, sendo este ato indispensável, contrário à disposição expressa de lei. A citação, neste caso, não pode ser declarada inexistente, ainda que tenha ocorrido à revelia, devendo ser reputada inválida, embora legitimada por presunção legal, ela se encontra maculada de vício constante no plano de validade. Neste caso, durante todo o processo pode-se argüir o vício de citação, ainda que haja ocorrido a formação da coisa julgada, nos temos do art. 485, V, CPC[37], pois tal vício não se sana com o efeito geral da sanátoria, ocasião em que nasce para parte o direito subjetivo público de rescindir a demanda viciada pelo ato de citação.
Entretanto, passado dois anos após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o sistema brasileiro prefere a segurança jurídica em determinados casos do que ter que conviver com a inconveniente possibilidade de reabrir o caso e rediscutir o mérito indefinidamente. Aí sim, nesta ocasião imperará a segurança jurídica, através da coisa julgada, não mais existindo a possibilidade de reabrir e rediscutir o litígio viciado pelo ato inicial da citação.
Outra hipótese comumente tratada pela doutrina é a questão da ocorrência de um litisconsórcio necessário no processo em que um dos litisconsortes não é citado[38]. Considerando que, se a lei taxa como necessária a ciência de mais de uma parte em determinado pólo da demanda em certos tipos de procedimentos, ter-se-ão que ser citados todas elas, sob pena de infringir um dos pressupostos processuais de existência, ocasião que dará ensejo a suscitar se relação jurídica processual efetivamente existiu. Ademais, a eficácia da sentença que decidir a lide depende da presença de todos eles no processo[39].
No que tange ao procedimento, “não existe a sentença, também, quando os feitos em que proferidas não tiveram um procedimento, iniciado por uma petição inicial e finalizado por uma sentença com o mínimo de elementos formais” (GAJARDONI, 2004). O sistema jurídico brasileiro preza pelo princípio da inércia como regra geral, de maneira que o Poder Judiciário deve ser provocado, porque senão a primeira impressão que o magistrado tiver do caso ele já terá condições de julgar a lide, não havendo necessidade de se realizar a colheita de provas para influenciar no convencimento do órgão jurisdicional. Ademais, o magistrado estaria sendo completamente parcial, o que fere, reflexamente, o devido processo legal, garantia assegurada pelo constituinte originário de 1988. Ressalva-se aqui, os atos que podem ser realizados de ofício pelo magistrado quando previstos expressamente na legislação.
Noutra banda, não poderá ser declarada inexistente sentença que não esteja devidamente fundamentada. Em tais casos, caberá a apelação e, por conseguinte, deverá o Tribunal anulá-la e determinar que o juiz de primeira instância fundamente seu ato[40]. Diferentemente ocorre nas sentenças em que não haja um comando judicial, seja declaratória, condenatória ou constitutiva, eis que lhes falta o mínimo de elementos formais.
No sistema processual civil vigora o princípio da correlação em que deve haver uma correspondência entre os pedidos formulados pelo autor com o seu deferimento pelo juiz. Não resta dúvida de que, se o demandante pleiteia R$ 10.000,00 (dez mil reais), porém, o juiz lhe concede apenas R$ 5.000,00 (cinco mil reais), caberá apelação. Mas e se requerer R$ 10.000,00 (dez mil reais) e o juiz condenar em 15.000,00? Ou ainda, se pedir a condenação em R$ 10.000,00 (dez mil reais) e o juiz declarar que apenas ocorreu a relação jurídica? Parece, salvo melhor juízo, que também se trata de casos de querela nullitatis, tendo em vista que o pedido não existiu[41].
Referente à jurisdição são os casos em que a sentença foi proferida por juiz que não tinha poderes para tanto. Ou seja, o magistrado prolator da decisão não estava investido na função jurisdicional[42]. Imagine que um juiz tenha sido afastado compulsoriamente por um período de seis meses. Dessa forma qualquer sentença por ele elaborada, durante este período, não terá a força estatal vinculante, eis que ausente de qualquer conteúdo material.
Quanto à capacidade postulatória[43] diz respeito à possibilidade de postular em juízo. Referido direito está expressamente previsto no Estatuto da OAB[44] e só o tem advogado devidamente inscrito no órgão, salvo exceções previstas na legislação esparsa[45]. Dessa maneira, todas as vezes que um procedimento estiver sob o patrocínio de um advogado que não possuir poderes para a realização do ato, não há dúvidas de que este ato deverá ser declarado inexistente. Da mesma maneira, quando o advogado que estiver atuando na causa não possuir habilitação (entenda como inscrição no órgão da categoria – OAB) para exercer as atividades privativas da advocacia. Em ambos os casos, se o procurador não possui capacidade de postular perante o Poder Judiciário, qualquer pedido que tenha sido formulado não possui legitimidade para requerê-lo.
O próprio Código de Processo Civil cuida de algumas hipóteses no art. 37[46] em que o advogado será admitido para postular em juízo sem o instrumento do mandato. Entretanto, conforme dispõe seu parágrafo único “os atos, não ratificados no prazo, serão havidos por inexistentes, respondendo o advogado por despesas e perdas e danos” (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 265). Melhor solução não haveria de ser encontrada para os atos praticados por quem não possui poderes para tanto. Como se percebe, não é possível pleitear direito alheio em nome próprio, salvo exceções expressas em lei[47], uma vez que não há legitimidade para se realizar requerimentos em nome de outrem. Só o próprio titular do direito é quem possui a prerrogativa de delegar poderes a outra pessoa, bem como quais serão os poderes conferidos a esta. Neste espeque, a qualquer tempo poderá ser recorrida à ação declaratória de inexistência, ou querela nullitatis, para extirpar do mundo jurídicos atos inexistentes que foram reportados existentes por meio de uma sentença.
Poderia ser ajuizada ação rescisória no lugar ação declaratória de inexistência? Considerando que um dos requisitos básicos para se intentar a rescisória é de que o provimento judicial deve ter transitado em julgado[48], não se poderia, então, substituir uma ação por outra. Ora, aquilo que falta, isto é, inexistente, jamais passa em julgado, de tal sorte que a sentença inexistente não pode ser combatida via ação rescisória. Não há que rescindir o que não foi feito.
Portanto, não se pode olvidar que é mister a distinção entre os planos de existência e validade para analisar aquilo que foi inexistente daquilo que foi inválido. Ademais, verifica-se o quão é importante referida distinção para se averiguar as hipóteses de ação rescisória e querela nullitatis, uma vez que, configurado o problema da inexistência, este antecede qualquer análise sobre o âmbito da validade.
Uma vez declarada inexistente a sentença ou a relação jurídica, qual será o efeito atribuído pela nova sentença de mérito? A sentença inexistente como regra não produz nenhum tipo de efeito, eis que lhe faltam elementos fáticos necessários para lhe conduzir eficácia. Entretanto, teoricamente, é perfeitamente possível que no caso concreto venha a produzir efeito. Essa segunda categoria á a que interessa ao presente trabalho, isto é, quando sentenças inexistentes, apesar de lhes faltar elemento fático, podem produzir efeitos no mundo jurídico. Sendo assim, quando um processo cuja sentença que tenha ocorrido sem a citação, do ponto de vista processual, é inexistente, todavia, é quase certo que está produzindo efeitos. Dessa forma, o primeiro efeito é a determinação de que, imediatamente, tais efeitos deixem de serem produzidos ou deixem de existir.
Por tal razão, a qualquer momento em qualquer grau de jurisdição é perfeitamente possível o ajuizamento da ação declaratória de inexistência. Ademais, saliente-se que a doutrina reconhece que as ações declaratórias de modo geral são imprescritíveis, haja vista, ter por escopo a finalidade de declarar se determinada relação jurídica ocorreu ou não. Até porque, como não envolvem prestações, não há que se falar em prescrição. O direito a uma declaração só poderia, em tese, ser potestativo, e, então, submeter-se ao prazo decadencial.
Nos dizeres de Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 288) “a sentença declaratória, finalmente, gera a certeza jurídica sobre a relação jurídica deduzida em juízo”. Nessa esteira, aduz-se que, após reanálise da relação processual e constatada que a mesma inexistiu por qualquer motivo, a nova sentença trará para o caso a certeza de que uma demanda anterior não foi capaz de iniciar-se por não estarem presente todos os pressupostos processuais de existência.
Logo após inibir os efeitos decorrentes da sentença inexistente, há que se examinar se os efeitos declaratórios se operariam ex tunc ou ex nunc. Estes começam a vigorar a partir da sentença, produzindo efeitos ulteriores. Aqueles retroagem ao estado em que se formou a relação jurídica.
Como cediço, por regra os efeitos decorrentes de uma sentença declaratória são ex tunc, retornando à data do acontecimento. Como a querela nullitatis tem por escopo a declaração de inexistência, nota-se que deve prevalecer o efeito ex tunc, tendo em vista que não pode ficar no prejuízo a parte a qual teve um direito lesado em virtude de um provimento jurisdicional.
O Direito mostra-se ser uma ciência humana e não exata, razão pela qual não é possível extrai-se conclusões absolutas. O magistrado deverá modular os efeitos declaratórios da sentença, in casu¸ e verificar qual é o efeito a ser aplicável.
Imagine o caso de um determinado cidadão que vive em uma fazenda afastada, sendo este seu único bem, e quase não possui acesso aos meios de comunicação. Suponha-se que certo dia chegue à fazenda deste senhor um oficial de justiça e lhe diga que seu único bem será penhorado e executado caso não pague uma dívida no valor de três milhões de reais. Ressalte-se que referido senhor sequer sabe que contra ele correu um processo de conhecimento e ele foi a parte sucumbente. O dono da fazenda não possui de meios para liquidar a dívida e acaba por ver seu único bem ser penhorado. Passados cinco anos o senhor procura um advogado que lhe disse que o processo foi inexistente, haja vista, não ter sido citado para responder ao processo. É justo que o proprietário da fazenda fique sem reavê-la, bem este que era seu de direito? Logicamente não, sendo que neste caso caberá a ação de querela nullitatis insanabilis para reverter a situação e, portanto, o efeito a ser decretado pelo juiz deverá ser ex tunc de forma a retroagir ao status a quo como as coisas eram, retornando o bem para que seja incorporado ao patrimônio de seu legítimo proprietário, de onde jamais devia ter saído.
Para tanto (LIMA, 2005) “[…] é imprescindível valer-se do princípio da proporcionalidade, a fim de que se realize um juízo de ponderação levando em consideração as possíveis conseqüências da declaração, ou seja, deve o Tribunal agir com prudência e sopesar a regra geral – efeitos ex tunc – e a possibilidade de restrição de tais efeitos quando estes puderem ameaçar a segurança jurídica ou quando se tratar de relevante interesse público, de maneira adequá-los à necessidade de cada situação”.
Por tais razões é que se fala que as sentenças declaratórias possuem, via de regra, de eficácia imediata ou completa, operando efeitos ex tunc.
Insta neste momento, identificar, explicar e criticar qual é o atual posicionamento da querela nullitatis insanabilis nos Tribunais e observar como é o pensamento destes nos dias atuais. E, diga-se de passagem: não há unanimidade entre estes.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, acerca da presente ação impugnativa possui o seguinte entendimento:
“'QUERELA NULLITATIS' – AÇÃO CABÍVEL PARA ATACAR SENTENÇA INEXISTENTE – NÃO CONFIGURAÇÃO NO CASO DOS AUTOS – VÍCIO RELATIVO A PRESSUPOSTO PROCESSUAL DE VALIDADE QUE CULMINA NA NULIDADE DA SENTENÇA – AÇÃO IMPUGNATIVA IMPRÓPRIA – FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA – RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1 – Padecendo de ausência dos pressupostos processuais de validade – petição inicial válida, competência do juízo e imparcialidade do julgador, capacidade e legitimidade processual, citação válida (intrínsecos) e litispendência, coisa julgada e cláusula imprópria (extrínsecos) -, a sentença é nula, cujo remédio processual é a ação rescisória ou anulatória, já que a sentença proferida com vício de validade existe, apesar de nula. 2 – Tratando a questão dos autos de sentença supostamente nula, incabível o pleito pela via da 'querela nullitatis', admitida pelo ordenamento jurídico para desconstituir sentença inexistente, o que ocorre nos casos de ausência dos pressupostos processuais da própria construção do processo, quais sejam, petição inicial, citação, capacidade postulatória, diante da impossibilidade de se anular o que não existiu juridicamente […] (BRASIL. TJMG, 2010)[49]”.
Observa-se, pois, que está corretíssimo o entendimento destes julgadores, haja vista diferenciar detalhadamente os vícios de nulidade dos vícios de existência, de modo que estes são os vícios atacáveis através da querela nullitatis insanabilis, enquanto aqueles ficam a cargo da ação rescisória ou anulatória, conforme o caso. Ademais, ressalte-se que a sentença proferida com defeito de validade é nula ou anulável, já a sentença prolatada em desconformidade com os elementos constitutivos do seu ato é inexistente. Em consulta a toda a jurisprudência deste trabalho, a fundamentação e construção jurídica mais pontual acerca da ação impugnativa em apreço, salvo melhor juízo, parece ser a deste Tribunal, eis que toda a essência da querela nullitatis insanabilis fica bem delineada no acórdão.
Contudo, como o direito não é estático e permite outras formas de entendimentos, ensina o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“1. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. QUERELA NULLITATIS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE NA CITAÇÃO. Doutrinariamente tem se admitido a sobrevivência do instituto da querela nullitatis na possibilidade de utilização da ação declaratória de nulidade, se o caso for de sentença nula ipso iure ou de inexistência, se inexistente a sentença. E dentre as situações em que se tem admitido a ação declaratória de nulidade, está a da sentença proferida em processo, no qual foi omitida, ou, se realizada, foi nula a citação do réu. 2. citação. edital. cabimento. réus em local incerto e não sabido. A mera afirmação de que os réus encontram-se em lugar incerto e não sabido, consoante dispõe o art. 231, II, do CPC, já justifica a citação por edital. Citação que é plenamente eficaz se não restar comprovado que o autor sabia ou deveria saber o endereço dos réus. sentença desconstituída e apelação, examinando o mérito, improvida[50]”. (BRASIL. TJRS, 2008).
Pelo compulsar da ementa da jurisprudência, nota-se que o Tribunal tem entendido que ação declaratória de nulidade é a querela nullitatis, o que é um grande equívoco a nomenclatura empregada, tendo em vista toda a matéria já discorrida. Essa confusão ocorre por causa da herança adquirida desde o período antigo, em que as nulidades eram tidas como inexistentes, ou seja, o ato maculado por uma nulidade, nesse período, era um ato inexistente. Essa distinção deve ficar bem clara, porque os erros de forma geram nulidades, sanando-se com o tempo, enquanto, vícios de existência jamais se convalidam com o transcurso temporal. Lado outro, resta verificado na jurisprudência acima o reconhecimento da querela inserido nos casos em que o ato foi inexistente, havendo apena uma divergência quanto à nomenclatura empregada
Na análise do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
“AÇÃO RESCISÓRIA. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO VÁLIDA. HIPÓTESE DE QUERELA NULLITATIS. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO.1- Em harmonia com o valor da segurança jurídica assumido pelo ordenamento constitucional, a lei processual discrimina as circunstâncias específicas em que admite a alteração da coisa julgada por meio da ação rescisória.2- O art. 485, do CPC, não cogita, expressamente, da admissão da ação rescisória para declaração de nulidade por ausência de citação, pois não há que se falar em coisa julgada na sentença proferida em processo em que não se formou a relação jurídica apta ao seu desenvolvimento. 3-Nesse aspecto, como solução para impugnar a sentença inexistente, que justamente por esse seu atributo não resulta em coisa julgada de mérito abrangível pelo objeto da ação rescisória, adota-se a ação declaratória de inexistência – querela nullitatis. 4- Nesse contexto, a imediata evidência da falta dos requisitos essenciais ao ajuizamento da ação rescisória enseja a sua extinção sem apreciação do mérito. [51](BRASIL. TJRJ, 2008)
A jurisprudência carioca vem consolidando o que diz a mineira como se pode perceber, distinguindo os defeitos que consequentemente serão declarados nulos, daqueles em que, por conseguinte, serão declarados inexistentes. Ademais, saliente-se que alguns Tribunais entendem que a classificação dos atos inexistentes é a mesma que nulidade absoluta, atribuindo-lhes apenas uma terminologia diferente.[52]
É mister abordar a posição do Superior Tribunal de Justiça, bem como a opinião da Corte Suprema brasileira. Aquele preconiza a ação impugnativa em tela da seguinte forma:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ACÓRDÃO PROFERIDO PELA ANTIGA PRIMEIRA TURMA DO TRF 2ª REGIÃO. COMPETÊNCIA PARA APRECIAR E JULGAR A QUERELA NULLITATIS. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EXPRESSA NO CPC E NO REGIMENTO INTERNO DA CORTE A QUO. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, POR ANALOGIA, DAS REGRAS ATINENTES À AÇÃO RESCISÓRIA. COMPETÊNCIA DA TURMA ESPECIALIZADA QUE SUBSTITUIU O JUÍZO QUE EXAROU O DECISUM. PRECEDENTES. 1. Agravo interno cuja controvérsia gira em torno da utilização da doutrina ou da analogia, amparada nos requisitos da ação rescisória, para definir a competência interna para apreciar e julgar querela nullitatis, em face da ausência de previsão expressa no CPC e no Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. 2. O entendimento desta Casa, no que diz respeito a chamada querela nullitatis insanabilis, é de que a competência para apreciação e julgamento pertence ao juízo primevo, pois não se pretende a rescisão da coisa julgada, mas apenas o reconhecimento de que a relação processual e a decisão jamais existiram[53]” […](BRASIL. STJ, 2011).
A linha de pensamento traçada pelo STJ, no que tange à competência, é mesma acima abordada. Pela análise do acórdão, o Tribunal veda o uso de analogia das regras da ação rescisória, para se aplicar à querela nullitatis com relação às regras de competência, devendo, pois, ser processada e julgada pelo juiz de primeira instância, uma vez que, pretende-se com ela não rescindir uma sentença, mas apenas declará-la inexistente. Entretanto, ainda se depreende, que a nomenclatura utilizada não é a tecnicamente correta, como já visto através dos fundamentos citados alhures.
O Pretório Excelso aborda a querela nullitatis, manifestando-se:
“AÇÃO DE NULIDADE. ALEGAÇÃO DE NEGATIVA DE VIGÊNCIA DOS ARTIGOS 485, 467, 468, 471 E 474 DO C.P.C. PARA A HIPÓTESE PREVISTA NO ARTIGO 741, I, DO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – QUE E A DE FALTA OU NULIDADE DE CITAÇÃO, HAVENDO REVELIA -, PERSISTE, NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO, A "QUERELA NULLITATIS", O QUE IMPLICA DIZER QUE A NULIDADE DA SENTENÇA, NESSE CASO, PODE SER DECLARADA EM AÇÃO DECLARATORIA DE NULIDADE, INDEPENDENTEMENTE DO PRAZO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO RESCISÓRIA, QUE, EM RIGOR, NÃO E A CABÍVEL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. (BRASIL. STF, 1983)[54]”.
No caso em análise, verifica-se, pois, o reconhecimento da querela nullitatis no direito brasileiro em todas as instâncias de jurisdição. Entretanto, nota-se que há graves equívocos. O primeiro deles diz respeito à citação, que pelo entendimento do STF é possível utilizar a querela quando ocorrer nulidade desta. Ora, sempre que o ato processual incorre em vício de forma ou vício contrário à norma cogente, não se pode olvidar que o ato existiu ainda que de maneira contrária ao Direito. Assim, sempre que houver mácula nos requisitos (conforme definição proposta por Fredie Didier Júnior, já citado) processuais de validade, não há que se falar em inexistência, pois para se falar em defeito, o mesmo foi feito, contudo com equivocadamente.
O segundo está relacionado com a idéia de que a querela nullitatis implica dizer em nulidade da sentença, conforme decisão acima trasladada. A nulidade do provimento jurisdicional é concretizada por meio da ação rescisória ou ação anulatória, visto afetarem os pressupostos processuais de validade.
O terceiro equívoco refere-se ao lapso temporal, eis que as nulidades não são alegáveis a qualquer tempo, porque após terem transitado em julgado, verificando-se o efeito da sanatoria geral, e decorridos mais dois anos, não mais podem ser rescindida e alegada. Contudo, os vícios ligados aos pressupostos processuais de existência, podem a qualquer tempo ser aclamados, porque aquilo que nunca existiu, com o tempo nunca passará a existir.
Portanto, diante de inúmeros pensamentos jurisprudenciais, não restam dúvidas da continuidade e perpetuação, no direito brasileiro, da presente ação impugnativa. Porém, conforme demonstrado há diversos entendimentos e posicionamentos acerca desta, a qual deve ser discutida de forma jurídica e crítica e bem fundamentada. Acredita-se que a visão mais adequada é a do Tribunal mineiro, que, de forma cristalina, difere os planos de validade e existência e de forma reflexa prevê quais as hipóteses de cabimento, a qual traz os traços mais marcantes da querela nullitatis desde quando ela foi criada nos estatutos italianos, no período medieval.
1.5. A querela nullitatis e a afinidade com o instituto jurídico da ação rescisória
A sentença de mérito já transitada em julgado que possui vício descrito dentre as hipóteses do art. 485 do CPC deve ser rescindida, pois infringe norma de ordem cogente, a qual não se convalesce com o efeito da sanatória geral, tendo em vista sua finalidade de assegurar interesse público. Enquanto a sentença maculada de vício de inexistência, esta não deve ser rescindida, mas sim, declarada inexistente por juiz competente.
Como já explanado, a querela nullitatis insanabilis é uma ação autônoma impugnativa, também classificada pela doutrina como sucedâneo recursal externo, visto que se inaugura novo processo, distinto daquele a qual foi proferida decisão impugnada. Dessa forma, deverá ser ajuizada nova demanda, por meio de petição inicial, ocasião em que ela será distribuída e estará sujeita às custas iniciais, salvo se o magistrado entender que a parte é pobre no sentido legal e não possui condições de arcar com o processo sem lhe privar o sustento próprio. Ademais, o próprio nome afigura-se como de uma ação, não podendo, pois, se falar em recurso.
A rescisória somente se dá após o trânsito em julgado da decisão jurisdicional de mérito, pois, caso caiba qualquer outro recurso, a ação rescisória deverá ser declarada inepta por faltar interesse de agir, isto é, dentro do binômio necessidade e utilidade, não haverá preenchido o requisito necessidade, eis que há outra forma da parte inconformada de rever a decisão judicial. Ela deve ser intentada até o prazo máximo de dois anos[55], sob pena de decadência do direito, bem como, após o referido prazo, o vício restará convalidado.
Referida ação visa rescindir, conforme caput do art. 485 do CPC, a “sentença de mérito”. Esta, porém, deve ser entendida como todas as decisões judiciais de mérito, como acórdãos e até mesmo a decisão interlocutória.
Suas hipóteses de ajuizamento estão previstas nos incisos do art. 485 do CPC e são numerus clausus. Dessa forma, só há que se cogitar em rescisória quando descritas no rol taxativo daquele artigo, não cabendo interpretação extensiva ou analógica.
Insta salientar que as nulidades absolutas não permitem o ingresso da ação rescisória, mas tão somente as hipóteses contidas nos incisos do artigo supramencionado, por vontade do legislador ordinário. Há ainda, casos de rescisória em que não há nulidades absolutas e a sentença, ainda que válida, poderá ser rescindida, como por exemplo, a hipótese de surgimento de um documento novo.
Portanto, todas as vezes que num procedimento ocorrer uma mácula a qual é a responsável por infringir norma imperativa, de ordem cogente ou matéria constitucional, em que se verifica o interesse público ocorrerá uma nulidade absoluta a qual se torna convalidada com o trânsito em julgado da sentença por meio do efeito da sanatória geral. Haverá, entretanto, a possibilidade de rediscutir a causa diante das premissas previstas no rol do artigo 485 do CPC.
Importante ressaltar que a ação rescisória tem característica de uma ação desconstitutiva negatória, ou seja, primeiro pretende-se desconstituir a coisa julgada para, posteriormente, atingir o ato viciado de nulidade. Isto porque, que não seria possível declarar a nulidade de um provimento judicial que transitou em julgado, antes de rescindir a garantia fundamental da coisa julgada.
De modo a identificar as hipóteses da querela nullitatis e da ação rescisória, Barbosa Moreira (apud NEVES, 2010, p. 774) corrobora a distinção entre as causas de existência e nulidade preceituando que “é natural que, para ser desconstituída por meio da ação rescisória, a decisão deve existir juridicamente, uma vez que aquilo que não existe não precisa ser desconstituído, bastando mera declaração da inexistência jurídica. Dessa forma, sentença proferida em processo juridicamente inexistente (p. ex, tramitado perante órgão sem jurisdição), ou que tenha vício in procedendo intrínseco que a torne juridicamente inexistente (p. ex., ausência de dispositivo), não é objeto de ação rescisória”.
Diferentemente da querela nullitatis, a ação rescisória pressupõe que haja coisa julgada que, por conseguinte, deve restar formada a existência da relação processual válida. Nos casos em que a relação processual inexiste, adverte o processualista Liebman (apud THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 723) que estes são os “vícios maiores, vícios essenciais, que sobrevivem à coisa julgada e afetam a sua própria existência. Neste caso a sentença, embora se tenha tornado formalmente definitiva, é coisa vã, mera aparência e carece de defeitos no mundo jurídico”. Em tal situação, ocorre a nulidade ipsu iure, para Humberto Theodoro Júnior, que impede a sentença de passar em julgado, pois o que não existiu com o transcurso do tempo não passa a existir. Com efeito, não há que se falar em ação rescisória, visto lhe faltar o requisito da formação da coisa julgada.
Ressalte-se que a sentença com nulidade pleno iure, ou sentença nula de pleno direito, ou ainda, sentença inexistente já era tratada desde o período romano como sendo caso de inexistência e dela não havia necessidade de se recorrer, posto a precariedade do sistema recursal da época, não havendo recurso adequado ao caso, nem necessitava de declaração pelo árbitro, vez que podia ser alegada em qualquer ocasião.
Todas as vezes que restar verificado a ocorrência de uma sentença nula de pleno direito, continua Liebman (apud THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 723) ensinando que “todo e qualquer processo é adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é na realidade inexistente e de nenhum efeito. A nulidade pode ser alegada em defesa contra quem pretende tirar da sentença um efeito qualquer; assim como pode ser pleiteada em processo principal, meramente declaratório. Porque não se trata de anular ou reformar uma decisão defeituosa, função esta reservada privativamente a uma instância superior (por meio de um recurso ou ação rescisória); e sim de reconhecer simplesmente como de nenhum efeito um ato juridicamente inexistente”.
Talvez a expressão nulidade de pleno direito não seja a mais adequada ao caso, isso porque, induz ao operador e intérprete do direito à ligar à idéia das nulidades em geral, absolutas ou relativas, às causas da querela nullitatis o que são coisas totalmente distintas. Conforme demonstrado na jurisprudência, alguns juristas tem se utilizado da declaração de nulidade para se referir à querela nullitatis insanabilis, provocando, na maioria das vezes, confusão entre conceitos de nulidade com inexistência. Para deixar bem clara, nulidade absoluta é diferente nulidade de pleno direito, eis que esta não se encontra com todos os elementos necessários a formar a relação jurídica processual, enquanto aquela decorre da violação de norma cogente, em que se tutela o interesse público.
Ainda neste sentido, a processualista Tereza Arruda Alvim Wambier (1997, p. 355), assevera que “para nós, o ponto distintivo principal entre a antiga querella ou actio nullitatis e a ação rescisória é que aquela visa a impugnar sentença inexistente – e, portanto, ação declaratória de inexistência jurídica e não de nulidade. A ação rescisória, a seu turno, objetiva atingir, por meio da desconstituição da coisa julgada, a nulidade da sentença. Essa distinção se nos afigura imensamente relevante, já que se trata de duas categorias distintas, de dois grupos de diferentes sentenças que padecem de ‘vícios’ bem diferentes (é que a inexistência jurídica pode ser vista como vício, sem sentido lato) e é a própria doutrina tradicional que nos sugere essa terminologia […]”.
Observa Roque Komatsu (apud WAMBIER, 1997, p. 365) que à luz da existência jurídica de um processo em que não tenha havido a citação, ocorre um dissenso na doutrina, no que tange à natureza do vício da falta ou nulidade da citação, em que o réu, consequentemente, veio a se tornar revel. Sustentam alguns tratar-se de inexistência da sentença, enquanto outros vêem como um caso de nulidade ipsu iure. Mas não há dúvidas de que dada a gravidade do defeito, este permanece imune a todas as preclusões, inclusive à soberana coisa julgada, ou defeito grave que impede que ela se constitua.
Por todo o exposto, é indubitável que a ação de querela nullitatis insanabilis sobrevive no ordenamento jurídico, sendo reconhecida pela doutrina, bem como pela jurisprudência. Da mesma forma, não deixa pairar dúvidas de que sua natureza é de uma ação impugnativa que deve ser ajuizada em outro procedimento. Além do mais, possui caráter declaratório de inexistência, tendo como finalidade a extinção do mundo jurídico sentenças que contenham atos inexistentes.
Frise-se ademais, que as hipóteses de cabimento da ação em tela, são aquelas que se figuram dentre os pressupostos processuais de existência, decorrentes de relação jurídica inexistente ou sentença inexistente.
Por derradeiro, urge salientar, que por ter a querela nullitatis caráter declaratório, será imprescritível, eis que visa acabar com determinada incerteza jurídica, bem como porque em processo inexistentes, não há a ocorrência da coisa julgada, de maneira que, a qualquer tempo, poderá ser interposta ação em comento para que o magistrado declare a inexistência de determinado ato que não foi realizado, porém, foi reportado como se tivesse sido realizado, aparentando-se, na prática como perfeito e acabado.
2. A COISA JULGADA
Desenvolver-se-á, no capítulo em apreço, primeiramente, um estudo acadêmico acerca da coisa julgada, analisando suas características e suas diversas acepções. No tópico seguinte, restará ainda demonstrado que diante de inconstitucionalidades não há ocorrência da coisa julgada, eis que esta é inexistente, e, por conseguinte, a coisa julgada que aparentemente havia operado in casu, mostrar-se-á inexistente. Neste espeque, por derradeiro, abordar-se-á se a querela nullitatis possui prazo certo de impugnação ou se será imprescritível. Tecer-se-á, ainda, comentários sobre a coisa soberanamente julgada.
Após, será trazido à baila, o que é a coisa julgada inconstitucional, bem como a controvérsia acerca da possibilidade da ação de querela ou declaratória de inexistência ser oposta ante a coisa julgada inconstitucional. Finalmente será analisado o status coisa julgada, isto é, se esta possui um viés constitucional ou infralegal.
Inicialmente, vale dizer que, para o Código de Processo Civil de 1973, “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.” (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 287). A Lei de Introdução às Normas ao Direito Brasileiro[56] preceitua que “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso” (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 151). Ressalte-se que durante muito tempo, cogitou-se que o instituto em questão foi erigido à categoria de direito absoluto, sendo, portanto, impossível de flexibilização. Com o transcorrer do tempo e a partir de uma melhor compreensão científica da hermenêutica jurídica constatou-se que nenhum direito é absoluto, podendo ser, conforme determinado caso concreto, passível de restrição ou relativização.
Concebe-se, hoje, a coisa julgada, com o advento da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, como garantia fundamental, conforme se verifica a partir da leitura do art. 5º, inciso XXXVI.[57] Referido instituto visa resguardar a segurança jurídica, impedindo que as decisões judiciais sejam revistas indefinidamente. Nesta esteira, sendo a coisa julgada equiparada a direito fundamental, ganha esta, status de cláusula pétrea[58], não podendo, pois, ser abolida ou restringida ou ainda ser objeto de proposta que a extirpe do ordenamento jurídico vigente.
Destarte, pode-se dizer que todas as vezes que uma sentença judicial passa em julgado, torna-se definitiva, irretratável, imodificável, intangível e imutável, e, consequentemente, não há possibilidade de recurso endoprocessual ou acerca do mesmo caso. Assim, todas as vezes que já houver sobre um determinado caso uma sentença transitada em julgado, o sujeito de direito deve argüir a coisa julgada[59] (pressuposto processual negativo) como preliminar[60], utilizando-se da prerrogativa e garantia fundamental inerente ao Estado Democrático de Direito.
A coisa julgada tem o condão de obrigar as partes e o juiz a cumprir a decisão outrora prolatada, isto é, vincula as partes a uma imposição, como se a sentença substituísse a vontade da lei. Quanto ao juiz o impede de rediscutir novamente a controvérsia dentro do mesmo processo, bem como criar uma nova discussão jurídica pelo mesmo caso fático. “Admite-se, dessa maneira, uma função negativa e uma função positiva para a coisa julgada. Pela função negativa exaure ela a ação exercida, excluindo a possibilidade de sua reproposição. Pela função positiva, ‘impõe às partes obediência ao julgado como norma indiscutível de disciplina das relações extrajudiciais entre elas e obriga a autoridade judiciária a ajustar-se a ela, nos pronunciamentos que a pressuponham e que a ela se devem coordenar” (NEVES apud THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 531).
O instituto em tela deve ser, dentro do processo, um pressuposto processual negativo, ou seja, não pode haver outra decisão de mérito acerca da controvérsia em questão. Deve, pois, ser alegada pela parte demandada na contestação. Contudo, caso não seja argüida a preliminar, esta não ficará preclusa[61], tendo em vista que o prejuízo é presumido e evidente, além de que o interesse público é superior ao das partes litigantes.
A doutrina classifica em coisa julgada em formal e material. A primeira delas diz respeito às sentenças terminativas (a sentença põe fim ao processo sem resolução de mérito, nos termos do art. 267 do CPC) que extinguem o processo, contudo, não solucionam o mérito da causa, impedindo nova discussão endoprocessual, porém, através de nova ação é possível rediscutir a questão, desde que não ocorra perempção[62]. Quanto à segunda, esta já possui até mesmo definição no compêndio de normas processuais cíveis, sendo consideradas as sentenças que entregam a prestação jurisdicional solucionando a lide (julgamento com resolução de mérito, cujas hipóteses estão previstas no art. 269 do CPC). Na coisa julgada material, ademais, a sentença transcende os efeitos do processo, ou seja, impedem a discussão do processo, bem como outro que venha a discutir sobre o mesmo litígio. Com efeito, dentro de um determinado procedimento, o magistrado ou extingue o processo acolhendo preliminares ou soluciona o mérito em questão. Além do mais, só ocorrerá a coisa julgada material em coexistência com a formal, todavia, a recíproca não é verdadeira.
Aduz o processualista Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 529) “filiando-se ao entendimento de Liebman, o novo Código não considera a res iudicata como um efeito da sentença. Qualifica-a como uma qualidade especial do julgado, que reforça sua eficácia através da imutabilidade conferida ao conteúdo da sentença como ato processual (coisa julgada formal) e na imutabilidade dos seus efeitos (coisa julgada material) […]. Para o grande processualista, as qualidades que cercam os efeitos da sentença, configurando a coisa julgada, revelam a inegável necessidade social, reconhecida pelo Estado, de evitar a perpetuação dos litígios, em prol da segurança que os negócios jurídicos reclamam da ordem jurídica”.
Quanto ao instituto jurídico tratado, existem, contudo, exceções à regra geral. Dentre estas, destaca-se a ação rescisória, a qual até mesmo tem por pressuposto a formação da coisa julgada, como visto acima e a relativização da coisa julgada, que, atualmente, tem ganhado força na comunidade jurídica. Dizer que a querela nulitatis é uma exceção à coisa julgada é um completo absurdo, pois, como muito já debatido, esta jamais passa em julgado, por não haverem os pressupostos processuais de existência que são os elementos que lhe dão substância para que existam juridicamente.
Nesta esteira, explica Nelson Nery Júnior (2010, p. 710) “para que a sentença de mérito, proferida pelo juiz no processo civil, adquira autoridade da coisa julgada (coisa julgada material), é necessário que estejam presentes os pressupostos processuais de existência: jurisdição do juiz, petição inicial, capacidade postulatória (somente para o autor) e citação do réu (quando necessária), presente os pressupostos processuais de existência da relação jurídica processual, o processo existe e, consequentemente, a sentença que nele vier a ser proferida, se de mérito, será acobertada pela auctoritas rei iudicatae, tornando-se imutável, indiscutível e intangível. Caso falte um dos pressupostos processuais de existência , o processo inexiste e a sentença que nele vier a ser proferida será, igualmente, inexistente: não terá força de coisa julgada e por isso prescinde de rescisão, porque não produz nenhum efeito”.
Ao observar as razões expostas pelo doutrinador, afere-se que não caberá ação rescisória quando faltar elemento fático – pressupostos processuais de existência – todavia, será cabível ação de querela nullitatis insanabilis, eis que esta prescinde o efeito da coisa julgada. Relembre-se que ação rescisória só é ajuizada nos casos em que se formou a coisa julgada, haja vista, ser um dos requisitos trazidos pela legislação para que ela seja ajuizada.
Impende ainda realizar uma discussão jurídica acerca da coisa julgada, para compreender seu enquadramento, alcance e o conteúdo jurídico, isto é, se ela possui regime constitucional ou infralegal. Dentre os argumentos que defendem a coisa julgada como tendo regime infraconstitucional, visualiza-se a tese de que o comando insculpido no art. 5º, inciso XXXVI, da CRFB/88, remete ao legislador ordinário (“a lei não prejudicará a coisa julgada”), a quem fica a cargo de restringir o conteúdo da norma. Assim não pode uma lei nova, ao entrar em vigor, agredir apenas a coisa julgada.
Rebatendo o argumento, tem-se que, se a lei não pode retroagir para prejudicar a coisa julgada, conforme redação constitucional, seria porque ela é superior à lei, sendo, no mínimo, supralegal. Ainda que a coisa julgada fosse equiparada à lei, esta teria o condão de revogá-la. Registre-se ainda, no ponto, que, se não há possibilidade do legislador emendar a Norma Ápice, restringindo ou abolindo direito fundamental (art. 60, VI, § 4º), tão mais o legislador ordinário restringindo os efeitos da coisa julgada.
Insta pontuar que, se todos os direitos individuais fundamentais previstos na Constituição da República pelo simples fato de a regra nela constante remeter-se ao legislador infraconstitucional para sua implementação, for erigida à condição infraconstitucional, deixarão de ser direitos constitucionais como, por exemplo, os direitos de defesa do consumidor (art. 5º, inciso XXXII), os direitos do autor (art. 5º, inciso, XXVII) o direito de informações (art. 5º, inciso, XXXIII), dentre inúmeros outros direitos fundamentais.
Dentre alguns dos argumentos que sustentam ter a coisa julgada regime normativo constitucional, o primeiro refere-se à localização topográfica que se encontra na Norma Maior, o segundo porquanto, de forma extensiva, se existe previsão a qual veda a lei retroagir prejudicando a coisa julgada, assim também os atos administrativos e legislativos não podem retroagir[63].
Aduz Marinoni (apud Castro, 2009) que “a coisa julgada é inerente ao Estado de Direito e, assim, deve ser vista como um subprincípio que lhe dá conformação. Não há como aceitar a tese no sentido de que a garantia da coisa julgada material, insculpida no art. 5º, XXXVI, da CF dirige-se apenas ao legislador, impedindo-o de legislar em prejuízo da coisa julgada. Ora, como é evidente, a coisa julgada é garantia constitucional do cidadão diante do Estado (em geral) e dos particulares”.
Finalmente, salienta-se que ora alguma, questiona-se que a coisa julgada seja intangível e absoluta. Até mesmo como cediço, todos os direitos fundamentais são relativos, sendo ainda perfeitamente possível, ante uma situação fática, sua flexibilização, e ainda, no caso da coisa julgada, existe até mesmo previsão legal possibilitando sua restrição, como se dá no caso da ação rescisória.
2.1. Sobrevivência à coisa julgada inconstitucional: imprescritibilidade da querela nullitatis insanabilis
Como muito já se abordou, a querela nullitatis não se convalida com o decurso temporal. Isto ocorre porque, a decisão judicial que pôs fim ao litígio não chegou a se constituir e se formar no plano de existência, isto é, sequer chegou a se constituir uma relação jurídica, de tal forma, que se mostra impossível a coisa passar em julgado, por falta de elementos que constituem o ato.
Camusso (apud WAMBIER, 1997, p. 167), dissertando sobre a questão aduz que “o ataque aos atos processuais inexistentes não requer, sequer formulação escrita proporcionada pelo legislador. Ademais, não há nada a destruir, não haverá limite temporal para constatar-se a inexistência”. A referida autora Wambier que transcreve a citação coaduna com o entendimento do citado doutrinador.
Não obstante, sendo o ato inexistente e não havendo necessidade de destruição ou rescisão, não há que se falar em lapso temporal certo e determinado. As ações declaratórias, por sua natureza são imprescritíveis, de tal sorte, que a qualquer tempo podem ser aclamadas. Dessa forma, ensina Teresa Arruda Alvim Wambier, o motivo das ações declaratórias serem imprescritíveis, de tal forma que não colidem com a segurança jurídica que deve imperar nas relações sociais. Assim sendo, as ações declaratórias são imprescritíveis “[…] porque a finalidade das ações declaratórias é a de suprimir, do universo jurídico, uma determinada incerteza jurídica. Segue-se daí que, enquanto existir ou subsistir, e precisamente porque está presente uma determinada incerteza jurídica, não há lugar para a prescrição da ação declaratória, cujo objetivo é precipuamente o de por fim a essa incerteza (1997, p. 362)”.
Até porque, se fosse o caso, o que se poderia falar era de decadência. Com efeito, os atos inexistentes antecedem ao plano de validade, ou seja, situam-se no plano do ser ou não ser, de maneira que se tais atos não possuem suporte jurídico mínimo a ingressar no mundo da existência, não podem sequer sofrer vício de validade para que sejam considerados atos nulos. Assim, se o ato é inexistente não há que se falar em desconstituí-lo, e, por conseguinte, não haverá prazo para verificar-se que ele inexistiu, pois do nada não pode começar a existir.
As sentenças em que se podem verificar atos inexistentes precisam ser declaradas como tal?
Parte da doutrina entende ser conveniente que seja declarada inexistente a sentença, sob o fundamento de que se o ato não foi decretado como inexistente, até então, este se mostra como válido, podendo até mesmo vir a produzir efeitos no mundo jurídico[64]. Em pensamento contrário, afirmam outros que sentenças inexistentes prescindem de declaração argumentando que a ação a declarar inexistente a sentença, não cria nova sentença e não faz desaparecer qualquer situação jurídica material [65].
Entende-se como mais correta a corrente que defende a importância da declaração de inexistência, posto que em muitos casos a sentença pode vir a produzir efeitos e afetar os direitos das partes envolvidas. Como forma de ilustração, cita-se o caso de um juiz aposentado que continua a prolatar sentenças. Imagine, neste caso, que ninguém observa que ele não está mais investido na função da judicatura e a sentença, apesar de não existir juridicamente, pode existir no mundo dos fatos, caso um oficial de justiça venha a executar a determinação proferida por este juiz o qual se encontra aposentado. Nesta esteira, não restam dúvidas de que é sentença inexiste, mas também não se pode olvidar que até que seja declarada como tal está propícia a operar efeitos, apresentando-se como existente[66]. Outro exemplo é a hipótese de um processo que houve sentença de mérito, porém, não houve citação da parte adversária, de maneira que se não é declarada como inexistente, aparenta-se como existente, sendo válida, vindo, até mesmo, a produzir efeitos. A aparência da sentença inexistente, a princípio, faz com que ela surta efeitos no mundo fático, razão pela qual é persiste a necessidade de que seja declarada como tal.
Portanto, após pesquisa na doutrina, verifica-se, pois, que é uníssono o entendimento de que, a querela nullitatis ou denominada por Wambier como ação declaratória de inexistência, jamais transita em julgado ou se convalida com o tempo, de tal forma que jamais se forma a coisa julgada e os atos inexistentes passam a ser existentes, eis que o que nunca existiu com o tempo não passa, por si só, a existir.
Há ainda, uma corrente doutrinária, com a qual se coaduna, de que é possível intentar a ação de querela nullitatis a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição nas hipóteses em que se está diante da coisa julgada inconstitucional. Todavia, mostrar-se-á que ela, na verdade, também padece de mácula de inexistência, uma vez que, os direitos e garantias fundamentais protegidos pela CRFB/88 devem ser resguardados e desconstituídos quando ocorrer vício de inconstitucionalidade, devendo este ser declarado como tal. O próximo tópico tem por finalidade discutir o presente assunto.
2.2. A coisa julgada inconstitucional
A coisa julgada é um dogma jurídico que tem por finalidade trazer para os cidadãos a certeza e a segurança jurídica das relações sociais, buscando a paz e harmonia social, direitos estes decorrentes do Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição promulgada em 1988, sendo nesta assegurado, nos dias atuais, como direito fundamental.
A coisa soberanamente julgada, assim classificada pela doutrina, ocorre após passar o biênio decadencial taxado expressamente no Compêndio de Normas Processuais. Como se sabe, a coisa julgada se concretiza nos processos que não mais estão sujeitos a recurso, seja ordinário ou extraordinário. Portanto, a coisa “soberanamente” julgada se realiza depois do prazo da ação rescisória, ocasião que se torna impossível a rescisão de qualquer nulidade processual, pelo fato de não mais ser passível de rescisão é que a doutrina assim a classifica.
Como já dito, antigamente a coisa julgada era considerada verdade absoluta, sendo, portanto, intangível e inatacável. Vários doutrinadores observando que em alguns casos direitos fundamentais eram supridos pelo dogma da coisa julgada que sanava as nulidades ocorridas no processo, perceberam, então, a necessidade de criar uma discussão crítica acerca do referido instituto jurídico tido como absoluto o qual não permitia ser relativizado. A partir de então, percebeu-se a necessidade de se flexibilizar o referido instituto jurídico.
Em muitos casos, como se pode observar pela própria legislação, a certeza jurídica é preferida, ainda que contrária alguma forma disposta no Código, do que coexistir com a possibilidade de poder ser revista e reanalisada, a qualquer tempo, determinada lide. Como regra, logo após a sentença transitar em julgado, operam-se os efeitos gerais da sanatória. Referido efeito reporta-se à convalidação de vícios ocorridos dentro do processo e que, após o magistrado proferir a sentença, e ela passar em julgado, não mais podem ser alegados. Como já abordado, quando se teceu comentários sobre a ação rescisória, após o trânsito em julgado da sentença surge para a parte a possibilidade em determinados casos, por meio de um critério estabelecido pelo Poder Legiferante, de rescindir certos vícios, dentre os quais suas hipóteses estão descritas expressamente no art. 485 do CPC.
Ocorre, que o fato do referido artigo ser taxativo e não abarcar dentre suas hipóteses direitos assegurados constitucionalmente, bem como o fato de que em certos casos o direito violado, em tese, é superior à coisa julgada, aqui compreendida a segurança jurídica, é mister sua relativização sob pena de inconstitucionalidade. O fato de não mais se poder recorrer de uma sentença não quer dizer que o vício de inconstitucionalidade estará sanado e deixará de produzir efeitos. Ademais, nota-se que os vícios de inconstitucionalidade inviabilizam a produção de efeitos da coisa julgada. Daí a importância se reabrir o processo e retirar dele os vícios.
Dessa forma as autoras Gizelly e Margareth entendem que todas as vezes que se verificar a coisa julgada em atrito com outro direito constitucionalmente garantido deve o intérprete utilizar-se da racionalidade, buscando, no caso concreto, fazer prevalecer a solução mais justa. Dessa forma torna-se “impossível a coisa julgada, pelo simples fato de impor segurança jurídica, sobrepor-se ao conjunto harmônico da Constituição, subjugando toda a sistemática de garantias em que a coisa julgada é apenas uma delas. A coisa julgada deverá estar sempre condicionada aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, como forma de harmonizar valores constitucionalmente assegurados em conflito” (RABELO; ZAGANELLI, 2010).
Mas quando ocorrerá a coisa julgada inconstitucional?
Pode-se dizer que todas as vezes que a decisão proferida pelo juiz for embasada em lei que foi objeto de controle de constitucionalidade pelo STF ou quando o magistrado decidir o conflito de interesses resistidos pelas partes aplicando princípio contrariamente abarcado pela Carta Magna ou ainda quando suprir ou extinguir direitos fundamentais, a decisão fere diretamente à Norma Ápice e, portanto, ela é inconstitucional. Neste espeque, a inconstitucionalidade poderá ser declarada tanto pela via abstrata como pela via de controle concreta, mas neste último caso, deverá a norma chegar à instância máxima, isto é, ao STF, sendo que seu julgamento independerá de publicação de resolução pelo Senado Federal[67].
A coisa julgada inconstitucional funda-se na idéia de que todos os atos do Poder Público devem coadunar-se com a Constituição, e da mesma forma, os atos jurisdicionais também devem estar de acordo com esta, podendo, então, ser objeto de controle de constitucionalidade (CARVALHO, 2009, 809).
Na primeira hipótese, todas as vezes que uma norma é submetida ao controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal e o caso em questão for decidido consoante as disposições contidas na lei que vem a ser declarada inconstitucional, referida norma é tida como inexistente[68], eis que a lei que não está no ordenamento jurídico não existe e a coisa julgada que se formou no processo também é, da mesma forma, inexistente.
Ora não pode uma decisão judicial se perpetuar sendo que foi revestida por um manto desprovido de legalidade, juridicidade, legitimidade e que sequer mais se encontra no ordenamento jurídico.
Com efeito, se a referida norma foi declarada como sendo contrária ao texto constitucional pelo Pretório Excelso, a qual tem como efeito a inexistência[69], o suporte jurídico da coisa julgada também se torna inconstitucional, e, por conseqüência, a coisa julgada é inexistente, nascendo para o sujeito de direito a possibilidade de ver sentença prolatada com fundamento em lei inconstitucional ser declarada inexistente. Frise-se bem, a lei que é retirada do mundo jurídico, não existe, e ainda melhor, não deveria ter sequer existido.
Nesta esteira, a ação correlata a atacar sentenças inexistentes é a querela nullitatis insanabilis ou a ação declaratória de inexistência responsável por retirar do mundo jurídico, sentenças desprovidas de substrato mínimo legal ou que contenham atos inexistentes.[70]
Quanto à segunda hipótese, da mesma forma ocorrerá a coisa julgada inconstitucional quando o Magistrado proferir decisão de mérito para a lide, sendo que esta é contrária aos princípios fundamentais inerentes ao Estado Democrático de Direito. Imagine a hipótese em que um Juiz condena um sujeito à pena de morte e este não recorre. Corolário da sentença é o trânsito em julgado dela operando-se os efeitos da coisa julgada material. Pode a referida sentença ser executada? É claro que não. Referidas sentenças possuem uma injustiça descarada, de tal forma que tais sentenças devem ser julgadas inconstitucionais, e como já se sabe, sentença inconstitucional é tida como inexistente, eis que não encontra substrato legal no ordenamento jurídico e da mesma maneira é inexistente a coisa julgada material que transformou o julgado em imutável e indiscutível. Ademais, qual valor é superior a segurança jurídica ou a vida? É preciso nos diversos casos concretos analisar quais são os axiomas em jogo e verificar qual deles sopesa mais.
No que concerne à terceira hipótese, deve ser declarada o vício de inconstitucionalidade todas as vezes que se identificar uma sentença fundamentada com restrição ou extinção de direito fundamentais. Esta hipótese, apesar de muito parecer com a segunda hipótese supramencionada, é diferente. Saliente-se que esta última se refere apenas aos direitos e garantias fundamentais, enquanto aquela é muito mais ampla, abarcando todo o conteúdo previsto na Constituição Federal, inclusive as emendas.
A título de exemplificação cita-se um determinado processo que correu sem as garantias do devido processo legal, assim consideradas a ampla defesa, o contraditório e isonomia. Considerando que o processo não é um fim em si mesmo, mas meio, e considerado mais, que a busca do direito é o ideal de justiça, não pode um processo ser realizado sem as devidas garantias, sob pena de vício de inconstitucionalidade[71].
Portanto, todas as vezes que a coisa julgada é inconstitucional e fere princípios máximos consagrados pela Lei Maior, o decisório é inexistente, não encontrando qualquer substrato no ordenamento jurídico que possa fundamentar a decisão, surgindo assim, a possibilidade para a parte o direito de se ajuizar a ação de querela nullitatis insanabilis ou ação declaratória de inexistência, como preferem alguns.
Críticas poderão surgir acerca declaração de inconstitucionalidade pelo STF, que, em tese, ocorreria no plano de validade, ao argumento de que existe até mesmo previsão quanto à sua modulação de efeitos, conforme se infere do art. 27 da Lei 9.868/1999[72]. Entretanto, aludido artigo seria inconstitucional sob o fundamento da impossibilidade fática de coexistirem situações inconstitucionais incompatíveis com a Constituição vigente. Neste contexto, é que se criou no Brasil a institucionalização das impermeabilidades das inconstitucionalidades. Ora, poderia coexistir, paralelamente, à Norma Ápice uma lei ou resquícios desta os quais conflitam diretamente com o Princípio da Supremacia da Constituição, bem como seria possível albergar no ordenamento jurídico atual uma inconstitucionalidade, ainda que o guardião da Constituição a tenha declarado como tal? Parece que se a inconstitucionalidade não se der no plano da inexistência, estar-se-ia diante de uma blindagem inconstitucional.
Até mesmo porque, conforme pode se verificar em alguns julgados[73], a previsão contida no art. 741, parágrafo único, do CPC, seria inconstitucional. Isto porque, se após decorridos o prazo decadencial de dois anos para a propositura da ação rescisória, não mais seria possível até mesmo desconstituir inconstitucionalidades, pelo fato de haver se formado a coisa soberanamente julgada.
2.3. Meios de impugnação da coisa julgada inconstitucional
Destarte, discute-se aqui, qual o meio adequado a extirpar do mundo jurídico sentenças já transitadas em julgado que, porém, estão maculadas por um vício de inconstitucionalidade, o qual de forma reflexa fere diretamente os direitos e as garantias expressamente previstas na Constituição.
Uma vez aferida a inconstitucionalidade de uma lei pelo STF, a sentença torna-se inexistente e a coisa que havia transitado em julgado, da mesma forma, também é tida como inexistente. Portanto, nestas hipóteses, indubitavelmente, tem-se que a ação correlata a atacar tais sentenças inexistentes é a querela nullitatis, eis que esta ação tem por finalidade atacar sentenças sem substrato mínimo legal, que sequer chegaram a existir, mas que, aparentemente, existem no mundo jurídico e, inegavelmente, chegam a produzir diversos efeitos.
Neste caso de inconstitucionalidade declarada pelo Supremo, o trâmite do processo, bem como a coisa julgada que nele operou, foram, até então, considerados existentes, válidos e eficazes. Entretanto, a partir do momento em que a norma que embasou a decisão de mérito da causa é declarada como inconstitucional, deixando ela de existir do mundo jurídico, por conseguinte, a garantia fundamental da coisa julgada também deixa de existir. Isto ocorre, porque a lei declarada como contrária à CRFB/88 não poderia sequer coexistir no ordenamento jurídico pelo fato de não coadunar com os princípios basilares existentes nesta e com o Estado Democrático de Direito.
Em relação às hipóteses em que o juiz decide o mérito da causa de acordo com princípios contrários à Constituição ou quando o fundamento da decisão tende a abolir ou restringir direitos fundamentais, a sentença, da mesma forma, não passa em julgado, eis que o fundamento que constitui o decisório não encontra respaldo jurídico algum no ordenamento então vigente, sendo este um decisório desprovido de legalidade e legitimidade.
Ademais, caso a referida decisão não pudesse ser revista e reanalisada a qualquer tempo, imperaria no Direito vigente um discrepante vício de inconstitucionalidade, de tal forma que estaria suprimindo direitos inerentes à democracia hoje vivente, ferindo de maneira reflexa um dos principais fundamentos na norma Ápice, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Deve-se, pois, no Direito observar o ideal da justiça, uma vez que a decisão injusta não pode se sobrepor ao conjunto de normas e princípios fundamentais e transformar-se em um dogma jurídico imutável.
Lado outro, ainda que se cogitasse a ação rescisória para rescindir a sentença com vício de inconstitucionalidade, seria um grande equívoco, posto que o caso foi decidido com base numa lei que não é “lei”. Além do mais, a espécie de que se cuida não preencheria os requisitos exigidos pela lei, que são a taxatividade dentre as hipóteses contidas no dispositivo do art. 485 do CPC e o pressuposto da coisa julgada, eis que esta, nestes casos, é considerada inexistente.
Nesta linha de pensamento, aduz Teresa Arruda Alvim Wambier (1997, p. 311) asseverando que “[…] seria até desnecessária a propositura da ação rescisória, já que a decisão que seria alvo de impugnação, seria juridicamente inexistente, pois que baseada em “lei” que não é lei (”lei inexistente”). Portanto, em nosso entender, a parte interessada deveria, sem necessidade de se submeter ao prazo do art. 495 do CPC, intentar ação de natureza declaratória, com o único objetivo de gerar maior grau de segurança jurídica à sua situação […]”.
Repise-se a hipótese em que um promotor de justiça nos pedidos formula um requerimento pugnando pela aplicação da pena de morte em tempo de paz e o juiz defere o pedido deixando de observar as garantias fundamentais da aplicação e individualização de pena a um determinado réu. Nesta hipótese, fundamenta a autora supracitada que ocorreria a falta de uma das condições da ação, que se destaca entre elas a possibilidade jurídica do pedido, o qual não fica subordinado ao prazo decadencial de dois anos. Ademais, pela leitura da colocação da referida autora, nota-se que ela deixa bem claro que a via correta para se atacar lei declarada inconstitucional é a ação declaratória de inexistência, qual seja, ação de querela nullitatis (WAMBIER, 1997, p. 311).
É possível ainda através de proposições silogísticas chegar à conclusão de que querela nullitatis é o meio adequado a retirar do mundo jurídico decisões embasadas em leis inconstitucionais. Observe:
A querela nullitatis é a ação impugnativa para atacar atos inexistentes (premissa maior). Tem-se ato inexistente quando verificada que a coisa julgada é inconstitucional (premissa menor). Logo, a coisa julgada inconstitucional é impugnável via querela nullitatis (conclusão).
Por todo o exposto, é inegável de que a via mais adequada a impugnar a coisa julgada inconstitucional é a ação de querela nullitatis insabilis ou como prefere denominar alguns doutrinadores como ação declaratória de inexistência. Isto porque, diante de inconstitucionalidades, o ato é inexiste, eis que não se pode verificá-lo nem coaduná-lo com o ordenamento jurídico em vigência, sob pena de violação e ato atentatório ao Estado Democrático de Direito.
3. SEGURANÇA JURÍDICA
Neste capítulo será abordado o princípio da segurança jurídica em várias acepções, bem como se demonstrará quais são os institutos jurídicos que o compõe. Após esta abordagem, pretende-se verificar se ocorrerá conflito de interesses em situação fáticas, diante do confronto entre a segurança jurídica e o devido processo legal, bem como entre a segurança jurídica e o valor da justiça. Após, a pretensão será de realizar um balanceamento entre estes de forma a harmonizá-los sempre margeando a ação de querela nullitatis insanabilis, cujas características e peculiaridades foram tratadas ao longo de todo trabalho acadêmico.
A segurança jurídica, hoje, direito fundamental, previsto expressamente no art. 5º da Constituição, como cláusula pétrea, não pode ser restringida ou abolida, em consonância com o disposto no art. 60, § 4º, IV da norma Ápice.
A segurança, para Montesquieu (apud CARAVALHO, 2009, p. 809), verifica-se na tranquilidade de espírito, própria de quem não teme o outro.
Neste viés, o princípio da segurança jurídica projeta-se através da dignidade humana, elementar do Estado Democrático de Direito. Assim, é que o homem necessita da garantia em questão para conduzir, planejar, estruturar de maneira racional e responsável sua vida. Noutra vertente, decorre também do aludido axioma, que os atos do Poder Público devem ser editados respeitando-se as normas vigentes e válidas nas quais foram consolidadas as relações jurídicas. No entanto, em alguns casos excepcionais, quando o interesse da coletividade sobrepõe-se ao interesse particular não poderá o agente se socorrer do direito adquirido, traduzido pela segurança jurídica, uma vez que o interesse daquela poderá ser superior ao deste.
Segundo o jurista Leonardo Greco (apud CASTRO, 2009, p. 217) o instituto da segurança jurídica, conforme definição exarada, pode ser entendido como “o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes”. Referido instituto pode ser compreendido através outros institutos, como o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Por outro lado, a partir de uma nova visão hermenêutico-constitucional, deve a segurança jurídica ser vista como um direito relativo, assim como os demais assegurados. Atualmente, não mais se concebem direitos absolutos[74], sendo superada esta fase. Isto porque, antes, segundo Humberto Theodoro Júnior (apud RABELO; ZAGANELLI, 2010) durante muito tempo “[…] em nosso ordenamento foi uma institucionalização do instituto da impermeabilidade das decisões judiciais, ainda que agasalhassem inconstitucionalidades, principalmente depois de operada a coisa julgada e ultrapassados os prazos para a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores da certeza e da segurança perseguidos do ideal do Estado de Direito. Consagrando-se assim, o princípio da intangilbilidade da coisa julgada, que por muito tempo, foi entendido como caráter absoluto”.
Nesta esteira, quando em ocorrer uma colisão entre princípios constitucionalmente previstos, para solucionar o caso, é mister sopesar cada um deles, levando-se em conta as peculiaridades do caso concreto e observando qual deles sobressai mais, bem como traz menos danos para as partes.
Insta salientar a distinção entre direitos e garantias fundamentais, sendo que aqueles são bens e vantagens descritos na norma constitucional que possuem caráter declaratório, ou seja, são disposições que demonstram a existência de determinado direito, enquanto estas são os recursos empregados por meio dos quais viabilizam os referidos direitos. Dessa forma, é que se fala que as garantias possuem características assecuratórias.
Exemplifica o professor Pedro Lenza (2009, p. 671) aduzindo que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos – art. 5º, VI, (direito) –, garantindo-se na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas garantias (garantias)”.
3.1. Institutos componentes do princípio da segurança jurídica
O objetivo da Segurança Jurídica assegurado pela Carta Magna é o de trazer a paz e harmonia para as relações ocorridas na sociedade. Assim, através do referido instituto, evita-se que o Estado traga incertezas e instabilidades às relações interpessoais. Dessa forma, não poderia o Constituinte Originário deixar de abarcá-lo como um direito fundamental.
Com efeito, cuidou o Poder Constituinte de 1988 de mencioná-la logo no caput do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, haja vista sua grande relevância, consagrando-a como direito fundamental, possuindo status de cláusula pétrea, jamais podendo ser abolida ou restringida, ao preceituar que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 23). Este valor contido no caput, conclui-se que compreende tanto a segurança jurídica, tratada neste presente trabalho como direito individual, quanto a segurança pública, que é dever do Estado zelar e preservar pela incolumidade dos cidadãos e do patrimônio destes. Ademais, o termo segurança pode ser entendido como um conjunto de garantias, ora restringindo, ora limitando ou ainda proibindo o exercício de algum direito individual.
Destarte, será tratado apenas, no trabalho acadêmico do qual se cuida, a segurança como direito individual, cujas características (PIVA, 2009, p. 21) são historidicidade, relatividade, universalidade, concorrência e irrenunciabilidade. O primeiro retrata a evolução gradual durante a história, o segundo o qual já comentado, não existem direitos ilimitados ou absolutos. Quanto ao terceiro, significa dizer que o simples fato da condição humana já faz da pessoa ser o titular. Na quarta, implica dizer que os direitos e as garantias não se excluem como regra, sendo permitido exercitá-los conjuntamente. Quanto à última característica, extrai-se que o titular do direito não pode dispor dele, todavia, pode deixar de exercê-lo.
Por meio da doutrina da irretroatividade das leis, estão insculpidos no inciso XXXVI do citado artigo da Norma Ápice, os institutos jurídicos que dão suporte à segurança jurídica, asseverando que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o aro jurídico perfeito e a coisa julgada” (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 26). Tal doutrina diz respeito a questões que se firmam diante do direito intertemporal. O doutrinador Tércio Ferraz Júnior (2008, p. 217) relata que “a doutrina da irretroatividade serve ao valor da segurança jurídica: o que sucedeu já sucedeu e não deve, a todo momento, ser juridicamente questionado, sob pena de se instaurarem intermináveis conflitos. Essa doutrina, portanto, cumpre a função de possibilitar a solução de conflitos com o mínimo de perturbação social. Seu fundamento é ideológico e reporta-se à concepção liberal do direito e do Estado”.
O legislador ordinário, por meio da Lei de Introdução às Normas ao Direito Brasileiro (Lei 4.657/42), destacou a segurança jurídica compreendida através dos institutos retrocitados e, ainda, tratou de conceituá-los. Apesar de a aludida lei ser anterior à Constituição vigente, o fato é que seria até mesmo desnecessária a previsão legal contida nela, uma vez que o exercício do direito à segurança jurídica não se encontra subordinado ao regramento infraconstitucional, posto que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, conforme estatuído no artigo 5°, § 1°, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Segundo aduz Canotilho (apud CARVALHO, 2009, p. 809) para que o homem possa viver com segurança, desde cedo cuidou de dar relevância aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, sendo que, aquele se liga a elementos objetivos, postulados da garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito, enquanto este possui um liame a elementos subjetivos, como a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em face dos atos do Poder Público. Ambos os princípios são exercitáveis diante de qualquer Poder – Legislativo, Executivo e Judiciário. Nesta esteira, tem-se que o princípio geral da segurança jurídica (compreendida a idéia de proteção da confiança) formula-se de maneira que o indivíduo tem do direito o poder de confiar e acreditar que as manifestações, compreendidos os atos e as decisões públicas, que venham incidir sobre os seus direitos ou relações interpessoais terão os efeitos jurídicos previstos nas mesmas normas válidas e vigentes quando da consumação e concretização do ato.
Repisando tudo o que já se tratou no presente trabalho, a segurança jurídica, durante muito tempo, foi vista como direito absoluto e imutável, não sendo passível de relativização ou flexibilização. Não mais se concebe, ainda hoje, desta forma, que, vinte e três anos após o advento da Constituição da República de 1988, ainda se encontrem no Poder Judiciário membros que fecham os olhos para a nova realidade em que não mais existem direitos fundamentais absolutos, devendo estes, no caso concreto, serem flexibilizados ou relativizados, contrariando norma constitucional expressa no ponto.
O fato é que a segurança jurídica é assegurada por meio dos institutos mencionados alhures, aos quais foram atribuídas definição legal. Assim, o art. 6º da Lei de Introdução às Normas ao Direito Brasileiro, prevê que (BRASIL. Vade Mecum, 2010, p. 151) “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.
Apesar da definição supra, Otávio Piva (2009, p. 161) realiza crítica à tentativa de conceituação alegando que se o legislador possuísse competência para concretizar tal definição, o tópico constitucional seria considerado lei morta, uma vez que, poderia, por exemplo, anular um instituto mediante definição legal restritiva ou invalidativa.
No mesmo intuito, a doutrina tenta atribuir uma definição a tais institutos jurídicos. Quanto à conceituação assevera Pontes de Miranda (apud CARVALHO, 2009, p. 811) acerca do direito adquirido, sendo este “o direito irradiado de fato jurídico, quando a lei não o concebeu como atingível pela lei nova”. Por meio da leitura da conceituação atribuída, dá-se a entender que sua definição doutrinária é realizada de forma residual, ou seja, o direito adquirido ocorre quando outra lei não pode atacá-lo.
Para o jurista italiano C.F. Gabba (apud CARVALHO, 2009, p. 811), o direito adquirido refere-se tão-somente a direitos de cunho patrimonial, possuindo apenas caráter econômico. “Adquirido é todo direito que resultante de um fato capaz de produzi-lo segundo a lei em vigor ao tempo em que este fato se verificou; embora a ocasião de fazê-lo valer-se não haja apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo direito; direito este que, de conformidade com a lei sob a qual aquele fato foi praticado, passou, imediatamente, a pertencer a patrimônio de quem o adquiriu”.
Insta pontuar, a distinção existente entre expectativa de direito e direito adquirido. Este não pode atacado por lei posterior, diferentemente daquele, que é o direito em potencial, achando-se em formação, e constituindo-se, mediante implementação do último termo de seu elemento (CARVALHO, 2009, p. 811). Exemplo recorrente utilizado pela doutrina é o da aposentadoria. Suponha hipoteticamente, que para se aposentar seja necessário trinta anos de contribuição. Aqueles que chegarem efetivamente a se aposentar terão o direito está adquirido, não podendo ser atingido ou restringido por lei posterior. Caso distinto é aquele em que o contribuinte já pagou vinte e cinco anos de contribuição e lei posterior altera o prazo de contribuição passando para trinta e cinco anos. Nesta hipótese não há que se falar em direito adquirido, a expectativa de direito de se aposentar era, meramente, potencial. Destarte, para que o direito integre ao patrimônio do sujeito é necessário que se ultime o acontecimento final, pois, caso o termo não seja implementado, o direito estará em formação, sendo considerado mera expectativa de direito (CARVALHO, 2009. p. 811).
Para Uadi Lammêgo Bulos (apud PIVA, 2009, p. 162) o objetivo do direito adquirido “depende de um conjunto de normas aptas a garantir aquilo que se denomina câmbio de expectativas, ou seja, o complexo de condições que visa proteger o cidadão do arbítrio, gerando uma atmosfera de certeza nas relações”.
Em relação ao ato jurídico perfeito, tendo em vista seu conceito legal, extrai-se que é o ato que possui todos os elementos que lhe dão suporte, ou seja, o ato já se concretizou, está acabado, perfeito. Ademais, repise-se acerca das considerações já feitas acerca do ato inexistente, bem como os requisitos previstos na legislação cível para que o ato seja válido, a saber, agente capaz, objeto licito, possível e determinável e forma prescrita, não defesa em lei.
“Ressalte-se ainda que, embora não consumado, o ato jurídico perfeito que se encontra apto a produzir efeito tem garantida a sua execução contra a lei nova que não os pode regular, subordinados que ficam à lei antiga”. (CARVALHO, 2009, p. 815). Em exceção a esta regra, situam-se os contratos de execução continuada quando se tratam de normas em que há interesse público, como por exemplo, planos econômicos.
Em que pese, a partir de uma primeira leitura, ser muito tênue a linha que separa o conceito do direito adquirido com o ato jurídico perfeito, existe uma diferença, não obstante aquele advir imediatamente da lei, enquanto este é negócio fundamentado na lei. Alerta José Afonso da Silva (2009, p. 435) que ambos são inatingíveis por lei nova, pois “se o simples direito adquirido (isto é, direito que já integrou o patrimônio mas não foi ainda exercido) é protegido contra interferência da lei nova, mais ainda o é o direito adquirido já consumado”.
Referente à coisa julgada, pede-se ao leitor para se reportar ao capítulo número dois, em que se criou uma discussão crítica acerca do referido instituto jurídico. No ponto, apenas acrescenta que a coisa julgada administrativa não está inserida no art. 5º, XXXVI da CRFB/88, eis que apenas a coisa julgada material impede a rediscussão da matéria dentro do processo, bem como em um novo processo. Com efeito, vigora no ordenamento jurídico brasileiro o sistema da unidade de jurisdição ou controle judicial, o qual revela que o cidadão que se sentir lesado quando da prática da atividade administrativa, pode ele se socorrer do Poder Judiciário. Isso porque, ao que se saiba, não está o Poder Executivo ou Legislativo– em qualquer âmbito federativo – excluído da hipótese trazida pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, que prevê que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Vale dizer que para Rosemiro Pereira Leal (2010, p. 219) há distinção entre sentença transitada em julgado e coisa julgada. Aduz o autor que, no direito atual, perde a coisa julgada, o conceito atribuído por Liebman, qual seja o atributo ou qualidade autônoma dos efeitos da sentença de mérito. Isto porque, a sentença transitada em julgado como ato jurisdicional afetado pela preclusão máxima e a coisa julgada como garantia constitucional de existência, exigibilidade e eficácia de provimentos de mérito pelo atendimento ao direito fundamental do devido processo.
Salienta-se ainda, que a definição dada pela Lei de Introdução às Normas ao Direito Brasileiro já está superada, uma vez que esta se retrata à coisa julgada formal, enquanto o art. 5º, XXXVI, da CRFB/88, refere-se à coisa julgada material. Com a coisa julgada “tutela-se a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio” (SILVA, 2009, 436). Nesse sentido, a coisa julgada, de certa maneira, é um ato jurídico perfeito, prescindindo sua previsão constitucional, todavia, o constituinte a reforçou destacando-a na Lei Maior.
As leis civis, como regra, possuem efeitos ultrativos, isto é, produzem seu efeito voltado para o futuro, não podendo retroagir para alcançar situações jurídicas passadas, salvo se ela própria estabelecer, sendo resguardadas as situações efetivamente consumadas. Além do mais, possuem as leis vigência até que outra lei a modifique ou a revogue. As exceções[75] situam-se na esfera criminal[76], em que a lei retroagirá quando vier a beneficiar o réu.
Enfim, Canotilho (apud CARVALHO, 2009, p. 809), pontua as refrações mais importantes do princípio ora objeto de estudo “(1) relativamente a actos normativos – proibição de norma retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2)relativamente a actos juriscicionais – inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração – tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos”.
Portanto, as garantias das relações jurídicas, em decorrência da sua previsão constitucional, são irreformáveis, eis que corolário das garantias individuais. É certo dizer que a coisa julgada, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito são os pilares do princípio da segurança jurídica, trazendo certeza e estabilidade para as relações interpessoais na sociedade, não podendo, pois, a lei nova aplicar-se em situação já consumada sob a égide de outra.
Contudo, nem todos pensam assim. Há quem entenda que não pode coexistir juntamente com a sociedade pós-moderna o valor da segurança jurídica fundada na coisa julgada. Assim aduz Rosemiro (LEAL, 2010, p. 220) “a garantia da coisa julgada, como acima exposto, não tem escopo de gerar segurança, porque, no Estado Democrático, não é da segurança em si que se cogita como fundamento dos atos jurídicos, mas da legitimidade obtida pelo processo jurídico que venha a estabelecer a segurança almejada, mesmo que seja esta ainda concebível em escopos metajurídicos do obsoleto Estado Social de Direito como está em Dinamarco. Entender o contraditório como empecilho à segurança, à efetividade de uma justiça célere e de um ‘processo justo’ é o mesmo trazer ao Estado Democrático Constitucional que, louvados merecidamente em sua época Social-Liberal, já não socorrem os eixos de complexidade teórica do paradigma democrático do direito (devido processo constitucional e devidos processos legais), como tenho sustentado e se vê em Cattoni e Del Negri”.
Percebe-se pela leitura do citado autor que a segurança perquirida pela sociedade, jamais pode deturpar o valor do devido processo constitucional, vinculados ao contraditório e a efetividade do processo. Percebe-se, ainda, que não mais podem prevalecer o entendimento de Calamadrei e Carnelutti, sobrepondo-se à segurança em processo que não tenha ocorrido o devido processo.
De fato, o devido processo, vinculado à isonomia, à ampla defesa e ao contraditório, não podem ser restringidas em detrimento da segurança. Lado outro, pensa-se que também não podem haver casos indefinidamente seu solução, de forma que, o litígio deve ser resolvido sendo assegurado às partes o devido processo.
3.2. Conflito aparente de normas: querela nullitatis X segurança jurídica
O presente tópico tem por finalidade criar uma discussão crítica acerca da problematização entre as garantias da segurança jurídica e do devido processo legal, a partir da análise da querela nullitatis insanabilis, bem como, criar-se-á um debate jurídico acerca do ideal de justiça face ao valor da segurança jurídica.
Haverá colisão entre direitos fundamentais todas as vezes em que a Constituição proteja, numa mesma situação jurídica concreta, dois bens ou valores em contradição. Neste caso, ante a uma das características dos direitos fundamentais, qual seja, a relatividade, não se pode falar que estes são absolutos ou ilimitados, eis que diante do interesse público ou concorrência de outras liberdades igualmente fundamentais haverão de ser flexibilizados. Lado outro, havendo compatibilidade entre tais direitos é perfeitamente possível exercitá-los cumulativamente.
Diante de colisão entre dois ou mais direitos considerados fundamentais, segundo Otávio Piva (2009, p. 35) deve o intérprete do direito se utilizar do “[…] princípio da concordância prática ou da harmonização que nada mais significa do que a aplicação, ao caso concreto, dos direitos com a necessária ponderação, de forma a reduzir o alcance de um deles, evitando completa destruição do outro”. Assim deve o intérprete do direito valer-se de uma interpretação harmônica, haja vista a integralidade e unicidade do direito.
O Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, já enfrentou o problema de ter que ponderar, ante situações jurídicas concretas, direitos fundamentais que se sobrepõe uns aos outros.
Como já dito, o princípio da segurança jurídica possui várias vertentes, de forma que pode ser observado em três esferas: como um direito coletivo (seria a segurança pública que é dever do Estado), segurança como direito individual (inviolabilidade dos direitos fundamentais, ou seja, certeza em saber que os direitos constitucionais serão assegurados) e segurança jurídica stricto sensu (vedação da irretroatividades das leis para prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada)[77].
Deveras, a partir de uma visão efêmera, pode acontecer, num primeiro caso, de o intérprete verificar uma possível colisão de princípios ao se analisar, num mesmo contexto fático, a segurança jurídica em sentido estrito face ao devido processo legal, eis que não poderiam, em tese, coexistir Direitos Fundamentais confrontando-se. Se de um lado, a Constituição assegura aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, de outro, tem-se que, a lei não poderá retroagir para prejudicar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Melhor explicando e ilustrando, certo indivíduo ao perceber que possui a seu favor uma sentença condenatória, ainda que o processo tenha lhe corrido sem a citação, aliada à revelia (citação inexistente), a qual determina que este lhe pague a quantia de R$ 2.000.000,00 (dois milhões) de reais, sendo que a referida sentença não está mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário, eis que transcorreu o prazo para se rediscutir a matéria em qualquer instância, poderia, neste caso, a parte contrária prejudicada ajuizar uma ação de querela nullitatis insanabilis e desconstituir o provimento jurisdicional que, em tese, não mais poderia ser recorrido? Como fica o direito fundamental da parte autora quanto à segurança jurídica, compreendida a coisa julgada material?
A segurança jurídica, conforme apontamento feito alhures, consiste em assegurar ao cidadão a certeza e estabilidade das relações sociais, bem como trazer a paz e harmonia para a sociedade. O devido processo legal, por sua vez, compreende as garantias do contraditório, da ampla defesa e da isonomia entre as partes.
Neste viés, destaca Liebman (apud SILVA, 2009, p. 431) aduzindo que “o poder de agir em juízo e o de defender-se de qualquer pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus direitos e competem a todos indistintamente, pessoa física e jurídica, italianos [brasileiros] e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade e pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos”.
Neste sentido, é que se tem o direito de ação previsto no art. 5º, XXXV, da CRFB/88, o qual, sua prerrogativa, pode ser exercida pela parte demandada. Assim, quando o demandado contesta a petição inicial, está exercendo seu direito de ação. Aludido direito também é conhecido como inafastabilidade do Judiciário, não podendo a ninguém se negar o direito de ajuizar uma ação e nem o Poder Judiciário se omitir quanto a sua função jurisdicional.
Entretanto, como se pode notar, não ocorre colisão de princípios, eis que como já explanado detalhadamente não existe coisa julgada quando o ato é inexistente por lhe faltar substrato mínimo para ingressar no mundo fático e jurídico, conforme considerações feita alhures. O ato inexistente é tão grave que pode ser alegado a qualquer momento e afeta imediata e diretamente o devido processo legal, por lhe infringir as garantias vinculadas ao aludido princípio, aqui já tratadas. Portanto, não pode o autor da demanda suscitar, questionar ou opor o direito fundamental à segurança jurídica, uma vez que esta, ainda não se materializou por meio da sentença inexistente, não podendo, assim, ser alegada para que coíba a parte contrária em ajuizar a ação declaratória de inexistência.
Urge apenas destacar que, ainda que a aludida sentença condenatória não seja passível de recurso ordinário ou extraordinário, a ação de querela nullitatis insanabilis possui natureza jurídica de ação impugnativa, ou seja, a discussão jurídica da sentença ou relação inexistente se dará em outro procedimento, não havendo, pois, que se falar em recurso ou sucedâneo recursal, quando a matéria de fato volta a ser rediscutida em nova ação.
Noutro giro, ao se analisar por outra vertente o caso supramencionado, a parte demandada, a qual se viu prejudicada por ter sido prolatada uma sentença condenatória em seu desfavor, tendo o processo lhe corrido à revelia, eis que não teve ciência de que contra ela correu um processo judicial, não lhe sendo oportunizado o direito de se defender, poderia ser privada dos meios e recursos inerentes ao processo litigioso, tais como a ampla defesa, o contraditório e a igualdade entre as partes, tendo todos estes previsão na Carta Magna como a garantia fundamental do devido processo legal?
Com efeito, a parte requerida cuja sentença lhe condenou ao pagamento também possui direito à segurança jurídica, mas, como direito individual. Isto é, seu direito funda-se na certeza, na tranqüilidade de espírito de quem não teme o outro, como pensa Montesquieu, de que o Estado lhe proverá o direito às garantias inerentes ao Estado de Direito, sendo, como regra geral, todas elas invioláveis. Estando em tempo de paz é garantido aos cidadãos brasileiros e estrangeiros a prerrogativa de se valer de tais direitos elencados no art. 5º da CRFB/88, podendo ser suprimidos, apenas alguns durante o tempo de guerra, os quais estão previstos expressamente na Carta Política. Destarte, é inegável que, no exemplo acima, a parte requerida possui a segurança jurídica em que lhe deverão ser assegurados a prerrogativa e o pleno exercício dos direitos e das garantias fundamentais.
Ainda que se cogitasse de uma possível colisão entre o valor da segurança jurídica em sentido estrito e o devido processo legal, é indubitável que, nestes casos, deverá sempre prevalecer, a não se poder negar, a inviolabilidade do direito de ação[78], de defesa e de falar nos autos, eis que de modo cristalino a Constituição garante os meios e recursos necessários inerentes ao processo litigioso e o acesso à justiça, tendo estes princípios eficácia imediata, conforme se depreende do parágrafo primeiro do art. 5º. Mas, repise-se, não há que se falar em colisão de princípios se o caso não transitou em julgado e, por conseguinte, o Direito não trouxe à parte o direito à segurança jurídica, não se podendo falar em estabilidade e certeza da relação entre os sujeitos de direito. Falar que uma sentença ausente de qualquer dos pressupostos processuais de existência ou quando com violação ao devido processo legal, pode transitar em julgado, é fazer muito pouco da inteligência e do raciocínio jurídico do intérprete do direito.
Caso entenda-se não sobreviver no ordenamento atual a querela nullitatis ou não se dê credibilidade a esta[79], seja por falta de previsão expressa, seja pela incompatibilidade desta de coadunar as regras do ordenamento, não se pode perder de vista que a Constituição garante os meios e recursos necessários ao processo (insculpidos pelo Devido Processo Legal), de tal maneira, que o Estado deve criar mecanismos de intervenção estatal para combater tal ilegalidade. Por isso, perpetua-se no direito brasileiro a ação em comento e entender pela sua insubsistência seria negar ao cidadão o maior fundamento do Estado Democrático, suprimindo a dignidade humana.
Não obstante, o direito à segurança deve ser analisado ainda em outra situação contextual, o qual neste sim poderia, teoricamente, ocorrer colisão entre princípios constitucionais. “Como sabido, em tema de ações impugnativas – principalmente quando se trata da principal delas, a ação rescisória – não se pode esquecer que o sistema trabalha com dois valores antagônicos: justiça X segurança jurídica. Ora prefere-se a justiça, admitindo que uma sentença proferida ‘contra legem’, mesmo após o trânsito em julgado, possa ser modificada. Ora a segurança jurídica, inadmitindo que superado um certo prazo aquela sentença viciada deixe de operar efeitos (GAJARDONI, 2004)”.
Como cediço, conviver com a possibilidade de rejulgamento, rediscussão e reanálise infinitamente dos casos ocorridos em sociedade, abala o estado de tranqüilidade dos cidadãos e de forma reflexa o princípio da segurança jurídica stricto sensu, a qual está vinculada ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada e, então, com isso, cogitar-se-ia num confronto de interesses com o valor da justiça. Há casos[80], em que mais vale a certeza e estabilidade social do que o ideal de justiça em determinada situação fática. Ademais, até a pouco tempo, firmou-se a tese de que o referido princípio era considerado absoluto, inflexível.
Destarte, poderia a parte, a partir de uma interpretação teleológica, suscitar a segurança jurídica sobre o pretexto de o caso não poder, ilimitadamente, ficar a mercê de objeto de nova discussão jurídica, caso este, em que seria possível aferir verdadeira violação ao aludido princípio.
Para esses que acreditam que deve imperar a segurança jurídica, neste caso, há que se falar em confronto entre a norma- princípio (segurança jurídica) e o valor da justiça, quais sejam a segurança jurídica e a justiça. Assim, no próximo tópico, mostrar-se-á como resolver o conflito de interesses em jogo.
3.3. Compatibilização hermenêutica
Com a promulgação da Constituição da República de 1988 tem-se, pois, grande ampliação dos direitos e das garantias fundamentais como princípios. A doutrina tradicional[81] costuma ensinar que os princípios gerais do direito são uma forma de auto-integração do Direito, podendo o intérprete, ao se deparar com a ausência de normatização, valer-se deles. Isto porque, eles passaram a ser os direitos fundamentais previstos na Lei Maior, sendo considerados normas fundantes, os quais traduzem uma visão constitucionalizada dos direitos essenciais.
O Direito sempre encontrou e continuará a encontrar empecilhos ante seu objetivo buscar a estabilidade e certeza nas relações sociais, ao mesmo passo que, almeja-se a concretização pela justiça. Justiça e segurança são conceitos que não estão de mãos dadas. Corolário da busca pela justiça é o desequilíbrio com a norma-princípio da segurança jurídica.
Neste contexto fático, de um lado tem-se a vedação de que o litígio não pode infinitamente ficar a mercê de uma reanálise do caso, eis que fere a segurança e estabilidade das relações jurídicas, no entanto, de outro, almeja-se a efetividade do processo, isto é, buscando o valor da justiça.
Isto porque, como cediço, o processo não é um fim em si mesmo, de tal sorte que, hoje, busca-se a chamada efetividade do processo[82], sendo um instrumento ou meio de que o Estado utiliza-se para aplicar o direito ao caso concreto.
Sobre a questão, comenta Ada Pellegrini (CINTRA; GRINOVER, DINAMARCO, 1990, p. 35) “[…] para a efetividade do processo, ou seja, para a plena consecução de sua missão oficial de eliminar conflitos e de fazer justiça, é preciso, de um lado, tomar consciência dos escopos motivadores de todo o sistema, sociais, políticos, jurídicos, e, de outro, superar os óbices que a experiência demonstra estarem constantemente a ameaçar a boa qualidade do seu produto final”.
E acrescentam as autoras Gizelly e Margareth (RABELO; ZAGANELLI, 2010) relatando que a “efetividade processual também significa, antes de tudo, o perfeito alcance da finalidade do processo, visto como um instrumento ativo da distribuição da justiça e mais do que isso, como uma forma de pacificação e modificação social, garantindo soluções ao mesmo tempo jurídicas e legítimas”.
Portanto, na hipótese acima tratada, necessário será que o intérprete do direito utilize-se de uma hermenêutica constitucional, com o fito de resolver qual interesse das partes, na situação jurídica concreta, deverá prevalecer.
Durante o desenvolver dos atos processuais (RABELO; ZAGANELLI. 2010), cuja finalidade é ser o instrumento de aplicação do direito material abstrato, é possível que ocorram vários defeitos e vícios, os quais podem, até mesmo, comprometer a função essencial do instituto jurídico[83].
Neste viés, é preciso que se observe a ordem dos atos processuais, de forma que ambas a partes possam participar e se defender no processo de uma maneira saudável, sem praticar quaisquer vícios. Quanto à decisão, deve o magistrado fundamentar-se por critérios de justiça realizando a correta subsunção do fato à norma apreciando livremente a prova produzida nos autos. Caso reste verificado que, em determinada hipótese, a vontade da lei não seja a mesma da justiça, deve o juiz adotar a posição que mais viabilize o resultado justo às partes, conforme o caso a caso.
Não obstante, ainda que exista regulamentação legal no sentido de que a lei não pode retroagir para prejudicar atos pretéritos ou ainda ser passível indefinidamente de novo julgamento, deve prevalecer no direito à justiça[84], dando a cada um o que é seu de direito. É reprovável que coadune no ordenamento jurídico um caso que ocorreu com violação do devido processo legal, sendo esta considerada despicienda ante a alegação da impossibilidade de revisão do julgado com fundamento de que se estaria infringindo a segurança, estabilidade e certeza das relações sociais.
Ensina a Ada Pellegrini (CINTRA; GRINOVER, DINAMARCO, 1990, p. 33-34) ao abordar o acesso à justiça que, acerca da ordem jurídica justa, é, pois, composta de “[…] uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem o traçado da caminhada que conduz as partes à ordem jurídica justa. O acesso à justiça é, pois, a idéia central a que converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias. Assim, (a) oferece-se a mais ampla admissão de pessoas e causas ao processo (universalidade jurisdição), depois (b) garante-se a todas elas (no cível e no criminal) a observância das regras que consubstanciam o devido processo legal, para que (c) possam participar intensamente da formação do convencimento do juiz que irá julgara causa (princípio do contraditório), podendo exigir dele a (d) efetividade de uma participação em diálogo –, tudo isso com vistas a preparar uma solução que seja justa, seja capaz de eliminar todo o resíduo de insatisfação. Eis a dinâmica dos princípios e garantias do processo, na sua interação teleológica apontada para a pacificação da justiça”.
Com efeito, suponha-se que o magistrado deve resolver o conflito entre a segurança jurídica e o ideal de justiça. Antigamente, consolidou-se o entendimento de que o princípio da segurança jurídica era absoluto, mas, a doutrina moderna[85], bem como o STF vêm aplicando, ante o caso concreto, a partir de uma detida análise sistemática da Constituição, uma melhor solução fática[86].
Neste viés, ao confrontar tais normas-princípios, vale destacar sobre o tema (RABELLO; ZAGANELLI, 2010) que “a imutabilidade dos julgados é de interesse de ordem pública, cuja finalidade é a consecução da estabilidade, segurança e indeclinabilidade da tutela jurisdicional. É da conveniência social uma resposta jurídica que ponha fim à discussão, sob pena de perpetuar-se um estado de angústia. O que se busca é um equilíbrio entre os princípios da celeridade processual, que serve ao propósito de uma solução para conflitos em tempo razoável, e a qualidade dos julgamentos, a justeza dos provimentos judiciais, trazendo efetivamente segurança jurídica às partes e justiça social”.
Ora, a regra geral é que a lei não poderá retroagir para abalar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, conforme se infere do art. 5º, inciso XXXVI da Lei Maior. Contudo, é também assegurado na Carta Política, o direito ao devido processo legal, vinculados aos institutos do contraditório, ampla defesa e a isonomia das partes (art. 5º, incisos XXXV, LIV e LV).
Com a finalidade de resolver o conflito, no caso de que se cuida, utilizar-se-á do princípio da proporcionalidade, o qual se encontra acolhido pelo Estado Democrático de Direito. Segundo preleciona Pedro Lenza (2009, p. 97) ao tratar de hermenêutica constitucional e em especial ao cuidar de valores principiológicos, ensina que o aludido princípio, juntamente com o princípio da razoabilidade, são extremamente eminentes especialmente na situação de colisão de valores constitucionalizados. O autor ainda salienta que os aludidos princípios, apesar de não estarem expressamente previstos no texto constitucional, todavia, decorrem do devido processo legal.
Nesta esteira, o princípio da proporcionalidade, segundo informa a doutrina tradicional[87], constitui-se de três importantes subprincípios, a saber: adequação (observa-se se o meio adotado alcançará o fim a que se destina, de forma a trazer para a questão harmonia constitucional), necessidade (o meio escolhido é o mais eficaz ou existe algum outro meio menos danoso para o caso) e a proporcionalidade em sentido estrito (o meio escolhido traz, para a situação fática, mais bônus que ônus).
Consoante ensinamento de Pedro Lenza (2009, p. 97) acerca da subdivisão dos princípios da proporcionalidade em sentido amplo: “Necessidade: por alguns denominada de exigibilidade, a adição da medida que possa restringir direitos só se legitima se indispensável para o caso concreto e não se puder substituí-la por outra menos gravosa. Adequação: também denominado de pertinência ou idoneidade, quer significar que o meio escolhido deve atingir o objetivo perquirido. Proporcionalidade em sentido estrito: sem sendo a medida necessária e adequada, deve-se investigar se o ato praticado, em termos de realização do objetivo pretendido, supera a restrição a outros valores constitucionalizados. Podemos falar em máxima efetividade e mínima restrição”.
Realizada a conceituação dos princípios supracitados, necessários se faz que seja concluída a ponderação. Ressalte-se, ainda, que a Corte Suprema, diante da colisão de direitos fundamentais individuais, tem se utilizado do entendimento de que deve o intérprete do direito dar maior relevo na ponderação de princípios aplicáveis à espécie, para alcançar a celeridade da prestação jurisdicional.
No ponto, infere-se que diante de situações concretas em que colidem de um lado a segurança jurídica e de outro o ideal de justiça, deve, a priori, prevalecer este último. Isto porque, é adequado o exercício da ação de querela nullitatis insanabilis, uma vez que o meio escolhido é o único que pode atingir o resultado de forma a trazer uma coerência sistemática para a Constituição, transformando-se em uma garantia ao cidadão contra arbitrariedades do Estado, bem como viabilizar uma melhor harmonia ao Direito vigente. É necessário, eis que é o instrumento em questão é o mais eficaz e o mais apto ao fim que se destina, sem ferir quaisquer outros princípios e direitos estatuídos na Constituição. Ademais, ação da qual se cuida é o remédio que se mostra menos danoso para as partes, pois qualquer outra medida tomada poderia esvaziar o conteúdo do Direito, que é a incansável busca pela justiça, além de que, a não aplicação da justiça ao caso concreto esgota a relevância e credibilidade do Direito. É ainda proporcional em sentido estrito porque negar a parte o direito de se defender é o mesmo que lhe negar sua dignidade humana e as demais garantias fundamentais. Se o Direito deixar de almejar a justiça, poderá ver esvaziado todo o seu conteúdo axiológico, de forma que não trará mais harmonia e pacificação para a sociedade.
Não há, pois, outra lógica, no Direito, que não seja a máxima da justiça. Todavia, não poderá ser desprezada a segurança jurídica para desconstituir relações já consolidadas. Daí a extrema importância do magistrado realizar uma análise caso a caso. O Direito por si só, por meio das leis, tenta trazer às partes a justiça. Ambas as partes querem produzir provas, a partir dos mesmos direitos, e demonstrar ao órgão julgador quem está com a razão. Ademais, existe ainda um ditado bastante conhecido, o qual informa que ninguém pode se aproveitar da própria torpeza, ou seja, não seria possível num processo que, por exemplo, tenha sido proferida uma sentença por um juiz que não está investido na função jurisdicional – inexistência de pressuposto processual de existência – a alegação do princípio da segurança jurídica ao argumento de que direitos seus, caso de reanálise, estarão sendo suprimidos.
Como já dito, o processo não é um fim em si mesmo e, caso não cumpra com a sua efetividade na busca pela justiça, poderá ver esvaziado todo o seu conteúdo valorativo, fazendo do direito e das regras então válidas e vigentes um enunciado sem força normativa, vinculativa ou coercitiva.
Vogas (2009, p. 17) ressalta que “não há hierarquia entre princípios constitucionais, apesar do senso comum sobre a existência de princípios de maior ou menor importância, decorrendo essa gradação da sua utilização mais freqüente e do fato de, muitas vezes, uns englobarem outros.
Portanto, após ponderação e balanceamento dos interesses em jogo no caso fático, afere-se ser mais proporcional sobrepor o valor da justiça[88] em relação à segurança jurídica, ou seja, deve a segurança ficar restringida em detrimento pela efetividade na busca pela justiça. Caso contrário, permitir-se-ia que em todos os processos pudessem ser realizados com ilegalidades[89], violando direitos e garantias que são inerentes ao Estado Democrático de Direito. Negar a possibilidade de rediscutir a matéria perante o Judiciário é o mesmo que negar a condição de pessoa humana, isto porque, sendo a dignidade humana um dos fundamentos assegurados pela Constituição vigente, ela deve ser resguardada através dos direitos fundamentais, dentre os quais se vislumbra o acesso à jurisdição. Jamais, pode-se esquecer que todos os direitos e garantias fundamentais, sejam individuais ou coletivos, possuem aplicação imediata.
Ressalte-se apenas que, o filósofo Aristóteles já alertava para a justiça distributiva que é aquela consistente na distribuição igualitária de bens pelo Estado, enquanto na justiça corretiva o juiz repara uma injustiça, igualando novamente as partes, ou seja, o juiz tenta corrigir uma ação ou omissão que foi causado a alguém. É por esta razão, que não se pode, a ninguém, negar o direito de recorrer ao judiciário para buscar a justiça[90].
Não se pode alegar o valor da justiça para se desconstituir todo um processo, quando ambas as partes forem oportunizadas com o direito de produzir provas, bem como o procedimento foi realizado com todas as garantias materiais e processuais, ainda que a decisão não seja a mais correta, deve o julgador observar aquilo que foi construído dentro dos autos[91]. Neste caso, deve a parte insatisfeita valer-se dos recursos ordinários ou extraordinários A injustiça descarada e estampada, no trabalho acadêmico e científico do qual se cuida, é aquela que ocorre sem o mínimo de garantias inerentes à democracia então vigente.
Note-se que, conforme tem adotado doutrina moderna, a melhor forma de distinguir normas de princípios é a tese qualitativa[92]e no caso de confronto entre uma regra e um princípio, forçoso reconhecer a prevalência pelo princípio, haja vista que desta violação resultará em uma ilegalidade ou, ainda, em uma inconstitucionalidade[93], dependendo de qual norma se localiza o aludido princípio. Se a partir de então, em todos os casos, o julgador começar a violar princípios constitucionais, haver-se-á uma subversão de todos os valores fundantes, isto é, a Constituição ficará sem sustentação na sua estrutura basilar.
De fato, conclui-se que, referido balanceamento entre normas-princípios, mostra-se a melhor solução para a situação fática e por mais que afete o estado de tranqüilidade dos cidadãos, melhor persistir o sentimento de justiça do que conviver sob o império de injustiças, senão, todo o conteúdo valorativo do direito restará esgotado.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se que a ação de querela nullitatis insanabilis, desenvolvida e criada no período do intermédio na Idade Média, mais precisamente nos Estatutos Italianos, é uma ação genuinamente impugnativa, originada para atacar as sentenças ou as relações processuais inexistentes, e em mais nenhuma outra hipótese.
Apesar de a doutrina muitas vezes tratar a ação em questão como nulidade absoluta e até mesmo chamá-la de querela de nulidade, vê-se, pois, que é um grande equívoco. Com evolução no campo processual e com o aperfeiçoamento na esfera recursal, percebe-se, hoje, nitidamente, a distinção entre os planos de existência, validade eficácia.
Neste viés, nota-se que as nulidades situam-se no plano de validade, devendo, assim, os vícios serem observados quando da realização do ato processual, e, em caso de violação da lei, devem ou não, serem declarados nulo, conforme o caso. Na hipótese positiva, dever-se-á observar qual será a nulidade cominada pela lei. Saliente-se, ademais, que para o ato ser declarado nulo, deve, em primeiro lugar, existir. Isto porque, o vício é um ato que foi praticado com defeito, e, devendo ser refeito, enquanto no ato inexiste não há defeito, eis que sequer foi feito. Assim, o ato inexistente, obviamente, encontra-se calcado no plano de existência, eis que neste, analisa-se o “ser” ou o ”não ser” do ato. Se existente é passível de nulidade, entretanto, se inexiste, deve ser feito e não refeito. Refeito é aquilo que existiu com defeito. Destarte, as hipóteses de querela nullitatis estão entre as hipóteses de existência, conforme fundamentos jurídicos alhures.
Lado outro, ao se comparar as ações impugnativas, como a querela nullitatis insanabilis e a ação rescisória, nota-se que estas, apesar de possuírem o mesmo regime jurídico, possuem cada qual, peculiaridades e singularidades que as diferem. A uma, porque as hipóteses da ação rescisória devem estar taxadas na lei, diferentemente da querela nullitatis em que suas hipóteses fundamentam-se nos atos inexistentes, sendo estes verificados por meio de uma análise dos pressupostos processuais de existência, ou ainda, diante da coisa julgada inconstitucional.
A duas, porquanto os efeitos da coisa julgada, através do trânsito em julgado da sentença de mérito é pressuposto para ajuizamento da ação rescisória, enquanto na ação de querela jamais ocorre a coisa julgada. Não pode um ato inexistente passar em julgado, devendo, primeiramente, existir, para, posteriormente, transitar em julgado.
A três, pois a lei taxa o prazo decadencial de dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão para sua propositura, ou seja, não sendo a ação rescisória intentada neste prazo, o direito de intentá-la extingue para a parte, ficando precluso e o vício que imperava no processo restará sanado. De maneira distinta, ocorre na ação de querela nullitatis insanabilis. Referida ação não prescreve qualquer espécie de lapso temporal fixado na lei, sendo por muitos doutrinadores, caracterizada como sendo imprescritível, sob o fundamento de que aquilo que não existiu com o tempo não passa a existir, até mesmo porque é declaratória.
Acrescente-se ainda, que todo processo maculado por qualquer espécie de nulidade, ao transitar em julgado, ocorre o efeito da sanatória geral, restando sanado tais vícios. Entretanto, diante das hipóteses taxadas na lei, por um critério legislativo, surge para a parte o direito de rescindir tal sentença por até dois anos constados do trânsito em julgado, ao passo que, na ação de querela os atos inexistentes são considerados insanáveis, eis que sequer ingressam no mundo fático, podendo ser impugnados a qualquer momento.
Portanto, afere-se que as hipóteses de inexistência jamais se confundem com as de nulidade. Além do mais, por todo o explanado, verifica-se que a ação correlata a impugnar vícios de inexistência restam caracterizados pela ação de querela nullitatis insanabilis. É preciso, contudo, que o ato inexistente seja declarado como tal, uma vez que, está, no mundo jurídico, a produzir efeitos em decorrência da sua aparência.
No que concerne à coisa julgada inconstitucional, verifica-se esta ser também uma das hipóteses de cabimento da ação de querela nullitatis, uma vez que, a relação jurídica ou a sentença de mérito que foi decidida com fundamento em lei declarada com vício de inconstitucionalidade pelo STF, é inexistente, e caso, tenha a decisão aparentemente transitado em julgado, a coisa julgada inconstitucional que havia se ultimado, por conseguinte, é inexistente. Isto porque, o fundamento da decisão que pôs fim ao conflito de interesses resistido, foi embasado numa construção não-jurídica, que não poderia, por obvio, figurar no ordenamento jurídico, por afetar diretamente a Carta Magna. Registre-se que, conforme demonstrado pela doutrina, a lei inconstitucional seria até mesmo natimorta.
Ademais, nos casos de inconstitucionalidade estampada, seja porque magistrado decidiu a demanda com base em princípio contrário à Constituição, seja porque extinguiu ou aboliu direitos e garantias fundamentais, a decisão é, pois, inexistente, sendo, a coisa julgada inconstitucional, inexistente.
Conclui-se ainda que, a segurança jurídica é um direito fundamental resguardado pela Lei Maior, tendo status de cláusula pétrea, que possui amplitude significável. Com cediço, os princípios possuem a característica da generalidade e, por isso, pode ser entendida como um valor individual, no qual está abarcado a segurança da inviolabilidade à vida, à saúde e outros direitos discriminados na Norma Ápice me serão assegurados, bem assim a lei não pode retroagir para prejudicar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, ou ainda, pode ser entendida como um valor coletivo que é o dever do Estado zelas pela efetiva segurança e proteção à incolumidade de seus cidadãos e seus patrimônios.
Como muito salientado, não há que se falar em colisão entre o devido processo legal e a segurança jurídica, sendo prescindível realizar uma ponderação a cada caso concreto, isto porquanto, apenas haverá colisão de princípios nas hipóteses em que a Carta Magna proteger, numa mesma situação fática, dois bens ou valores jurídicos, os quais posto lado a lado, entram em contradição. Ainda que a constituição, em mesmo patamar, assegure aos litigantes em processo judicial ou administrativo os meios e recursos inerentes ao processo, vinculados ao devido processo legal (seria a prerrogativa de ajuizar a ação de querela nullitatis insanabilis), esta não atinge os efeitos da segurança jurídica, uma vez que as hipóteses de ajuizamento da ação declaratória de inexistência (pressupostos processuais de existência e coisa julgada inconstitucional) não passam em julgado, eis que momento algum o ato se consumou, sendo, pois, inexistente. Portanto, inexistindo óbice à coisa julgada, imperioso pontuar que não há que se falar em conflito de princípios fundamentais.
Saliente-se, oportunamente que, não se descarta a possibilidade de cumulação, numa mesma hipótese de fato, desde que compatíveis, de mais de um direito fundamental, tendo em vista a característica da concorrência entre esses, cuja abordagem já foi realizada.
Contudo, diante de opiniões que neguem ou rechacem a sobrevivência da ação querela nullitatis no sistema jurídico brasileiro ou, quando, pela incompatibilidade de coadunar com os institutos jurídicos em vigência, ou ainda, pela falta de previsão expressa, nota-se que em casos tais ocorrerá um aparente conflito entre o valor da justiça e da segurança jurídica. Além do mais, em casos específicos, devido a grande dinâmica do Direito, podem ocorrer situações que serão necessárias a realização de um juízo de ponderação. Isto porquanto, haverá, numa mesma situação fática, a presença de dois direitos fundamentais em choque. De um lado está a segurança jurídica vedando a retroatividade das leis de forma a prejudicar, especialmente, a coisa julgada material. De outro, tem-se a busca pela justiça aliada ao direito de acesso à jurisdição, ideais perquiridos pelo Direito.
Neste contexto, caberá ao interprete do direito, utilizando-se de uma hermenêutica constitucional, analisar, conforme o caso, qual dos axiomas em jogo deve prevalecer. Assim, imperioso a utilização do princípio constitucional da proporcionalidade para tratar de direitos e garantias fundamentais conflitantes. Referido princípio calca-se no trinômio: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Portanto, numa colisão teórica, entre a segurança jurídica e a justiça, afere-se que o princípio da proporcionalidade e razoabilidade tende mais para o ideal de justiça, haja vista a busca pela efetividade processual, bem assim a garantia máxima do devido processo legal. No ponto, não é que a segurança jurídica deva ser rechaçada, mas deverá ceder em detrimento de outro valor que, após um balanceamento, mostra-se inferior a este.
Finalmente, após muito dissertado e argumentado, repise-se apenas que, a ação em comento é impugnativa, podendo ser aclamada a qualquer tempo, em qualquer grau de jurisdição, para as hipóteses em que restar configurada relação jurídica inexistente ou sentença inexistente, mormente configurada ante a ausência dos pressupostos processuais de existência ou diante da coisa julgada inconstitucional.
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