Resumo: Esse artigo possui o objetivo de demonstrar como as questões de gênero foram tratadas nas Constituições brasileiras, traçando paralelos com o momento histórico em que se inseriam, apontando os principais avanços e, também, retrocessos quanto à matéria nos Textos Constitucionais pátrios, destacando-se a importância de cada inovação Constitucional para a discussão sobre gênero e seus efeitos na vida real. Para tal tarefa, será utilizada, precipuamente, pesquisa bibliográfica.
Palavras chave: gênero – Constituição – igualdade – efetividade
Abstract: This article aims to show how the discussion about gender was addressed on the Brazilian Constitutions, linking them to the historical context they were inserted on, and pointing to the main progresses, as well as regressions, on the subject, underlining the importance of each Constitution’s innovations to this discussion and its effects on real life. To this task, it will be used, mainly, bibliographical research.
Keywords: gender – Constitution – equality – effectivity
Sumário: Introdução. Breve panorama histórico. Gênero nas Constituições brasileiras. Conclusão.
Introdução
Este trabalho buscará demonstrar como a questão da igualdade de gênero foi tratada nos textos das Constituições brasileiras. Antes de tratar especificamente da evolução das previsões constitucionais acerca do assunto, parece-nos importante traçar alguns breves pontos introdutórios.
Em primeiro lugar, destaque-se o papel que a Constituição desempenha, como refletor da sociedade, ou, ainda, como tomada de posição ante um fato social. Sempre interessante lembrar as anotações de Ferdinand Lassalle, de que a essência da Constituição de um país é “a soma dos fatores reais do poder que regem o país”, que se juntos e escritos sobre uma folha de papel adquirem expressão escrita. A partir dessa manifestação escrita, deixam de ser simples fatores reais de poder, e se tornam verdadeiro direito (LASSALLE, 2009, p. 29).
Também se destaque a concepção de Peter Häberle, que parte de um entendimento experimental da ciência do direito Constitucional, compreendendo a Constituição como “um espelho da publicidade da realidade (Spiegel der Öffentlichkeit und Wirklichkeit)”. Complementa o jurista que a Constituição não é, todavia, apenas o espelho, mas também a própria fonte da luz, possuindo, portanto, função diretiva eminente (HÄBERLE, 1997, p. 34).
Desse modo, tem-se que cada Constituição revela os anseios sociais de sua época, e mesmo quando o texto constitucional se cala, ou seja, é omisso, emana efeitos. Como se verá, a própria questão da igualdade de gênero nem sempre foi objeto de preocupação em nossas Constituições, e mesmo esse silêncio reflete o período histórico em que se encontra cada Texto Maior.
Em segundo plano, quanto à questão terminológica, neste trabalho, em que pese o Texto constitucional, de todas as Constituições brasileiras, tenham empregado o termo “sexo”, aqui se prefere adotar a palavra “gênero”, tendo em vista a diferença que existe entre sexo, que nas teorias de gênero atualmente se refere ao biológico/morfológico, e gênero, que se refere efetivamente aos papeis sociais designados à mulher e ao homem.
Em terceiro, neste trabalho, o direito da mulher será compreendido como um direito humano. Originalmente, a noção de direitos humanos veio em contraposição aos abusos estatais. Todavia, como anotam Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian, em especial na América Latina, ocorreu uma mudança de eixo, no sentido de que deveriam ser resguardados os direitos dos cidadãos não apenas em relação ao Estado, mas também frente à própria sociedade. No caso das mulheres, tendo em vista a sociedade patriarcal em que vivemos, os abusos por parte da sociedade são, ainda, evidentes. Anotam as juristas que, se fosse aplicada a lógica de que os direitos humanos são invocados apenas contra abusos do Estado, a violência doméstica não configuraria violação a direitos humanos (PIMENTEL e PANDJIARJIAN, 2016).
1. Breve panorama histórico
Como marco da origem dos movimentos feministas pode ser apontada a Revolução Industrial, que alterou os métodos de produção e levou as mulheres às fábricas, acarretando uma profunda alteração na própria estrutura da família, tendo em vista que, anteriormente, a atuação da mulher estava restrita às atividades domésticas.
Essa mudança na estrutura familiar também trouxe alterações no sistema econômico, uma vez que diversos produtos que eram feitos em casa passaram a ser produzidos em fábricas, como por exemplo as vestimentas. Como anota Marly A. Cardone, o que ocorreu foi que as fábricas furtaram as tarefas domésticas das mulheres ao mesmo tempo em que alocaram as mulheres dentro das fábricas; é dizer, as mulheres continuaram a desempenhar as mesmas tarefas, todavia, agora fora do lar (CARDONE, Agosto/2011. p. 449-480). Nesse diapasão, as coisas que antes eram produzidas em casa agora têm de ser compradas, e isso gerou a necessidade de a família buscar aumentar a renda.
Outras questões que também influenciaram muito a começar a pensar em direitos das mulheres foram levantadas durante as grandes guerras, quando os homens tinham de ir ao campo de batalha, provocando escassez de mão-de-obra masculina, a qual passou a ser substituída pelas mulheres.
Marly A. Cardone também aponta o fortalecimento do Estado, desempenhando atividade intervencionista, principalmente na questão da educação, também abriu novos caminhos às mulheres, permitindo que, aos poucos, adentrassem aos estabelecimentos de ensino e adquirissem conhecimento para a realização das atividades fora do lar (CARDONE, Agosto/2011. p. 449-480).
Essa nova sociedade se marcou pelo progresso econômico, e consequente colocação de novos bens e serviços no mercado. Isso, por sua vez, gerou uma necessidade cada vez maior de aumento de renda, e a atividade do homem passou a não ser suficiente.
Por muito tempo, todavia, manteve-se a falta de poder político das mulheres, que foram tomando conhecimento da situação e se articulando para conquistar direitos políticos, civis econômicos e trabalhistas.
Aos poucos, as reivindicações foram tomando voz, e o Estado se viu obrigado a tomar posição frente aos anseios sociais. Esse processo é bastante visível pelas disposições de nossas Constituições sobre o assunto, pois percebe-se que, de início, sequer se fazia referência à mulher, pois a mulher estava implicitamente excluída da participação social e política, não sendo necessário sequer o Estado manifestar-se quanto aos seus direitos. Em seguida, observa-se o ganho de espaço, todavia de modo progressivo. Dessa forma, passemos à análise da questão da igualdade de gênero conforme os dispositivos das Constituições Brasileiras, bem como alguns outros diplomas infraconstitucionais que mostram o avanço sobre o tema.
2. Gênero nas Constituições brasileiras
Quando se fala em igualdade de gênero, em especial na previsão constitucional de igualdade de direitos, algumas questões se destacam. A primeira delas é a questão dos direitos políticos, que se expressam especialmente pelo direito ao voto, de se alistar e de ser elegível. Outra questão que segue é a dos direitos trabalhistas, sob a rubrica que normalmente se apresenta proteção ao trabalho da mulher. Por fim, em face dos direitos que as mulheres vêm adquirindo, à luz da igualdade de gênero, também se apresentam outras questões, voltadas a deveres, como por exemplo a polêmica acerca da prestação de serviço militar obrigatório, que tradicionalmente é um dever apenas dos homens. Outros aspectos relevantes se relacionam à previdência, e a previsão de contagens diversas para aposentadoria à mulher e ao homem.
Vejamos essas questões nos dispositivos das Constituições brasileiras.
Constituição de 1824
A Constituição do Império, de 23 de março de 1824, manteve o mesmo tratamento que era dispensado às mulheres no Brasil colônia, ou seja, continuou a conceber a ideia de que a atuação da mulher se restringe ao âmbito privado, cuidando da família e exercendo funções domésticas.
Cumpre anotar, como já se adiantou, que os movimentos feministas começaram a aflorar na Europa no século XIX, e que teve poucos reflexos neste período em nosso país.
Tanto era dominante a ideia de que a mulher cumpria apenas tarefas domésticas que a Constituição de 1824 sequer se preocupou em negar-lhe direitos. Não há exclusão expressa nessa Constituição à direitos políticos às mulheres. Todavia, não houve, à época, quem reivindicasse tal atuação política. A certeza de exclusão da mulher do que se compreendia como cidadão bastava para excluir esses direitos às pessoas do gênero feminino. Outro fator que evidencia essa questão é o fato de que as únicas referências à mulher no Texto da Constituição do Império tratavam da esposa do imperador e das princesas, como se verifica nos dispositivos a seguir transcritos:
“Art. 108. A Dotação assignada ao presente Imperador, e á Sua Augusta Esposa deverá ser augmentada, visto que as circumstancias actuaes não permittem, que se fixe desde já uma somma adequada ao decoro de Suas Augustas Pessoas, e Dignidade da Nação.
‘Art. 112. Quando as Princezas houverem de casar, a Assembléa lhes assignará o seu Dote, e com a entrega delle cessarão os alimentos.
‘Art. 117. Sua Descendencia legitima succederá no Throno, Segundo a ordem regular do primogenitura, e representação, preferindo sempre a linha anterior ás posteriores; na mesma linha, o gráo mais proximo ao mais remoto; no mesmo gráo, o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo, a pessoa mais velha á mais moça.
‘Art. 124. Em quanto esta Rogencia se não eleger, governará o Imperio uma Regencia provisional, composta dos Ministros de Estado do Imperio, e da Justiça; e dos dous Conselheiros de Estado mais antigos em exercicio, presidida pela Imperatriz Viuva, e na sua falta, pelo mais antigo Conselheiro de Estado.
‘Art. 130. Durante a menoridade do Successor da Corôa, será seu Tutor, quem seu Pai lhe tiver nomeado em Testamento; na falta deste, a Imperatriz Mãi, em quanto não tornar a casar: faltando esta, a Assembléa Geral nomeará Tutor, com tanto que nunca poderá ser Tutor do Imperador menor aquelle, a quem possa tocar a successão da Corôa na sua falta”.
Destaque-se, ainda, que em que pese o desprestígio à figura feminina, a Constituição de 1824 manteve a previsão de a mulher governar, mas apenas por sucessão.
Na Reforma de 12 de agosto de 1834, pelo Ato Adicional, não houve alterações no que tange à igualdade de gênero.
Constituição de 1891
Também na primeira Constituição da República do Brasil não houve menção expressa à mulher, nem pela Reforma de 7 de setembro de 1926. Todavia, pelo período histórico, a omissão do Texto constitucional começou a ser questionado, inclusive judicialmente. Destaque-se ainda a previsão do § 2º do artigo 72 da Constituição, que trazia a igualdade de todos perante a lei.
Entretanto, mantinha-se a tendência de excluir as mulheres dos direitos políticos. Marly A. Cardone[1] destaca uma decisão de um juiz em primeira instância em São Paulo, de 1922, que julgou improcedente o pedido de uma interessada em alistar-se como eleitora. Dentre os argumentos apresentados na fundamentação, constava que “não se reconhece ainda, no Brasil, a capacidade social da mulher para o exercício do voto”.
A questão começava a ser mais discutida em nosso país, mas muitos juristas da época entendiam que, embora o artigo 70 da Constituição de 1891 não excluísse expressamente as mulheres dos direitos políticos, cabia a elas reivindicar tal direito, e isso não ocorreu.
Nesse diapasão, em 24 de fevereiro de 1932 foi aprovado do decreto nº 21.076, que instituía o Código Eleitoral, concedendo o direito de voto às mulheres, na seguinte redação:
“Art. 2º E' eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na fórma deste Codigo”.
Com essa disposição do Código Eleitoral, estenderam-se outros direitos à mulher, como a de ser deputada ou senadora, na forma dos artigos 26 e 30 da Constituição, que traziam como requisitos a estes cargos ser cidadão brasileiro e alistado como eleitor.
No que tange aos demais cargos públicos, cujo ingresso não depende de eleição, destacam-se os seguintes artigos, que permitiram a entrada das mulheres no aparelho público:
“Art 73 – Os cargos públicos civis ou militares são acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas as acumulações remuneradas.
‘Art 78 – A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna”.
A reforma de 7 de setembro de 1926 e o decreto nº 19.398 de 11 de novembro de 1930 nada alteraram ou acrescentaram acerca o tema da igualdade de gênero.
Constituição de 1934
O contexto histórico da Constituição de 1934 é posterior ao início da Primeira Guerra Mundial. Como já se apontou no início desse trabalho, esse acontecimento desencadeou diversas mudanças sociais, de alcance global, e muitas dessas mudanças alteraram a atuação da mulher na sociedade, fazendo com que surgissem diversos novos direitos às pessoas do gênero feminino.
A questão do voto estava resolvida pelo Código Eleitoral, que entrou em vigor ainda no regime constitucional anterior, e foi confirmado pelo artigo 108 da Constituição de 1934:
“Art 108 – São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei”.
O que se alterou foi a idade mínima, que antes era de 21 anos e passou a 18. Entretanto, permaneceu expressamente a concessão de direito ao voto às mulheres. Outra mudança foi que o voto passou a ser obrigatório às mulheres que ocupavam função pública remunerada, conforme o artigo 109.
Tendo em vista que o Texto constitucional trazia como condição de elegibilidade ser alistado como eleitor, era viável às mulheres concorrerem a cargos de deputado federal, ministro de Estado e Presidente da República, o que se verifica nos artigos 24, 51 e 59.
Manteve-se a previsão da igualdade perante a lei, com referência expressa à igualdade de gênero:
“Art 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
‘1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”.
No contexto histórico, destaca-se a criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919 e a realização da I Conferência Internacional do Trabalho, que resultou na Convenção nº 3, tratando ao emprego das mulheres após o parto. Em nosso direito doméstico, Getúlio Vargas já havia baixado o Decreto nº 21.417-A, em 17 de maio de 1932, tratando do trabalho das mulheres em estabelecimentos industriais e comerciais, inaugurando alguns princípios de proteção ao trabalho da mulher que foram incorporados pelo Texto de 1934, como a igualdade de salário, proibição de trabalho da mulher em local insalubre e concessão de descanso no período anterior e pós parto. Também à funcionária pública garantiu-se constitucionalmente o período de descanso. Restou clara, portanto, a preocupação do Constituinte com a maternidade.
Foi a primeira comissão que contava com presença feminina, a deputada Berta Lutz.
Com o avanço dos direitos das mulheres que se observaram na Constituição de 1934, outras questões relacionadas à igualdade de gênero começaram a ser levantadas. É o que ocorre, por exemplo, com a questão do serviço militar obrigatório, que tradicionalmente era um dever apenas masculino. O Texto constitucional de 1934, entretanto, apresentou expressamente a resposta a essa polêmica, conforme se observa do artigo 163:
“Art 163 – Todos os brasileiros são obrigados, na forma que a lei estabelecer, ao Serviço Militar e a outros encargos, necessários à defesa da Pátria, e, em caso de mobilização, serão aproveitados conforme as suas aptidões, quer nas forças armadas, quer nas organizações do interior. As mulheres ficam excetuadas do serviço militar”.
Também se preocupou o Constituinte em estabelecer expressamente a igualdade de gênero no acesso aos cargos públicos:
“Art 168 – Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, sem distinção de sexo ou estado civil, observadas as condições que a lei estatuir”.
Constituição de 1937
A Constituição de 1937 é fruto de golpe de Estado de 10 de novembro. Quanto ao tema a que se dedica este trabalho, não houve substanciais alterações, entretanto, os direitos garantidos às mulheres foram externados de modo diverso, de um modo menos protetivo, por assim dizer.
As duas grandes diferenças que se destacam no Texto de 1937 se referem ao período de descanso antes e depois do parto e à prestação de serviço militar obrigatório. Nesses dois aspectos, a Constituição de 1934 tinha redação mais protetiva à mulher.
O artigo 137, alínea l, da Constituição de 1937 estabelecia, originalmente:
“Art 137 – A legislação do trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos:
‘l) assistência médica e higiênica ao trabalhador e à gestante, assegurado a esta, sem prejuízo do salário, um período de repouso antes e depois do parto”.
Já o artigo 121, §1º, alínea h, do Constituição anterior determinava:
“Art 121 – A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País.
‘§ 1º – A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:
‘h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte; (destaque acrescentado)”.
Pois bem. Observa-se que o Texto de 1937 retirou a garantia ao emprego, que antes era prevista, à empregada no período anterior e seguinte ao parto, restando apenas a garantia aos salários. Com essa supressão, encontra-se a empregada gestante em situação vulnerável, porquanto o empregador pode dispensá-la em um dos períodos que mais precisa do trabalho, tendo em vista que a obrigação constitucional se refere apenas à remuneração da obreira.
No que tange à funcionária pública gestante, o artigo 156, alínea h, garantiu três meses de licença com vencimentos integrais.
Por fim, quanto ao serviço militar obrigatório, deixou a Constituição de 1937, em seu artigo 164, de excluir expressamente as mulheres, conforme a redação do caput:
“Art 164 – Todos os brasileiros são obrigados, na forma da lei, ao serviço militar e a outros encargos necessários à defesa da pátria, nos termos e sob as penas da lei”.
Assim, a mulher também tinha o dever de prestar os serviços militares.
Constituição de 1946
A Constituição de 1946 trouxe diversos aspectos importantes no que tange à igualdade de gênero, em especial pelo contexto em que estava inserida, isto é, no pós Segunda Guerra Mundial.
O texto de 1946, no que se refere aos direitos políticos e econômico-sociais das mulheres guarda maior relação com a Constituição de 1934 do que com a Constituição de 1937.
Quanto ao direito ao voto, manteve-se sua extensão às mulheres e, agora, há previsão de sua obrigatoriedade tanto para os homens como para as mulheres, salvo exceções previstas em lei. O Código Eleitoral (Lei nº 1.164 de 24 de julho de 1950) trazia as exceções, incluindo no rol do artigo 4º as mulheres que não desempenhassem profissão lucrativa.
Entretanto, tal disposição não foi aceita pacificamente, tendo sido criticada, acerca de sua inconstitucionalidade, por diversos juristas, inclusive Pontes de Miranda, que apontou a incompatibilidade dessa exceção com a isonomia perante a lei eleitoral (CARDONE, Agosto/2011. p. 449-480).
Há previsão expressa também no sentido de igualdade salarial, no desempenho de um mesmo trabalho, sem distinção de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil (artigo 157, nº II). Na mesma direção dispunha o artigo 121, alínea a, da Constituição de 1934, mas a Constituição de 1937 foi omissa a respeito. Neste ínterim, inclusive, houve previsão legal que possibilitava o percebimento de salário menor pela trabalhadora mulher, pela decreto-lei nº 2.548 de 31 de agosto de 1940, que em seu artigo 2º assim estabelecia:
“Art. 2º Para os trabalhadores adultos do sexo feminino, o salário mínimo, respeitada a igualdade com o que vigorar no local, para o trabalhador adulto do sexo masculino, poderá ser reduzido em 10% (dez por cento), quando forem, no estabelecimento, observadas as condições de higiene estatuídas por lei para o trabalho de mulheres”.
No âmbito internacional, destaca-se a discussão acerca da igualdade de salário na 33ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho, que ocorreu em Genebra em 1950, e resultou no Informe nº V. Entretanto, revelou-se que a discussão, no fundo, não tinha a intenção de proteger a mulher trabalhadora, mas sim proteger o salário dos homens e impedir sua dispensa, em razão de a mão de obra feminina ser mais barata. Assim, o empregador de mulheres mediante contraprestação inferior aos homens se demonstrou uma ameaça latente aos empregos dos homens.
A Consolidação das Leis do Trabalho (decreto-lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943) apresentava redação mais igualitária, como se observa já de seu artigo 5º:
“Art. 5º – A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo”.
Quanto ao que se compreende por trabalho de igual valor, o mesmo instrumento esclarece, em seu artigo 461, caput e § 1º:
“Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá, igual salário, sem distinção de sexo.
‘§ 1º Trabalho de igual valor, para os fins deste capítulo, será o que for feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço não for superior a dois anos”.
À época, entretanto, não havia tanto significado a igualdade salarial. Isso porque as mulheres estavam predestinadas a trabalhos que exigiam menor qualificação, de tal modo que efetivamente existia uma diferenciação nas indústrias entre trabalhos femininos e masculinos. Dada esta divergência, não se aplicava, em realidade, igualdade de salário.
A proibição do trabalho da mulher em locais insalubres se justificava tendo em vista considerar a mulher como pessoa de maior responsabilidade na atividade reprodutiva, devendo, por isso, ser protegida. Manteve-se, então, a disposição que já era prevista nas Constituições de 1934 e 1937, de proibir o trabalho da mulher em locais insalubres (artigo 157, nº IX). As industrias insalubres constavam da lista do decreto-lei nº 21.417-A de 17 de maio de 1932, elencando as atividades em subterrâneos, minerações em subsolo, pedreiras e obras de construção pública ou particular, e serviços perigosos e insalubres contidos em anexo.
Sobre o assunto, assevera Pontes de Miranda que, todavia, a disposição para mulheres adulta e menor não poderia ser a mesma, como consta no Texto de 1946 (CARDONE, Agosto/2011. p. 449-480).
Retomando a questão da trabalhadora gestante, a leis que visavam à proteção da maternidade elevaram o custo da empregada mulher. Os artigos 7º e 9º do decreto nº 21.417 de 17 de maio de 1932 proibiam o trabalho da mulher gestante de quatro semanas antes do parto a quatro semanas depois, e previa-se que, durante o afastamento, a mulher teria direito a receber metade de seu salário e a reverter ao lugar que ocupava. Como consequência, as empresas passaram a despedir suas empregadas quando estas se casavam ou engravidavam.
A Constituição de 1946 retomou a posição do texto de 1934 para estabelecer o direito da gestante a descanso antes e depois do parto sem prejuízo de seu emprego, e nem do salário. Este dispositivo veio a ser regulamentado pela Consolidação das Leis do trabalho, em seu artigo 392, fixando o período de seis semanas antes e seis semanas posteriores ao parto.
O Texto de 1946 também trouxe previsão expressa acerca da assistência e previdência em favor da maternidade, conforme artigo 157 e seus nº XIV e XVI, bem como artigo 164.
A Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3.807 de 26 de agosto de 1960) instituiu o sistema tríplice de previdência, em que contribuem o Estado, o empregador e o empregado.
No que tange ao acesso a cargos públicos, manteve-se a disposição no sentido de serem acessíveis a todos os brasileiros, observados os requisitos da lei (artigo 184). Quanto a isso, Marly A. Cardone (CARDONE, Agosto/2011. p. 449-480) anota que houve decisão do Supremo Tribunal Federal, publicada em 12 de julho de 1963 que julgou constitucional um edital do governo do Estado de São Paulo, para o cargo de Auxiliar Fiscal de Renda, que excluía a possibilidade de as mulheres participarem do concurso. Tal decisão foi repudiada por Pontes de Miranda, que declarou que a igualdade prevista no Texto constitucional deveria impedir as distinções de sexo.
Por fim, quanto à prestação de serviço militar obrigatório, o artigo 181, § 1°, voltou a excluir expressamente as mulheres, conforme se observa:
“Art 181 – Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou a outros encargos necessários à defesa da Pátria, nos termos e sob as penas da lei.
‘§ 1 º – As mulheres ficam isentadas do serviço militar, mas sujeitas aos encargos que a lei estabelecer”.
Observe-se que antes de a Constituição de 1946 entrar em vigor, o decreto-lei nº 9.500 de 23 de julho de 1946, que ficou conhecido como Lei do Serviço Militar, estabelece em seu artigo 2º que todos os brasileiros são obrigados a prestar serviço militar à pátria, estando as mulheres isentas, mas está prevista a possibilidade de habilitação voluntária das mulheres, conforme sua aptidão.
Constituição de 1967 e Emenda Constitucional nº1 de 1969
O contexto histórico da elaboração da Constituição demonstra a intenção de os militares se manterem no governo, conferindo grandes poderes ao Executivo, inclusive, por exemplo, no que tange à legitimidade para propor emenda à Constituição, que tipicamente é uma atividade do Poder Legislativo, mas nesse momento se tratava de matéria que competia exclusivamente ao Poder Executivo.
Em 1969, a Junta Militar assumiu o poder em razão do afastamento do então Presidente Costa e Silva, e baixou a Emenda Constitucional nº 1, a qual, embora formalmente seja uma emenda, é considerada por muitos constitucionalistas uma nova Constituição.
No que tange à igualdade de gênero, a Constituição de 1967 não trouxe muitas alterações, mantendo o posicionamento que havia tomado no texto anterior, com a não obrigatoriedade de prestação de serviço militar obrigatório pela mulher (artigo 93, parágrafo único), proibição do trabalho da mulher em locais insalubres (artigo 158, inciso X).
A mudança que mais se destaca é que o tempo de serviço da mulher, para fins de aposentadoria, deixou de ser trinta e cinco anos e passou a trinta, como se destaca:
“Art 158 – A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à melhoria, de sua condição social:
‘XX – aposentadoria para a mulher, aos trinta anos de trabalho, com salário integral”.
O mesmo para as funcionários públicas, conforme artigo 100, § 1º.
A emenda constitucional nº 1 de 1969 não trouxe alterações substanciais quanto ao tema.
Constituição de 1988
A Constituição de 1988 simboliza o marco jurídico da redemocratização do Brasil, após o período de ditadura militar, bem como da institucionalização dos direitos humanos em nosso país. Além de representar uma transição democrática, a Constituição Cidadã também trouxe um aprimoramento da democracia, introduzindo instrumentos de participação direta do cidadão, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, conforme artigo 1º, parágrafo único, e artigo 14, e ainda estimula a participação comunitária, como se depreende dos artigos 10, 11, 194, inciso VII e 198, inciso III.
Para a formulação da Constituição de 1988, assegurou-se a participação popular. No que tange à participação feminina, destaca-se a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, que compilava as principais reivindicações dos movimentos de mulheres.
Assim, são diversos os dispositivos da Constituição vigente que demonstram os avanços normativos no que tange à igualdade de gênero.
Em primeiro, destaque-se a Constituição de 1988 inovou também ao inaugurar seu Texto trazendo os direitos fundamentais, e já em seu artigo 5º, inciso I, estabelece expressamente a igualdade entre homens e mulheres em geral:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
‘I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Outro ponto de alterações significativas é a família. É que o antigo Código Civil de 1916 trazia diversas disposições que colocavam a mulher em um papel inferior dentro da entidade familiar. Assim, quanto a este aspecto, destacam-se os seguintes dispositivos constitucionais:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
‘§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
‘§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
‘§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
‘§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
Dessa forma, dos primeiros parágrafos acima transcritos, observa-se que a Constituição de 1988 trouxe o reconhecimento da união estável e a participação igualitária da mulher e do homem na família. Os últimos dois parágrafos do artigo 226 que acima foram relacionados se referem ao planejamento familiar como livre escolha do casal e quanto ao dever do Estado de coibir a violência nas relações familiares. Quanto a este último ponto, acrescente-se também o grande avanço infraconstitucional que foi a Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha, que trata sobre a prevenção e o combate à violência contra a mulher.
Mais uma questão de suma importância, como já se destacou, refere-se à normas relacionadas ao trabalho da mulher. O Texto de 1998 se preocupou em expressamente trazer a proibição da discriminação no mercado de trabalho por motivo de gênero (sob a rubrica sexo, todavia) ou estado civil. Em complemento a essa disposição (artigo 7º, inciso XXX), a Lei nº 9.0299 de 13 de abril de 1995 trouxe a vedação à exigência de atestado de gravidez ou esterilização e outras práticas discriminatórias para exames admissionais ou de continuidade do liame empregatício.
Outro tema relevante na Constituição de 1988, e que também se relaciona com o contexto histórico, foi a abertura do ordenamento jurídico à ordem internacional, em especial no que se refere aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Flávia Piovesan elenca alguns instrumentos internacionais que influenciaram nossa ordem doméstica quanto à temática de igualdade de gênero: a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, de 1979, a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, de 1993, o Plano de Ação da Conferência Mundial sobre População e desenvolvimento do Cairo, de 1994 e a Declaração e a Plataforma de Ação da Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim de 1995 (PIOVESAN, 2016).
Tanto no que se refere aos direitos políticos quanto aos direitos civis, observa-se que nosso ordenamento jurídico interno está de acordo com a esfera internacional, no mesmo caminho para a igualdade de gêneros e combate à discriminação da mulher, tanto sob a ótica repressiva-punitiva, de coibir atos discriminatórios à população feminina, quanto na vertente promocional, que se revela por meio de políticas afirmativas para alcançar a igualdade. Todavia, a realidade brasileira demonstra que as práticas sociais não refletem os avanços normativos. É dizer, na realidade, no mundo fático, permanecem as práticas discriminatórias e excludentes das mulheres, ainda que nosso ordenamento, pátrio e internacional, já tenha estabelecido bases e diretrizes em sentido oposto.
No que tange à polêmica da obrigatoriedade de prestação de serviço militar obrigatório, a Constituição de 1988 manteve o posicionamento de que as mulheres não se encontram obrigadas a servir à pátria, conforme se observa:
“Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
‘§ 2º – As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir”.
Conclusão
Constata Norberto Bobbio que “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los” (BOBBIO, 2004., p. 25).
Pois bem. Observa-se que, atualmente, já existe, no plano normativo, tanto na ordem internacional como no âmbito doméstico, princípios e regras que visam a proteger os direitos da mulher e promover a igualdade de gênero. Entretanto, na prática, ainda persistem as diferenças.
É o momento de se buscar a efetividade desses direitos. Apenas a título de exemplo, é visível a desigualdade quando se observa a atuação de mulheres na política, conforme levantamento realizado nas eleições de 2014 pela Secretaria de Políticas para Mulheres do Governo Federal, que constatou que “apesar de as mulheres serem a maioria da população, sua presença na Câmara dos Deputados não ultrapassa os 10%”[2].
Outra questão que se deve ter em mente, no momento atual, é que embora já existam diversas normas protetivas à mulher, a legislação está apenas iniciando o caminho no que tange à população transgênero.
De qualquer modo, ainda que inequívoco o avanço na promoção da igualdade entre gêneros, temos de estar conscientes de que há muito o que ser conquistado para que exista, na vida real, a efetiva igualdade.
Mestranda em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo PUC/SP. Servidora pública federal no Tribunal Regional do Trabalho da 2 Região São Paulo
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