Resumo: A disciplina jurídica mínima para os direitos da família ou da condição de uso e gozo do estado de família tem como cerne o art. 226, caput, CF, seguido dos parágrafos 4º e 6º do mesmo artigo da Lei Estrutural, que prescrevem que a entidade familiar é a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, sendo que o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano, nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos, ou seja, disciplina as formas jusfamiliares num sentido amplo e pontua a possibilidade de outras espécies de entidades familiares strictu sensu fazerem parte desta classificação, tratadas pelo próprio texto constitucional, conforme se vê dos citados com relação ao casamento e as suas formas de dissolução.
Palavras-chave: Direito das famílias; família; entidades familiares.
A referência feita pela Constituição Federal de 1988 à família é genérica[1], sem necessariamente se apoiar nos dias de hoje em uma estrutura jusfamiliar específica e que antes era só constituída somente pelo casamento[2], mas hoje também por outras entidades familiares lato sensu. Dentro deste gênero se encontrariam também as uniões estáveis, as entidades familiares strictu sensu (aqui incluindo-se as famílias fragmentárias, sossobrantes das dissoluções ou desaparecimentos das sociedades conjugais ou convivenciais, as famílias monoparentais desde a sua origem, seja natural ou civil e as famílias sociais aqui entendidas dentro do modelo jurídico da tutela administrativa de menores) e todas tendo direito à proteção dos Poderes Públicos (art. 226, caput, CF). Na prática, contudo, verifica‑se que a família não tem recebido do Estado a proteção necessária. No que tange à assistência à infância e à adolescência, por sua vez, a mesma tem sido inexistente até o momento.
Sendo a família a base da sociedade, o Estado deve se preocupar em zelar pela maternidade, pela infância, pela adolescência e pelas famílias de prole numerosa[3]. Sendo a base da sociedade, a família há de ser melhor amparada pelo Estado, que é a sociedade juridicamente organizada por excelência. Ao mesmo tempo que se deve exigir dos pais ou responsável o cumprimento de suas obrigações em relação à criança e ao adolescente, deve o Estado, sempre que necessário, prover os meios para isso. Assim, se há progresso da sociedade e da informação que chega ao ser humano, haverá também novas manifestações e exigências da própria pessoa, que terão de ser respaldadas pelo Estado através da positivação de normas protetoras da dignidade humana em todas as suas manifestações, inclusive do estado de família ou das normas completivas da ausência deste estado.
A disciplina do parágrafo 8º do mesmo art. 226, aonde trata da assistência estatal à família, letra morta da lei quanto à sua complementação como norma infra-constitucional. No mesmo sentido também, o Decreto-lei n 3.200/41 que dispõe sobre a organização e a proteção da família, bem como o Decreto nº 12.299/43, da mesma época, que ampara as famílias de prole numerosa; também o Dec.– lei nº 1.764/39, que criou a Comissão Nacional de Proteção à Família; a Lei nº 201/48, que dispôs sobre o salário-família[4] e o Dec.-lei nº 3.248/41 c.c. Lei nº 8.112/90, que conjuntamente dispõe sobre a preferência de nomeação ou promoção de funcionário público chefe de família numerosa. E mais recentemente, o art. 20 da Lei nº 8.069/90 – o ECA c.c. a Lei nº 8.560/92, que reconhecem os mesmos direitos aos filhos havidos ou não do matrimônio ou por adoção, proibindo designações discriminatórias relativas à filiação; o Decreto nº 9.991/91 que dispõe sobre a concessão de abono familiar incentivando a procriação e, finalmente, o art. 1.596 da Lei nº 10.406/2002, o novo Código Civil brasileiro, que dispõe sobre a filiação legítima (e o fundamento da mesma decorrente do parágrafo 6º do art. 226, CF) e a vedação do uso de expressões discriminatórias em relação à filiação no Brasil.
No Código Penal, por outro lado, várias são as formas de defesa do grupo familiar. Assim, no Título VII, cuida‑se dos crimes contra a família.
Conforme os artigos 235 a 240, no Capítulo I, há crimes contra o casamento. Constam a bigamia, o induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento, conhecimento prévio de impedimento, simulação de autoridade para celebração de casamento e o adultério.
Nos artigos 241 a 243, cuida o Estatuto referido dos seguintes delitos: registro de nascimento inexistente, parto suposto, supressão ou alteração do direito inerente ao estado civil de recém‑nascido, sonegação de estado de filiação, capitulados como crimes contra o estado de filiação.
No Capítulo III, cuida‑se dos crimes contra a assistência familiar; no artigo 244, do abandono material; no artigo 245, a entrega de filho criança ou adolescente a pessoa inidônea; no artigo 246, o abandono intelectual e no artigo 247, o abandono moral.
Finalmente, no Capítulo IV, trata dos crimes contra o pátrio poder, tutela ou curatela. Destarte, no art. 248, temos o induzimento à fuga, entrega arbitrária ou sonegação de incapazes. O art. 249 cuida da subtração de incapazes.
Na prática verifica‑se que os abandonos material, intelectual e moral raramente são punidos, o que, sem dúvida, é um incentivo à paternidade irresponsável.
O princípio da igualdade estabelecido no inciso I do art. 5º da Constituição Federal estabelece a igualdade formal entre os sujeitos de direito, aqui entendido dentro das relações jurídicas de Direito de Família. Assim, se a isonomia se aplica à situação dos homens e mulheres casados ou unidos estavelmente, também se aplicaria aos tipos de família, desconsiderando-se uma eventual hierarquia entre as suas várias formas, não se priorizando o casamento ou a união estável, como categorias entre si. Daí decorre que todas as várias formas jusfamiliares gozam da proteção da lei[5].
Ocorre que, desde o casamento, os cônjuges se obrigam reciprocamente, bem como em relação à eventual prole. Conquanto sejam vários os efeitos do casamento, agora vamos nos restringir àqueles expressos no art. 231 do Código Civil, que interessam mais de perto ao nosso estudo, ou seja, aos deveres de ambos os cônjuges. O referido artigo refere-se à fidelidade recíproca, à vida em comum no domicílio conjugal, à mútua assistência e ao sustento, guarda e educação dos filhos.
O primeiro dos deveres se impõe face à monogamia, que impera na civilização ocidental, como princípio do cristianismo, tanto que, como foi visto, a bigamia é punida no âmbito penal severamente. Ressalte‑se que é dever de ambos os cônjuges e não somente da mulher. A quebra de tal dever dá ensejo à separação e ao divórcio.
O dever de coabitação é mais amplo do que a convivência no mesmo domicílio. Refere‑se à união carnal entre os cônjuges, podendo‑se falar, do ponto de vista passivo, do débito conjugal. Ao mesmo tempo, cada cônjuge tem direito ao corpo do outro, para sua satisfação sexual.
No dever de assistência, há de se atentar não só ao aspecto material e econômico, mas, também, ao moral. Sua inobservância configura o delito do art. 244 do Código Penal. “A inobservância do dever de mútua assistência configura o crime do art. 244, do Código Penal. No juízo cível, a falta de assistência material será suprida com a propositura de ação de alimentos; no tocante à falta de assistência moral, todavia, não existe sanção direta em nosso ordenamento jurídico. A omissão poderá caracterizar injúria grave para eventual ação de separação judicial, sabido que, em consonância à doutrina e à jurisprudência, toda infração séria aos deveres conjugais constitui grave injúria de um a outro cônjuge”[6].
Tal dever é imposto continuamente, em qualquer situação, quer de enfermidade e infortúnio, como de felicidade e saúde[7].
O sustento, a guarda e a educação dos filhos, constante do inciso IV, do art. 231 do Código Civil é dever que mais interessa ao nosso estudo. É que o referido preceito jamais foi tão desobedecido como em nossos dias, por isso é grande o número de menores carentes, abandonados e que cometem infrações.
Embora sejam muitas as conseqüências advindas da desobediência de tal preceito, na prática as punições são raras, o que contribui para o agravamento do problema relativo as crianças e adolescentes em estágio de carência e abandono. Urge fortalecer os modelos jusfamiliares e reeducar os pais faltosos, como forma de solucionar a questão.
Observa com propriedade CARVALHO SANTOS, que o preceito em questão interessa à ordem pública, não podendo, por conseguinte os cônjuges renunciá‑lo, pois qualquer convenção nesse sentido é nula, sendo que os pais que não cumprirem esse dever sujeitam‑se às sanções previstas tanto nas leis civis como nas penais[8].
No que diz respeito à união estável, a sua proteção reconhecida amplamente pela lei, pela doutrina[9] e pela jurisprudência[10], estando a mesma dentre as formas que dão causa ao aparecimento da família no Brasil, colhem os mesmos efeitos do casamento, por ter esta forma jusfamiliar sido a ele equiparada, e entre estes efeitos o de estarem os filhos sob o poder familiar.
Conclui‑se que os deveres referentes aos filhos, enquanto estes estiverem sob o poder familiar são de ordem pública e não admitem abdicação por parte dos pais e os deveres daqueles filhos colocados em sistema de refamiliarização, também o serão de ordem pública.
O conceito de família substituta como forma classificatória dos antigos sistemas de concessão de guarda, tutela ou adoção, decorreu da vigência entre nós da Lei nº 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente. Foi esta lei federal quem guindou as antigas formas de intervenção do Poder Judiciário em matéria de menores, antes só positivadas no Código Civil de 1916, para as sedes legais dos arts. 28, 39 e 165 do ECA, que passaram a disciplinar as novas formas jusfamiliares da família natural e da família substituta, esta através da guarda, da tutela e da adoção. Assim, denominou-se de família substituta ao que antes servia de garantias ao Poder Judiciário para promover as intervenções e medidas judiciais em favor dos interesses do menor, dentro da velha regra áurea do antigo Direito do Menor,ou seja, o do seu bem-estar. Com o aparecimento da doutrina do melhor interesse da criança e do adolescente – the best interest of child, como preferem alguns autores pátrios, as formas interventivo-judiciais da guarda provisória ou definitiva, tutela civil e adoção simples ou plena, passaram a realizar uma profunda modificação legislativo-doutrinária, gerando o standard família substituta e suas novas formas positivadas dentro do Direito Civil, mas que não tem conseguido atender toda a demanda de problemas sociais no cenário do direito nacional.
Assim as novas formas de guarda – art. 33 e segs. ECA, antigo instituto de Direito Civil que visa produzir intervenção judicial, tanto nos casos de procedimentos sub judice já ajuizados (as formas tutelares civil e/ou estatutária – art. 1728 e segs. CC e arts. 36 e segs. ECA, como as formas de adoção também civil e/ou estatutária – arts. 1618 e segs. CC e arts. 39 e segs. ECA), como também em “situações peculiares ou suprir a eventual falta dos genitores ou responsável, concedendo-lhes, então, o direito de representação para a prática de certos atos”[11]. Todavia, não concordamos com MARIA HELENA DINIZ no tocante à eficácia da intervenção judicial nesta forma de família substituta para situações ou finalidades peculiares, pois as mesmas ao contrário do que sustenta a autora, não suprem a eventual falta dos genitores ou responsáveis – sobretudo no campo da representação jurídica, que exige contato direto e diário com a figura do representado, não só legitimando os atos da sua vontade própria (que falha diante da lei, por pura incapacidade técnica na representação), mas também respondendo-lhes de forma pedagógica aos impulsos de sua psiqué.
A tutela é instituto do direito assistencial que visa dar representação jurídica ao menor para que o tutor passe a ter o encargo de dirigir a pessoa e administrar os eventuais bens que a pessoa do incapaz possuir, pressupondo a inexistência do poder familiar. Este tipo de colocação em família substituta não tem sido alvo da preferência do Poder Judiciário, pois tradicionalmente a tutela estabelecida pelo Código Civil de 1916 – sob as formas de tutela civil, testamentária e dativa (hoje respectivamente nos arts. 1730, 1731 e 1735 CC de 2002), tratava de imputar ao juiz que lha concedesse a responsabilidade civil pela culpa na má escolha do tutor, o que sempre dificultou a escolha do instituto pelos magistrados. Notadamente o instituto foi concebido no Brasil voltado para os órfãos ricos, cuja finalidade dos tutores seria a de administrar-lhe os bens, pouco se falando nos antigos arts. 406 e seguintes, em exercício das funções do pátrio poder e muito menos em complementação afetiva do pupilo, corolário da regra do seu bem estar.
A mais solene das formas de colocação em família substituta (e a que melhor imita a família natural) é a adoção, pois independentemente de qualquer relação de parentesco institui entre adotante e adotado um vínculo jurídico definitivo, trazendo o adotado para a condição de filho. Nada obstante tratar-se de ficção legal, o vínculo havido coloca o adotado na linha reta de parentesco de primeiro grau com o(s) adotantes(s), estabelecendo entre ambos os vínculos também de paternidade e filiação. A nova sistemática da adoção introduzida pelo Código Civil de 2002 e antes pela L. 8.069/90 – o ECA, mantendo a tipologia da adoção com a plenitude de todos os seus efeitos, e conservando a adoção por estrangeiros, nem mesmo assim fez com que o instituto tivesse maior procura, pois o número de brasileiros que ainda adotam é muito pequeno. O acréscimo das adoções feitas por estrangeiros também não é significativa, o que ocasiona um sem número de crianças e adolescentes sem a quem recorrer, depositadas em abrigos públicos (inclusive nas alas preventivas da FEBEM) ou particulares, com número indeterminado de seres humanos em crescimento. E as conseqüências apontadas pela Psicologia para as pessoas que permanecem sem os fatores de identidade e apego em suas personalidades é alarmante: agredidas pela sensação de crescerem e de serem apenas mais um entre um número variado de menores, passam a avaliar sua realidade de interação com outros seres humanos – inclusive quando já adultas, com um viés relativizante dos valores e até dos costumes da realidade que as cerca. Daí recomendar-se a instituição de outro modelo jusfamiliar que atenda a demanda das demais crianças e adolescentes que sossobram das formas de colocação em família substituta ou que nelas não se encaixem, proporcionando um novo modelo jusfamiliar que atenda à grande parcela das crianças e adolescentes sem família e sem proteção do afeto paterno-materno e de suas reconhecidas e prolongadas conseqüências : a identidade do ser humano frente ao seu mundo familiar e a satisfação de suas necessidades enquanto em época de crescimento e o apego aos seus fatores de referência afetiva, que proporciona o seu amadurecimento emocional.
A família, nos dias atuais, atravessa crise jamais vista em outros tempos. Inúmeros são os casos de divórcio e de separação judicial ou de fato ou de uniões não regulamentadas por lei. É claro que a desagregação familiar se reflete, intensamente, na vida da criança e do adolescente, que, mais do que ninguém, sofre as conseqüências da ruptura conjugal de seus pais.
Há, na verdade, diversas forças corrosivas e desintegradoras da família. Entre elas pode‑se destacar o consumismo, a influência negativa dos meios de comunicação e, com toda certeza, o abandono dos valores espirituais. Hodiernamente há um acentuado declínio das convicções religiosas e dos valores espirituais[12].
Antes mesmo da Lei nº 6.515/77, que regula o divórcio entre nós, muitos eram os casos de separação e de desquite. A referida Lei veio mais para resolver os problemas existentes, do que para incentivar novas dissoluções. Muitos casais separados, que já haviam constituído nova relação, dela se utilizaram, para regularizar sua vida.
Certo é que a falência de muitos casamentos atinge diretamente os filhos, que, geralmente, ficam sob a guarda da mãe. Nem sempre os mesmos recebem a ajuda necessária para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Necessário é que o Estado interfira, em muitos casos, para restaurar o status familiae da criança e do adolescente. “Entretanto, pode ocorrer que os mecanismos familiares de assistência falhem, pela falta ou omissão de parentes, ou ainda pela desativação das funções parentais, de modo que um incapaz fique em desamparo. Neste caso, visto como alguém ou alguma entidade tem de suprir o processo assistencial, intervém legitimamente o Estado, através de seus órgãos, a recompor o status familiae a que faz jus o incapaz e, eventualmente, a prestar‑lhe ele mesmo a assistência de vida”, como pontua WALTER MORAES[13].
Doutor em D Civil pela USP. Professor Adjunto Doutor da Fac Direito e do Programa de Mestrado em Direito Agrário da Univ. Federal de Goiás-UFG
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