Resumo: O tema proposto encontra amparo no art. 227, §6º, da Constituição Federal, que assegura aos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, os mesmos direitos e qualificações, proibindo quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Em que pese esta regra isonômica seja amplamente reconhecida nos tribunais, predomina o entendimento de que o filho adotado em outro país não possui o direito de, quando alcançar a maioridade, optar pela nacionalidade brasileira, segundo o critério ius sanguinis, sendo necessária a aquisição por meio da naturalização. Sob a justificativa de defesa da soberania nacional, o texto constitucional vem sendo desrespeitado pelo judiciário brasileiro, em completa mitigação a direitos fundamentais positivados em nossa Carta Magna, não somente com relação à igualdade entre os filhos, mas também pela limitação de direitos civis e políticos do adotado. Por meio da presente pesquisa, constatou-se o atraso no entendimento doutrinário e jurisprudencial no tocante às regras de nacionalidade, que utiliza a soberania nacional como justificativa para afrontar direitos constitucionalmente estabelecidos e inerentes a todo e qualquer cidadão, independente do local de seu nascimento.
Palavras-chave: Adoção. Ius Sanguinis. Opção de Nacionalidade. Soberania.
Abstract: The proposed theme is upheld in the art. 227, § 6, of the Federal Constitution, which ensures to the children, from the marriage or not, or by adoption, the same rights and qualifications, prohibiting any discriminatory designation concerning filiation. Despite of this isonomically rule being widely recognized in the courts, according the predominant view, the child adopted in another country does not have the right, after reaching full age, to opt for brazilian nationality, in accordance with the ius sanguinis criterion, being necessary the acquisition through naturalization. Under the pretext of defending national sovereignty, the Constitution has been disregarded by Brazillian courts, in complete mitigation to fundamental rights recognized in our Magnun Letter, not only concerning to children equality, but also by limiting civil and political rights. Through this research, was verified the delay on the doctrinal and jurisprudential understanding regarding nationality, which uses national sobereignty as a justification for confronting rights constitutional stablished and inherent to every citizen, regardless of his birthplace.
Key words: Adoption. Ius Sanguinis. Nacionality Option. Sovereignty.
Sumário: Introdução. 1. Filiação socioafetiva. 1.1. Do instituto da adoção. 1.2 Da adoção internacional. 1.3. Garantias conferidas pela Constituição Federal de 1988. 1. Nacionalidade e cidadania. 3. Aquisição da nacionalidade brasileira. 3.1. Critério ius soli. 3.2. Critério ius sanguinis. 4. Direitos mitigados pela desequiparação. 5. Aquisição de nacionalidade no direito comparado. 5.1. União Europeia. 5.2. Estados Unidos da América. 6. A soberania nacional e a opção de nacionalidade. Considerações finais. Referências.
Introdução
A sociedade desenvolveu uma alteração de valores significativa nos últimos séculos com relação a filiação e seus efeitos no mundo jurídico. Com os progressos no campo da genética, derrubou-se a supremacia da verdade jurídica da paternidade exclusivamente sanguínea, demonstrando assim, que a filiação deve ser determinada proeminentemente pelos laços de afeto e não pela ascendência biológica, os quais emanam da dedicação de amor, carinho, respeito e cumprimento dos deveres paternos. Surge-se então, a expressão “paternidade socioafetiva”, rompendo com os conceitos e pré-conceitos estabelecidos.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, proibiu-se qualquer discriminação entre os filhos adotivos e biológicos, assegurando tratamento isonômico entre todos os filhos, consoante o contido no art. 227, §6º da Magna Carta. Por conseguinte, o adotando recebeu o direito de converter-se integralmente à condição de filho do adotante, sujeito às mesmas características, direitos e deveres de um filho sanguíneo.
Apesar de constitucionalmente positivado, este direito vem sendo mitigado pelo judiciário brasileiro quando em choque com aspectos da soberania nacional. Isso porque defende-se que uma criança nascida em solo estrangeiro e posteriormente adotada por pais brasileiros não tem direito a ser brasileira nata, ainda que a mesma condição seja conferida a filhos biológicos, em decorrência do preceito contido no art. 12, I, “c”, da Constituição Federal Brasileira.
Nesse diapasão, realizou-se de forma analítica uma pesquisa bibliográfica e documental, de cunho hermenêutico, interpretando sistematicamente as normas jurídicas nacionais e internacionais relativas à nacionalidade e à igualdade de direitos entre filhos, com o escopo de evidenciar que os diretos da personalidade e os direitos políticos do adotado não podem ser relegados em favor da soberania nacional, haja vista serem a nacionalidade e a igualdade direitos fundamentais de todo ser humano.
1 Filiação socioafetiva
1.1. Do instituto da adoção
A Constituição da República de 1988 trouxe uma profunda transformação no estudo do Direito de Família, eliminando alguns conceitos que até então eram tratados no Código Civil de 1916. Anteriormente, somente o casamento legitimava a família, sendo que os filhos não advindos desta relação conjugal formalmente estabelecida eram considerados ilegítimos. A paternidade, portanto, era estabelecida pela presunção pater is est ou verdade jurídica[1].
A partir de um direito civil constitucionalizado, os filhos havidos fora do casamento foram protegidos através do princípio da igualdade dos filhos, podendo assim dizer que houve uma mudança de foco na produção legislativa, a qual antes centralizava-se na esfera patrimonial, sem insurgir-se quanto a proteção à dignidade humana. A afetividade tornou-se um princípio de fundamental importância, uma vez não mais haver preocupação com famílias estruturadas apenas sob o vínculo consanguíneo, mas também sob a égide do afeto, do carinho e do amor[2].
Em decorrência desse desenvolvimento jurídico, houve uma contribuição sem medidas ao procedimento de adoção, possibilitando que inúmeras crianças e adolescentes abandonados pudessem integrar um núcleo familiar.
Conforme leciona Maria Berenice Dias[3], a adoção pode ser definida como a “modalidade de filiação constituída no amor, gerando vínculo de parentesco por opção”. Maria Helena Diniz[4], por sua vez, conceitua o referido instituto como “o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisites legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vincula fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha.”
Doravante, independente do conceito conferido, verifica-se que o objetivo primordial das normas relativas a adoção foi conferir dentre os direitos fundamentais assegurados à criança brasileira, o direito à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao respeito, à dignidade, o direito à convivência familiar e, não menos importante, à nacionalidade.
1.2 Da adoção internacional
A Convenção de Haia de 29 de maio de 1993, atinente à adoção internacional, recepcionada pela legislação pátria por meio do Decreto Legislativo 3087/99[5], reconheceu que este instituto jurídico “pode representar a vantagem de dar uma família permanente à criança para quem não se possa encontrar uma família adequada em seu país de origem”.
Esse tipo de adoção caracteriza-se pela residência habitual de adotantes e adotados em países distintos, estando as partes subordinadas a diferentes soberanias e, por conseguinte, diferentes sistemas jurídicos[6].
Segundo Costa[7], define-se a adoção internacional como “[…] uma instituição jurídica de proteção e integração familiar de crianças e adolescentes abandonados ou afastados de sua família de origem, pela qual se estabelece, independentemente do fato natural da procriação, um vínculo de paternidade e filiação entre pessoas radicadas em distintos Estados: a pessoa do adotante com residência habitual em um país e a pessoa do adotado com residência habitual em outro”.
Apesar da adoção internacional despertar certas polêmicas, como a possibilidade de contribuir com o tráfico de menores, ainda enxerga-se que pode ser efetivamente uma ótima oportunidade do menor crescer em um país melhor, haja vista que, ao serem seguidos todos os requisitos legalmente elencados, este não será adotado para piorar sua atual situação.
Nesse sentido, corrobora Maria Helena Diniz ao indagar: “será possível rotular o amor de um pai ou de uma mãe como estrangeiro ou nacional? Não há razão para não se acolher a pretensão de estrangeiros interessados na adoção e que podem proporcionar afeição, carinho e amparo às crianças e adolescentes necessitados[8]”.
Face à importância dos efeitos psicológicos decorrentes do procedimento de adoção, sejam os adotandos nacionais ou estrangeiros, o Estado deve conferir o suporte legal necessário para que os esses não sejam tolhidos de seus direitos como nacionais, uma vez que não se vislumbra justiça e humanidade ao retirá-los de seu país de origem, onde detinham plenos direitos civis, para se tornarem cidadãos brasileiros com direitos mitigados.
Conforme dispõe o art. 26.1, alínea “a”, da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, acima mencionada, a sentença constitutiva da adoção internacional cria o vínculo de parentesco com a família adotiva e promove o rompimento dos laços biológicos. Contudo, outro efeito se perfaz: a atribuição de nacionalidade, ou não, do país de acolhida para a criança adotada, o qual, por se tratar de matéria constitucional, não foi possível sua inserção expressa e específica no texto da Convenção de Haia[9].
Como a adoção, por si só, não é critério de atribuição de nacionalidade, não significa que necessariamente deverá ser modificada a nacionalidade originária do adotado. Assim como ocorre com filhos naturais, não adotados, dependendo de onde nasça, é possível que ostente nacionalidade idêntica ou diversa de seus pais, havendo individualidade e incomunicabilidade da nacionalidade[10].
No entanto, é inegável a existência de muitas conveniências na obtenção pelo adotado da nacionalidade do adotante, sobretudo no que se refere à assimilação cultural, ao sentimento de pertencimento e ainda, às prerrogativas relativas aos direitos civis e políticos. Por tais razões, é imprescindível a análise da legislação do país do adotante, a fim de se verificar eventuais obstáculos na aquisição da nacionalidade e cidadania pelo adotado.
Em que pese não haver normas internacionais, de caráter universal, consagrando como direito humano do adotado ostentar, em particular, a nacionalidade do adotante como consequência automática da adoção, o Estado de recepção se encontra legitimado para outorgar a sua nacionalidade ao adotado, na forma de sua legislação interna, objetivando evitar a apatridia, no sentido de que se o adotado perdeu a sua nacionalidade como consequência da adoção internacional, o Estado do adotante estaria legitimado e obrigado internacionalmente a propiciar-lhe a sua[11].
Impende destacar, ainda, que o art. 26.2 da referida Convenção de Haia determina que “se a adoção tiver por efeito a ruptura do vínculo preexistente de filiação, a criança gozará, no Estado de acolhida e em qualquer outro Estado Contratante no qual se reconheça a adoção, de direitos equivalentes aos que resultem de uma adoção que produza tal efeito em cada um desses Estados”.
Em decorrência desta regra, pode-se inferir que a criança adotada no estrangeiro gozará de todos os direitos conferidos àqueles que, nascidos no Brasil, se submetem ao processo de adoção, justamente para propiciar a igualdade material entre os filhos, sejam estes biológicos, adotados no Brasil ou adotados internacionalmente.
Por conseguinte, para que o direito à nacionalidade seja garantido de forma plena, as regras constitucionalmente estabelecidas para reger os direitos dos filhos nascidos ou adotados no Brasil deverão ser também aplicadas àqueles oriundos de uma adoção internacional.
1.3 Garantias conferidas pela Constituição Federal de 1988
O art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal de 1988 eleva à qualidade de cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais, ou seja, caracterizando-os como disposições constitucionais imutáveis, que não podem ser alteradas ou abolidas, muito menos mitigadas. A cláusula pétrea atua, portanto, como verdadeira barreira, limitação material, para a tentativa de reforma da Constituição, não podendo sofrer ingerências negativas do poder legislativo.
Por sua vez, o art. 227, §6º da Carta Constitucional consagra a plena igualdade entre os filhos, implicando na concessão dos mesmos direitos e qualificações àqueles havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção. Conforme destacado pelo STF[12], desta regra constitucional decorrem não somente os direitos de caráter patrimonial, hereditários, mas também a proteção aos direitos da própria personalidade do indivíduo.
Conforme ensina Alexandre de Moraes[13], tem-se por filiação “os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Essa norma constitucional tem aplicabilidade imediata, garantindo-se imediata igualdade, sem que possa resistir qualquer prejuízo ao filho adotivo ou adulterino, que poderá, inclusive ajuizar ação de investigação de paternidade e ter sua filiação reconhecida, além de ter o direito de utilização do nome do pai casado”.
Outrossim, Moacir César Pena Jr. também discorre[14] que “por maior que seja a variedade de conceitos, num ponto todos concordam: a partir do instante em que seja finalizado o processo de adoção, com a sentença judicial e o respectivo registro de nascimento, o adotado passa a ter todos os direitos inerentes à condição de filho, integrando-se plenamente a sua nova família (art. 227, §6º, da CRFB/88)”.
Assim, por ser a nacionalidade um direito da personalidade jurídica do individuo, em uma interpretação ampla e sistemática deste dispositivo, com escopo no princípio da igualdade, qualquer ato ou disposição que viole este direito será permeado de inconstitucionalidade.
2 Nacionalidade e cidadania
Para melhor entendimento da matéria a ser tratada adiante, é importante esclarecer que, muito embora os termos “nacionalidade” e “cidadania” sejam popularmente utilizados como sinônimos, tais vocábulos não devem ser confundidos.
Essa diferenciação já se denota, inicialmente, pela divisão no texto constitucional em capítulos diferentes, haja vista que, em seu Capítulo III, art. 12, trata do tema nacionalidade, e no capítulo seguinte, nos arts. 14 e 15, dispõe acerca dos direitos políticos.
Segundo Pedro Lenza[15], “nacionalidade pode ser definida como o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um determinado Estado, fazendo com que este indivíduo passe a integrar o povo daquele Estado e, por consequência, desfrute de direitos e submeta-se a obrigações. […] Cidadania tem por pressuposto a nacionalidade (que é mais ampla que a cidadania), caracterizando-se como a titularidade de direitos políticos de votar e ser votado. O cidadão, nada mais é do que o nacional (brasileiro nato ou naturalizado) que goza de direitos políticos”.
José Afonso da Silva[16], por sua vez, apresenta o seguinte comentário sobre o tema: “No Direito Constitucional brasileiro vigente, os termos nacionalidade e cidadania, ou nacional e cidadão, têm sentido distinto. Nacional é o brasileiro nato ou naturalizado, ou seja, aquele que se vincula, por nascimento ou naturalização, ao território brasileiro. Cidadão qualifica o nacional no gozo dos direitos políticos e os participantes da vida do Estado (arts. 1º, II, e 14). Surgem, assim, três situações distintas: a do nacional (ou da nacionalidade), que pode ser nato ou naturalizado; a do cidadão (ou da cidadania) e a do estrangeiro, as quais envolvem, também, condições jurídicas distintas […]”.
Observa-se, portanto, que a aquisição da nacionalidade brasileira refletirá no exercício da cidadania, a qual determinará, em atenção às regras elencadas na Constituição Federal, quais direitos políticos serão garantidos em sua totalidade e quais terão o seu exercício mitigado, a depender do tipo de nacionalidade conferida a cada cidadão.
3 Aquisição da nacionalidade brasileira
A nacionalidade constitui matéria afeta aos direitos fundamentais do ser humano, conceituada como o “vínculo político e pessoal que se estabelece entre o Estado e o indivíduo[17].” Nesse sentido, há previsão expressa no art. XV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, de que “toda pessoa tem direito a uma nacionalidade”[18].
Em se tratando de menores, o direto fundamental a uma nacionalidade foi reforçado pelo terceiro princípio da Declaração Universal dos Direitos da Criança[19], também proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959, e pelo artigo 24.3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966[20].
No direito brasileiro, os nacionais se dividem em natos e naturalizados e, dentro desta divisão, ainda encontra-se uma subdivisão que classificará os brasileiros natos de acordo com a paternidade e o lugar em que nasceram, conforme se demonstra adiante.
3.1 Critério ius soli
De acordo com a alínea “a”, do inciso I, art. 12, da CF/88, são brasileiros natos “os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país”.
Trata-se de um critério que se refere ao nascimento no espaço geográfico brasileiro, neste compreendido[21]: a) o espaço terrestre delimitado pelas fronteiras geográficas; b) mar territorial, ilhas, golfos, baías, rios, lagos; c) espaço aéreo, entendido como a projeção vertical de todo o espaço terrestre e marítimo; d) os navios e aeronaves de guerra brasileiros, onde quer que se encontrem; e) as embarcações comerciais brasileiras em alto mar ou de passagem em mar territorial estrangeiro, e f) aeronaves civis brasileiras em voo no espaço aéreo internacional ou de passagem sobre águas territoriais, ou ainda em espaços aéreos estrangeiros.
A alínea “b” também adota a regra espacial, ius soli, mas aliada ao critério funcional, dispondo que são brasileiros natos também “os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil”.
Conforme levantado por Mendes, o texto constitucional deixou de tratar as questões atinentes à nacionalidade quando o nascimento ocorre nos espaços hídricos, aéreos ou terrestres não submetidos à soberania de um Estado (o alto-mar, o espaço aéreo e o continente antártico). No entanto, pela doutrina, consideram-se também brasileiros natos os nascidos a bordo de navio ou aeronave de bandeira brasileira quando estiverem em espaço neutro[22].
3.2 Critério ius sanguinis
O art. 12, I, “c”, da Magna Carta preceitua que também serão brasileiros natos aqueles “nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira”.
Grande parte dos doutrinadores entende que o ius sanguinis, também chamado de “direito do sangue”, baseia-se somente na filiação, isto é, na nacionalidade de seus genitores, descartando o local do seu nascimento. Basta investigar a condição do genitor para verificar-se a cidadania do descendente.
Tem-se por genitor, a propósito, o indivíduo que fornece o seu código genético, seu gene, para a gestação de um bebê, alcançando a qualidade de pai ou mãe biológico(a).
A imposição destes requisitos, em cada Estado, decorre da evolução histórica de cada país. Erival da Silva Oliveira[23] esclarece que “historicamente, os Estados de emigração (maioria dos europeus – metrópoles) preferem o critério do ius sanguinis, pois mesmo com a saída de sua população para outros países não há a diminuição de seus nacionais. Por sua vez, os Estados de imigração (maioria dos americanos – ex-colônias) acolhem o critério do ius soli, pelo qual os filhos e demais descendentes da massa dos imigrantes passam a ter sua nacionalidade”.
Todavia, este requisito não pode ser tido como absoluto. Ao passo de uma interpretação gramatical do texto constitucional, verifica-se não haver especificação de que o sujeito nascido no estrangeiro deva ter pai brasileiros biológicos para obter a condição de brasileiro nato. Requer-se apenas que tenha “pais brasileiros”. Também não é condição essencial, o filho ter sido fruto de um casamento formalmente celebrado, nos moldes dos arts.1.533 a 1.542 do Código Civil[24], podendo este ter advindo de uma união estável, de uma família monoparental, de uma relação extraconjugal ou até mesmo de um estupro.
É neste aspecto, justamente, que o presente trabalho busca ir mais além, no intuito de esclarecer a necessidade de relativização do critério ius sanguinis, que não pode ser interpretado restritivamente de forma a exigir o laço de sangue, com mesmo código genético, como requisito à atribuição da qualidade de “filho de pai ou mãe brasileiro(a)”. Ao equiparar o filho adotivo ao filho biológico, o texto constitucional, em uma interpretação ampla e sistemática, determinou que não poderia haver qualquer forma de discriminação relativa à filiação, de modo que o adotante seria considerado pai ou mãe com os mesmos direitos e deveres de uma paternidade sanguínea.
Em que pese haja pouca manifestação na doutrina com relação à nacionalidade do adotado, é possível encontrar posicionamentos favoráveis a essa relativização, como forma de garantia da igualdade plena entre os filhos. Nesse sentido lecionam Farias e Rosenvald[25], afirmando que “é conveniente lembrar, ademais, que a adoção de um estrangeiro realizada por brasileiro concede ao adotado a condição de brasileiro nato, por não se admitir qualquer tratamento discriminatório, conforme a norma constitucional.”
Por conseguinte, se a concepção de “pai” é diferente aos filhos biológicos e adotivos para fins de obtenção da nacionalidade brasileira, revela-se que não há tratamento isonômico entre eles e, portanto, a interpretação padece de inconstitucionalidade.
4 Direitos mitigados pela desequiparação
Os juízes federais, competentes para apreciar as causas que envolvem aquisição da nacionalidade brasileira, têm se filiado à corrente doutrinária que considera o critério ius sanguinis como absoluto, não podendo haver equiparação de direitos ao filho adotivo nesta hipótese.
Justificam seu posicionamento na afirmação de que a nacionalidade é forma de expressão da soberania do Estado, estando sujeita a normas rígidas que impedem a prevalência de interesses individuais. Desta forma, apontam como unânimes a doutrina e jurisprudência, em que pese haver posicionamentos doutrinários em dissonância, ao reconhecer que o vínculo adotivo, no Brasil, não produz efeitos sobre a nacionalidade do adotante.
Assim, exclui-se a possibilidade de conferir ao adotado a condição de brasileiro nato, a fim de que não haja violação de normas constitucionais extremamente rígidas, como as que regulam a ocupação de cargos como o de Presidente da República[26].
O jurista Miguel Jerônimo Ferrante, no mesmo sentido, afirma que “filho adotivo de brasileiros, nascido no estrangeiro, não pode optar pela nacionalidade brasileira. É estrangeiro e, como tal, só poderá adquirir a nacionalidade brasileira por via de naturalização[27]”, isto porque, pelo contido na Convenção de Haia de 1930, ratificada pelo Brasil, o adotado se submeterá à legislação do país de acolhida, no caso, às normas brasileiras relativas à nacionalidade, que não dispõem expressamente sobre a possibilidade de tornar-se um brasileiro nato por força de sentença constitutiva de adoção internacional.
Todavia, questiona-se até que ponto a soberania nacional seria capaz de interferir nos direitos da personalidade humana e enfrentar o texto constitucional com um posicionamento diverso daquele instituído por normas pétreas.
É mister considerar que ao se privar de um filho adotivo a condição de brasileiro nato, é também lhe impedido o exercício de determinados direitos, dentre os quais, cargos políticos como a Presidência da República e seus possíveis substitutos (Vice-Presidente da República, Presidente da Câmara dos Deputados, Presidente do Senado Federal e Ministro do Supremo Tribunal Federal), bem como membros da carreira diplomática, oficial das Forças Armadas, Ministro de Estado da Defesa e cidadãos brasileiros na função de membro do Conselho da República, conforme o disposto nos arts. 12, §3º, e 89, VII, da Constituição Federal.
Em decorrência da relevância destas limitações, haja vista estarem pautadas na defesa da soberania nacional, é que se levantam nos tribunais decisões contrárias à aquisição da nacionalidade originária pela adoção.
No entanto, ao se exigir a naturalização dos filhos adotados internacionalmente, há outros direitos, de igual importância, que são indevidamente mitigados, gerando uma imensa desigualdade jurídica entre esses e os filhos biológicos.
A extradição é, pois, um dos direitos conferidos somente a brasileiros natos, de forma que, no caso de eventual prática de um crime comum antes da naturalização ou de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins praticado em qualquer momento, antes ou depois de obtida a naturalização[28], pode ser concedida a extradição de um naturalizado para que este venha a ser processado e, em caso de condenação, obrigado ao cumprimento das penas cominadas em país diverso do Estado em que se firmou a sua nacionalidade[29].
Outra limitação constitucionalmente imposta encontra-se no art. 222, o qual determina a vedação de que brasileiro naturalizado há menos de dez anos venha a ser proprietário de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens.
Nestes aspectos, lhe é privado o exercício integral dos direitos políticos e de cidadania, em total afronta ao texto constitucional que determina a equiparação de direitos e deveres entre o adotando e o filho biológico.
5 Aquisição de nacionalidade no direito comparado
5.1 União Europeia
Das convenções firmadas pelo Conselho da Europa também não se extrai nenhuma obrigação para o Estado de recepção acerca de como o mesmo deve atribuir sua nacionalidade ao adotado. O que se determina, contudo, é a obrigação estatal de outorgar a sua nacionalidade, de forma a evitar a apatridia que poderia resultar da adoção internacional, como se exemplifica no artigo 11 da Convenção Europeia sobre Adoção de Menores[30].
A Convenção Europeia sobre Nacionalidade, firmada em Estrasburgo, em 6 de novembro de 1997, também abordou a questão, estabelecendo regras e princípios imperativos para os Estados contratantes em matéria de nacionalidade das pessoas físicas. Conforme o seu artigo 6.4, “d”, cada Estado contratante deve facilitar a aquisição interna de nacionalidade às crianças adotadas por um de seus nacionais[31].
Desde a perspectiva do Estado de recepção do adotado, a incidência e reflexos da adoção na nacionalidade terá maior ou menor força dependendo se o ordenamento jurídico interno do país de acolhida consagrou ou não o princípio de igualdade ou equiparação entre a filiação biológica e a filiação adotiva.
Na União Europeia, a filiação adotiva se contempla como critério atributivo da nacionalidade de origem, como nacional nato, em decorrência da equiparação de direitos entre filhos sanguíneos e adotivos, em legislações de diversos Estados, veja-se, por exemplo:
a) Suécia[32] – a criança, de até 12 anos, que for adotada por um cidadão sueco, automaticamente recebe a cidadania sueca, desde que: (i) a criança tenha sido adotada como resultado de uma decisão proferida na Suécia ou em outro país nórdico; (ii) a criança tenha sido adotada como resultado de uma decisão proferida no exterior e aprovada na Suécia pela Agência de Adoção Internacional Sueca; (iii) a adoção seja válida pelas leis suecas.
b) Reino Unido[33] – o menor nascido no estrangeiro poderá obter a nacionalidade britânica originária quando: (i) qualquer corte do Reino Unido emitir ordem autorizando a adoção de menor que não seja cidadão britânico; ou (ii) o menor não britânico for adotado sob as regras da Convenção sobre Adoção de 1976.
c) Portugal[34] – o único pressuposto exigido legalmente é o de que o estrangeiro tenha sido adotado plenamente por cidadão português.
d) Espanha[35] – o estrangeiro menor de dezoito anos adotado por um espanhol adquire, desde a adoção, a nacionalidade espanhola de origem.
Observa-se dentre estes poucos exemplos que, não obstante os termos “cidadania” e “nacionalidade” serem utilizados, muitas vezes, como sinônimos, a possibilidade de aquisição da nacionalidade originária pela adoção é amplamente reconhecida nos países europeus, possuindo cada legislação, evidentemente, suas peculiaridades.
Na maioria dos países, a idade é um fator que limita a obtenção da nacionalidade, reconhecendo o direito de obtenção de forma originária, geralmente, somente aos menores de idade ou àqueles ainda considerados como criança.
Ademais, há situações em que a regra será diferenciada dependendo da forma pela qual a adoção se concretizou, ou seja, se a adoção foi plena, entendida esta como a que implica na substituição da filiação anterior do adotado, rompendo com os laços existentes com a família biológica, ou simples, a qual confere ao adotado a posição de filho biológico, mas não cria vínculo de parentesco com a família do adotante. No entanto, esta regra foi modificada em diversos países, em decorrência da igualdade estabelecida entre os filhos adotivos e naturais[36].
Especificamente no caso da Espanha, a exposição de motivos da Lei n. 54, de 28 de dezembro de 2007[37], que trata da adoção internacional, demonstra que a regra estabelecida no Código Civil espanhol objetiva justamente estabelecer as garantias necessárias para assegurar à criança adotada o direito a não discriminação por razão de nascimento, nacionalidade, raça, sexo, deficiência, enfermidade, religião, língua, cultura, opinião ou qualquer outra circunstância pessoal, familiar ou social, em aplicação das normas constitucionais e instrumentos legais internacionais.
Este entendimento encontra consonância com o art. 14 da Constituição Espanhola[38], que estabelece a igualdade dos espanhóis perante a lei, bem como com o art. 39.2 do mesmo documento legal, que garante a proteção integral dos filhos, igualando-os para todos os efeitos, independentemente de sua qualidade.
O direito à nacionalidade espanhola não tem, strictu sensu, caráter de direito fundamental, dado o teor do art. 11.1 e a sua localização sistemática, já que inserida no capítulo 1, ao invés do capítulo 2 da Constituição, dedicado especificamente aos direitos fundamentais, entretanto, a opção legislativa pela proibição de discriminação entre os filhos adotivos e biológicos decorre da concepção doutrinária e jurisprudencial espanhola de que a filiação não admite categorias jurídicas intermediárias.
Considerando que este instituto não apresenta uma definição na Constituição, conferiu-se liberdade ao legislador para regular a matéria sobre adoção, o qual caracterizou-a como uma das formas de filiação e a equiparou aos filhos naturais[39].
Agora, não mais se faz a distinção no direito espanhol entre adoção simples e plena, pois com a igualdade entre filhos, a única adoção prevista em lei é aquela em que ocorre a total integração do adotado na família adotiva, com a consequente extinção dos vínculos jurídicos entre o adotado e a família anterior. Por conseguinte, pela análise dos artigos 108, 175 e seguintes do Código Civil espanhol,[40] interpretados segundo o princípio de igualdade constitucional, supõe-se que a adoção seja uma classe de filiação com os mesmos efeitos, direitos e obrigações que a filiação biológica, seja esta matrimonial ou não matrimonial[41].
Apesar de a própria Constituição afirmar que todos os espanhóis são iguais ante a lei, em seu artigo 14, a mesma estabelece nos itens 2 e 3 do art. 11 um tratamento distinto para os espanhóis de origem e não originários, no tocante à perda da nacionalidade espanhola e à dupla nacionalidade, distinção também encontrada em textos constitucionais ibero-americanos[42].
A doutrina espanhola, diferentemente da terminologia adotada no Brasil, prefere diferenciar os modos de aquisição de nacionalidade fazendo-se a distinção entre “atribuição” e “aquisição” ou entre modos “automáticos” e “não automáticos”, tendo em vista que o Código Civil estabelece a possibilidade de ser espanhol de origem por conta do nascimento, da adoção ou por meio de uma declaração.
Há que se ressaltar, entretanto, que seja pela aquisição ou pela atribuição, a tendência das legislações sobre nacionalidade vigentes no âmbito comunitário europeu não confere caráter absoluto tanto ao critério ius sanguinis como ao critério ius soli, seguindo um ou outro parâmetro em função das circunstâncias de cada caso que se regula. Ademais, no ordenamento espanhol, também se caracteriza a subsidiariedade do critério territorial com respeito à filiação e à aplicação dos critérios ius sanguinis e ius soli.[43]
5.2 Estados Unidos da América
Nos Estados Unidos, em que pese a adoção internacional resulte na concessão da cidadania americana logo que finalizado o processo de adoção, os adotados ainda são tratados como imigrantes até que seus pais providenciem o Certificado de Cidadania, de forma que os pais devem obter um visto de imigrante e provar condições financeiras de sustento para que seja permitida a entrada da criança/adolescente no território americano. Diferentemente, os filhos biológicos de pais americanos que nascem fora do solo estadunidense, podem obter o passaporte apresentando a certidão de nascimento à Embaixada Americana, tendo livre ingresso no país, pois são considerados americanos de origem.[44]
Conforme consta do texto constitucional dos Estados Unidos da América, semelhantemente à regra brasileira, aos nacionais por adoção não serão garantidos os mesmos direitos do americano de origem, sendo a principal restrição a impossibilidade de concorrer à presidência do país[45].
Em 2004, foi apresentado ao Congresso americano pelo Senador Don Nickels, da República de Oklahoma, uma proposta de alteração do Child Citizenship Act of 2000, lei federal que regula a cidadania de filhos biológicos e adotivos de norte americanos que nasceram fora do território nacional, com o objetivo de que fosse garantida a cidadania automática de menores de 18 anos adotados internacionalmente, eliminando a necessidade de obtenção de visto de imigrante e lhes garantindo os mesmos direitos conferidos aos filhos biológicos nascidos no exterior, ou seja, considerando-os também como “americanos por nascimento”, inclusive com a oportunidade de chegar ao cargo de presidente dos Estados Unidos.[46]”
Muito embora não tenha sido dado seguimento à proposta legislativa, sendo necessária nova iniciativa em sessão ulterior, existe um grupo denominado Equality for Adopted Child (EACH) que dá suporte a essa luta, defendendo a necessidade dessa alteração legal para o estabelecimento efetivo dos direitos dos adotados.
Premeia-se também uma discussão acerca da expressão natural born que foi inserida na primeira seção do Artigo II da Constituição americana como requisito para a elegibilidade do presidente dos EUA, pois não consta qualquer definição do termo no texto constitucional[47].
Ainda, não há definição infraconstitucional que equipare natural borns a americanos de origem, muito embora a cláusula quarta da oitava seção do Artigo I da referida Constituição[48] confira ao Congresso americano a competência para legislar sobre as regras referentes à naturalização, podendo ainda declarar quem realmente pode ser qualificado como natual born citizen, cabendo à doutrina e aos tribunais americanos realizarem a interpretação da cláusula[49].
Com relação ao termo born, entende-se que a cláusula faz referência à condição que o indivíduo possui “ao tempo de seu nascimento”, cingindo-se a discussão ao significado e amplitude da palavra natural.
É pacífico o entendimento de que os americanos nativos, ou seja, que nasceram no território americano, são considerados natural borns, da mesma forma que aqueles nascidos no estrangeiro de pais estrangeiros, cuja cidadania americana foi obtida por meio da naturalização não adquirem essa qualificação. Contudo, a questão envolvendo o indivíduo que nasceu no exterior, cujos dois ou pelo menos um dos pais são cidadãos americanos, nunca foi plenamente resolvida.
Não obstante haver definição legal de “americano de origem” (by birth)[50], há quem defenda que este termo não se confunde com o sentido atribuído a natural born, de forma que seria possível um indivíduo ser considerado americano por nascimento, mas não preencher os requisitos para alcançar o status de natural born, o que lhe impediria de concorrer à presidência dos Estados Unidos.
Um episódio polêmico e interessante envolvendo o rival de Barack Obama, John MacCain’s, foi objeto de notícia no jornal The New York Times, questionando-se a sua candidatura à presidência em razão de seu nascimento ter ocorrido na zona do Canal do Panamá, em 1936, uma vez que, embora sendo filho de americanos, o território de seu nascimento ainda não se encontrava sob o domínio e jurisdição dos Estados Unidos[51],.
A impugnação foi motivada em razão da promulgação de uma lei, no ano de 1937, que passou a conferir a cidadania americana às crianças nascidas no referido canal após o ano de 1904. Os contrários à sua candidatura, dentre os quais o professor de direito da Universidade da Califórnia Gabriel J. Chin, alegaram que a retroatividade da lei promulgada em 1937, um ano após o seu nascimento, poderia lhe conferir a qualidade de “americano de origem”, mas não de natural born, já que para obter essa qualificação, deveria ter implementado todos os requisitos para ser “americano de origem” na data de seu nascimento, o que não ocorreu.
Em abril de 2008, todavia, o Senado americano aprovou uma resolução declarando a possibilidade de John MacCain’s concorrer à presidência.
Segundo estudo publicado na revista do departamento da Universidade de Michigan, Michigan Law Review, o caso de MacCain pode ter aberto precedentes inclusive para menores adotados internacionalmente, os quais, mesmo não tendo nascido sem solo americano, sendo considerados filhos de americanos, em razão da adoção, e passando a residir nos Estados Unidos desde a sua tenra idade, poderiam ser também considerados natural borns.
O artigo traz uma conclusão interessante, afirmando que o estrito significado de cidadania está se esmaecendo, já que as circunstâncias do nascimento nada refletem nas qualidades dos laços que os indivíduos podem desenvolver na comunidade nacional. As ameaças motivando a aplicação do requisito natural born se evaporaram. Estabelece ainda uma metáfora, ao afirmar que não há mais perigos de que um “candidato cavalo de troia” usurpe a presidência e sirva aos interesses de um poder estrangeiro, incumbido às políticas de segurança nacional e ao vigor jornalístico investigarem suspeitas de conexões estrangeiras, apesar de ser improvável que um candidato à presidência venha a participar de esquemas internacionais em prejuízo dos EUA[52].
A questão pode novamente vir a ser discutida no Congresso e Suprema Corte americana, pelo que se observa dos movimentos políticos atuais nos Estados Unidos. Conforme publicado em diversos jornais americanos, dentre estes The Washington Times, o ator e ex-governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger, nascido em solo austríaco e americano por naturalização, manifestou-se no sentido de que está empenhando esforços na tentativa de modificar a cláusula quarta da primeira seção do Artigo II da Constituição americano, a fim de possibilitar sua candidatura à presidência[53].
Observa-se que os requisitos envolvendo o cargo de Presidente dos Estados Unidos e a questão da soberania nacional está longe de ser pacificada, sendo possível que, em decorrência dos movimentos e discussões acima apresentadas, possa ocorrer mudanças legislativas significativas, que acabem por interferir nos direitos estendidos aos americanos por adoção.
6 A soberania nacional e a opção de nacionalidade
A Constituição Federal, em seu art. 12, I, “c”, conforme redação dada pela Emenda Complementar de Revisão n. 3, de 1994, estabelecia que a condição de brasileiro nato é também conferida àqueles nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir no Brasil e optem, a qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.
A versão original deste dispositivo, entretanto, possuía a seguinte redação: “Os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente, ou venham a residir na República Federativa do Brasil antes da maioridade e, alcançada esta, optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira”.
Observa-se que com a EC de Revisão n. 3, de 1994, foi suprimida a exigência de que o indivíduo deveria residir no Brasil obrigatoriamente antes da maioridade, mas também não conferiu a possibilidade de obter-se a qualidade de brasileiro nato com o mero registro em repartição brasileira competente. Na nova redação, exigiu-se apenas a residência neste território, seja esta antes ou posterior aos 18 anos de idade[54].
Diferença também se observa no texto contido na Constituição Federal de 1967/69, o qual determinava, segundo o disposto no seu art. 140, I, “c”, que além de possuir residência no Brasil antes da maioridade, a opção pela nacionalidade brasileira poderia ser feita somente até quatro anos após completá-la. Nesta situação, o indivíduo era considerado brasileiro nato até o termo final do prazo de opção, mas sob condição resolutiva[55].
Em virtude das regras modificadas pela redação proveniente da ECR 3/94, o STF se manifestou no sentido de que o filho de brasileiro nascido no exterior que, ainda menor, viesse a residir no Brasil, deveria ser considerado, para todos os fins, brasileiro nato, com direito ao registro provisório, de modo que atingida a maioridade, a opção passaria a constituir-se em condição suspensiva da nacionalidade brasileira[56].
No entanto, conforme levantado por Mendes[57], “(…) tendo em vista o caráter protetivo e não restritivo da norma constitucional e os efeitos severos da apatria, afigurava-se inevitável que se reconhecesse ao menor filho de brasileiro, nascido e residente no estrangeiro, a nacionalidade brasileira com eficácia plena até o advento da maioridade, quando poderia decidir, livre e validamente, sobre a fixação de residência no Brasil ou alhures e sobre a opção pela nacionalidade brasileira. Se antes de completar a maioridade não poderia ele decidir, autônoma e validamente, sobre a fixação da residência no Brasil, não haveria como não se lhe reconhecer a condição de brasileiro nato”.
Com a superveniência da redação atual, pela promulgação da EC n. 54, de 20 de setembro de 2007[58], encerrou-se a discussão acerca da possibilidade ou não de aquisição pelo registro perante a autoridade competente, bem como quanto à obrigatoriedade ou não de se fixar residência no Brasil antes da maioridade. Dispõe o atual dispositivo (art. 12, I, “c”): “Art. 12. São brasileiros: I – natos: (…) c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira”.
Por conseguinte, são requisitos alternativos para que, hoje, o indivíduo nascido no exterior, filho de pai ou mãe brasileiros o registro em repartição brasileira competente ou a residência no Brasil, antes ou depois da maioridade, e optem pela nacionalidade brasileira, a qualquer tempo, após atingidos os 18 anos.
Estas regras, entretanto, não se aplicam àqueles que, nascidos no estrangeiro, de pai e mãe estrangeiros, são adotados por pai ou mãe brasileiros, já que pela adoção internacional somente se confere a possibilidade de tornar-se brasileiro por meio da naturalização, hipótese em que o adotado receberá um Certificado Provisório de Naturalização até que sejam cumpridos todos os requisitos e procedimentos exigidos à naturalização.[59]
O motivo dessa diferença, como já discorrido no presente trabalho, é justamente garantir a vedação de que estes possam alcançar os cargos políticos descritos no tópico 5, especialmente a Presidência da República, sob a justificativa de que poderia haver afronta à soberania brasileira por partilharem de interesses que conflitam com o interesse nacional, em razão da cultura e ideologia política desenvolvida quando ainda residentes no país de origem.
Contudo, pela atual interpretação do referido dispositivo, pode-se inferir que não há óbices para que o filho de pais biológicos brasileiros nasça e resida por muitos anos no estrangeiro, como se fosse natural desse país, podendo inclusive ser nesse considerado nacional de origem pelo critério ius soli, assimilando a cultura estrangeira e desenvolvendo interesses políticos próprios do país de nascença, e a qualquer tempo, ainda que depois dos 18 anos de idade, decida fixar residência no Brasil, talvez por crises econômicas do país de origem ou por interesses diversos. Optando pela nacionalidade brasileira, adquirirá todos os direitos de um brasileiro nato, permitindo até mesmo que chegue ao cargo de presidente do país, somente pelo fato de possuir o mesmo DNA de alguém que nasceu no território nacional.
É possível também que, sendo um dos pais brasileiro e o outro estrangeiro, o indivíduo possa ter, além das circunstâncias acima elencadas, laços sanguíneos também com um nacional do país de origem, acentuado a possibilidade de que, tornando-se nato após a opção pela nacionalidade brasileira, possa chegar a alcançar altos cargos políticos, como a presidência, e ainda manter os interesses e ideologias que desenvolveu quando estrangeiro, com possibilidade de efetiva afronta à soberania nacional.
O mesmo se aplica àqueles que, filhos de pais estrangeiros, nasceram no território brasileiro e logo regressaram juntamente com seus genitores ao seu país de origem, não inserindo-se na cultura brasileira ou desenvolvendo qualquer sentimento de pertença a este país, embora sejam considerados brasileiros natos pelo critério ius soli.
Nota-se que é possível a existência de conflitos envolvendo interesses nacionais e estrangeiros decorrentes do fato de o indivíduo ter crescido em país estrangeiro ou mesmo ter laços sanguíneos com estrangeiro, e ainda assim não há vedação constitucional para que os direitos conferidos exclusivamente a brasileiros natos lhes sejam estendidos.
Nestes casos, como também apontado no estudo publicado na revista Michigan Law Review[60], caberá aos órgãos responsáveis pela segurança nacional identificar tais situações e utilizar-se dos meios legais necessários para impedir o acesso ao cargo ou providenciar a sua destituição, com o auxílio e participação dos demais poderes e da própria população.
Analisando-se as hipóteses acima levantadas, verifica-se que não há diferenças quanto à “periculosidade” ou possibilidade de ameaça à soberania nacional com relação a um indivíduo filho biológico de brasileiros, ou de pelo menos um brasileiro, que nasce no exterior e aquele que se torna filho em virtude de adoção internacional, circunstância em que, apesar de não possuir laços sanguíneos, pode vir a assimilar toda a cultura e patriotismo brasileiro, sobretudo se adotado quando pequeno.
Por tais razões, afirma Artur Marques da Silva Filho[61] que “(…) a adoção, portanto, deve ser compreendida como forma de aquisição originária de nacionalidade, na dicção do art. 12, I, a, da CF/1988, quando um brasileiro adotar uma criança ou adolescente no exterior. E esta é a tendência que se constata no direito estrangeiro, visando à plena integração do adotado na sua família adotiva. Portanto, o brasileiro adotado pelo estrangeiro acaba por assumir a nacionalidade dos adotantes”.
Com efeito, a soberania nacional pode e deve ser protegida por outros mecanismos, em ambas as hipóteses, não podendo os tribunais utilizarem-se desta discriminação negativa entre filhos adotivos e biológicos com fundamentos apenas no código genético que possuem. A cidadania e o patriotismo são desenvolvidos pelos laços familiares e culturais, os quais podem ser favoráveis ou desfavoráveis independentemente do DNA de cada um, devendo cada caso concreto ser analisado com suas peculiaridades e circunstâncias.
Conforme regras já aplicadas no direito alienígena, deve ser também considerada a idade do indivíduo ao momento em que se concretiza o procedimento de adoção. De fato os laços culturais e o ambiente no qual o adotado se desenvolverá, físico, mental e socialmente, serão as maiores influências para a definição de sua postura política, e portanto, considera-se possível a limitação etária, com suporte nas regras relativas à capacidade civil constantes nos arts. 3-5 do atual Código Civil.
Neste sentido, tendo o direito brasileiro estabelecido a idade de dezoito anos como o momento em que o indivíduo alcança a absoluta capacidade civil, tornando-se apto para realizar integralmente os atos da vida civil, é plausível considerar que neste lapso temporal houve a formação completa dos traços de personalidade e definição dos laços culturais que nortearão a postura política e social do adotado no país de acolhida, de forma que seria justificável a limitação etária para a concessão do direito de opção pela nacionalidade brasileira, para fins de aquisição de nacionalidade originária.
Há que se ressaltar ainda, conforme aponta Mazzuoli[62], a possibilidade de existência de um novo conceito de soberania, moldado às exigências da nova ordem internacional e da proteção internacional dos direitos humanos. Acrescenta este que “(…) não há conceito mais alheio ao da proteção internacional dos direitos humanos que o conceito tradicional de soberania. São irreconciliáveis os conceitos de “soberania” e “direitos humanos”, o que implica necessariamente a abdicação ou afastamento daquela noção em prol da proteção dos seres humanos protegidos, a menos que se remodele o conceito para passar a dizer respeito à cooperação internacional dos Estados em prol de finalidades comuns”.
O art. 4º, inciso II, da Constituição Federal, em consonância, estabelece a prevalência dos direitos humanos como um dos princípios que regerá a República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais, de forma que, em se tratando de proteção a direitos humanos, a noção clássica de soberania soberania acaba se flexibilizando, senão abolindo, a própria noção de soberania absoluta[63].
Considerações finais
A referencia que se faz na alínea “c”, do inciso I, art. 12, da Constituição Federal, que dispõe acerca da obtenção da nacionalidade brasileira de origem (brasileiro nato), limita-se apenas à qualidade de “nascido no estrangeiro”, em oposição ao nascimento dentro de nosso espaço geográfico, e à necessidade de que pelo menos um de seus pais seja brasileiro. Não há qualquer menção à qualidade do vínculo filial, se sanguíneo ou adotivo.
Agrega-se, ainda, o direito assegurado no art. 227, §6º, da CFRB/88, que confere aos filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou ainda por adoção, todos os direitos e todas as qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, em uma interpretação ampla e sistemática.
Muito embora o princípio da igualdade aplicado aos filhos adotivos e biológicos conste expressamente no texto constitucional, prevalece no Brasil o entendimento de que, quando da adoção internacional, o adotado somente poderá obter a cidadania e nacionalidade brasileira por meio do processo de naturalização, diferentemente do que se confere ao filho biológico, que pode vir a ser brasileiro nato ainda que nasça no estrangeiro, devendo apenas vir a residir no Brasil e optar pela nacionalidade brasileira.
Verificou-se pelo presente estudo que a justificativa apresentada pelos tribunais fundamenta-se na defesa da soberania nacional. No entanto, é inadmissível considerar um indivíduo como um perigo ou ameaça à estabilidade e segurança do Estado brasileiro somente em razão deste não possuir DNA de um brasileiro em seu gene.
É clarividente que a assimilação da cultura brasileira e o desenvolvimento do sentimento de pertença a este Estado não decorre do sangue que corre pelas veias do indivíduo, mas pela forma em que foi educado, pelo exemplo e ensino que recebeu de seus pais, pelo ambiente social em que viveu e pelas circunstâncias e adversidades que enfrentou durante sua vida, não implicando em diferenças entre o brasileiro por adoção e aquele que nasceu no estrangeiro, mas pelo menos um de seus pais ostenta a nacionalidade brasileira.
Da análise comparada com o direito europeu, constatou-se que na maioria dos países, a nacionalidade de origem é atribuída automaticamente como efeito da adoção internacional, ainda que com limitações etárias, justamente em decorrência do direito de igualdade que deve ser reconhecido aos filhos sanguíneos e adotivos.
No caso do direito americano, em que pese ainda não constar de sua legislação dispositivo que autorize a extensão dos mesmos direitos àqueles que obtém a cidadania pela adoção, há um forte movimento social e doutrinário que entende a necessidade de equiparação, inclusive no tocante à possibilidade de se alcançar altos cargos políticos, como a presidência da república americana.
Sob essa ótica, é incompreensível a rigidez atribuída à parte do núcleo pétreo da Constituição Federal brasileira em prejuízo dos direitos fundamentais nela mesma consagrados, contrariando todos os debates jurídicos atuais, que defendem sem irresignação a prevalência destes direitos – fundamentais – sobre qualquer interpretação que lhes seja restritiva.
Destarte, conferir ao filho adotivo a exceção do preceito constitucional a partir da afirmação de que somente são brasileiros natos aqueles que possuem o gene de algum brasileiro, é violar o texto literal da própria Constituição e, sobretudo, abafar o brilho e a grandiosidade do generoso ato de adoção.
Graduada pelo Centro Universitário de Maringá – UniCesumar. Formação complementar no Instituto Tecnológico de Monterrey – Campus Estado de México/MX
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