A responsabilidade civil do estado pela prática de atos jurisdicionais no direito positivo brasileiro

Resumo: Pretende verificar se os atos estatais praticados, por intermédio de um juiz, no exercício da atividade jurisdicional, que causem danos a terceiros, poderão dar ensejo a uma compensação econômica, a ser paga pelo Estado ao lesado a título de indenização. Perquire acerca da existência ou não de uma responsabilidade civil do Estado em virtude da pratica de um ato jurisdicional, para em sequência, superada e tida como verdadeira essa premissa, verificar sob qual forma e em que medida tal responsabilidade se apresenta. Conclui que o Estado responderá civilmente pela prática do ato jurisdicional lesivo desde que decorrente de erro judicial ou que acarretem a manutenção de alguém preso além do tempo fixado na sentença, de forma objetiva e com base na teoria do risco administrativo. Assenta ainda, que a expressão erro judicial possui conteúdo aberto que deve ser preenchido pela legislação infraconstitucional. Firma, por fim, que a responsabilidade do juiz não pode ser aferida em face daquele que sofre o dano, mas apenas, com relação ao Estado, por intermédio de ação regressiva por ele manejada.

Palavras chave: Responsabilidade civil do Estado. Função jurisdicional. Direito administrativo.

INTRODUÇÃO

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Seres gregários que somos vivemos todos em sociedade interagindo uns com os outros de forma incessante. Tais interações, que se consubstanciam em condutas comissivas ou omissivas, podem vir a interferir de modo positivo ou negativo nos bens ou interesses de outras pessoas.

Ocorre que, por vezes, na interação entre os indivíduos uma das partes tem sua situação piorada em razão da atuação da outra, que com seu agir acaba por tornar instável e desigual a relação social por elas mantida, surgindo o dever desta última de recompor a estabilidade social perdida através de uma prestação em favor da outra parte como forma de compensá-la pela piora que lhe foi impingida.

 Ora, se alguém causa lesão a outrem, é contitio sine qua non para a manutenção da pacífica convivência em sociedade, que aquele que causou danos a outrem os repare, como forma de restabelecer a convivência harmônica entre ele e o lesado, reequilibrando a relação de paridade que pré-existia entre ambos.

Assim para a manutenção da convivência social exige-se que o Direito imponha aos cidadãos regras, que devem ser encaradas não como simples recomendações de ordem moral, mas como deveres jurídicos que geram obrigações e, conforme o ramo do Direito a que tais regras estejam ligadas: Civil, Penal, Administrativo etc., falamos em responsabilidade civil, penal, administrativa etc.

Nessa linha, a responsabilidade civil nada mais é do que o dever jurídico, que assenta raízes nos cânones do Direito Civil, que surge para aquele que descumpre um dever jurídico inicial criador de uma obrigação.

Registre-se que o dever jurídico que dá substância à responsabilidade civil se plasma na obrigação de reparar economicamente o dano sofrido por outrem.

È possível afirmar que para a existência da responsabilidade civil, faz-se necessária a preexistência de um dever jurídico cujo descumprimento gerará o dever de indenizar e conforme a origem deste dever jurídico classificamos a responsabilidade civil em contratual, quando ele advir de uma avença entre as partes ou, extracontratual, quando sua gênese for debitada à Lei.

No trabalho em apreço nos debruçaremos sobre uma hipótese de responsabilidade civil do Estado na qual investigaremos se em um determinado caso, o Estado, por violar um dever jurídico preexistente, poderá ou não ser responsabilizado civilmente.

Pretendemos, mais especificamente, verificar se os atos estatais praticados, por intermédio de um juiz, no exercício da atividade jurisdicional, que causem danos a terceiros, poderão dar ensejo a uma compensação econômica, a ser paga pelo Estado ao lesado a título de indenização.

Em tempo, incumbe-nos ressalvar, merecerá nossas atenções apenas a responsabilidade estatal de natureza extracontratual, ficando excluída a responsabilidade contratual do Estado que não guarda qualquer pertinência com o tema proposto.

Dentre as múltiplas hipóteses em que se revela possível perquirir a existência da responsabilidade civil estatal, como forma de cingir nossa análise, escolhemos aquela cujo dano é causado em virtude da pratica de um ato jurisdicional, o qual deve ser entendido como sendo o praticado pelo Poder Judiciário no exercício da função jurisdicional.

Basicamente, o Estado possui três funções bem delineadas, quais sejam: a administrativa, a legislativa e a jurisdicional, sendo que é nesta última, conforme já deixamos transparecer, que concentraremos nossas atenções.

Na senda dessas idéias é que buscaremos analisar em todos os seus meandros o tema proposto, primeiro perquirindo acerca da existência ou não de uma responsabilidade civil do Estado em virtude da pratica de um ato jurisdicional, para em seqüência, superada e tida como verdadeira essa premissa, verificarmos sob qual forma e em que medida essa responsabilidade se apresenta.

Para tal desiderato, lançaremos mão do método descritivo analítico e teremos por aporte a realização de pesquisa bibliográfica que abrangerá desde a pura análise de textos doutrinários e jurisprudenciais, até a exegese de alguns dispositivos espalhados no ordenamento jurídico pátrio.

Nesse mister, dividiremos o presente trabalho monográfico em quatro capítulos, sendo que inicialmente trataremos de indicar os conceitos básicos para a exata compreensão do tema proposto e para o desenrolar da pesquisa.

Após, vislumbraremos a evolução dogmática da responsabilidade civil do Estado em geral, partindo do estudo de teorias primitivas, calcadas em elementos não racionais e que sustentavam a inexistência de tal responsabilidade, até chegarmos às propostas contemporâneas que não só admitem a possibilidade de se responsabilizar civilmente o Estado pelos danos oriundos de sua atividade, como também, propõem que para tal responsabilização basta que a vítima simplesmente demonstre a existência de nexo causal entre o dano por ela sofrido e a atividade estatal.

Em seqüência, partindo da Constituição Imperial de 1824, verificaremos como a legislação brasileira enfrentou a temática da responsabilidade civil do Estado até chegarmos ao atual estágio de desenvolvimento quando, com ordem jurídica inaugurada pela Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1988, mormente através do seu artigo 37, § 6º, quando ocorre seu apogeu através da implementação da teoria da responsabilidade objetiva com base no risco administrativo.

Por fim, com sustentáculo no aporte teórico angariado, investigaremos no quarto capítulo se é realmente possível responsabilizar-se civilmente o Estado pelos danos oriundos de um ato jurisdicional.

1 CONCEITOS PRELIMINARES

Para melhor compreendermos como se processa a responsabilidade civil do Estado em razão da pratica de um ato jurisdicional, em todos os seus aspectos, parece-nos ser pertinente patentearmos qual é a concepção de que temos acerca de cada um dos termos que compõe o título deste trabalho.

Assim, adiante discorremos, ainda que brevemente, acerca dos conceitos necessários para a exata compreensão da problemática suscitada e, com o entendimento dos quais, angariaremos substrato teórico suficiente para podermos avançar com maior fluidez e profundidade em nossas análises.

1.1 Da responsabilidade

O substantivo feminino responsabilidade tem sua origem no verbo latino spondere, que significa prometer, comprometer, garantir, mais precisamente no seu presente ativo spondeo, termo este que era utilizado no direito romano para designar a vinculação do devedor nos contratos verbais.

A Responsabilidade pode ser moral ou jurídica, conforme haja violação de regras morais ou de normas jurídicas. Porém, interessa-nos aqui apenas a responsabilidade jurídica, pois que a puramente moral, uma vez que viola tão somente as regras extraídas da cultura, educação, tradições etc. de um povo, tem atuação restrita à esfera da consciência individual, não se exteriorizando socialmente e, por conseguinte, seu cumprimento não é dotado de obrigatoriedade.

A responsabilidade jurídica, por seu turno, implica necessariamente na existência de alguém que deve responder perante a ordem jurídica em razão da prática anterior de um fato. Assim, é preciso primeiro que se verifique a ocorrência de um fato, consubstanciado em uma conduta humana comissiva ou omissiva, que será responsável por gerar a responsabilidade; em segundo lugar, é necessário que seja possível imputar tal fato a um indivíduo que seja capaz de responder por ele juridicamente.

Alerta JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO que:

“No que diz respeito ao fato gerador da responsabilidade, não está ele atrelado ao aspecto da licitude ou ilicitude. Como regra, é verdade, o fato ilícito é que acarreta a responsabilidade, mas, em ocasiões especiais, o ordenamento jurídico faz nascer a responsabilidade até mesmo de fatos lícitos. Nesse ponto, a caracterização do fato como gerador da responsabilidade obedece ao que a lei estabelecer a respeito”.[1]

Atribui-se a ALOIS RITTER VON BRINZ[2] a clássica distinção entre obrigação e responsabilidade, pois dizia o célebre professor alemão que a obrigação ou débito – shuld – representava o dever jurídico de realizar uma prestação que dependia de uma ação, comissiva ou omissiva, do devedor; já a responsabilidade – haftung – surgia com o descumprimento da obrigação e permitia ao credor buscar no patrimônio do devedor uma indenização que representaria uma recompensa pelos prejuízos decorrentes de tal descumprimento.

Enquanto a obrigação consiste no dever que tem o causador do dano de cumprir determinada prestação que lhe é exigida pelo lesado, a responsabilidade pode ser conceituada como sendo o resultado jurídico-patrimonial decorrente do descumprimento de uma obrigação. Nessa linha, é possível concluir que a obrigação constituirá sempre um dever jurídico originário e a responsabilidade será sempre um dever jurídico sucessivo, que decorre do desrespeito daquela.

Não obstante, é possível existir obrigação sem responsabilidade, tal como ocorre nas obrigações naturais; como também é possível se falar em responsabilidade sem que exista obrigação, como ocorre com o fiador.

1.2 Espécies de responsabilidade jurídica

A responsabilidade jurídica que é aquela que surge em razão da violação de uma norma jurídica, pode ser subdividida em espécies distintas, conforme a natureza da norma jurídica infringida; assim, teremos a responsabilidade administrativa quando houver desrespeito a uma norma de direito administrativo, responsabilidade penal quando a norma em questão for penal e, da mesma forma, responsabilidade civil quando estivermos diante de uma violação de norma de direito civil.

Ante a autonomia de que gozam as normas que compõe os mais diversos ramos do Direito, é possível inferir que as responsabilidades nascidas com as suas violações também serão dotadas de autonomia, de sorte que, como uma não implica na outra, será possível conjuga-las nas hipóteses em que a conduta transgredir normas pertencentes a mais de um ramo do Direito, sendo plenamente plausível a verificação de casos em que uma única conduta dê origem à responsabilidade administrativa, penal e civil.

Exemplifica JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO dizendo que no crime de peculato “o servidor que se apropria indevidamente de bem público sob sua custódia tem, cumulativamente, responsabilidade penal, civil e administrativa, porquanto sua conduta violou, simultaneamente, esses três tipos de norma”.[3]

1.3 Da responsabilidade civil

A responsabilidade civil surge com a prática de um fato jurídico humano que causa indevido prejuízo a outrem e se consubstancia no dever do causador do dano a repara-lo através de uma justa indenização.

Ressalte-se que a responsabilidade civil não se origina apenas do fato jurídico humano ilícito, mas também do lícito e como prova disso temos o dever de reparar os danos praticados em estado de necessidade agressivo previsto no artigo 929 do Código Civil.

Hodiernamente é possível se afirmar que a responsabilidade civil deixou um pouco de lado sua raiz individualista e vem assumindo uma concepção mais solidarista como instrumento apto a restabelecer a paz social, na medida em que promove o equilíbrio entre as partes que foi perdido em razão do fato danoso e que é compensado através de uma indenização.

Ademais, a função social da responsabilidade civil pode ser visualizada em seu efeito preventivo de novos danos, uma vez que aquele que pratica o fato danoso em tese tenderia, ao ser por ele responsabilizado civilmente, a não reiterar sua conduta, evitando que outras pessoas viessem a sofrer prejuízo.

Conforme ensina CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

“Toda atividade que acarreta prejuízo traz em seu bojo, como fato social, o problema da responsabilidade. Destina-se ela a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano. Exatamente o interesse em restabelecer a harmonia e o equilíbrio violados pelo dano constitui a fonte geradora da responsabilidade civil. Pode-se afirmar, portanto, que responsabilidade exprime idéia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano.”[4]

Tradicionalmente a doutrina divide a responsabilidade civil em contratual e extracontratual sob o argumento de que na primeira existiria um contrato entre as partes e na segunda não. Levada tal diferenciação para a órbita da responsabilidade civil do Estado, podemos afirmar que, enquanto a responsabilidade contratual do Estado é aquela que deriva dos contratos por ele celebrados, a extracontratual provém das atividades estatais sem que haja um vinculo contratual.

Em que pese tal distinção não produzir qualquer efeito prático, para os fins do presente trabalho, que tem por escopo aferir a responsabilidade civil do Estado em razão de um dano causado pela prática de um ato jurisdicional, cuidaremos apenas da responsabilidade extracontratual do Estado.

1.4 Responsabilidade civil do Estado e Responsabilidade civil da Administração Pública

Há autores de escol e dentre eles se destaca HELY LOPES MEIRELES que defendem que a expressão escorreita para designar a espécie de responsabilidade civil que passamos a tratar seria responsabilidade civil da Administração Pública e, justifica tal opção com o seguinte argumento:

“Preferimos a designação responsabilidade civil da Administração Pública ao invés da tradicional responsabilidade civil do Estado, porque, em regra, essa responsabilidade sugere de atos da Administração, e não atos do Estado como entidade política. (…) Mais próprio, portanto, é falar-se em responsabilidade da Administração Pública do que em responsabilidade do Estado, uma vez que é da atividade administrativa dos órgãos públicos, e não dos atos de governo, que emerge a obrigação de indenizar”.[5]

Sem embargos de tal entendimento, conforme o próprio título de nosso trabalho sugere, optamos pelo termo Estado em detrimento do vocábulo Administração, pois é o Estado, e não a Administração, quem possui personalidade jurídica e, por conseguinte, detém aptidão para titularizar direitos e contrair obrigações na esfera civil.

Nesse sentido, orienta MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO que “(…) é errado falar em responsabilidade da Administração Pública (…) A capacidade é do Estado e das pessoas jurídicas públicas ou privadas que o representam no exercício de parcela de atribuições estatais.”[6]

1.5 Atos jurisdicionais e atos judiciários

Basicamente, o Estado possui três funções bem delineadas, quais sejam: a administrativa, a legislativa e a jurisdicional, sendo que é nesta última, conforme já deixamos transparecer, que concentraremos nossas atenções.

Entenda-se por função jurisdicional como sendo aquela função do Estado através da qual ele exerce seu poder-dever de aplicar o Direito ao caso concreto solucionando um conflito de interesses. Já o ato jurisdicional deve ser entendido como sendo aquele praticado pelo Poder Judiciário no exercício da função jurisdicional.

Vale dizer que atos jurisdicionais, que são aqueles praticados no exercício da atividade jurisdicional, não se confundem com atos judiciários, pois que, enquanto os primeiros se referem aos atos praticados pelo magistrado no exercício da função jurisdicional, a expressão atos judiciários compreende aqueles atos praticados dentro da estrutura do Poder Judiciário, mas com viés puramente administrativo.

Conforme ensina JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO atos judiciários são:

“(…) os atos de todos os órgãos de apoio administrativo e judicial do Poder Judiciário, bem como os praticados por motoristas, agentes de limpeza e conservação, escrivães, oficiais cartorários, tabeliães e, enfim, de todos aqueles que se caracterizam como agentes do Estado. (…) de outra banda, explica referido mestre, que os atos jurisdicionais “são aqueles praticados pelos magistrados no exercício da respectiva função. São afinal, os atos processuais caracterizadores da função jurisdicional, como despachos, as decisões interlocutórias e as sentenças(…)·”

A distinção é pertinente, pois se no tocante aos atos judiciários incidirão as regras gerais da responsabilidade civil objetiva do Estado, o que significa dizer que a reparação civil dos danos causados por um ato judiciário se dará através da aplicação da regra geral prevista no artigo 37, § 6º da Constituição, ou seja, a responsabilidade civil do Estado será objetiva com base na teoria do risco administrativo.

 Já no que tange aos danos decorrentes da prática de um ato jurisdicional tal certeza não existe, pois como veremos pululam na doutrina e jurisprudência pátria, entendimentos dos mais variados matizes, podendo ser encontrados desde posicionamentos mais conservadores que sustentam inexistir na hipótese responsabilidade civil estatal, até entendimentos mais radicais que pregam em tais casos que a responsabilidade do Estado é objetiva e, portanto, independe, sequer, da comprovação de dolo e culpa.

2. EVOLUÇÃO TEÓRICA

Tal como ocorre, ordinariamente, com todos os institutos jurídicos a responsabilidade civil do Estado foi submetida, com o perpassar do tempo, aos mais diversos regramentos, partindo de um estágio de total repulsa, quando se vaticinava a irresponsabilidade estatal, passou ela por uma fase subjetiva, na qual se exigia, para que o dano fosse reparado, a demonstração de dolo ou culpa, até chegar em seu ponto culminante, nos dias de hoje, com a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva, segundo a qual basta para a responsabilização a demonstração de que existe um nexo de causa e efeito entre o dano sofrido e a conduta estatal.

Nos tópicos subseqüentes passamos a examinar detidamente cada uma das teorias disciplinadoras da responsabilidade civil do Estado, verificando o momento histórico em que foram erigidas, suas bases teorias e suas conseqüências práticas.

2.1 Teoria da irresponsabilidade do Estado:

Na época dos Estados absolutistas prevalecia o dogma segundo o qual os governantes, cujos poderes, acreditavam-se, advirem de Deus, não cometiam erros e por isso não poderiam ser responsabilizados pelos atos praticados pelos seus agentes, estes sim, sujeitos que eram aos erros, deveriam arcar com toda a responsabilidade pelos atos que praticavam.

A infalibilidade governamental, secularizada em regras tais como “O rei não erra” – “The King can do no wrong” ou “le roi ne peut mal faire” -, “O Estado sou eu” – L´état c´es moi –, ou “o que agrada ao príncipe tem força de lei” – “quod principi placuit habet legis vigorem” – , conduziam ao entendimento segundo o qual Estado e agente eram pessoas distintas e que por isso, ainda quando este último atuava transcendendo os lindes dos poderes que lhes eram outorgados, ou, mesmo quando agindo em consonância com sua competência, exercia os poderes que recebia de forma abusiva, não criava com seus atos qualquer responsabilidade para administração.

Tal construção, conforme observa MARIA SYLVIA ZANELA DI PIETRO, assenta-se no conceito de soberania, de sorte que o “(…) Estado dispõe de autoridade incontestável perante o súdito; ele exerce a tutela do direito, não podendo, por isso, agir contra ele(…)” Assim, qualquer “(…)responsabilidade atribuída ao Estado significaria colocá-lo no mesmo nível que o súdito, em desrespeito a sua soberania”.[7]

Não obstante, sustentava-se, ainda nessa época, como forma de justificar a irresponsabilidade civil do Estado por atos praticados por seus agentes, a idéia de que se responsabilizar pecuniariamente a Administração em virtude de atos praticados por seus servidores implicaria em um enorme obstáculo à própria prestação dos serviços estatais e, por conseguinte, prejudicaria toda a coletividade.

Conforme se percebe, a teoria da irresponsabilidade era fonte da qual vertia apenas injustiças, pois, ao pespegar ao agente público o dever de reparar o prejuízo sobrevindo de uma ação ou omissão Estatal olvidava-se que, em sendo o Estado um ente dotado de personalidade jurídica, é ele titular de direitos e obrigações, devendo por isso responder por seus atos.

Nessa linha de idéias, seria ilógico admitir-se que em sendo o Estado o guardião supremo do Direito, que ele pudesse permitir que aquele que sofreu prejuízos e teve seus direitos violados em razão da atuação estatal ficasse desamparado e não fosse por isso compensado[8].

Ademais, ante a evidente limitação financeira dos agentes públicos, não raras vezes, a vítima é quem arcava com as conseqüências oriundas da ação ou omissão estatal, pois, em sendo o agente público insolvente, restava àquela amargar em silêncio o prejuízo, não havendo a quem recorrer.

Conforme noticia CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO[9] , a primeira vez em que se reconheceu que o Estado deveria ser responsabilizado civilmente, ainda que de forma limitada, foi em 1873, no chamado aresto Blanco, no qual, Agnès Blanco, à época com 5 anos de idade, ao passar em frente a uma fábrica de processamento de tabaco, foi atropelada e ferida gravemente por um vagonete que saiu subitamente de dentro do estabelecimento, tendo uma perna amputada.

O vagonete pertencia a uma empresa estatal de manufatura de tabaco de Bourdeax e era conduzido por quatro empregados.

Inconformado, o pai da menina, Jean Blanco, ingressou, em 24 de janeiro de 1872, no tribunal de justiça (civil) com uma ação de reparação de danos contra o Estado, alegando a responsabilidade civil patrimonial pela falta cometida por seus quatro empregados. A chamada faut du service. Ao final, prevaleceu a decisão do Conselho do Estado que concedeu uma pensão vitalícia à vítima, lançando, assim, as bases da Teoria do Risco Administrativo que estabelece a responsabilidade objetiva do Estado por danos causados pelos seus agentes.

Contudo, a derrocada formal da teoria da irresponsabilidade civil do Estado iniciou-se de fato setenta e três anos depois, em 1946, e teve como palco os Estados Unidos da América, que por intermédio do Federal Tort Claim Act, franqueou a possibilidade aos particulares, em alguns casos, de buscar a responsabilização direta do Estado, desde que ele tivesse agido com dolo ou culpa. Era a gênese da responsabilidade subjetiva do Estado.

Um ano depois, em 1947, a Inglaterra, através do Crown Proceeding Act, passou a admitir que a Coroa fosse responsabilizada pelos atos praticados pelos seus agentes desde que houvesse a comprovação de que ela tivesse infringido os deveres inerentes à relação entre patrão e empregado, ou aos deveres ordinários que todas as pessoas possuem com relação à propriedade.

2. 2 Teoria civilista da culpa

Uma vez constatadas as injustiças geradas pela teoria que pregava a impossibilidade de se responsabilizar civilmente o Estado por suas ações e omissões, e ante a percepção de que a teoria da irresponsabilidade constituía a própria negação do Direito, passou-se a admitir uma responsabilidade estatal limitada, já que calcada na culpa do agente público e no arcabouço teórico que rege a responsabilidade por fato de terceiro.

Encampavam-se, assim, princípios próprios do direito privado, amparados pelo conceito de culpa em sentido amplo[10] como forma de aquilatar a responsabilidade estatal e, em razão disso, tal teoria é classificada como teoria civilista da culpa ou da responsabilidade subjetiva.

Para aferir a responsabilidade civil do Estado, os adeptos desta teoria, propunham que a atividade estatal poderia ser resumida em dois tipos de atos: atos de império e atos de gestão.

Os atos de império decorrem da própria soberania estatal, expressam a vontade onipotente do Estado e seu poder de coerção. Regidos por um regramento extraordinário que tem por cânones a supremacia e a indisponibilidade do interesse público, são impostos unilateralmente ao particular que, independentemente da sua vontade ou de chancela judicial, deve a eles se submeter.

 Já os atos de gestão, são aqueles que para serem praticados pelo Estado dependem da adesão do particular que com ele estabelece um vinculo jurídico, de forma sinalagmática, em pé de igualdade e sem qualquer coerção.

Na esteira dessas considerações, entendia-se que se o Estado praticasse um ato de gestão ele poderia ser civilmente responsabilizado, já que atuava à semelhança de um particular; porém, acaso praticasse um ato de império, estaria imune a qualquer responsabilização, em virtude de ser a hipótese regida por normas exorbitantes que protegem a figura estatal como forma assegurar o interesse coletivo. Ademais, estabelecia-se uma dicotomia entre a figura do Rei, que nunca errava, com a figura do Estado que pratica atos de gestão por intermédio dos seus agentes.

Malgrado essa teoria constituir um avanço em relação à que propunha a total irresponsabilidade do Estado, ela peca não só por cindir, por puro capricho, a personalidade do Estado, sem um embasamento racional convincente, mas também por tentar abarcar na categoria de atos de gestão todos aqueles atos praticados pelo Estado, ainda que não o sejam em situação de supremacia.

Ademais, cabe-nos registrar que, conforme pondera JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO essa mitigação da teoria da irresponsabilidade do Estado:

“(…)provocou grande inconformismo entre as vítimas de atos estatais, porque na prática nem sempre era fácil distinguir se o ato era de império ou de gestão. Ao mesmo tempo, a jurisprudência procurava distinguir, de um lado as faltas do agente atreladas à função pública e, de outro, as faltas dissociadas de sua atividade. Logicamente, tais critérios tinham mesmo que proporcionar um sem-número de dúvidas e confusões.”[11]

2.3 Teoria organicista

A teoria organicista ou teoria do órgão decorre do trabalho de OTTO FRIEDRICH VON GIERKE, mormente do que ele nomeia de princípio da imputação volitiva, que traduz a idéia segundo a qual as ações praticadas pelos agentes públicos devem ser atribuídas à pessoa jurídica a qual eles estejam vinculados.

Afirma o jurista da província de Sttetin que as repartições estatais estão para o Estado, assim como os órgãos estão para o corpo humano, de sorte a permitir que se conclua que os órgãos públicos e, por conseguinte, os agentes que os integram, tomados em sua individualidade, não constituem de per si o Estado, mas conferem forma, quando em conjunto, ao corpo estatal.

Como bem observa SÉRGIO CARVALIERI FILHO, ao tratar da teoria do órgão:

“O Estado é concebido como um organismo vivo, integrado por um conjunto de órgãos que realizam as suas funções. Organismo traduz-se num conjunto de partes, às quais correspondem outras tantas funções que, combinadas, servem a manter o todo; mas cada uma das partes, separadamente, não tem função alguma, não desempenha nenhum fim fora do organismo em que se integra”.[12]

O Estado, enquanto pessoa jurídica, não possui realidade concreta, não passando de um ente ficcional que por isso necessita dos seus agentes para agir e manifestar sua vontade. Nada obstante, as manifestações volitivas e as ações dos agentes públicos atuantes nos órgãos públicos, não podem ser a estes atribuídas, mas sim, ao próprio Estado que os representa.

Frente a tais constatações e tendo em conta que a personalidade jurídica é uma aptidão do todo, seja do corpo humano ou do Estado, e não de suas partes integrantes, dos seus órgãos; a responsabilidade advinda da conduta do agente público haveria de ser atribuída ao órgão em que ele atua como expressão da vontade deste, mas, em sendo o órgão uma fração do todo que é o Estado é este, em última análise, quem deve ser responsabilizado civilmente pelo agir ou pela vontade manifestada pelo agente.

Enfim, da mesma forma que a responsabilidade por um disparo de arma de fogo que atinge alguém, não é do revólver e tampouco da mão que atira ou do dedo que aciona o gatilho, mas do corpo do atirador considerado como um todo; a responsabilidade pelo ato praticado pelo agente público, não é dele, nem apenas do órgão do qual ele faz parte, mas do Estado enquanto ente dotado de compleição e existência autônomas.

2.4 Teoria da culpa do serviço público

A teoria da culpa do serviço público, também conhecida como da culpa administrativa, da culpa anônima ou do acidente administrativo, ganha corpo com os estudos de PAUL DUEZ[13] que intentando demonstrar que a responsabilidade do Estado não se confunde com a responsabilidade do agente público, prega que aquele que sofre um prejuízo em razão da atuação estatal, para ser ressarcido, não estaria adstrito à identificação do agente público cujo ato lhe causou dano, mas apenas deveria demonstrar que o serviço não funcionou, funcionou mal ou funcionou atrasado, pois nessas hipóteses ocorreria o que se convencionou chamar de culpa do serviço[14] que de per si possui o condão de gerar a responsabilidade civil estatal, independentemente da análise que se faça da conduta do agente público.

A teoria em apreço cinde a responsabilidade pela causação do dano, colocando de um lado a culpa individual do agente público, que gerava sua responsabilidade individual, e de outro a da culpa anônima, pela qual pouco importa quem era o agente, pois a responsabilidade de reparar o dano exsurge como decorrência da culpa do Estado.

Registre-se que a teoria da culpa do serviço não anuncia a responsabilidade objetiva do Estado, ao revés, exige-se, para a configuração da responsabilidade estatal de reparar o dano, que se demonstre que o serviço não funcionou ou funcionou de forma não adequada, sendo imprescindível, portanto a demonstração da culpa.

A origem da confusão que fazem alguns autores, ao catalogar a teoria da culpa do serviço como sendo uma hipótese de responsabilidade objetiva, segundo a lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO se deve à equivocada tradução da palavra francesa faute, pois segundo adverte o citado professor, no Brasil e em alguns países a palavra foi traduzida como “falta” a significar ausência, o que leva à equivocada idéia de algo objetivo, quando, em verdade, faute corresponde em vernáculo à palavra “culpa”.

O entrave da teoria em tela reside principalmente na dificuldade do particular, que além de ter sofrido o dano, para se ver ressarcido, deveria demonstrar que o serviço não funcionou ou funcionou de forma inadequada, o que, por vezes, beirava as raias do impossível.

2.5 Teoria da responsabilidade objetiva do Estado

Não demorou muito tempo para se perceber que a necessidade de se comprovar a culpa do Estado na causação do dano constituía um entrave quase que intransponível para o administrado que, no mais das vezes, ante a dificuldade da prova, era quem tinha que arcar com prejuízos.

Pontua SÉRGIO CARVALIERI FILHO que os juristas “(…) constataram que, se a vítima tivesse que provar a culpa do causador do dano, em numerosíssimos casos ficaria sem indenização, ao desamparo(…)”.[15]

Esta situação de irrefragável injustiça colocava em cheque a aplicação da teoria subjetiva para grande parte dos danos causados aos particulares pelo Estado, exigindo-se a elaboração de uma nova teoria que se desvelasse apta a resolver os conflitos em questão de forma mais justa.

A teoria da responsabilidade objetiva do Estado desponta como sendo uma maneira mais justa de responsabilizar-se o Estado pelos danos por ele causados, na medida em que retira das costas da vítima o encargo de comprovar a culpa estatal na ocorrência do evento danoso. É objetiva, em contraposição à subjetiva, precisamente por dispensar a análise dos elementos subjetivos: dolo e culpa em sentido estrito.

Ressalte-se que pela sistemática da responsabilidade objetiva a vítima do evento danoso esta dispensada de comprovar a culpa do Estado, bastando que demonstre a existência de nexo causal entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo por ela experimentado, sendo irrelevante a identificação do agente, que o serviço público tenha funcionado mal ou que não tenha sequer funcionado.

O fundamento da responsabilidade objetiva do Estado esta na necessária distribuição dos ônus advindos do exercício das atividades próprias do Estado, que, como se sabe, são exercidas em proveito de toda a sociedade, de sorte que se desvela justo que todos aqueles que dela se beneficiem, e na apenas um ou alguns administrados, sejam compelidos a arcar de forma com seus ônus.

Nesse diapasão, e com a didática que lhe é peculiar, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO assevera que:

“Essa doutrina baseia-se no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais: assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário público”.[16]

A teoria da responsabilidade objetiva do Estado possui duas vertentes principais: a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral, as quais passamos a analisar nos tópicos subseqüentes.

2.5.1 Teoria do risco administrativo

Como forma de conferir embasamento teórico à teoria da responsabilidade objetiva é que no final do século XIX, os estudiosos debruçaram-se sobre o tema e desenvolveram a teoria do risco, que, logo em seguida, foi adaptada para atividade pública, cominando, por obra do pensamento de LÉON DUGUIT[17], com a teoria do risco administrativo.

Entende-se risco como sendo a possibilidade de que um dano venha a ocorrer, de modo que aquele que exerce uma atividade na qual o perigo de dano seja inerente tem o dever de reparar os prejuízos que terceiros sofrerem em decorrência do exercício de sua atividade.

É assente que a atividade estatal é fonte geradora de risco para os particulares, ou seja, é possível e provável que, como decorrência do exercício de tal atividade, alguns administrados venham a sofrer algum tipo de dano e, em razão disso e tendo em conta que as condutas do Estado visam o bem comum, a socialização dos prejuízos decorrentes da atividade estatal se mostra como sendo a medida mais justa.

Assim, para a teoria do risco administrativo o dever de indenizar decorre tão somente do dano causado pelo Estado ao particular, não sendo necessário demonstrar mais nada, uma vez que o dever de indenizar decorre diretamente da existência da lesão, bastando que se demonstre a existência de um liame psicológico entre a conduta estatal e a lesão sofrida.

Em suma, arremata SÉRGIO CARVALIERI FILHO dizendo que:

“a teoria do risco administrativo importa atribuir ao estado a responsabilidade pelo risco criado pela sua atividade administrativa. Esta teoria, como se vê, surge como expressão concreta do princípio da igualdade dos indivíduos diante dos encargos públicos. É a forma democrática de repartir os ônus e encargos sociais por todos aqueles que são beneficiados pela atividade da Administração Pública. Toda lesão sofrida pelo particular deve ser ressarcida, independentemente de culpa do agente público que a causou. O que se tem que verificar é, apenas, a relação de causalidade entre a ação administrativa e o dano sofrido pelo administrado”.[18]

Ressalte-se que a teoria do risco administrativo, no que difere da teoria do risco integral, admite a exclusão da responsabilidade quando presentes uma das suas eximentes, quais sejam: culpa da vítima, culpa de terceiros, caso fortuito e força maior.

2.5.2 Teoria do risco integral

Pela teoria do risco integral, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado é elevada ao paroxismo, uma vez que essa modalidade é radical a ponto de sustentar que o Estado é responsável por indenizar todo e qualquer dano que o particular venha a sofrer, ainda quando esse dano decorra de dolo ou culpa da própria vítima.

Conforme se disse, a teoria do risco integral, ao contrário da teoria do risco administrativo, não admite a exclusão da responsabilidade do Estado, ainda quando se verifique que o dano foi causado por culpa da vítima, por culpa de terceiros, caso fortuito ou força maior e, por ser tão radical, acaba por ser impraticável.

3. A RESPONSABILDIADE ESTATAL NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

No Brasil a tese da irresponsabilidade do Estado nunca teve guarida, de fato a legislação pátria, de forma uníssona, sempre aceitou a idéia de que o Poder Público deveria ser responsabilizado pelos danos que viessem a causar, não obstante existirem divergências, elas se restringem à maneira e extensão em que esta responsabilização se processa.

3.1 A responsabilidade civil do Estado nas constituições brasileiras

Em que pese nunca termos adotado a tese da irresponsabilidade, a Constituição de 1824, em seu artigo 129, ainda com o ranço da idéia de infalibilidade do governante, reafirmava a inviolabilidade do soberano, eximindo de qualquer responsabilidade, não só o imperador, mas também, aquele que então viesse a ocupar a sua regência. Preceituava o citado dispositivo que: “Nem a Regência, nem o Regente será responsável.”

Já no artigo 179, XXIX, a Constituição de 1824, estabelecia a responsabilidade dos agentes públicos pelos atos abusivos que praticassem no exercício de suas funções. Vejamos, in verbis:

“ XXIX. Os Empregados Públicos são strictamente responsáveis pelos abusos, e omissões praticadas no exercício das suas funcções, e por não fazerem effectivamente responsáveis aos seus subalternos”.

Já no artigo 179, XXVII, a Constituição Imperial estabelecia, salvo melhor juízo, uma forma de responsabilidade objetiva do agente público que compusesse a administração dos correios em razão de qualquer violação do segredo das correspondências. Diz o inciso: “XXVII. O Segredo das Cartas é inviolável. A Administração do Correio fica rigorosamente responsável por qualquer infracção deste Artigo.”

Em seu artigo 82 a Constituição Republicana de 1891, traz texto semelhante ao do artigo 179, XXIX da Constituição de 1824, acrescentando apenas que o agente público será responsabilizado ainda, quando deixar de responsabilizar os seus subalternos. Vejamos:

“Art 82 – Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos”.

Conforme se percebe, as Constituições de 1824 e 1891 não tratavam de forma expressa da responsabilidade civil do Estado, mas se limitava a disciplinar a responsabilidade do agente público por atos praticados no exercício de suas funções.

Contudo, não é correto se pensar que nesse tempo se professava a absoluta irresponsabilidade estatal, ao contrário, citados dispositivos devem ser lidos e interpretados à luz da teoria da responsabilidade civil, de sorte que era assente que o Estado só responderia por atos praticados por seus prepostos se, e somente se, provado que ele tivesse agido com culpa.

Nesse diapasão, adverte SÉRGIO CARVALIERI FILHO que os dispositivos das Constituições de 1824 e 1891:

“(…) jamais foram considerados como excludentes da responsabilidade do Estado e consagradores apenas da responsabilidade pessoal do funcionário. Entendia-se haver solidariedade do estado em relação aos atos de seus agentes. (…) Cuidava-se, todavia, de responsabilidade fundada na culpa civil, para cuja caracterização era indispensável à prova da culpa do funcionário. O Estado só respondia pelos danos decorrentes de atos praticados por seu funcionário se provado restasse ter esse agido com negligência, imprudência ou imperícia”[19].

Em complemento e corroborando com tal entendimento, MARIA SYLVIA ZANELA DI PIETRO, no informa que:

“nesse período, contudo, havia leis ordinárias prevendo a responsabilidade do Estado, acolhida pela jurisprudência como sendo solidária com a dos funcionários; era o caso dos danos causados por estrada de ferro, por colocação de linhas telegráficas, pelos serviços de correio”[20].

A adoção expressa em um texto constitucional da teoria da responsabilidade civil do Estado, com a já consolidada solidariedade entre Estado e agente público, veio com a constituição de 1934, que em seu artigo 171 dispunha que:

“Art 171 – Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos. 

§ 1º – Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte. 

§ 2º – Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário culpado.”

A Constituição Federal de 1937 trazia dispositivo semelhante, asseverando em seu artigo 158 que:

“Art 158 – Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos.”

A Constituição de 1946 representou um grande avanço acerca da responsabilidade civil do Estado, uma vez que abandou a responsabilidade calcada na culpa para adotar a tese da responsabilidade objetiva do Estado, o que fez em seu artigo 194, que diz o seguinte:

Art 194 – As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

“Parágrafo único – Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.”.

Conforme se percebe o texto constitucional não faz qualquer referência à culpa quando estabelece, no caput, a responsabilidade o Estado em ressarcir os danos causados a terceiros, no entanto, logo em seguida, no parágrafo único, diz que a ação regressiva do Estado em face dos agentes públicos causadores do dano só será possível se estes tiverem agido com culpa. Logo, extrai-se do citado dispositivo que a culpa só é exigida para a ação regressiva, de modo que a vítima ao pretender que o Estado repare o dano que lhe causou não precisará demonstrar a existência de qualquer elemento subjetivo.

Desta feita, é possível se afirmar que a constituição de 1946 ao inaugurar a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva do Estado no direito pátrio o fez com base na teoria do risco administrativo, onde não se exige a comprovação de culpa e tampouco a demonstração de que o serviço não funcionou ou funcionou de forma inadequada – culpa anônima -, exigindo apenas que se demonstre o nexo causal entre a conduta estatal e o resultado danoso.

Outro não foi o tratamento dado ao tema durante o regime militar, primeiro pela Constituição de 1967 e logo em seguida pela Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, senão vejamos:

A Constituição de 1967 em seu artigo 105 estabelece que:

“Art 105 – As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que es seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

 Parágrafo único – Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.”

Já a Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, que para muitos se trata de uma nova constituição, entendimento este do qual não comungamos, estabelece que:

“Art. 107. As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.

Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.”

Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1.988 não se afastou da linha traçada pelas Constituições que a precedera e, em seu artigo 37, § 6º, adota a vertente publicista, mantendo a responsabilidade civil objetiva com base na teoria do risco administrativo. Diz a Constituição vigente no citado dispositivo que:

“§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

3.2 – A responsabilidade civil do Estado na Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1.988

A Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1988 trata da responsabilidade civil do Estado em seu artigo 37, § 6º, dizendo o seguinte:

“§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

Tendo em conta que, hodiernamente, a responsabilidade civil estatal encontra-se escorada basicamente no supracitado dispositivo constitucional, entendemos que uma análise minudenciosa dos seus termos se mostra como imprescindível para a consecução dos objetivos da pesquisa que ora empreendemos.

Nesta esteira, passamos a dissecar referida norma, decompondo-a em seus elementos constituintes e fazendo as observações que entendemos pertinentes para exata compreensão do tema.

3.2.1 Teorias adotadas

Extrai-se do texto constitucional que, ordinariamente, o Estado será responsabilizado civilmente de forma objetiva com base na teoria do risco administrativo, devendo haver uma relação causal entre a conduta do agente público e o dano.

Ficam excluídas da responsabilidade estatal as condutas praticadas pelos agentes públicos que não estiverem no exercício de sua função ou que não forem praticadas em razão dela.

Ensina MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO que “(…) não basta ter a qualidade de agente público, pois, ainda que o seja, não acarretará a responsabilidade estatal se, ao causar o dano não estiver agindo nos exercícios de suas funções”.[21]

Em que pese à regra constitucional seja da responsabilidade objetiva do Estado com base no risco administrativo, parece-nos que com relação aos danos advindos de atividades nucleares a responsabilidade do Estado é objetiva com base na teoria do risco integral.

Sobre o tema diz a Constituição que:

“Art. 21. Compete à União: (…)

XXIII – explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: (…)

d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa”

Ora como as atividades arroladas no inciso XXIII só podem ser praticadas pelo próprio Estado, todo o dano que provir de tais condutas necessariamente será imputado a ele, de sorte que não sobraria qualquer espaço para se invocar alguma das causas excludentes do nexo causal.

3.2.2 Da aplicabilidade das causas excludentes do nexo causal

Igualmente, resta evidenciado do texto constitucional, como decorrência da adoção da teoria do risco administrativo, que os danos decorrentes de caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima e do fato de terceiro, de regra, excluem o liame psicológico que liga a conduta do agente com o resultado danoso e, por conseqüência, excluem ou atenuam a responsabilidade do Estado.

É da própria lógica do sistema que, quando fatores outros que não a conduta do agente público, cuja vontade é imputada ao Estado, forem determinantes para a causação do resultado danoso, justa se mostram a exclusão ou atenuação da responsabilidade estatal, ante a ausência de vinculo causal.

3.2.3 Do direito de regresso em face do agente público

Verifica-se que a norma constitucional regula não só a relação jurídica estabelecida entre o Estado e o lesado, cujo dano é ressarcido, como já se disse, pela aplicação da teoria da responsabilidade objetiva com base no risco administrativo, mas também, a relação que se estabelece entre o Estado e o agente causador do dano, cuja responsabilização ocorre em virtude de fundamento distinto.

Ao estabelecer que é “assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” , adota a Constituição, neste ponto, ao contrário do que fez na primeira parte do dispositivo, a teoria da responsabilidade subjetiva, assentando que o Estado apenas poderá buscar o ressarcimento do valor que pagou para o lesado, se comprovar que o agente público atuou com dolo ou culpa.

3.2.4 Agentes públicos

Ao contrário das constituições anteriores, preferiu o constituinte de 1988, ao se referir àqueles que prestam serviços ao Estado com vínculos profissionais, por utilizar o termo “agentes” cuja amplitude abarca todos aqueles cuja vontade seja imputada ao Estado, tais como os agentes políticos, administrativos e os particulares em colaboração com o Estado, sem interessar a que título o serviço é prestado.

Ensina MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO que “Agente público é toda pessoa física que presta serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da Administração Indireta”[22], e pontua que:

“Antes da Constituição atual, ficavam excluídos os que prestavam serviços às pessoas jurídicas de direito privado instituídas pelo Poder Público (fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista). Hoje o artigo 37 exige a inclusão de todos eles”.[23]

Superada esta questão, resta saber se o ato praticado pelo agente, para gerar a responsabilidade estatal, deve ser praticado durante o serviço público ou é suficiente que tenha sido o ato praticado em razão dele.

Sobre o tema, esclarece SÉRGIO CARVALIERI FILHO que:

“De acordo com a essência de vários julgados o mínimo necessário para determinar a responsabilidade do Estado é que o cargo tenha influído como causa ocasional do ato, ou que a condição de funcionário tenha sido a oportunidade para a prática do ato ilícito. Sempre que a condição de agente do estado tiver contribuído de algum modo para a prática do ato danoso, ainda que simplesmente lhe proporcionando a oportunidade para o comportamento ilícito, responde o Estado pela obrigação ressarcitória. Não se faz mister, portanto, que o exercício da função constitua a causa eficiente do evento danoso; basta que ela ministre a ocasião para praticar-se o ato. (…) Em suma, haverá a responsabilidade do Estado sempre que se possa identificar um laço de implicação recíproca entre a atuação administrativa (ato do seu agente), ainda que fora do estrito exercício da função, e o dano causado a terceiro”.[24]

3.2.5 Pessoas sujeitas a serem responsabilizadas por atos dos seus agentes

Menciona o preceito constitucional que poderão ser responsabilizados civilmente pelos danos que seus prepostos causarem a terceiros “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos”.

Como se vê, o texto constitucional sujeita não só as pessoas jurídicas de direito público, quais sejam: a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias e as fundações públicas regidas pelo direito público, mas também, e neste ponto o dispositivo é inovador[25], as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, a responderem pelos atos danosos praticados por seus agentes de forma objetiva.

Desta forma, o dispositivo constitucional coloca uma pá de cal no dissenso[26] doutrinário quanto à possibilidade ou não de incidência da teoria da responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas de direito privado, concluindo o constituinte que, em sendo a pessoa privada uma prestadora de serviços públicos, a observância da teoria em apreço é a que se revela mais correta.

Realmente não é justo que aquele participa da Administração Pública, prestando serviços públicos e usufruindo as benesses que tal condição lhe propicia, fique imune aos ônus decorrentes dos riscos inerentes à atividade exercida, pelo simples fato de ser um ente de natureza privada, logo, é justo que responda na mesma medida em que o Estado em nome de quem atua.

Leciona JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO que a inserção das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos no texto constitucional tem como escopo:

“(…) igualar, para fins de sujeição à teoria da responsabilidade objetiva, as pessoas de direito público e aquelas que, embora com personalidade jurídica de direito privado, executassem funções que, em princípio caberiam ao Estado. Com efeito, se tais serviços são delegados a terceiros pelo próprio Pode Público, não seria justo nem correto que só a delegação tivesse o efeito de alijar a responsabilidade objetiva estatal e dificultar a reparação de prejuízos pelos administrados.”[27]

Assim, estão abrangidas pelo mandamento constitucional e, por conseguinte, estão sujeitas à responsabilidade objetiva, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, assim como, as concessionárias, permissionárias e autorizatárias de serviços públicos.

Pontue-se que o próprio texto constitucional trata de distinguir referidas pessoas jurídicas de direito privado em duas categorias, quais sejam: prestadoras de serviços públicos e em exploradoras da atividade econômica.

As prestadoras de serviços públicos se sujeitam ao regime jurídico de direito público e são responsabilizadas civilmente com base na teoria objetiva já as exploradoras de atividade econômica, nos termos da Constituição, respondem de forma subjetiva; contudo, poderão responder objetivamente, mas com supedâneo no Código de Defesa Consumidor, desde que seja fornecedoras de produtos ou prestadoras de serviços que sejam fornecidos ou prestados dentro de uma relação de consumo.

Por fim, registre-se que as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos respondem pelos danos causados em nome próprio e com o seu patrimônio, vez que elas possuem personalidade jurídica distinta da do Estado, sendo titular de direitos e obrigações e agindo por sua conta e risco.

Nem mesmo há que se aventar na existência de solidariedade entre o ente privado e o Estado, uma vez que nos termos do que dispõe o artigo 265 do Código Civil a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes, e, inexiste em nosso ordenamento jurídico, qualquer dispositivo legal que preveja tal solidariedade.

3.2.6 – O termo “terceiros”

Soçobra analisar o termo “terceiros” inserto no artigo em análise e que nele é indicado como sendo a vítima do evento danoso e o lesado pelo ato praticado pelo agente estatal no exercício da sua função ou em razão dela.

Há quem sustente que “terceiro” deve ser entendido como sendo alguém estranho aos quadros da Administração, contudo, ousamos discordar de tal assertiva, pois em nosso sentir é perfeitamente possível que o Estado seja responsabilizado civilmente por um dano causado a um agente público, desde que a lesão não advenha do exercício das suas atividades, mas de situação dela apartada, em virtude de conduta praticada por outro agente.

Ora, o agente público fora do exercício das suas funções é como se particular fosse, devendo receber o mesmo tratamento que aquele mereceria acaso experimente algum dano em virtude da atuação estatal.

Ainda com relação ao vocábulo em apreço, necessário se faz verificar se seu conteúdo alcança também aquela pessoa que não utiliza o serviço público.

Neste ponto, a jurisprudência se mostra vacilante, ora vaticinando que a responsabilidade não se estende para aquele que não ostente a condição de usuário[28], ora entendendo que tal responsabilidade deve ser extensível, inclusive aos não usuários do serviço público[29], posição esta, que parece ser a prevalente hoje em dia.

Verifica-se que o artigo em comento não faz qualquer distinção no que diz respeito ao sujeito passivo do dano, não havendo no texto constitucional qualquer exigência no sentido de que a pessoa lesada ostente a condição de usuário do serviço público.

Logo, seguindo-se o mandamento estampando no axioma ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemos, ou seja, onde a lei não distingue, nós não podemos distinguir, somos levados a concluir que o termo “terceiros” é abrangente tanto dos usuários, quanto dos não usuários do serviço público.

Outra não é a orientação de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO segundo o qual:

“para a produção dos efeitos supostos na regra é irrelevante se a vítima é usuário do serviço ou um terceiro em relação a ele. Basta que o dano seja produzido pelo sujeito na qualidade de prestador do serviço público. Também não se poderia pretender que, tratando-se de pessoa de Direito Privado, a operatividade do preceito só se daria quando o lesado houvesse sofrido o dano na condição de usuário do serviço, porque o texto dá tratamento idêntico às pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos. Assim, qualquer restrição benéfica a estes últimos valeria também para os primeiros, e ninguém jamais sufragaria tal limitação à responsabilidade do Estado”[30]

4. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR DANOS DECORRENTES DE ATOS JURISDICIONAIS

Responsabilizar-se civilmente o Estado em razão de danos provindos da prática de atos jurisdicionais não é tão simples quanto possa parecer aos menos avisados. O tema é tormentoso e fonte de forte dissenso, existindo tanto na doutrina quanto na jurisprudência o mais variado matiz de teses, que pregam desde a total irresponsabilidade até a responsabilidade objetiva com base na teoria do risco administrativo.

Até meados do século XX sustentou-se com vigor, e há quem ainda arrisque sustentar, a idéia de que os atos jurisdicionais, por constituírem emanação da soberania estatal, em razão de se revestirem dos atributos da coisa julgada e por não ofenderem direitos subjetivos não seriam aptos a gerar a responsabilidade civil do Estado.

Afirmava-se, também, que o juiz não poderia ser considerado um funcionário público, logo, os atos por ele praticados não poderiam gerar a responsabilidade estatal.

Por fim, prevalecia o entendimento segundo o qual ao se permitir à responsabilização estatal em razão da prática de um ato jurisdicional se estaria violando os princípios da independência e imparcialidade do juiz.

Cada uma dessas objeções é refutada pela doutrina mais moderna, que apresenta argumentos que tornam viável a responsabilização civil do Estado em virtude da prática de atos jurisdicionais.

Para melhor clareza das idéias, passamos a analisar cada uma das objeções à responsabilidade civil do Estado em razão da prática de atos jurisdicionais e, em seqüência, os argumentos que afastam tais objeções, para, ao final deste capítulo, possamos expor como entendemos que a matéria deva ser tratada diante da hodierna ordem jurídica pátria.

4.1 Objeções à possibilidade de se responsabilizar civilmente o Estado pela prática de atos jurisdicionais

Como se disse, o discurso segundo o qual o Estado não pode ser responsabilizado em razão da prática de um ato jurisdicional tem por alicerce os seguintes argumentos: a) o Poder Judiciário é soberano, b) a responsabilização do Estado pela prática de atos jurisdicionais viola a independência e a imparcialidade dos juízes, c) o magistrado não é um funcionário público e, d) com a responsabilização haveria violação da coisa julgada.

4.1.1 Primeira objeção: o Poder Judiciário é um Poder soberano

Até a metade do século XX a doutrina sustentou e, ainda hoje uma parte sustenta, que os atos jurisdicionais seriam insuscetíveis de gerar a responsabilidade civil do Estado, pois sendo eles “atos que traduzem uma das funções estruturais do Estado, refletem o exercício da própria soberania”.[31]

Sob esse argumento de que a administração da justiça é um privilégio da soberania, o Supremo Tribunal Federal entende que o Estado não pode ser responsabilizado civilmente em decorrência da prática de atos jurisdicionais, exceto quando a Lei, expressamente, determinar[32] e que o Poder Judiciário é um “Poder soberano, que goza de imunidades que não se enquadram no regime da responsabilidade por efeitos de seus atos quando no exercício de suas funções”.[33]

4.1.2 Segunda objeção: a independência e a imparcialidade dos juízes

Com base neste argumento, ao se responsabilizar o Estado em razão da prática de atos jurisdicionais se estaria causando um temor indevido nos magistrados de que suas decisões poderiam dar azo à responsabilidade civil do Estado, o que poderia influir no teor de suas decisões em prejuízo de sua independência funcional.

Nesse sentido JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO sustenta ser inviável a responsabilização do Estado por atos jurisdicionais, pois, do contrário, “os juízes perderiam em muito a independência e a imparcialidade, bem como permaneceriam sempre com a insegurança de que atos judiciais de seu convencimento pudessem vir a ser considerados resultantes de culpa em sua conduta.”[34]

4.1.3 Terceira objeção: o magistrado não é funcionário público

Sustenta-se que por não estarem os juízes inseridos na categoria de funcionário público, os atos que eles viessem a praticar não estaria aptos a gerar a responsabilidade do Estado, como decorrência do próprio texto da constitucional[35].

Conforme já visto, Ao contrário das constituições anteriores, preferiu o constituinte de 1988, ao se referir àqueles que prestam serviços ao Estado com vínculos profissionais, por utilizar o termo “agentes” cuja amplitude abarca todos aqueles cuja vontade seja imputada ao Estado, tais como os agentes políticos, administrativos e os particulares em colaboração com o Estado, sem interessar a que título o serviço é prestado.

Desta forma, sob a ordem constitucional vigente o argumento não prospera, devendo ser afastado de plano.

Em que pese já se tenha lançado argumentos bastantes para demonstrar que a responsabilidade civil do Estado não pode ser obstada pelo fato aqui discutido, para maior clareza das idéias e por questões metodológicas, nos vemos obrigados a retomar a questão no tópico 3.2.3, assim como o fizemos no 2.2.4.

4.1.4 Quarta objeção: a coisa julgada

Em todo processo haverá a prolação de uma sentença (ou acórdão) que em determinado momento se tornará imutável seja porque em face dela não cabe qualquer recurso, seja porque foram exauridos todos os recursos cabíveis e, quando isso ocorre, diz-se que houve o transito em julgado.

A impossibilidade de se modificar a sentença é conhecida por coisa julgada e encontra-se amparada pelo texto constitucional que estabelece, no artigo 5º, XXXVI, que : “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Para os defensores da tese da irresponsabilidade, ao se condenar o Estado a indenizar aquele que sofreu um dano em razão de um ato jurisdicional se estaria violando a coisa julgada, já que se estaria proferindo uma nova decisão que seria infringente àquela da qual decorre a lesão.

Nessa esteira, entende JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO que:

“se um ato do juiz prejudica a parte no processo, tem ela os mecanismos recursais e até mesmo outras ações para postular a sua revisão. (…) Por outro lado, o instituto da coisa julgada, aplicável às decisões judiciais, tem o intuito de dar definitividade à solução dos litígios, obediente ao princípio da segurança das relações jurídicas. Se a decisão judicial causou prejuízo à parte e esta não se valeu dos recursos para revê-la, sua inércia a impede de reclamar contra o ato prejudicial. Se, ao contrário, o ato foi confirmado em outras instâncias, é porque tinha ele legitimidade, sendo, então, inviável a produção de danos à parte”[36].

4.2 Argumentos que afastam as proposições obstativas da responsabilidade civil do Estado pela prática de atos jurisdicionais

Nos últimos anos é crescente o número de adeptos à tese segundo a qual o Estado não pode ficar imune de responsabilidade quando um ato jurisdicional cause em um particular uma lesão ilícita.

Gradualmente tem se reconhecido que a idéia da irresponsabilidade civil do Estado não é compatível com os cânones que dão corpo ao almejado Estado Democrático de Direito, para cuja realização plena exige-se que as idéias de igualdade e solidariedade sejam efetivadas em sua amplitude máxima.

 Acerca da aplicação do princípio da igualdade, JOSÉ DE AGUIAR DIAS, em magistral obra sobre o tema, afirma que se responsabilizar o Estado pela prática de um ato jurisdicional significa dar concretude ao princípio da igualdade, cuja violação dá origem ao direto à indenização[37].

Já no tocante à necessidade de se efetivar ao máximo o princípio da solidariedade, ALCINO DE PAULA SALAZAR, sustenta com base na idéia solidarista da equitativa distribuição dos ônus e encargos que o Estado é plenamente responsável pelo normal funcionamento do serviço público e, por conseguinte, pelos atos que são praticados na prestação de tais serviços, inclusive os de natureza jurisdicional.

Calcado na idéia de que responsabilidade civil estatal em razão da prática de atos jurisdicionais é inerente à própria idéia contemporânea de Estado, passamos, com base na doutrina que começou a ser erigida a partir da década de 40 do século passado, a repelir os óbices suscitados pelos avessos à tese da responsabilidade do Estado pela prática de atos jurisdicionais, para, em seqüência, com fundamento nos elementos teóricos que constituem esse discurso, e à luz do direito positivo vigente, analisarmos a possibilidade, a maneira como se processa e em que extensão se da responsabilização civil em apreço.

4.2.1 Quanto ao fato de ser o Poder Judiciário um Poder dotado de soberania

Conforme ensina PAULO BONAVIDES:

“é da essência do ordenamento estatal uma superioridade e supremacia, a qual, resumindo já a noção de soberania, faz que o poder do Estado se sobreponha incontrastavelmente aos demais poderes sociais, que lhes ficam subordinados. A soberania assim entendida como soberania interna fixa a noção de predomínio que o ordenamento estatal exerce num certo território e numa determinada população sobre os demais ordenamentos sociais. Aparece então o Estado como portador de uma vontade suprema e soberana — a suprema potestas — que deflui de seu papel privilegiado de ordenamento político monopolizador da coação incondicionada na sociedade. Estado ou poder estatal e soberania assim concebidos, debaixo desse pressuposto coincidem amplamente. Onde houver Estado haverá, pois soberania.”[38]

A idéia de soberania implica em reconhecer que não existe qualquer outro Poder que esteja acima do ente ao qual ela é atribuída, pois conforme explica RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR:

“soberania é uma qualidade do Poder do Estado, que se manifesta internamente como a capacidade de impor a vontade própria em última instância e, externamente, na relação de igualdade com outros Estados, (…) Necessária como fator de manutenção da união orgânica das forças que convivem no Estado à própria soberania é una, não se repartindo entre os Três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário (…)”[39].

 Assim, a qualidade de Poder soberano é imputada ao Judiciário de forma equívoca, pois quem é soberano não é o Judiciário, mas o Estado considerado em sua totalidade e “como entidade máxima do poder político”[40] .

Logo, os Poderes estatais não são entes dotados de soberania, malgrado exerçam cada um suas competências, o fazem em nome e na condição de elementos integrantes do Estado, e quando externam suas vontades, através dos atos que praticam, apenas conferem concretude à Soberania estatal.

Os três Poderes estão alocados no mesmo patamar dentro da estrutura estatal, não havendo superposição de um em detrimento do outro, de modo que, a adoção do argumento da irresponsabilidade, fulcrado na soberania do Poder Judiciário, implicaria em reconhecer, pelo mesmo motivo, a irresponsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo, que também seriam soberanos, o que colocaria em cheque todo o sistema de responsabilidade civil do Estado, uma vez que desaguaria na anacrônica tese da total irresponsabilidade.

Adverte, ainda, SÉRGIO CAVALIERI FILHO que: “(…) embora soberano, o Estado de Direito subordina-se à lei, sem abdicar à sua soberania”[41] de sorte que a soberania não consiste num empecilho para que se reconheça a responsabilidade civil daquele que é dela provido, logo, ainda que o Judiciário fosse um Poder soberano, não estaria imune de ser responsabilizado civilmente por seus atos, pois de igual forma, estaria sujeito aos ditames da Lei, que enquanto emanação da vontade do povo, através de seus representantes, é quem lhe conferiria tal atributo.

4.2.2 Quanto à independência e imparcialidade dos juízes

A independência dos juízes, igualmente, não é um argumento válido para embasar a irresponsabilidade estatal pela prática de atos jurisdicionais já que não há incompatibilidade entre a responsabilização do Estado e a independência do juiz, servindo esta última, na melhor das hipóteses, tão somente para eximir o magistrado de qualquer responsabilidade pela prática dos seus atos.

Ademais, a independência não é um atributo exclusivo do Poder Judiciário, sendo inerente aos três Poderes e, em assim sendo, há que se reconhecer que também o Executivo e o Legislativo padeceriam do temor de que seus atos poderiam causar danos indenizáveis e igualmente teriam suas independências violadas com a idéia da responsabilidade civil estatal, acarretando, na mesma medida que o argumento da soberania, a inviabilidade de se responsabilizar civilmente o Estado em qualquer situação.

Acrescente-se a isso que a garantia de um juiz independente se da através da preservação de sua liberdade de decidir o que se traduz nos termos do princípio da persuasão racional, ou seja, o juiz independente, em um Estado democrático de direito, é aquele que de um lado pode escolher o conteúdo de sua decisão, mas de outro é obrigado a explanar as razões que o levaram a decidir como ele decidiu.[42]

Neste diapasão, conclui RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR que:

“(…) preservada ao Juiz a liberdade de interpretação da norma dentro do sistema, é de se aceitar que, fora daí, como ocorre com o ato de qualquer outro Poder, seja possível à responsabilidade do Estado, estabelecendo-se saudável convivência entre os dois interesses coletivos: a responsabilidade do Estado por atos danosos de seus agentes e a independência do Juiz”[43].

4.2.3 Quanto ao fato de ser o magistrado, ou não, um funcionário público

O argumento segundo o qual o juiz não é um funcionário público e que por isso os atos danosos por ele praticados não possuem a aptidão de gerar o dever estatal de indenizar, deve ser rechaçado de plano, vez que, como visto em tópico anterior, a Constituição vigente, em seu artigo 37, § 6º, adotou o termo “agente” como forma de se referir a todos aqueles que prestam serviços ao Estado, ai incluídos os agentes políticos, administrativos ou particulares em colaboração.

4.2.4 Quanto à violação da coisa julgada

A coisa julgada, cujo fundamento pode ser encontrado no axioma bis de eadem re ne sit actio que, em tradução livre, significa não haja dupla ação sobre a mesma coisa, é construída dogmaticamente tendo como foco a segurança nas relações jurídicas.

Assim é que, ao se acolher tal instituto, tenciona-se tornar o exercício da jurisdição uma atividade estável e não é por outra razão que o constituinte de 1988 estabelece no artigo 5º, XXXVI que: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;” e, da combinação de tal preceito com o inserido no artigo 5º, XXXV, que diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, chega-se à irrefragável conclusão que embora nenhuma lesão ou ameaça de lesão possa ser afastada da apreciação do Poder Judiciário, a jurisdição só será exercida uma vez, ou seja, aquela pretensão que foi deduzida, por força da coisa julgada, somente será julgada por uma única vez pelo judiciário.

Em suma, o que se veda com a coisa julgada é o exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre uma decisão da qual já não caiba mais nenhum recurso, pelas mesmas partes e eventualmente terceiros, em feitos subseqüentes àquele no bojo do qual ela foi proferida.

Assentadas tais premissas, podemos concluir com segurança que a coisa julgada não constitui um embaraço para o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado em virtude da prática de um ato jurisdicional, vez que a decisão – ato jurisdicional – do qual emana a lesão, não se confunde com a decisão que reconhece o dano e determina o ressarcimento, inexistindo por este singelo motivo qualquer violação à coisa julgada.

Nesse diapasão, reparem que as decisões são prolatadas em feitos distintos, onde há completa disparidade no que se refere aos elementos da ação, uma vez que as partes, o pedido e a causa de pedir da ação indenizatória serão completamente diferentes dos da ação em que o dano se originou.

Todavia, embora a questão esteja resolvida com base nas supracitadas proposições, não podemos deixar de reconhecer o sedutor argumento trazido por RUY ROSADO DE AGUIAR segundo o qual:

“(…) o ordenamento jurídico não pode conviver com a inconciliável oposição entre duas sentenças antagônicas e igualmente eficazes, como ocorreria, por exemplo, entre uma decisão criminal que mantém preso o réu condenado e uma outra sentença, que ordena ao Estado pagar uma indenização a esse mesmo réu, pelo fato da sua condenação. Pela natureza da coisa, e por uma exigência lógica, tal antagonismo deve ser evitado”[44].

Em uma primeira análise, podemos verificar que no âmbito criminal o aludido choque entre decisões supostamente inconciliáveis poderia ser facilmente sanado através da propositura, a qualquer tempo, da ação de revisão criminal, contudo, na seara cível é que a questão se assanha e, sobretudo pressupondo que tal assertiva seja verdadeira, o conflito se apresentaria em dado instante como de solução impossível, uma vez que a ação rescisória deve ser interposta no prazo decadencial de dois anos, após o que, em princípio, tornar-se-ia imodificável.

Pensamos inicialmente, que nesta hipótese, por estar em jogo um preceito de ordem pública, uma vez que o ato jurisdicional que causa um dano indenizável a alguém, invariavelmente é praticado em contrariedade com o que determina a Lei e, por conseqüência, constitui-se em um não-ato-jurídico, já que não é possível se admitir, sob pena de se colocar em cheque todo o sistema jurídico, que subsistam duas normas, ainda que uma seja de índole concreta e a outra abstrata, que sejam frontalmente colidentes, que seria possível uma ação onde se buscasse a nulidade da decisão primeva, aos moldes do que é feito na conhecida Querela nullitatis insanabilis, contudo, debruçando-se mais sobre o problema, entendemos que a sua solução é outra e bem mais singela do que pode parecer a primeira vista.

Conforme o artigo 489 do Novo Código de Processo Civil, são elementos essenciais da sentença:

“(…)I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.(…)”

Em tal dispositivo podemos identificar que o magistrado passa por três estágios distintos na prolação sentença, sendo certo que primeiro ele, através do relatório, prepara o processo para julgamento, em seqüência, expõe os fundamentos de fato e de direito que geraram sua convicção e, por fim, na parte do dispositivo, subsume a vontade da lei ao caso concreto, conferindo uma solução para a demanda.

Visto isto, em seqüência, é preciso pontuar que a única parte da sentença apta a revestir-se do manto da coisa julgada é à parte do dispositivo, enquanto que o relatório e a fundamentação não possuem o mesmo condão, nessa linha encontramos o que diz o artigo 504 do Novo Código de Processo Civil:

“(…) Não fazem coisa julgada:

I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença.”

Acerca de tal questão leciona MARCUS VINÍCIUS RIOS GONÇALVES:

“De todas as partes da sentença, somente o dispositivo, que contém o comando emitido pelo juiz, fica revestido da autoridade da coisa julgada material. Os motivos e fundamentos não se tornam imutáveis, e podem ser rediscutidos em outro processo, por mais importantes que tenham sido para a formação da convicção do julgador”.[45]

 Ante tais constatações, é possível perceber que o antagonismo suscitado por RUY ROSADO DE AGUIAR na verdade não existe, uma vez que o dispositivo de uma sentença onde está inserto o comando que condena o Estado a indenizar, não reproduz o dispositivo da outra sentença na qual que o ilícito foi praticado.

Na verdade é na motivação da sentença que se verifica a pratica de atos aptos a gerar lesão ao particular e não no dispositivo, cuja elaboração embora deflua das constatações aduzidas na motivação será a única parte da decisão sujeita à preclusão máxima.

No exemplo trazido pelo Ministro RUY o comando emitido pela decisão que condena o agente injustamente, não se confunde com aquele da sentença que condena o Estado a indenizar em razão da injustiça. No primeiro caso a coisa julgada atinge a condenação, mas não os motivos que levaram o Juiz a decretá-la, esses sim viciados e que dão ensejo a propositura da demanda indenizatória.

Esclarecedora é a explicação de MARINONI:

“Decorre daí que a imutabilidade, ínsita à coisa julgada, somente atinge a parte dispositiva da sentença, na qual se estabeleceu a lei do caso concreto. Todo o restante, ou seja, a fundamentação e o relatório, não restam imutáveis. Vale dizer que, se proposta uma ação por alguém que se supõe filho de outrem, para o fim de perceber destes alimentos, sendo julgada procedente a pretensão, a única certificação que se torna imutável é a do recebimento dos alimentos, não se atingindo a afirmação da condição de filho (que, no exemplo dado, constitui mero fundamento do pedido). Em ação subseqüente, portanto, em que pese este suposto filho venha habilitar-se a receber seu quinhão na herança do assim considerado pai (…) nada impede que o magistrado dessa ação entenda que aquele que se afirma filho não tenha direito à herança (por não ser filho). Embora logicamente essas duas sentenças possam ser antagônicas – na medida em que uma reconhece como existente algo que a outra supõe não ocorrido -, juridicamente elas não têm defeito. As premissas estabelecidas pela primeira sentença não transitam em julgado, não se tornam imutáveis, nem vinculam a apreciação de outros juízes em casos futuros”.[46]

Reparem que no caso de danos ocasionados por atos jurisdicionais, o dano causado pela primeira sentença será avaliado pela segunda a título de questão prejudicial, incidenter tantum, na fundamentação, o que, como já se frisou, não faz coisa julgada.

4.3 Da necessidade de desconstituição do julgado para que seja possível a propositura de uma ação indenizatória em face do Estado

Sobre o assunto, malgrado seja ele fonte de grande controvérsia doutrinária, prevalece no Brasil a tese, com a qual não concordamos, segundo a qual é imprescindível a desconstituição da sentença da qual emana o dano para que seja possível ingressar com uma ação indenizatória contra o Estado.

Entendem a maioria dos estudiosos brasileiros que a propositura da ação rescisória ou da revisão criminal se revela como conditio sine qua non para que se possa pleitear o ressarcimento do dano causado pelo ato jurisdicional.

Há também aqueles que embora sustentem a necessidade de desconstituição do julgado para a propositura da demanda indenizatória contra o Estado, entendem que em alguns casos graves seria possível pleitear a indenização mesmo sem a prévia desconstituição da decisão geradora do dano. Perfilhando tal entendimento, encontramos RUI STOCO[47] afirma, que, por exemplo, nos casos de prisão injusta, com flagrante abuso de poder da autoridade policial e no caso de prisão de sujeito homônimo, seria despicienda a desconstituição do julgado para se manejar uma ação buscando a reparação do dano causado pelo ato jurisdicional.

Adotando posição intermediária, SÉRGIO CAVALIERI FILHO aduz o seguinte:

“Não estamos advogando a tese de que será sempre necessária a ação rescisória ou a revisão criminal para que possa ter lugar a indenização por erro judicial. A exigência da desconstituição do julgado como pré-condição, obviamente, só se refere à decisão de mérito. Casos poderão ocorrer em que o erro judicial fique desde logo evidenciado, tornando possível a imediata ação de indenização, como, por exemplo, o excesso de tempo de prisão por omissão, esquecimento ou equívoco; prisão da pessoa errada por homonímia; atos praticados com abuso de autoridade (…) O que não nos parece aceitável é a amplitude que vem se procurando dar ao conceito de erro judicial(…)”[48]

Conforme já adiantado, entendemos que a desconstituição do julgado danoso o tenha natureza cível ou criminal, em nenhum caso, se faz necessária para a propositura da demanda ressarcitória e essa maneira de vislumbrar o problema constitui conseqüência direta das conclusões que chegamos no tópico em que verificamos que a coisa julgada não constitui um obstáculo para que se busque uma indenização a ser paga pelo Estado em virtude da prática de um ato jurisdicional.

Conforme pudemos demonstrar, a prolação de uma decisão condenando o Estado a indenizar alguém em razão de um dano advindo de um ato jurisdicional não viola a coisa julgada e, é por esse simples fato, que a desconstituição do julgado, seja através da ação rescisória ou por intermédio da revisão criminal é totalmente inócua para o fim que se pretende.

Primeiro porque os elementos da ação indenizatória – partes, pedido e causa de pedir -, são totalmente distintos dos do julgado lesivo. Em segundo lugar, conforme demonstrado, as decisões não são colidentes, uma vez que seus dispositivos são totalmente dispares, não havendo sequer interesse para a desconstituição do primeiro julgado.

Ademais, ressalte-se, que o dano causado pelo primeiro ato jurisdicional será analisado pelo segundo, incidentalmente, como causa de pedir, de sorte que não haverá qualquer violação à coisa julgada donde se extrai que se não haverá violação da sentença primeva porque haveria de haver sua desconstituição?

4.4 Da responsabilidade civil do Estado e do juiz pela prática de atos jurisdicionais

Por tudo que foi analisado até aqui, enfrentados e superados todos os argumento adversos à responsabilidade civil do Estado pela prática de um ato jurisdicional, com supedâneo no que dispõe a Constituição vigente, sobretudo em seus artigos 37, § 6º e 5º, LXXV, podemos firmar que o Estado responderá civilmente pela pratica de atos jurisdicionais, os quais tenham por base um erro judiciário ou que mantenham alguém preso além do tempo fixado na sentença, de forma objetiva e com base na teoria do risco administrativo.

Após verificarmos a viabilidade de se responsabilizar civilmente o Estado pela prática de um ato jurisdicional, passamos a analisar se, igualmente, é possível responsabilizar o magistrado autor de tais atos e, em caso positivo, em que medida se dará sua responsabilização.

De antemão podemos notar que a questão não é pacifica, não sendo difícil encontrar posicionamentos que pregam desde a total irresponsabilidade do juiz pela prática de atos jurisdicionais, até aqueles que vaticinam que o juiz deve responder diretamente por tais atos.

MÁRIO GUIMARÃES, em obra de 1957, defendia que os juízes não poderiam, em hipótese alguma, ser responsabilizados pelos atos jurisdicionais que viessem a praticar, pois segundo ele:

“Razões mais fortes, porém, aconselham a irresponsabilidade. Primeiramente, uma política social: os juízes pagam tributo inexorável à falibilidade humana. E porque são homens. Se obrigados a ressarcir, de seu bolso, os danos causados, ficariam tolhidos, pelo receio do prejuízo próprio, na sua liberdade de apreciação dos fatos e de aplicação do direito. Nem se coadunaria com a dignidade do magistrado coagi-lo a descer à arena, após a sentença, para discutir, como parte, o acerto de suas decisões. (….) Demais (…) reexaminar a sentença, para atender à injustiça dos danos, seria desobedecer à coisa julgada.”[49]

Não obstante ser da lavra de um insigne mestre, tal entendimento revela-se anacrônico, pois conforme verificamos a Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1988 adotou a regra da responsabilidade objetiva e direta do Estado em virtude de atos praticados por seus agentes, de sorte que, exercendo um serviço público, e sendo o Juiz um agente estatal, aos seus atos, em princípio, deveria ser aplicada a regra geral, ou seja, o Estado responde de forma objetiva e o Juiz responderia apenas em ação regressiva, na qual deve restar comprovado que ele agiu com dolo ou culpa.

Ademais, conforme já explanamos a coisa julgada não constitui um obstáculo para aquele que se viu lesado ilicitamente por um ato jurisdicional e que, por isso, pretende o ressarcimento do Estado pelos danos que sofreu.

Não obstante ser factível sustentar, nos dias de hoje, a superação da tese segundo a qual não é possível responsabilizar o magistrado pela prática de atos jurisdicionais, sendo certo que pode e deve ser responsabilizado por tais atos, não é tão simples apontar a forma e em que medida a responsabilidade de reparar os danos causados deve ser impingida ao juiz.

Em síntese, se é certo que o juiz deva ser responsabilizado, a incerteza paira não só com relação à extensão de sua responsabilidade, ou seja, se estaria ele obrigado a reparar toda e qualquer lesão advinda do ato jurisdicional, ou se sua responsabilidade estaria restrita a algumas hipóteses, mas também, no que tange ao modo em que essa responsabilização deverá ser buscada, se em ação manejada diretamente contra o juiz ou apenas através de ação regressiva proposta pelo Estado.

Nessa ordem de idéias, o debate se avoluma quando confrontamos o mandamento, constitucional inserido no § 6º do artigo 37, com a legislação infraconstitucional que também trata do tema, senão vejamos.

A Lei Complementar 35 de 14 de março de 1979, que versa sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em seu título III, capítulo III, dispõe que:

“Art. 49 – Responderá por perdas e danos o magistrado, quando:

 I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

 Il – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar o ofício, ou a requerimento das partes.

 Parágrafo único – Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no inciso II somente depois que a parte, por intermédio do Escrivão, requerer ao magistrado que determine a providência, e este não lhe atender o pedido dentro de dez dias.”

No mesmo diapasão encontramos o artigo 133 do Código de Processo Civil de 1973 que diz que:

“Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:

I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

II – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.

Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no no II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender o pedido dentro de 10 (dez) dias.”

MARIA EMÍLIA MENDES ALCÂNTARA[50] alerta que referidos dispositivos não foram recepcionados pela Constituição de 1988, uma vez que colidem frontalmente com a determinação contida em seu artigo 37,§ 6º, que estabelece que a responsabilidade é direta do Estado, restando-lhe acionar o Juiz em ação regressiva.

SÉRGIO CAVALIERI FILHO, por sua vez, leciona que haveria uma solidariedade entre o Estado e o magistrado, estabelecida pelo ato ilícito, de sorte que “poderia o lesado optar entre acionar o Estado ou diretamente o juiz”[51].

 JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, partindo, implicitamente, do pressuposto de que citados dispositivos foram recepcionados pela Constituição da República vigente, de forma peculiar, leciona que quando o juiz pratica um ato doloso, imbuído do intuito de causar prejuízo à uma das partes, está ele violando um dever funcional elencado na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, artigo 49, e no Código de Processo Civil de 1973, artigo 133, e por isso deveria ser responsabilizado diretamente.

Já quando o magistrado pratica uma conduta culposa consubstancia em um ato jurisdicional, referido autor, ressalva que, se o ato possuir natureza penal, o juiz poder ser responsabilizado diretamente na forma do artigo 630 do Código de Processo Penal que assim determina:

“Art. 630. O tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos.

 § 1o Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível, responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça.

 § 2o A indenização não será devida:

 a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder;

 b) se a acusação houver sido meramente privada.”

Todavia, se o ato jurisdicional possuir natureza cível e for culposo, será impossível não só a responsabilização do Estado, como também, a responsabilização direta do juiz prolator de tal ato, pois, segundo ele:

“(…) se um ato culposo do juiz, de natureza cível, possibilita a ocorrência de danos à parte, deve-a valer-se dos instrumentos recursais e administrativos para evitá-los, sendo inviável a responsabilização civil do Estado por fatos desse tipo. A não ser assim, os juízes perderiam em muito a independência e a imparcialidade, bem como permaneceriam sempre com a insegurança de que atos judiciais de seu convencimento pudessem vir a ser considerados resultantes de culpa em sua conduta.”[52]

Para a solução de tal impasse entendemos ser necessário o estabelecimento de um diálogo entre os dispositivos constitucionais com a legislação infraconstitucional que trata do tema, de maneira que estas últimas sejam interpretadas conforme os ditames constitucionais.

Na esteira das conclusões a que chegamos até este ponto de nossa pesquisa, parece-nos que o Estado responderá sempre de forma primária e diretamente em face do lesado[53], já a responsabilidade do juiz não pode ser aferida em face do lesado, mas sim, com relação ao Estado, por intermédio de ação regressiva por este último manejada.

Tal orientação encontra-se estampada no caput do artigo 143 do Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 2.015 que, colocando uma pá de cal na discussão, estabelece que a responsabilidade civil do juiz deverá ser buscada sempre de forma regressiva pelo Estado e nunca diretamente pelo lesado, diz o dispositivo, in verbis: “Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando:(…)”.

Assim, ainda que assentado que o juiz apenas poderá ser responsabilizado pela prática de um ato jurisdicional de forma regressiva, nem sempre será possível ao Estado intentar contra ele tal ação, estando restrito, para tanto, às hipóteses nas quais aquele que pratica um ato jurisdicional do qual decorra um dano ilícito a alguém, tenha agido com dolo ou culpa, conforme determina o artigo 37,§ 6º da Constituição.

Neste ponto, importante verificarmos o mandamento contido no inciso LXXV, do artigo 5º da Constituição que, no tocante à responsabilidade do Estado pela prática de atos jurisdicionais, limita o alcance do artigo 37, § 6º, estabelecendo que “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”, ou seja, a regra geral é que o Estado responda objetivamente pelos danos que seus agentes, que nesta qualidade estiverem atuando, causarem a terceiros, contudo, no que pertine especificamente aos atos jurisdicionais, o Estado apenas estará obrigado a indenizar quando o indivíduo estiver preso além do tempo fixado na sentença ou quando restar caracterizado que ele sofreu um dano em virtude de um erro judiciário.

Assim, no que se refere aos danos causados por atos jurisdicionais, a expressão “(…) danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (…)” contida no texto § 6º do artigo 37 da Constituição da República, deve ser lida e entendida em conjunto com o disposto no inciso LXXV, do seu artigo 5º, ou seja, o Estado deverá responder, objetivamente, pelos atos dos juízes que no exercício de seus misteres, equivocadamente condenarem alguém, ou mantiverem alguém preso além do tempo fixado na sentença, sendo possível acionar regressivamente o magistrado responsável pelo ato, apenas nas hipóteses em que ele agir com dolo ou culpa.

Nessa toada, se de um lado para a verificação de que a prisão de alguém se protrai para além do tempo fixado na sentença, se resume a um exercício puramente empírico, o mesmo não se pode dizer sobre a averiguação da ocorrência de um erro judicial, pois para tal desiderato, dado ao fato de que a expressão “erro judicial” é aberta e com forte carga axiológica, impõe-se ao legislador que faça a conformação de seu conceito de acordo com o devir histórico e que o interprete se valha de técnicas de hermenêutica, tais como a interpretação sistemática e a ponderação de valores para que consiga desvelar seu real conteúdo.

Irrefragavelmente, se de um lado o constituinte conferiu plasticidade ao conceito de “erro judiciário”,permitindo que ele se amolde às necessidades do porvir histórico, de outro acabou por outorgar à legislação infraconstitucional e ao aplicador da norma a tarefa de conferir conteúdo e significado para tal expressão.

É com base nesse entendimento e partindo-se de tal premissa, que devem ser lidos dispositivos que versam sobre o assunto, tais como o artigo 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, o artigo 133 do Código de Processo Civil de 1.973, o artigo 630 do Código de Processo Penal e o artigo 143 do novel Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 2015.

Em suma, pelos danos causados por um ato jurisdicional o juiz responderá sempre de forma regressiva e nunca de forma direta, e isso, apenas quando agir com dolo ou culpa e estiverem presentes uma das hipóteses previstas no artigo 5º, LIII da Constituição, sendo certo que a configuração do erro judicial cinge-se às hipóteses arroladas nas normas constitucionais ou infraconstitucionais que conferem significado para tal expressão.

Por fim, entendemos ser incabível a denunciação da lide pelo Estado em face do agente público na ação movida pelo terceiro lesado pelo ato jurisdicional, uma vez que isso acarretaria a existência de duas ações com regimes de responsabilização diversos, no entanto, tal entendimento vem sendo mitigado, sobretudos pelo Superior Tribunal de Justiça, que vem admitindo a denunciação da lide em algumas hipóteses excepcionais, quando for possível verificar de antemão que tal intervenção não irá provocar qualquer prejuízo à economia e a celeridade processual.

CONCLUSÃO

No curso do presente trabalho, nossas perquirições tiveram por escopo analisar a possibilidade de se pleitear, na esfera cível, indenização como forma de compensar um dano experimentado em virtude da prática, pelo juiz, de ato de cunho jurisdicional.

Nesta esteira, a partir da análise interpretativa dos dados coligidos do direito positivo brasileiro, com aporte teórico na doutrina e jurisprudência pátria, chegamos às conclusões que passamos a aduzir.

 A responsabilidade civil é o dever jurídico, cujas raízes estão assentadas nos cânones do Direito Civil, que surge para aquele que descumpre um dever jurídico inicial criador de uma obrigação. Tal dever jurídico, que dá substância à responsabilidade civil, se plasma na obrigação de reparar economicamente o dano sofrido por outrem.

É possível se falar em responsabilidade civil contratual e extracontratual do Estado, sendo certo que aquela que nasce em razão da prática de um ato jurisdicional possui viés extracontratual.

A responsabilidade civil, ou seja, o dever de indenizar, não é da Administração, mas do Estado que é quem possui personalidade jurídica e que, por isso, pode ser titular de direitos e contrair obrigações na órbita cível.

Ato jurisdicional é aquele praticado pelo Poder Judiciário no exercício da função jurisdicional, ou seja, no seu mister de aplicar o Direito a um caso concreto conferindo solução a um conflito de interesses.

Ato jurisdicional não se confunde com atos judiciários que são aqueles que, embora praticados dentro da estrutura do Poder Judiciário, possui natureza puramente administrativa e não jurisdicional.

 A reparação civil dos danos causados por um ato judiciário se dá através da aplicação da regra geral prevista no artigo 37, § 6º da Constituição, ou seja, a responsabilidade civil do Estado será objetiva com base na teoria do risco administrativo.

Na história do pensamento jurídico ocidental, inicialmente acreditou-se que o Estado não poderia ser responsabilizado civilmente pelos atos que praticava, porém, com o perpassar do tempo surgiram teorias que superaram tal entendimento, primeiro, as teoria: civilista da culpa, organicista e da culpa do serviço público, que, não obstante suas peculiaridades anunciavam todas em uníssono a possibilidade de se responsabilizar civilmente o Estado quando ele, ao causar um dano, comprovadamente houvesse agido com dolo ou culpa; e, por fim, temos a ascensão da teoria da responsabilidade objetiva, que passa a tratar o fenômeno dizendo que o Estado é obrigado a indenizar os danos causados pelos atos que pratica, independentemente da comprovação de dolo ou culpa.

A teoria da responsabilidade objetiva do Estado desponta como sendo uma maneira mais justa de responsabilizar-se o Estado pelos danos por ele causados, na medida em que retira das costas da vítima o encargo de comprovar a culpa estatal na ocorrência do evento danoso, além de promover a adequada socialização dos ônus provenientes das atividades estatais. É objetiva, em contraposição à subjetiva, pois como se disse dispensa a análise dos elementos subjetivos: dolo e culpa em sentido estrito.

A teoria da responsabilidade objetiva do Estado possui duas vertentes a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral, em ambas o dever de indenizar surge para o Estado com a simples prática da conduta que causa dano ao terceiro, independentemente da comprovação de dolo ou culpa, todavia, na teoria do risco administrativo admite-se que a exclusão da responsabilidade quando presentes uma das suas eximentes, quais sejam: culpa da vítima, culpa de terceiros, caso fortuito e força maior, já na teoria do risco integral, ainda que presentes referidas excludentes, ainda assim, subsistirá o dever de indenizar.

No Brasil a tese da irresponsabilidade nunca encontrou espaço, ao contrário, aqui sempre prevaleceu a idéia de que o Estado deve ser responsabilizado civilmente pelos danos que seus atos causem a terceiros.

Inicialmente, nas Constituições de 1824 e de 1891, adotamos a teoria da culpa civil, já as de 1934 e 1937 estabeleceram uma espécie de responsabilidade solidária entre o Estado e o agente causador do dano, por fim, a partir da Constituição de 1946 passamos a adotar a teoria da responsabilidade civil objetiva, com base no risco administrativo, o que se repetiu nas Cartas seguintes e o que perdura até os dias de hoje, conforme o artigo 37, §6º da Constituição vigente.

O artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1988 determina, também, que o Estado, para ser ver ressarcido da indenização que foi obrigado a pagar, poderá mover em face do agente público causador do dano uma ação regressiva, desde que comprove que este tenha agido com dolo ou culpa, em clara adoção, neste ponto, da teoria da culpa civil.

Todo ato praticado por um agente público que, no exercício de suas funções, cause dano a um terceiro acarretará a responsabilidade objetiva estatal em repará-lo.

O termo agente público há de ser interpretado de forma ampla de modo a compreendendo todo aquele que preste serviço para o Estado, seja a que título for e abarcando, inclusive, o juiz.

Até meados do século XX prevaleceu a idéia de que os atos jurisdicionais, por constituírem emanação da soberania estatal, em razão de se revestirem dos atributos da coisa julgada e por não ofenderem direitos subjetivos não seriam aptos a gerar a responsabilidade civil do Estado.

Todavia, gradualmente tem se reconhecido que a idéia da irresponsabilidade civil do Estado pela prática de atos jurisdicionais não é compatível com a ordem constitucional vigente e que os obstáculos postos para tal responsabilização são falaciosos e não resistem a uma interpretação minimamente comprometida com a razão e a justiça.

Quem possui soberania é o Estado, enquanto entidade máxima do poder Político, e não o judiciário que exerce apenas uma fração do Poder estatal.

Ademais, se o argumento da soberania fosse plausível, o Estado estaria impedido de responder pelos atos praticados pelo Poder Executivo, que igualmente seria soberano e, com relação ao qual, não se contesta a responsabilidade.

As idéias de independência e imparcialidade do Juiz não podem ser aceitas para obstar a responsabilidade do Estado em virtude da prática de um ato jurisdicional, já estes são atributos inerentes a cada um dos Poderes, de sorte que o medo de causar um dano poderia influenciar o Executivo e o Legislativo.

A coisa julgada não constitui um embaraço para o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado em virtude da prática de um ato jurisdicional, vez que a decisão – ato jurisdicional – do qual emana a lesão, não se confunde com a decisão que reconhece o dano e determina o ressarcimento.

Para se intentar uma ação indenizatória em face do Estado onde se pretende o ressarcimento pelo dano causado pela prática de um ato jurisdicional, não se faz necessária à desconstituição do julgado danoso, pois que a decisões se distinguem em sua parte dispositiva e por decidirem coisas distintas não são colidentes, até porque, o dano causado pelo primeiro ato jurisdicional, e que deflui de sua parte dispositiva, será analisado pelo segundo, incidentalmente, como causa de pedir, na parte da sentença dedicada à fundamentação.

Superados todos os argumento adversos à responsabilidade civil do Estado pela prática de um ato jurisdicional, com supedâneo no que dispõe a Constituição vigente, é possível firmar que o Estado responderá civilmente pelos atos em apreço, quando decorrentes de erro judicial ou que acarretem a manutenção de alguém preso além do tempo fixado na sentença, de forma objetiva e com base na teoria do risco administrativo.

Do diálogo entre as normas constitucionais e delas com a legislação infraconstitucional que versam sobre o tema, inferimos que o Estado responderá sempre de forma primária e diretamente em face do lesado, já a responsabilidade do juiz não pode ser aferida em face daquele que sofre o dano, mas apenas, com relação ao Estado, por intermédio de ação regressiva manejada por este último. Esta é, inclusive, a orientação do 143 do Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105 de 2.015. Todavia, o Estado na ação regressiva que intentar contra o juiz, para se ver ressarcido, deverá comprovar que o magistrado agiu com dolo ou culpa.

A expressão “erro judiciário”, trazida pelo artigo 5º, LXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB de 1988, possui conteúdo aberto, sendo que seu conteúdo é explicitado pelas normas infraconstitucionais que versam sobre o tema, tais como o 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, o artigo 133 do Código de Processo Civil de 1.973, o artigo 630 do Código de Processo Penal e o artigo 143 do novel Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 2015.

Em virtude do regime distinto de responsabilização, em que pese à existência de decisões do Superior Tribunal de Justiça em sentido contrário, não se admite a denunciação da lide ao juiz pelo Estado na ação proposta pelo terceiro lesado por um ato jurisdicional.

 

Referências
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Notas
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.  p. 491
[2] WALD, Arnold. Direito das Obrigações, 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 35.
[3] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 492.
[4] GONÇALVES. Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 21.
[5] MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 680.
[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª  ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 523.
[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª  ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 525.
[8] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 228.
[9] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 861.
[10] Que abrange o dolo e a culpa em sentido estrito.
[11] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 494 et 495.
[12] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 229.
[13] MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 682.
[15] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 135.
[16] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª  ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 527.
[17] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 231.
[18] Idem. p. 232.
[19] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 233.
[20] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª  ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 528.
[21] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, p. 530
[22] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª  ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 431.
[23] Idem. p. 431.
[24] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 236.
[25] Vale lembrar que as Constituições anteriores apenas faziam menção às pessoas jurídicas de direito público.
[26] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª  ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 498.
[27] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 499.
[28] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 262.651-SP.
[29] Supremo Tribunal Federal.Recurso Extraordinário n.º 591.874-MS
[30] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 744 et 745.
[31] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 515.
[32] Vide: Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário  70.121-MG.
[33] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 257.
[34] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 516.
[35] Nessa linha leciona HELY LOPES MEIRELES que ”Essa distinção resulta do próprio texto constitucional, que só se refere aos agentes administrativos (servidores), sem aludir aos agentes políticos (parlamentares e magistrados), que não são servidores da Administração Pública, mas sim membros de Poderes de Estado”[35] (MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.)
[36] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 515.
[37] DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 214.
[38] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª ed. São Paulo: ed. Malheiros, p. 155 et 156.
[39] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A Responsabilidade Civil do Estado Pelo Exercício Da Função Jurisdicional No Brasil. AJURIS, n.º 59, nov. 1993, v. 20. p. 31
[40] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 258.
[41] Idem. p. 258.
[42] Tal conclusão encontra-se alicerçada no que preceitua o artigo 93, IX da Constituição, do artigo 131 do código de Processo Civil de 1973 e do artigo do novel Código de Processo Civil.
[43] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A Responsabilidade Civil do Estado Pelo Exercício Da Função Jurisdicional No Brasil. AJURIS, n.º 59, nov. 1993, v. 20. p. 36.
[44] Idem. p. 34.
[45]GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 25.
[46] MARINONI, Luiz Guilherme et ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 688.
[47] STOCO, Ruy. Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
[48] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 261.
[49] GUIMARÃES, Mário. O Juiz e a Função Jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 239.
[50] ALCÂNTARA, Maria Emília Mendes. Responsabilidade do Estado Por Atos Legislativos e Jurisdicionais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 29.
[51] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 264.
[52] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 516.
[53] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A Responsabilidade Civil do Estado Pelo Exercício Da Função Jurisdicional No Brasil. AJURIS, n.º 59, nov. 1993, v. 20. p. 38

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Fabrício Renê Cardoso de Pádua

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