A redução da imputabilidade penal no contexto social

O
ordenamento jurídico brasileiro considera inimputável o menor de dezoito anos,
ou seja, não responde penalmente por eventuais crimes praticados. O
critério  adotado pela Constituição Federal (art. 228) e pelo Código Penal
(art. 27) é o biológico, não se levando em conta o grau de  discernimento.
Considera-se que o menor  de 18 anos não tem capacidade para distinguir o
lícito do ilícito, uma vez que sua personalidade ainda não está completamente
formada.

Contudo,
instalou-se uma acirrada polêmica quanto à redução da maioridade penal, de 18
para 16 anos, fundamentando-se nas mais variadas justificativas, como a
evolução da maturidade em decorrência do progresso tecnológico, que possibilita
aos jovens um maior acesso aos meios de comunicação e, como corolário,
uma amplitude  de conhecimento dos aspectos sócio-culturais. Alega-se também que os adolescentes entre 16 e 18 anos
praticam inúmeros crimes encorajados pela impunidade. E outra grande crítica em
relação à imputabilidade a partir dos 18 anos está na alegação de que nosso
ordenamento  é contraditório. Afirmam os partidários desta corrente que o
menor de 18 e maior de 16 anos é capaz, pelo Direito
Constitucional, para exercer o direito de voto, porém, incapaz perante o
Direito Penal. Existem, ainda, outros tantos fundamentos para se reduzir a
idade penal para 16 anos.

Há, atualmente, inúmeras propostas de
redução da imputabilidade penal tramitando no Congresso Nacional. Dentre elas
temos a Proposta de EC n° 18/99, que adota um critério puramente objetivo e
biológico,
e a Proposta de EC n° 20/99, baseada num critério subjetivo, no sentido de
avaliar o amadurecimento intelectual e emocional do possível infrator, mas, na
forma da lei, isto é, norma infraconstitucional é que definirá quando há
maturidade intelectual e emocional, para determinar se o
maior de 16 e menor de 18 anos é  ou não responsável por sua
conduta criminosa.

Há que se alertar, todavia, os defensores
da redução da idade penal para uma realidade em que o maior índice de
criminalidade juvenil encontra-se entre os adolescentes carentes, que vivem à
margem da sociedade, nas periferias e nas ruas. Aqueles que não possuem um
trabalho digno, educativo, com salário justo. Não frequentam
os bancos da escola, e  são vítimas de uma estrutura social fracassada
pela insuficiência dos serviços públicos.

A esses adolescentes é negado o acesso aos
meios de comunicação e à formação moral e cultural, o que os tornam incapazes
de adquirir  conhecimento das normas de conduta.
Tampouco, fazem uso de seu direito de cidadão para votar. Esses são os
verdadeiramente excluídos desta sociedade capitalista onde a identidade do
jovem se expressa nas grifes que usa e na extensão de seu acesso ao mercado de
consumo. “Eles existem na exata medida em que consomem, visto que só a
propriedade de produtos e marcas jovens lhe asseguram visivilidade”.
Não vêem perspectivas de uma convivência inclusa nesta sociedade, pois, sem
acesso à educação, à cultura, e às condições econômicas, a inserção neste mundo
“fantástico”, não passa de mera utopia.  Diante dessa frustração, passam a
ver as camadas sociais privilegiadas com desdém e ceticismo, como forma de se
defenderem da vergonha de sua exclusão. Não conseguem ter noção de cidadania,
de democracia, de respeito, uma vez que a única cultura e educação que recebem
são aquelas colhidas nas ruas que vivem e na indiferença da sociedade, essa
sim,  verdadeira violência dos adultos contra os adolescentes.

É óbvio que a redução da idade para a
aplicação da imputabilidade penal não resultará na diminuição ou no combate à
criminalidade. Feliz assertiva da Ilustre Professora de Direito da PUC-RJ e da
UERJ, Tânia da Silva Pereira, ao asseverar que “diante da nossa lamentável
realidade prisional, incluir os adolescentes infratores, a partir dos 16 anos,
na população dos adultos imputáveis não representa solução a curto ou médio
prazo para a delinqüência neste país”.
Sabe-se que o sistema prisional brasileiro é uma indústria desenfreada de
violência e criminalidade, seja pelas condições precárias da estrutura
carcerária, seja pela união indistinta de criminosos que representam
todos os graus de perigo, em decorrência da falta de presídios no país.

É preciso, isto sim, que o Estado e a
sociedade, em ação conjunta, cumpram o que dispõe a Carta Magna no artigo 227,
ao atribuir ao Estado, à família e à sociedade o dever de “assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, criando políticas
públicas de inclusão social que visem coibir a discriminação e a miséria e
garantir a cidadania plena. Assim, estarão proporcionando Educação  e
qualidade de vida a todos sem distinção, uma vez que benefícios concedidos a
alguns não passam de privilégios.

É preciso, ainda ,
que se faça  valer o que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei 8069, de 13 de julho de 1990), que é a Norma Especial  a eles
aplicável, e que tem disposições que atendem de forma adequada às garantias de
acesso à Educação, Cultura, Esporte, Lazer, Profissionalização, etc. Os
Capítulos IV e V, do Título II, dispondo sobre os direitos fundamentais da
criança e do adolescente, sem mencionar outros dispositivos do mesmo Diploma
legal, se devidamente aplicados  e efetivamente cumpridos, preparam o
jovem para a sociedade, com referenciais de cidadania, respeito, integridade
moral e auto-estima que, certamente, os farão passar ao largo da criminalidade
e violência das ruas. Serão jovens com capacidade de discernimento, respeitados
em suas opiniões e corajosos em seus argumentos, enfim, jovens cidadãos
inseridos numa sociedade verdadeiramente democrática.

E quanto aos inimputáveis que cometem
infrações, seja-lhes aplicado com efetividade o disposto no Título III da Parte
Especial do mesmo Estatuto. Dessa forma, terão  medidas socioeducativas que os reintegrarão com dignidade e respeito,
para que não sejam os criminosos adultos do futuro.

Os artigos 60 a 69 do
ECA garantem o direito à profissionalização e a proteção no trabalho. A
inserção do adolescente no mercado de trabalho através de uma atividade
profissionalizante, visando sua formação técnico-profissional, desde que
garantidos os direitos mínimos de proteção ao seu desenvolvimento físico,
psíquico, moral e social é uma forma absolutamente eficaz de afastá-lo da
criminalidade. Destarte, os adolescentes penalmente inimputáveis não estão
impunes, ao contrário, estão regulados por lei especial que
lhes assegura direitos e também lhes impõe responsabilidades. Não se
pode confundir inimputabilidade com impunidade. Redução da idade penal é
sinônimo de retrocesso jurídico-social, pois significa perda de um instrumento
baseado na doutrina da proteção integral – o ECA
–  que prevê, no que tange a medida privativa de liberdade,
especificamente a internação,  seja absolutamente sujeita aos princípios
da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 121). Nesse contexto, é pertinente
observar que o art. 122 apresenta um rol taxativo, restringindo a apenas três
as situações em que se poderá aplicar a internação, a saber: ato cometido
mediante grave ameaça ou violência contra a pessoa, reiteração  nas
infrações graves e descumprimento reiterado e injustificável em medida
anteriormente imposta, e, ainda assim, somente nos casos em que não houver
outra medida aplicável, à luz do entendimento extraído do parágrafo 2°.

Em síntese, todos
os atores sociais, têm o dever constitucional de tirar as crianças e os
adolescentes das ruas e da criminalidade, encaminhá-los à escola, ao trabalho
digno e ao seio da família, para que cresçam e se desenvolvam como verdadeiros
cidadãos, e não confiná-los em prisões  que só agravarão sua situação de
exclusão social.

A redução da imputabilidade penal, sem
extirpar o câncer  da injustiça e do mal-estar social não diminuirá a
criminalidade nem acabará com a violência entre os adolescentes. Há que se
sanar a causa para se extinguir os efeitos. A Constituição da República e o
Estatuto da Criança e do Adolescente, somados à boa vontade do Estado e da
sociedade, são  instrumentos que oferecem os subsídios necessários para se
estabelecer a justiça social e a qualidade de vida aos nossos jovens em
formação.

 

Notas:

1.Delmanto,
Celso, in Código Penal Comentado, Editora Renovar, 3ª Edição, pág. 50.

2.Dispõe: Art. 1° O art. 228
da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo: “Art.
228……Parágrafo único. Nos casos de crimes contra a
vida ou o patrimônio, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, são
penalmente inimputáveis apenas os menores de dezesseis anos, sujeitos à
legislação especial”.

3.Dispõe: Art. 1° O art. 228
da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

4.“Art. 228.
São penalmente inimputáveis os menores de dezesseis anos, sujeitos às normas da
legislação especial.

5.Parágrafo
único. Os menores de dezoito anos e maiores de dezesseis anos
são penalmente imputáveis quando constatado seu amadurecimento intelectual e
emocional, na forma da lei (NR)”

6.Não se quer aqui violar o
princípio da inescusabilidade do desconhecimento
formal da lei, alegando-o como justificativa de infração, mas apenas inserir o
fato no contexto social.

7.Deputado Marcos Rolim (PT-RS), in Grande Expediente do dia 05 de
outubro de 2001 sobre a redução da idade penal.

8.in
Revista Literária de Direito, Ano III, nº 16,
Março/Abril de 1997, pag. 30.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Laudesilva Veronez

 

Advogada
Pós-Graduanda em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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