A renúncia ao direito de representação nos Juizados Especiais Criminais.

Dentre as tantas inconstitucionalidades, incoerências e erros técnicos da lei n°. 9.099/95, resplandece a inobservância do sistema processual penal em vigor, o que dificulta uma análise clara de muitos pontos contidos na citada lei.

Já alertava em 1995, o ilustre processualista Afrânio Silva Jardim, ao palestrar sobre os Juizados Especiais Criminais, que “talvez, não agora, mas proximamente, tenhamos que realizar um exame da lei numa perspectiva não-procedimentalista, e, sim, numa visão sistemática, percebendo que ela é especial, mas se insere dentro de um sistema processual.”

O momento de se interpretar a lei n.° 9.099/95, tendo em conta o sistema processual penal, já chegou, penso até que já passou, e ainda não temos todas as incongruências ali inseridas de todo esclarecidas. Afasta-se aqui qualquer tentativa de se interpretar a lei n.° 9.099/95 como sendo um sistema à parte, desalinhado com conceitos básicos e princípios norteadores do processo penal como um todo.

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O art. 74, parágrafo único, da lei n. ° 9.099/95, dispõe que quando houver acordo haverá a renúncia ao direito de queixa ou representação. O acordo referido pelo parágrafo do dispositivo legal não pode ser outro senão o da cabeça do artigo citado, ou seja, a composição civil.

Mas no que toca à renúncia ao direito de representar, o que de fato se dá é na verdade uma retratação da representação, quando esta já foi oferecida na Delegacia de Polícia, o que ocorre ordinariamente. Não se pode renunciar a um direito que já foi exercido validamente.

Em geral, no corpo da ata de audiência preliminar não há a confecção de composição civil propriamente dita, mas apenas a manifestação de reconciliação das partes, ficando consignado que a suposta vítima renunciou ao seu direito de representação.

Ora, como já dito acima, há casos em que a representação já foi oferecida, muitas vezes de forma expressa. Como então admitir renúncia a um direito já exercido regularmente? Não se admite. E assim é, simplesmente porque somente se pode renunciar ao que ainda não se exerceu, por óbvio.

A manifestação da vítima de que não deseja ver o autor do fato processado, não pode ser vista como uma renúncia ao direito de representação, quando esta já foi oferecida validamente na Delegacia de Polícia ou perante outras autoridades que dela possam ter conhecimento, repita-se.

O que se vislumbra aqui é uma retratação da representação já oferecida, o que seria possível já que não houve oferecimento da denúncia. Poderia se objetar esta conclusão com o art. 75, da lei n. 9.099/95, que disporia sobre o momento próprio para oferecimento da representação, somente podendo tal ser exercida em juízo. Mas esse não é um argumento robusto, como adiante se verá.

Como todos sabem, a representação consiste numa manifestação da vítima, ou de quem detenha qualidade para representá-la, de que deseja a responsabilização penal do agente que cometeu o delito. Tal manifestação, para ser considerada válida, não necessita de nenhum rigor formal, bastando apenas a demonstração da intenção de ver o responsável submetido à persecução penal e pode ser oferecida à Autoridade Policial, ao Ministério Público e ao Juiz.

Tal liberdade do meio de se representar é reconhecida legalmente (art. 39, do C.P.P.) e pelos doutrinadores de destaque, valendo por todos a lição de Eugênio Pacelli de Oliveira esclarecendo que “a esta autorização, quando ausente qualquer outra ordem de interesses que não o da vítima, a lei processual penal dá o nome de representação, que dispensa formalidades e cujo objetivo, como visto, é apenas o de permitir, pelo consentimento do ofendido quanto à divulgação do fato, a ação estatal voltada para a persecução penal”.

Pelo que se vê, a suposta vítima ao se dirigir à Delegacia de Polícia para narrar o ocorrido à Autoridade Policial, efetivamente manifestou seu desejo de ver os responsáveis punidos, não se podendo negar validade a tal representação. Ainda mais quando, muitas vezes, assina Termo de Representação. Aliás, conforme expõe o ilustre Luis Grandinetti, vários enunciados de Encontros de Trabalhos, acerca do J.E.C., reconhecem a validade dessas representações, veja-se um deles:

“A comunicação espontânea da suposta vítima ou qualquer manifestação de vontade da mesma no sentido de ver apurado o fato, na Delegacia de Polícia ou perante o Ministério Público, deve ser considerada representação, priorizando-se o integral preenchimento no campo próprio do Registro de Ocorrência”. Enunciado Consolidado 18 do Aviso n.° 03/01/2002, do TJRJ.

Dessa forma, seria a representação referida no art. 75, da lei n. ° 9.099/95, mera ratificação da representação já oferecida. Existindo a composição civil, ou uma reconciliação entre as partes, a conseqüência seria a retratação da representação e não propriamente uma renúncia.

O entendimento contrário, no sentido de que somente é representação aquela manifestada em juízo na audiência preliminar, traz uma dificuldade intransponível. É que muita vez há um prazo de mais de 06 (seis) meses entre a elaboração do Termo Circunstanciado de Ocorrência e a audiência preliminar. Seria então de se perguntar: houve a extinção da punibilidade pela decadência, já que a representação válida seria apenas aquela feita em juízo?

No entendimento aqui exposto, poderia se perguntar: seria válida a retratação da representação, mesmo após o decurso do prazo decadencial de seis meses referido no art. 38, do C.P.P.?

A primeira indagação somente pode ser respondida de maneira negativa, eis que a representação dada à Autoridade Policial tem plena validade jurídica. Não poderia o Estado violar o direito da vítima de ver o fato, em tese delituoso, ser examinado pelo Judiciário, sob pena de flagrante inconstitucionalidade por violação ao art. 5°, inciso XXXV, da Constituição da República, já que o excesso na pauta de audiências é dificuldade exclusivamente de responsabilidade estatal.

Há colegas operadores do Direito que entendem inválida tal representação na Delegacia de Polícia se ela não for ratificada em juízo, concluindo-se, então, pela extinção da punibilidade pela decadência quando não houver a representação na audiência preliminar, o que a nosso sentir é uma interpretação equivocada do ordenamento jurídico.

Alegam que a lei n. ° 9.099/95, por ser norma especial, pode e efetivamente definiu momento próprio para oferecimento da representação e aquele comunicado à Autoridade Policial seria mera notícia crime sem a qualificação jurídica de representação.

Para solucionar o problema da audiência preliminar realizada já fora do prazo decadencial para representação, dizem os colegas que, nesse caso e apenas nesse caso, para não violar o direito da suposta vítima, aquela notícia crime seria, sim, representação, mas que somente produzirá seus efeitos jurídicos com sua ratificação em juízo. Militam, pois, com uma causa suspensiva dos efeitos da representação oferecida à Autoridade Policial, qual seja, a ratificação desta em juízo, no momento designado pelo art. 75, da lei n. 9.099/95.

Noutras palavras, para esses juristas uma hora a manifestação da vítima, na Delegacia de Polícia ou perante autoridade apta a recebê-la, não seria representação, quando não ratificada posteriormente em juízo, e, noutro momento, seria uma representação, quando fosse ratificada em juízo.

Ora, não se concebe instituto jurídico quântico, que ora é uma coisa e ora é outra, a depender do dia em que uma mera audiência será realizada. Não se alcança, de ordinário, tal complexidade. Ainda se vive sob o dogma de que ou uma coisa é ou não é, não podendo ser e deixar de ser ao mesmo tempo. 

A manifestação da vítima perante a Autoridade Policial é, sem dúvida alguma, representação e não depende de nenhum outro ato para produzir seus efeitos jurídicos, tanto assim, que a própria elaboração do Termo Circunstanciado de Ocorrência já é efeito de sua validade jurídica.

Já a segunda indagação, pode ser respondida positivamente, eis que o art. 25, do Código de Processo Penal, põe unicamente como limite temporal para a retratação da representação o oferecimento da denúncia. No presente caso, haverá uma válida retratação da representação, antes oferecida na Delegacia de Polícia ou perante outra autoridade indicada no Código de Processo Penal.

Tendo o prazo decadencial já expirado, não haverá mais possibilidade da retratação da retratação, ocorrendo a extinção da punibilidade pela aplicação do art. 107, inciso IV, do C.P., e art. 38, do C.P.P. Não comparecendo o representante à audiência preliminar, estará o Ministério Público apto a oferecer denúncia.

Essa a interpretação condizente com a análise sistemática da legislação processual penal em vigor.

 

Bibliografia consultada:
Carvalho, Luis Grandinetti C. de. II- Prado, Geraldo. Lei dos Juizados Especiais Criminais, Comentários e Anotações. Lumen Juris. 2003;
Grinover, Ada Pellegrini…(et al.). Juizados Especiais Criminais. Revista dos Tribunais. 2002;
Jardim, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Forense. 2002;
Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Del Rey. 2004;
Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. Lumen Juris. 2003.

Nota
Artigo elaborado em 31 de janeiro de 2005.


Informações Sobre o Autor

Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim

Juiz de Direito do TJPE. Ex- procurador Federal. Pós-graduando em ciências criminais.


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Equipe Âmbito Jurídico

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