Resumo: Trata o presente estudo de analisar se o consenso constitucional a que se chegou na Assembleia Nacional Constituinte sobre repartição de competências, e da qual derivou a Constituição Federal de 1988, possui capacidade de alcançar um consenso sobreposto na visão Rawlsiana. Para tanto, se estuda, primeiramente, a concepção de consenso sobreposto em Rawls, do que se trata e como pode ser atingido. Em seguida, são traçadas linhas acerca do Federalismo no Brasil e a repartição de competências previstas no Texto Constitucional. Por fim, conclui-se que o consenso constitucional relativo à separação das competências não é apto a alcançar o consenso sobreposto tendo em vista que a autonomia dos estados-membros é utilizada contra a própria unidade federal, o que atinge frontalmente a estabilidade das instituições na visão Rawlsiana.
Palavras-chave: Consenso Sobreposto. Federalismo. Repartição de Competências.
Abastract: This present study examined whether the constitutional consensus reached at the National Constituent Assembly on division of powers, and from which it derived the Federal Constitution of 1988, has the capacity to achieve a Rawlsian overlapping consensus in sight. To this end, we study first the concept of overlapping consensus Rawls, what it is and how it can be achieved. Then lines about Federalism in Brazil and the allocation of powers laid down in the Constitutional text are drawn. Finally, it is concluded that the constitutional consensus on separation of powers is able to achieve overlapping consensus considering that the autonomy of the member states is used against their federal unit, which frontally affects the stability of institutions in Rawlsian view.
Keywords: Overlapping consensus. Federalism. Distribution of Responsibilities.
Sumário: Introdução. 1 O Consenso Sobreposto em John Rawls. 2. Federalismo. 2.1 Federalismo Quanto à Repartição de Competências. Conclusão. Obras Consultadas.
INTRODUÇÃO
Na obra “O Liberalismo Político”, John Rawls utiliza-se do que chama de consenso sobreposto para que se alcance uma sociedade justa e estável em suas instituições, considerando a diversidade de doutrinas abrangentes das quais ela própria se constitui. Ocorre, no entanto, que para se atingir esse consenso sobreposto necessário que se percorra um longo caminho de experiências e vivencias apoiadas num consenso constitucional apriorístico.
Desta forma, o que se pretende neste estudo é analisar se o consenso constitucional Brasileiro, configurado na Assembleia Nacional Constituinte 1987-1988, com relação à repartição de competências (pacto federativo) tem possibilidade de alcançar o consenso sobreposto de Rwals.
Como será demonstrado adiante, o consenso constitucional do Estado brasileiro valorizou a fragmentação da Federação com o aumento de atores políticos (governadores e prefeitos) e olvidou-se do consenso social acerca dos objetivos da descentralização do poder administrativo. Desta forma, o governo federal está fragilizado para solucionar problemas nacionais.
1. O CONSENSO SOBREPOSTO EM JOHN RAWLS
A IV Conferência de O Liberalismo Político, de John Rawls, inicia com a problemática que norteia toda a obra: “como é possível haver uma sociedade estável e justa, cujos cidadãos livres e iguais estão profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais conflitantes e até incompatíveis?”.[1] Para o autor uma sociedade democrática bem ordenada pode estabelecer e preservar a estabilidade mesmo considerando-se o pluralismo de doutrinas abrangentes razoáveis, desde que se alcance o consenso sobreposto endossado pelas doutrinas abrangentes, nos limites das suas respectivas perspectivas.
Considerando que nenhuma doutrina abrangente razoável pode garantir a estabilidade de uma sociedade bem ordenada, necessário introduzir a ideia de consenso sobreposto a essas doutrinas, o que deve auxiliar na concepção de uma sociedade bem ordenada adequada às condições históricas e sociais das sociedades democráticas.
A unidade social deve estar apoiada num consenso acerca da concepção política e a estabilidade será alcançada no momento em que as doutrinas constituidoras daquele consenso forem aceitas por todos que de alguma forma atuam na sociedade.
Em Justiça como Equidade, John Rawls apresenta uma ideia abstrata de pessoa, que é a concepção política de pessoa. Nesta concepção política, cidadãos de sociedades democráticas possuem duas características: a concepção de bem e senso de justiça. Além disso, dentro das sociedades democráticas, as pessoas professam e vivem de acordo com várias doutrinas, que podem ser mais ou menos abrangentes. É justamente pela existência dessa variedade de doutrinas que surge a principal questão tratada em O Liberalismo Político, qual seja, a estabilidade política de uma sociedade democrática.
Apenas doutrinas abrangentes razoáveis são capazes de alcançar um consenso sobreposto e podem ser aceitas nessa concepção de sociedade democrática devendo, de alguma forma, garantir um consenso acerca de valores públicos, mesmo que seus valores individuais conflitem com os de outras doutrinas. É claro que esses conflitantes valores intrínsecos de cada diferente doutrina não podem gerar um embate no campo público. De fato, pois, deve haver tolerância entre as ideias professadas por diferentes indivíduos e grupos. A base da justificação para as questões públicas deve ser, ela própria, pública. Portanto, os argumentos não-públicos de cada doutrina devem ser descartados.
Em realidade extrai-se do texto que é vantajoso para as diversas doutrinas convergirem para uma concepção pública de justiça, pois sustentar um sólido consenso acerca de valores públicos possibilitaria justamente a mantença de uma doutrina particular bem como a concepção de bem de um cidadão individual.
Mas como se alcança o consenso sobreposto? De que forma ideias tão abrangentes e distintas podem atingir um consenso que venha propiciar uma sociedade justa e estável?
O primeiro passo, ou estágio, seria um consenso constitucional não tão profundo, no qual os princípios liberais de justiça, satisfeitos pela Constituição, são aceitos simplesmente como princípios, e não como se fossem baseados nas ideias de sociedade e pessoa de uma concepção política.
Segundo Thadeu Weber:
“Num consenso constitucional há concordância apenas sobre alguns direitos e liberdades políticas fundamentais e não sobre direitos e liberdades em geral. Há concordância sobre o direito de voto, a liberdade de expressão, de associação etc., mas certamente há divergência quanto ao seu conteúdo e limites.
O consenso constitucional, segundo Rawls, além de não ser profundo, não é amplo: inclui apenas “os procedimentos políticos do governo democrático”, e não a “estrutura básica da sociedade”. É o consenso que Rawls chama de restrito e não profundo. Entretanto é preciso começar com ele. A constituição é essencialmente um procedimento e a justiça como equidade deve ser entendida como “justiça procedimental.”.”[2]
Partindo-se do consenso constitucional acerca de princípios liberais de justiça, escolhidos dentre tantos outros por serem razoáveis à determinada sociedade em certo momento histórico, ao longo do tempo a experiência social os vai consolidando por meio da vivência entre instituições justas (que respeitam tais princípios) o que leva a um consenso sobreposto. Ainda nas palavras de Thadeu Weber:
“Há portanto um difícil percurso até atingirmos um consenso sobreposto. De uma simples aceitação inicial dos valores políticos, tendo em vista a necessidade da organização da sociedade cooperativa, alcançarmos um consenso constitucional – um acordo que talvez possa resultar em um consenso sobreposto. Esse é o objetivo. A escolha e a experiência da vivência numa sociedade cooperativa que adotou os valores políticos liberais criam um consenso constitucional. Esse pretende ser um mínimo essencial como garantia institucional da cooperação social. Temos que chegar a um acordo em torno de princípios que devam orientar nossa Constituição política.
Entretanto, esse consenso tem seus limites. Não diz, por exemplo, o que deve ser feito para solucionar os conflitos de direitos fundamentais e nem explicita seu efetivo alcance. O tipo de acordo que visa superar essa influência é o consenso sobreposto que está apoiado nas ideias de pessoa e sociedade de uma concepção de justiça.[3]
No consenso constitucional, que trata apenas de procedimentos políticos do governo democrático, pode-se incluir a organização político-adminstrativa do Estado Brasileiro que possui em seu âmago a repartição de competências entre os entes federados. Assim, tentar-se-á doravante, trazendo para prática os conceitos até aqui delineados, analisar se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, enquanto consenso constitucional, pode alcançar o consenso sobreposto relativamente à repartição de competências.
2. O FEDERALISMO
O federalismo, entendido como forma de organização do poder político, foi concebido a partir do século XVIII, aparecendo de forma inominada, primeiramente, na Constituição Norte-Americana de 1787. Mais tarde, o Estado Federal foi expressamente previsto, em 1853, na Constituição da Argentina, na Constituição do Império Alemão (1871), na Constituição da Suíça (1874) e na Constituição do Brasil (1891).
Adotado no Brasil, pois, o Federalismo caracteriza-se pela distribuição do poder entre os entes federados (Estados-membros), dotados de autonomia. No texto Constitucional, é cláusula pétrea, e sua alteração demandaria a instituição de novo Poder Constituinte.[4]
Segundo CELSO RIBERIO BASTOS:
“É a forma mais sofisticada de se organizar o poder dentro do Estado. Ela implica uma repartição delicada de competências entre o órgão do poder central, denominado “União”, e as expressões das organizações regionais, mais frequentemente conhecidas por “Estados-membros”, embora, por vezes, seja usado, por igual forma, o nome província e, até mesmo, cantão. Essa partilha de competências entre a União e os Estados é bastante rígida, visto que se apresenta esculpida na própria Constituição Federal, razão pela qual só por intermédio de emenda à Constituição pode ser alterada. Outrossim, os Estados-membros participam na formação da União através dos senadores que compõem uma das Casas do Congresso Nacional.”[5]
No Estado federal, reúnem-se vários Estados-membros, os quais não são dotados de soberania externa ou interna[6], pois adstritos a um único poder, que é o federal. Todavia, conservam parcialmente sua independência, podendo alinhar as diretrizes das suas constituições com o objetivo de auto-organização.
Diferentemente do Estado federal, pois, os Estados-membros são entes autônomos, não reconhecidos pela Ordem Jurídica Internacional, com jurisdição limitada a uma porção do território Nacional e atuam dentro dos limites que a Constituição da República Federativa do Brasil lhes outorga[7], de acordo com o que dispõe o seu artigo 18[8].
Desta forma, como norte para caracterização do Federalismo há a existência de uma Constituição Federal que delimita competências e a participação dos Estados-membros na vontade Federal, com quem é dividido o poder político para tomada de decisões.
Doutrinariamente, tem-se uma classificação do Federalismo subdividida em quatro importantes itens, quais sejam: (i) quanto à origem, (ii) quanto à concentração de poder, (iii) quanto ao equacionamento de desigualdades e (iv) quanto repartição de competências. Para o estudo ora proposto fixa-se atenção no último ponto.
2.1 O FEDERALISMO QUANTO À REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
Como toda legislação, mesmo que fundamental, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é um espelho do momento econômico-social vivido na época de sua confecção, no qual o socorro pela Democracia era exigência inescapável do povo brasileiro carente, à época, de uma revisão econômica, política e social. O que evidencia que houve um consenso constitucional em face de princípios hoje positivados no texto constitucional. Assim, delinearam-se os contornos do Federalismo hoje vigente no Brasil, no qual a repartição de competência é ponto fundamental.
A Constituição Federal prescreve matérias que a União e os Estados-membros possuem competência privativa para legislar, cada qual em consonância com seus específicos interesses. São competências muito bem divididas, para as quais inexiste cooperação. É a chamada repartição horizontal da competência.
De outra banda, também no Texto Constitucional vigente, tem-se idêntica matéria legislativa tratada pela União e pelos Estados, onde a União aponta diretrizes limitadoras do poder dos Estados-membros, que não poderão modificar as normas federais. É conhecida como repartição vertical da competência.
Os principais elementos da Federação brasileira são: a) Descentralização política; b) Autonomia dos entes federados; c) Soberania do Estado Federal; d) Formalização e repartição das competências em uma Constituição rígida; e) Representação dos Estados e do Distrito Federal no Senado Federal; e f) Fiscalização da autonomia federativa por meio do controle de constitucionalidade.
O Federalismo, em realidade, aumenta as funções dos Estados-membros, pois a descentralização política exige uma nova forma de organização dos entes da Federação, e, com ela, surge a necessidade da repartição de competências. O Sistema de Repartição de Competências estabelecido pela Constituição Federal prevê competências exclusivas[9] (tratam de matérias que não podem ser repassadas ou delegadas pela União a outra entidade federada, importando, assim, em elisão da participação de qualquer outra entidade federal no seu desempenho); competências privativas[10] (são as possibilidades dos Estados-membros também legislarem sobre as matérias de competência da União. Tal ocorrerá caso a União, em razão da sua vontade, edite Lei Complementar que trate de forma ampla sobre a determinada matéria (norma geral). Neste caso, poderá delegar aos Estados-membros que legislem de forma específica sobre o tema já tratado na norma geral); competências concorrentes[11] (específicas às funções legislativas, as competências concorrentes são uma dupla legislação. A mesma matéria é objeto de tratamento legislativo de duas esferas: a nacional e a estadual. É um consórcio legislativo onde à União cabe legislar sobre normas gerais, enquanto aos Estados-membros cabe legislar sobre matéria que não seja tratada por norma geral. O exercício da competência concorrente pelo Estado-membro ocorre pela suplementação da matéria geral elaborada pela União, de acordo com as suas peculiaridades, seus interesses. Todavia, omitindo-se a União na elaboração dessas, a Constituição faculta ao Estado-membro o exercício de “competência legislativa plena” sobre tais matérias); e, por fim, competências comuns[12] (a todas as entidades federadas são outorgadas, em igualdade de condições para o desenvolvimento de determinadas funções, capacidade de tratar sobre determinadas matérias administrativas que precisam ser desempenhadas em conjunto pelas entidades políticas federadas).
É exatamente pelos limites das competências desenhados no Texto Constitucional que se evidencia o chamado pacto federativo. O constituinte originário optou pela descentralização do poder, conduzindo o Brasil a uma das federações com maior descentralização da administração, no que diz da distribuição de recursos tributários e poder político. A Constituição Federal trouxe, portanto, um sentido democrático específico no qual há inúmeros mecanismos de participação da sociedade.
Nas palavras de MARIA TEREZA SADEK, in verbis:
“Em outras palavras, criou-se um modelo que valoriza a fragmentação e, consequentemente, amplia o número de atores políticos e de possíveis contestadores de decisões. Nesta construção, governadores e prefeitos adquirem papel político de primeira grandeza, sem contudo anular ou diminuir o poder de antigas lideranças.”[13]
De outra banda, o próprio texto constitucional apresentou enorme preocupação com a participação popular, ao invés de sublinhar um consenso social acerca dos objetivos da descentralização do poder administrativo.
CONCLUSÃO
Como resultado desta política positivada na Lei Maior obteve-se o fortalecimento dos governos subnacionais, especificamente os dos Estados-membros, o que obstaculiza o governo federal de criar soluções efetivas para problemas nacionais, relativos à unidade social. Quer dizer, o consenso constitucional ao qual se chegou, na Assembleia Nacional Constituinte iniciada em 1º de fevereiro de 1987, não alcançou um consenso sobreposto com relação à repartição de competências.
A autonomia dos estados-membros, independentemente das suas qualidades ou defeitos, e aqui não se entra nesse mérito, é utilizada contra a própria unidade federal, o que atinge frontalmente a estabilidade das instituições na visão Rawlsiana. Exemplo recente disso é a chamada guerra fiscal, na qual os Estados-membros oferecem vantagens tributárias às empresas que neles fixarem domicilio, em evidente detrimento da unidade federativa que acaba por enfraquecer. Parece que as doutrinas abrangentes professadas por aqueles que chefiam os Estados-membros não são capazes de endossar o consenso constitucional de 1988.
Referências
BASTOS, Celso Riberio. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
CÓDIGOS 3 em 1 – Tributário, Processo Civil e Constituição Federal + Legislação Complementar. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
NEDEL, José. A Teoria Ético-política de John Rawls: Uma Tentativa de Integração de Liberdade e Igualdade. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000.
NOVELINO, Marcelo. Artigos 25 ao 28. In BONAVIDES, Paulo, MIRANDA, Jorge, AGRA, Walber de Moura (coords.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
OLIVEIRA, Neiva Afonso. Rousseau e Ralws: Contrato em Duas Vias. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000.
RAWLS, John. O Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2000.
_____. Justiça como Equidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SADEK, Maria Tereza. O Pacto Federativo em Questão. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v15n42/1747.pdf. Acesso em 20 mar. 2014.
WEBER, Thateu. Ética e Filosofia do Direito: Autonomia e Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro. Vozes, 2013.
Notas:
Mestre em Direito pela PUCRS; Professor de Direito na Graduação da Ulbra e no de Pós-Graduação em Direito Tributário e Empresarial da UniRitter como Convidado
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