A responsabilidade civil extracontratual do estado por omissão nas relações de trânsito

Resumo: O presente artigo busca estabelecer como se dão os contornos legais, doutrinários e jurisprudenciais acerca da responsabilidade civil extracontratual do Estado, por omissão, nos casos que envolvam relações de Trânsito.

Palavras-chaves: Responsabilidade Extracontratual; Estado; Relações de Trânsito.

Abstract: This article seeks to establish how the legal, doctrinal and jurisprudential aspects of the extracontractual civil responsibility of the State, for omission, in cases involving traffic affairs.

Key words: Extracontractual Responsibility; State; Traffic affairs.

Sumário: Introdução. 1- A responsabilidade Civil extracontratual do Estado. 1.1.- Fase da irresponsabilidade do Estado. 1.2- Fase das Teorias Civilistas. 1.3- Fase das teorias Publicistas. 1.3.1- Teoria da culpa Administrativa. 1.3.2- Teoria do Risco Administrativo. 2 – A Responsabilidade extracontratual do Estado segundo o Direito Brasileiro. 2.1- Evolução. 2.2- Modelo atual. 2.2.1- Responsabilidade objetiva do Estado. 2.2.2- Responsabilidade Subjetiva do Estado. 3- A responsabilidade extracontratual por omissão nas relações de trânsito. 3.1- Contorno legal sobre a responsabilidade civil estatal, por omissão, nas relações de trânsito. 3.2- Situações especiais: responsabilidade objetiva nos casos de omissão estatal. 3.3- Analise jurisprudencial acerca da responsabilidade estatal por omissão nas relações de trânsito. 3.3.1- Posição jurisprudencial a favor da aplicação da responsabilidade subjetiva do Estado. 3.3.2- Posição jurisprudencial a favor da aplicação da responsabilidade objetiva do Estado. Conclusão

Introdução

O Direito Administrativo moderno admite a responsabilidade estatal pelos danos causados aos particulares no desempenho das suas funções. Embora nem sempre tenha sido assim, como se verá, em um Estado pautado pela legalidade e pelo respeito à dignidade da pessoa humana não se poderia cogitar da impossibilidade de ressarcimento, por parte do Estado, aos particulares lesados.

Este trabalho buscará traçar, inicialmente, como esta responsabilidade estatal se dá. Se imprescinde da análise do elemento culpa, ou, ao revés, se ocorre de forma objetiva, bem como quais os fundamentos que escoram as posições em um ou em outro sentido.

Posteriormente se buscará delimitar, dentro do modelo traçado, como se dá a responsabilidade do Estado especificamente nos casos de omissões nas relações de trânsito. A relevância deste corte metodológico não é preciosismo acadêmico, ao contrário, traz enormes consequências práticas. Com efeito não são raros os exemplos nas vias de rodagens e avenidas do país da observância de desníveis, buracos, entulhos, má-sinalização, animais na pista, ausência de equipamentos públicos, etc. que decorrem da omissão estatal no sentido de manter e fiscalizar a segurança que se espera no trânsito. São casos em que o Estado simplesmente deixa de atuar propiciando, ainda que indiretamente, riscos aos particulares que se utilizam do trânsito.

Nestes casos, em que o Estado deveria atuar no sentido de garantir e fiscalizar um trânsito seguro, mas não o faz, em caso de dano, como se dará a responsabilização estatal? De forma objetiva? Subjetiva? Haverá a necessidade de o particular provar a culpa estatal? Este será um ônus seu?

 Este trabalho buscará, nas linhas seguintes, estabelecer os contornos legais, doutrinários e jurisprudenciais do tema.

1- A responsabilidade civil extracontratual do Estado.

A responsabilidade civil extracontratual do Estado nem sempre foi reconhecida, tendo evoluído ao longo do tempo até ser considerada em maior ou menor grau. Esta evolução se reflete na adoção de três fases teóricas, a saber: a fase da teoria da irresponsabilidade; a fase das teorias civilistas e a fase das teorias publicistas. Vejamos.

1.1.- Fase da irresponsabilidade do Estado.

Antes do surgimento do Direito Administrativo, portanto, até ao menos a metade do século XIX, e, notadamente, nos Estados Absolutistas, o Estado não poderia jamais ser responsabilizado por seus atos já que predominava o ideal de que o rei nunca errava. Essa situação resultava de uma concepção político-teológica que sustentava a origem divina do poder. Os governantes eram considerados representantes de Deus na terra, escolhidos e investidos diretamente pela própria divindade, por isso eventuais prejuízos causados pelo Estado deveriam ser atribuídos à providência divina. Além disso, tinha-se o entendimento de que todos os componentes do corpo social se beneficiavam da segurança e dos demais serviços prestados pelo Estado, motivo pelo qual todos, igualmente, deveriam suportar os ônus decorrentes das atividades estatais.

É certo que na França, já no ano de 1800, foi editada uma lei que tratava do ressarcimento por danos oriundos de obras públicas[1]. Porém, não se tratava ainda de reconhecer aí a responsabilidade por atos ilícitos do Estado. Se ato ilícito houvesse a ensejar indenização, esta seria da responsabilidade pessoal do agente causador do dano. Desta forma, a responsabilidade existiria em nome próprio e não como prepostos, como agentes do Estado.

Diógenes Gasparini assim discorre sobre esta fase: “A fase da irresponsabilidade civil do Estado vigorou de início em todos os Estados, mas notabilizou-se nos absolutistas. Nestes, negava-se tivesse a Administração Pública a obrigação de indenizar os prejuízos que seus agentes, nesta qualidade, pudessem causar aos administrados. Seu fundamento encontrava-se em outro princípio vetor do Estado absoluto ou Estado de polícia, segundo o qual o Estado não podia causar males ou danos a quem quer que fosse[2]”.

A teoria da irresponsabilidade estatal vigorou na França até meados do século XIX, sobretudo quando, por volta de 1873, o Tribunal de Conflitos julgou o famoso “Caso Blanco”, considerado pela doutrina como um dos marcos históricos da consolidação do Direito Administrativo.

De fato, o Tribunal de Conflitos, órgão da estrutura francesa que decide se uma causa vai ser julgada pelo conselho de Estado ou pelo Poder Judiciário, em 8 de fevereiro de 1873, analisou o caso da menina Agnes Blanco que, brincando nas ruas da cidade de Bordeaux, foi atingida por um pequeno vagão da Companhia Nacional de Manufatura de Fumo. O Aresto Blanco foi o primeiro posicionamento definitivo favorável à condenação do Estado por danos decorrentes do exercício das atividades administrativas. Por isso, o ano de 1873 pode ser considerado o divisor de águas entre o período da irresponsabilidade estatal e a fase da responsabilidade subjetiva.

Cumpre esclarecer, ainda, e conforme Hely Lopes Meirelles salienta, que alguns países de grande desenvolvimento só recentemente abandonaram a doutrina da irresponsabilidade do Estado. Os Estados Unidos da América, por exemplo, fizeram-no por meio de precedente, apenas em 1946, o mesmo ocorrendo na Inglaterra somente no ano de 1947[3].

1.2- Fase das Teorias Civilistas.

Sob influência do liberalismo restou superada a teoria da irresponsabilidade e se evoluiu para as teorias civilistas, as quais levavam em conta o elemento “culpa” para que se pudesse falar em responsabilidade. Eram, portanto, teorias acerca da responsabilidade subjetiva do Estado.

Estas teorias de responsabilidade subjetiva estavam apoiadas na lógica do Direito Civil, na medida em que o fundamento da responsabilidade era a noção de culpa. Daí a necessidade de a vítima comprovar a ocorrência simultânea de quatro requisitos: a) ato; b) dano; c) nexo causal; d) culpa ou dolo. Isto é, para a teoria subjetiva era sempre necessário demonstrar que o agente público atuou com intenção de lesar (dolo) ou com negligência, imprudência, imperícia.

Equiparava-se, portanto, o Estado ao particular para efeitos de indenização, procurando-se um agente culpado que justificasse a responsabilização. Na fase das teorias civilistas, o exame da culpa do agente estatal era feito segundo os mesmos parâmetros de avaliação da culpa dos particulares, isto é, o Estado e o particular eram, assim, tratados de forma igual. Ambos, em termos de responsabilidade patrimonial, respondiam conforme o direito privado, apenas se houvessem se comportado com culpa ou dolo. Caso contrário, não respondiam.

Sem a demonstração da culpa do agente Estatal, nada seria apurado e nenhuma responsabilização seria devida. Como assinala Mazza, embora tenha representado grande avanço em relação ao período anterior, a teoria subjetiva nunca se ajustou perfeitamente às relações de direito público diante da hipossuficiência do administrado frente ao Estado. A dificuldade da vítima em comprovar judicialmente a ocorrência de culpa ou dolo do agente público prejudicava a aplicabilidade e o funcionamento prático da teoria subjetiva. Foi necessário desenvolver uma teoria adaptada às peculiaridades da relação desequilibrada entre o Estado e o administrado[4].

É a partir desta constatação que se desenvolvem teorias publicistas, mas afetas ao regime público a que se submete o Estado. Vejamos.

1.3- Fase das teorias Publicistas.

As teorias publicistas podem ser divididas de acordo com a evolução histórica que a responsabilização estatal sofreu. Vejamos.

1.3.1- Teoria da culpa Administrativa

Seguindo a evolução, passou-se a entender que a responsabilidade do Estado não poderia ser regida pelas regras comuns do Código Civil, porquanto deveria ser levada em conta a atuação ininterrupta estatal com prerrogativas sobre os particulares. Buscou-se então um regime especial a ser aplicado ao Estado, observadas as peculiaridades de sua atuação.

Isto é, a solução civilista preconizada pela teoria da responsabilidade patrimonial com culpa, embora representasse um progresso em relação à teoria da irresponsabilidade patrimonial do Estado, não satisfazia os interesses de justiça. De fato, exigia-se muito dos administrados, pois o lesado tinha de demonstrar, além do dano, que ele fora causado pelo Estado e a atuação culposa ou dolosa do agente estatal.

A primeira teoria publicista baseou-se na chamada “culpa administrativa” ou “acidente administrativo” decorrente da doutrina francesa (faute du service). Para ela a culpa a ser perquirida seria a culpa do serviço, isto é, quando o serviço não existiu, quando funcionou mal ou mesmo quando este atrasou, não se indagando acerca da culpa individual do agente.

Sucede que, ainda apegada ao elemento culpa, trata-se de responsabilidade subjetiva do Estado que ocorrerá quando o serviço público simplesmente não funciona, ou, ainda, funciona de forma precária e insatisfatória. Dessa forma, fundamenta-se na culpa do próprio serviço denominada “culpa anônima”, já que não é preciso individualizá-la. Caberá, portanto, à vítima a comprovação da não prestação do serviço ou de sua prestação ineficiente, insatisfatória, a fim de ficar configurada a culpa do serviço e, consequentemente, a responsabilidade do Estado.

Procurou-se, portanto, centrar a obrigação de indenizar na culpa do serviço sempre que este não funcionava, funcionava mal ou mesmo funcionava atrasado (devendo funcionar em tempo). O êxito do pedido de indenização ficava, dessa forma, condicionado à demonstração, por parte da vítima, de que o serviço se houvera com culpa, embora fosse dispensada a prova da culpa individual do agente administrativo[5].

A teoria da culpa administrativa representou um meio termo na transição da teoria da responsabilidade subjetiva para a responsabilidade objetiva do Estado, e pode ser encontrada ainda hoje, segundo entendimento doutrinário, na disciplina da responsabilidade civil do Estado nos casos de omissão, conforme se verá em tópico próprio do presente trabalho.

1.3.2- Teoria do Risco Administrativo.

A evolução do tema da responsabilidade do Estado levou a uma gradativa substituição da ideia de “culpa administrativa” pela de “risco administrativo”, passando-se a reconhecer hipóteses de responsabilidade objetiva por parte do Estado.

Aqui não se fala mais em culpa ou falta do serviço por parte da Administração Pública, que responderá quando ocorra dano produzido por um agente estatal no desempenho de uma função pública (nexo causal). Não se exige mais a falta do serviço, pois o próprio fato do serviço por si só já vincula o Estado ao eventual dano produzido.

Pela Teoria do Risco Administrativo, a noção de culpa é substituída pela de nexo causal entre o comportamento do Estado e o dano sofrido pelo particular, sem se cogitar da culpa do serviço, tampouco da culpa do agente específico.

Ela toma por base os seguintes aspectos: O risco que a atividade administrativa potencialmente gera para os administrados e a necessidade de se repartir, entre todos, os benefícios gerados pela atuação estatal, mas também os encargos decorrentes de sua atuação. Isto é, a teoria leva em conta o risco que a atividade do Estado proporciona para os particulares.

Desta forma, quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais. Para restabelecer esse equilíbrio o Estado deve indenizar o prejudicado utilizando recursos do erário público.

Porém, é preciso atentar que o risco administrativo é uma teoria que apesar de lastreada na responsabilidade objetiva, admite excludentes e atenuantes que rompem com o nexo causal entre a conduta e o resultado lesivo. Ou seja, a responsabilidade fica diminuída ou até mesmo afastada se restar provado que a vítima concorreu, parcial ou totalmente, para o evento danoso, ou de que houve culpa de terceiro ou, ainda, motivo de força maior, e na hipótese de caso fortuito.

Observada a evolução histórica da responsabilização estatal, passemos a observar como esta se encontra disciplinada em nosso ordenamento. Vejamos.

2 – A Responsabilidade extracontratual do Estado segundo o Direito Brasileiro

2.1- Evolução.

A teoria da irresponsabilidade do Estado jamais foi adotada no Brasil. No entanto, em sua primeira fase, o Direito Brasileiro adotou as teorias civilistas fundadas na responsabilidade subjetiva, tal como previsto no art.15 do Código Civil de 1916.

Com o advento da Constituição de 1934, o direito brasileiro afastou a ideia de culpa advinda das teorias civilistas, contemplando a culpa sob regime publicístico (culpa anônima). A responsabilidade do Estado continuou sendo apenas subjetiva, ainda que distinta do direito privado, situação mantida com a Constituição de 1937.

Somente com a Constituição de 1946, passou-se a adotar no Brasil, além da responsabilidade subjetiva, também a responsabilidade objetiva do Estado, conforme previsto em seu art.194, cuja redação excluía a ideia comum de culpa disposta no Código Civil. Tal modelo perdurou com as Constituições de 1967/69 e 1988, com o acréscimo da possibilidade de ação regressiva contra o funcionário causador do dano, bem como da responsabilidade das pessoas jurídicas privadas prestadoras de serviços públicos.

2.2- Modelo atual.

A responsabilidade extracontratual do Estado atualmente encontra previsão na norma do art.37, §6º, da Constituição Federal de 1988, vazada nos seguintes termos: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

O novo Código Civil (Lei 10.406/2002), em seu artigo 43, passou a disciplinar o tema em estrita conformidade com a Carta Magna estabelecendo, portanto, a regra da responsabilidade objetiva do Estado.

Sucede que, mesmo com as previsões acima expostas a doutrina e jurisprudência vêm entendendo que ainda existe espaço, no nosso Direito, para a teoria da culpa administrativa, em especial no caso de omissão estatal, conforme se verá.

2.2.1- Responsabilidade objetiva do Estado.

É a regra geral para os atos praticados pela Administração Pública, consistente na obrigação de indenizar em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem. Para configurá-lo basta a existência de um dano e um nexo que o ligue ao Estado, por força expressa do mandamento constante no art.37, §6º da Constituição da República.

Todavia, como visto, a teoria do risco administrativo admite hipóteses excludentes da responsabilidade, fundadas na culpa exclusiva da vítima, culpa exclusiva de terceiro, caso fortuito ou força maior. Admite, ainda, a atenuação da responsabilidade estatal se houver culpa concorrente da vítima, conforme acima explicitado.

Nesse prisma, já decidiu o colendo Supremo Tribunal Federal que: “O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior; ou evidentemente de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima [6]”.

Ademais, esclareça-se que a responsabilidade objetiva de sede constitucional não abarca apenas as pessoas Jurídicas de Direito Público, como, também, às pessoas jurídicas de Direito Privado, pertencentes à estrutura Estatal ou não (uma concessionária ou permissionária, por exemplo, está abarcada pela responsabilização objetiva, inclusive quanto a terceiros não usuários do serviço[7]) desde que prestadoras de Serviço Público.

Em suma, estas pessoas respondem independentemente de culpa pelos danos que seus agentes, nesta condição, causarem a terceiros. É, portanto, a teoria do risco administrativo a regra em nosso ordenamento.

2.2.2- Responsabilidade Subjetiva do Estado.

Esta teoria, na linha de pensamento seguida por grande parte da doutrina pátria[8], é aplicada em relação aos atos omissivos do Estado, o que ocorre quando o serviço público não funciona ou não funciona bem. Nesses casos, não se poderia aplicar simplesmente a teoria da responsabilidade objetiva, não bastando a mera relação causal entre a ausência do serviço e o dano produzido.

Isto é, em se tratando de conduta omissiva, somente quando o Estado tivesse o dever legal de impedir a ocorrência do dano é que seria responsável civilmente e obrigado a reparar os prejuízos. A consequência, desta maneira, reside em que a responsabilidade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam a culpa. A culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano[9].

De fato, alegam respeitados doutrinadores, eventual responsabilidade estatal objetiva, nos casos de atos omissivos, poderia determinar verdadeiro caos na hipótese de o Estado ser chamado a responder por todo evento danoso que não tenha causado diretamente. Seria transformar o Estado em uma espécie de segurador universal imputando-lhe a culpa por tudo que desse errado na vida cotidiana das pessoas.

Salientando a importância do tema, Sylvio Motta e William Douglas asseveram que “através da habilidade de mentes instruídas e quase geniais, é possível criar em quase todo prejuízo de uma pessoa ou grupo econômico alguma relação com a Administração, seja por sua ação ou omissão[10]”.

Trata-se, ressalte-se, de culpa anônima, ou seja, não individualizada, caracterizada pela falta do serviço. Isto é, a omissão não se daria pela culpa do agente, mas de todo o serviço que deixou de funcionar, permitindo o dano[11].

Assim, poder-se-ia cogitar de responsabilidade estatal por omissão, quando da ocorrência de um fato da natureza cujas consequências o poder público não evitou, quando possível e quando devesse fazê-lo, como o alagamento de uma casa por chuvas previsíveis, e se ficar demonstrado que a realização regular de determinados serviços de limpeza dos rios ou bueiros e galerias de águas pluviais teria sido suficiente para impedir a enchente, ou, ainda, diante de comportamentos de terceiros cuja atuação lesiva não foi impedida pelo Estado quando este podia e devia agir, um roubo realizado diante de uma guarnição policial, por exemplo. Em ambos casos, não se cogita de culpa de um agente específico, mas de todo o serviço público que falhou.

Registre-se, por fim, que esta é uma construção doutrinária, capitaneada pelo ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello[12], mas sem qualquer amparo legal, posto que nem o texto constitucional e nem a legislação pátria fazem tal divisão.

Vencidos os aspectos introdutórios ingressaremos agora no corte metodológico proposto por este artigo. Isto é, passaremos a analisar a responsabilidade estatal, com destaque para os casos de omissão nas relações de trânsito. É o que veremos a seguir.

3- A responsabilidade extracontratual por omissão nas relações de trânsito

3.1- Contorno legal sobre a responsabilidade civil estatal, por omissão, nas relações de trânsito.

O presente tópico destina-se a analisar qual tratamento foi dado, pelo legislador pátrio, à responsabilidade civil do Estado nas relações de trânsito, e mais especificamente às omissões estatais quando causadoras de danos à particulares.

A resposta, sem dúvida alguma é dada pelo Art. 1°, § 3º do Código de Trânsito Brasileiro, que de forma enfática informa: “Os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro”.

Inicialmente, cumpre observar que andou de forma pouco técnica o legislador pátrio. De fato, sabemos que os órgãos não possuem personalidade jurídica, de modo que não podem ser responsabilizados civilmente. Isto é, como referido no tópico anterior, são as entidades a que estão ligados que serão responsáveis por eventual indenização.

A despeito da imprecisão técnica acima observada não parece haver dúvidas, a responsabilidade pelas omissões do Estado é objetiva. Isto é, o dispositivo é claro e ainda que por uma interpretação hermenêutica simplista, literal, não parece haver margem para divergências. Presentes o dano e o nexo causal, não há que se falar da análise da culpa ou não, seja do Estado como entidade jurídica, ou, menos ainda, de algum dos seus agentes de forma específica.

Esse entendimento é igualmente difundido em meio doutrinário, de modo a não prejudicar a pretensão deduzida na sua substância de reparação do dano. Tomemos como exemplo: “Em suma, ocorrerá esta modalidade de responsabilidade quando o Estado, embora não atue diretamente no dano, faz surgir a situação propiciadora do risco. Aqui a responsabilidade também será objetiva (…) haverá a responsabilidade do Estado, por esta hipótese, quando ocorre um acidente de trânsito causados por problemas nos semáforos[13]”.Também é a opinião de José Aras ao afirmar que: “O código de Trânsito, por sua vez, estabelece a responsabilidade do Estado (de acordo com suas respectivas competências) quanto aos danos decorrentes de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito ao trânsito seguro, ocasionando o direito a indenização baseada na responsabilidade objetiva do Estado[14]”.

Abordado o aspecto legal da responsabilidade estatal por omissão nas relações de trânsito, cabe situar esta previsão no contexto doutrinário acima especificado. Isto é, foi dito que prevalece em nossa doutrina a ideia de que a responsabilidade estatal é objetiva para as ações do Estado, pelos comportamentos comissivos, enquanto que prevalece a ideia da responsabilização estatal subjetiva (por culpa anônima) para as omissões estatais. Como compatibilizar este entendimento com a disposição legal acima citada? É o que se espera abordar no próximo tópico.

3.2- Situações especiais: responsabilidade objetiva nos casos de omissão estatal.

Como referido, predomina na doutrina pátria a ideia de que o Estado deve responder subjetivamente pelos seus atos omissivos, com fundamentos expressos em tópico próprio deste trabalho. Sucede que existem hipóteses, no entanto, em que mesmo nos casos de danos decorrentes da omissão estatal será objetiva a sua responsabilidade[15], aplicando-se a teoria do risco administrativo, isto é, sem a análise da presença ou não de culpa do serviço.

Estas situações especiais se dão nas hipóteses em que o Estado não é o causador direto do dano, e sim indireto, de maneira que a Administração propicia uma situação que gera risco de dano, prevista na Constituição ou em lei, ou ainda porque presente uma situação de custódia.

De fato, hipóteses existem em que a própria Constituição ou norma infraconstitucional reconhece que o Estado deve agir, e mesmo não sendo o causador direto do dano é reconhecida a responsabilidade objetiva pela situação que gerou o risco do prejuízo. Isto é, hipóteses em que o Estado não é o causador direto do dano, mas sim indireto. É o que ocorre, por exemplo, quando a Constituição Federal imputa responsabilidade objetiva ao Estado por danos nucleares, ainda que derivado de uma conduta omissiva, nos termos do artigo 21, XXIII, d, da Constituição Federal de 1988[16].

É o mesmo o que ocorre na responsabilidade por omissão nas relações de trânsito, por disposição do citado Art. 1°, § 3º do Código de Trânsito Brasileiro, hipótese em que os integrantes do Sistema Nacional de Trânsito respondem objetivamente ainda que o dano decorra da omissão na garantia do direito ao trânsito seguro, como visto.

Situações de custódia, por sua vez, representam uma segunda classe de exceções. São casos em que o Estado possui vínculos especiais com certas pessoas, tais como servidores públicos, alunos de escolas públicas, presos mantidos em cadeias e penitenciárias, submetidas, portanto, a regime disciplinar mais rigoroso e que, por consequência, devem seguir parâmetros distintos de responsabilidade por parte do Estado.

Assim, se um detento que possui vínculo especial com o Estado, mata ou lesiona outro detento dentro da prisão, o Estado é responsabilizado independentemente de culpa ante a omissão de seus agentes penitenciários[17]. Pode-se citar, ainda, como exemplos a criança vítima de violência dentro de escola pública ou a hipótese de bens privados danificados em galpão da Receita Federal. Nessas hipóteses de vínculo especial a responsabilidade guiar-se-á pela teoria do risco administrativo.

A imputação de responsabilidade objetiva pela omissão estatal, é, portanto, situação excepcional dentro da qual se insere a omissão das entidades de trânsito. No entanto, ao contrário do que se possa supor, a disposição literal do Código de Trânsito Brasileiro não representa necessariamente o reconhecimento da responsabilidade por risco administrativo do Estado. Isso se dá porque a jurisprudência não é unânime no reconhecimento da responsabilização independente de culpa, havendo, ao revés, uma enorme controvérsia sobre o entendimento a ser aplicado no caso. É o que veremos a seguir.

3.3- Analise jurisprudencial acerca da responsabilidade estatal por omissão nas relações de trânsito.

Conforme adiantado acima, em que pese a dicção literal do dispositivo do Código de Trânsito Brasileiro é possível vislumbrar, na jurisprudência dos nossos tribunais, verdadeira divergência de entendimento de modo que não há uma pacificação sobre o assunto, embora se possa perceber uma evolução jurisprudencial e uma tendência mais contemporânea, conforme se destacará. Passemos então a análise dos julgados.

3.3.1- Posição jurisprudencial a favor da aplicação da responsabilidade subjetiva do Estado.

De fato, no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça é possível se vislumbrar a adoção da tese da responsabilização subjetiva do Estado por conta de omissões nas relações de trânsito. Importante observar que este entendimento impõe ao particular o ônus de provar a culpa, em sentido lato, do Estado, enquanto que o reconhecimento da responsabilidade objetiva o libertaria do mesmo.

São exemplos de julgados que adotaram a tese da responsabilidade subjetiva do Estado, por danos decorrentes de omissões em relações de trânsito:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRÂNSITO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO ESTADO. CULPA CONCORRENTE DA VÍTIMA. MATÉRIA SUSCITADA DE MODO INAUGURAL NO AGRAVO REGIMENTAL. ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE O FATO DANOSO E A CONDUTA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS.

1. A discussão sobre a possibilidade de existência de culpa concorrente da vítima é matéria trazida a debate tão somente neste momento processual. Cuida-se de inovação recursal, insuscetível, portanto, de apreciação.

2. A análise do acervo fático-probatório dos autos é providência incompatível com a via recursal extraordinária, nos termos da Súmula 279/STF.

3. Agravo regimental desprovido[18].

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL AUSÊNCIA DE SINALIZAÇAO EM VIA PÚBLICA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ATO OMISSIVO AUSÊNCIA DE PRECAUÇAO DA CONDUTORA CULPA RECÍPROCA HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SÚMULA 7/STJ.

1. Omissão do Município em conservar de forma adequada a sinalização de trânsito, diante disso, deve ser responsabilizado subjetivamente pelos danos suportados.

2. Parcela de culpa também da condutora, uma vez que deveria ter tomado mais cuidado ao passar por cruzamento não sinalizado, uma vez que a mesma trafegava em pista com sinais horizontais informando a passagem de pedestres, sendo este outro fato que justifica o dever de cuidado.

3. Incidência da Súmula 7 do STJ em face de revisão de honorários advocatícios.

4. Recurso especial em parte conhecido, e nesta parte não provido[19].

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO. ACIDENTE DE TRÂNSITO PROVOCADO POR FALHA NA PAVIMENTAÇÃO (BURACO) DE RODOVIA FEDERAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. RITO SUMÁRIO. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 277, § 5º, DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. CONVERSÃO PARA O RITO COMUM ORDINÁRIO. DESNECESSIDADE. DESPROVIMENTO.

1. A ação de indenização por danos materiais causados em acidente de veículo de via terrestre processar-se-á pelo rito comum ordinário, independentemente do valor da causa (CPC, art. 275, II, d).

2. O art. 277, § 5º, do CPC, autoriza a conversão do rito sumário para o ordinário quando houver necessidade de prova técnica de maior complexidade.

3. O TRF da 1ª Região, com base nos fatos e provas, conclui que: (I) restou caracterizada a responsabilidade civil da recorrente; (II) foram comprovados o ato lesivo, os danos materiais, o nexo de causalidade e a omissão do Estado; (III) não houve culpa (negligência) do motorista no acidente.

4. O conjunto de provas produzidas nos autos (documentos, testemunhas e perícia técnica) foi suficiente para julgar a lide. Portanto, revela-se completamente desnecessária a realização de prova técnica complexa e, assim, totalmente impertinente a conversão do procedimento.

5. Recurso especial desprovido[20].

Pode-se observar que os referidos julgados, e outros tantos, quando enfrentam o mérito, ainda que como mera fundamentação, não fazem menção expressa à disposição do Código de Trânsito Brasileiro. De fato, limitam-se a destacar a cisão doutrinária acerca da responsabilidade civil por omissão e a necessidade de não se considerar o Estado como um segurador universal. Data vênia, o não reconhecimento da responsabilidade objetiva quando da omissão estatal na relação de trânsito significa discricionariedade judicial, pois faz preponderar argumentos práticos ou sociológicos sobre o direito ao trânsito seguro garantido por lei.

Isto é, a lei ao reconhecer a responsabilidade do Estado, quando este se omite, deu ao mesmo tempo uma garantia ao cidadão tanto quanto impôs um dever de agir ainda mais acentuado ao Estado do que o que se observa naturalmente pelo manejo da coisa pública. Argumentos como a ausência de recursos, ou a cláusula da reserva do possível sequer deveriam estar presentes, ante o fato de que, por opção legislativa, a análise da culpa estatal é dispensada. Presente o dano e o nexo (que pode se dar pela ausência de conservação de rodovias e avenidas, a falta de sinalização, entulho na pista, etc.) a responsabilidade civil se impõe.

Ante o exposto, percebe-se que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, por vezes, ignora completamente a disposição do Art. 1°, § 3º do Código de Trânsito Brasileiro preferindo aplicar a este caso específico a regra predominante, em nossa doutrina, de que a responsabilidade pelas omissões estatais é subjetiva, baseada na doutrina da falta do serviço.

Este, no entanto, não é um entendimento unânime, restando vezes em que nossos tribunais andam em direção completamente oposta, isto é, no sentido de reconhecer a responsabilidade objetiva do Estado nas omissões relacionadas ao trânsito. É o que se verá.

3.3.2- Posição jurisprudencial a favor da aplicação da responsabilidade objetiva do Estado.

Como referido, em que pese o posicionamento acima descrito é possível se observar outros tantos julgados em que se reconhece a responsabilidade estatal objetiva nos casos de omissões nas relações de trânsito, tanto nos nossos tribunais superiores quanto em nível de Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais. São exemplos[21]:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. ACIDENTE DE TRÂNSITO EM RODOVIA FEDERAL. BURACO NA PISTA. AUSÊNCIA DE SINALIZAÇÃO. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. DESNECESSIDADE.

1. O STJ tem entendimento de não ser obrigatória a denunciação à lide de empresa contratada pela administração para prestar serviço de conservação de rodovias, nas ações de indenização baseadas na responsabilidade civil objetiva do Estado.

2. Agravo Regimental não provido”.[22]

APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS CONTRA O DAER- DEPARTAMENTO AUTÔNOMO DE ESTRADAS E RODAGEM E CONTRA O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MATERIAIS. CONSERVAÇÃO DE RODOVIA ESTADUAL. BURACO NA PISTA ASFÁLTICA. DAER. NEXO CAUSAL CONFIGURADO. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO STJ. JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA. CUSTAS PROCESSUAIS.

Tratando-se de omissão específica, o regime jurídico aplicável é o da responsabilidade objetiva, prescindindo, a responsabilização, da prova de dolo ou culpa. Assim, provada a má conservação da rodovia estadual, de responsabilidade do DAER, e provado que o buraco nela existente causou o dano no patrimônio dos autores, como no caso dos autos, impõe-se a procedência da demanda. Note-se que o automóvel dos autores teve seus dois pneus danificados quando a família trafegava pela rodovia, durante a noite. Nesse contexto, as provas produzidas – documentais e testemunhais – são suficientes para atestar os fatos narrados, constitutivos do direito de reparação do prejuízo experimentado.”[23]

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO EM RODOVIA FEDERAL CAUSADO POR UM BURACO NA PISTA. LEGITIMIDADE PASSIVA DO DNIT. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS. VALOR DA CAUSA

Restou demonstrado o nexo causal entre a conduta omissiva do DNIT e o dano material suportado pelo autor que, em face de acidente provocado pela má-conservação de rodovia federal, sofreu acidente e teve seu automóvel, bem como o de terceiro bastante danificados[24].

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. DNER. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. MÁ CONSERVAÇÃO DE RODOVIA FEDERAL. BURACOS NA PISTA. SINALIZAÇÃO. AUSÊNCIA. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE DE FILHO MENOR. PERDA DE VISÃO DE UM OLHO PELO CONDUTOR. CAPACIDADE LABORATIVA. REDUÇÃO. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS.

 A Constituição acolhe a teoria da responsabilidade objetiva da Administração por atos de seus agentes, bastando para sua responsabilização que a vítima demonstre o dano e o nexo causal (CF, art. 37, § 6º). Afasta-se, porém, a responsabilidade da Administração em caso de culpa exclusiva da vítima ou de terceiros e ainda na hipótese de caso fortuito ou força maior[25].

As referidas jurisprudências, muitas das quais recentes, demonstram uma verdadeira evolução jurisprudencial. Isto é, pode-se observar uma evolução no sentido cada vez mais comum de se reconhecer a responsabilidade objetiva do Estado nos diversos casos que envolvem omissão em relações de trânsito, tais como buracos na pista, ausência de sinalização, desnivelamento, entulhos, etc.

Quer-se com isso dizer que é possível se vislumbrar, por parte de nossos tribunais, o reconhecimento cada vez mais constante da responsabilidade independente de culpa por parte do Estado em hipóteses nas quais deveria atuar para promover o direito ao trânsito seguro e quedou-se inerte.

São estas as considerações acerca da jurisprudência pátria.

Conclusão

O presente trabalho teve o objetivo, dentro das limitações a que se propôs, de definir qual o regime previsto no ordenamento brasileiro para os casos de responsabilidade extracontratual do Estado, quando verificadas omissões em relações que envolvem situações de trânsito, reguladas, portanto, pelo Código de Trânsito Brasileiro (lei 9503/97)

Estabeleceu-se que a legislação de trânsito de forma expressa imputou ao Estado responsabilidade objetiva tanto pelos atos comissivos quanto omissivos dos integrantes do Sistema Nacional de Trânsito, no âmbito de suas competências. Isto é, de forma expressa a legislação impôs aos entes públicos a responsabilização objetiva pelos danos causados aos particulares. Procurou-se, igualmente, compatibilizar a opção legislativa com o tratamento dado à matéria pela doutrina nacional, chegando-se à conclusão que é possível, excepcionalmente, que a própria Constituição ou norma infraconstitucional reconheça que o Estado deve agir, e mesmo não sendo o causador direto do dano lhe imputar a responsabilidade objetiva pela situação que gerou o risco de prejuízo. Isto é, hipóteses em que o Estado não é o causador direto do dano, mas sim indireto, e mesmo assim será responsabilizado de forma objetiva.

Demonstramos que apesar da literalidade do dispositivo legal, a jurisprudência pátria não é uníssona no reconhecimento da responsabilidade objetiva por omissão em relações de trânsito. Constatamos que diversos julgados optam pela construção doutrinária genérica impondo ao Estado uma responsabilização subjetiva pelos atos omissivos. Tais julgados, em regra, não fazem menção expressa à disposição do Código de Trânsito Brasileiro. De fato, limitam-se a destacar a cisão doutrinária acerca da responsabilidade civil por omissão e a necessidade de não se considerar o Estado como um segurador Universal.

Apesar dos citados julgados, demonstramos que modernamente a jurisprudência passou a reconhecer o caráter objetivo da responsabilização estatal por omissão nas relações de trânsito. Concluímos que há, em curso, uma verdadeira evolução jurisprudencial no sentido de se reconhecer a responsabilidade objetiva, ainda que em casos de omissão, em consonância com a determinação legal.

Tal reconhecimento caso se confirme, como a tendência aqui exposta, terá fundamental importância. Com efeito, não são raros os exemplos nas vias de rodagens e avenidas da observância de desníveis, buracos, entulhos, má-sinalização, ausência de equipamentos públicos, etc. que geram danos dos mais diversos, frutos da ineficiência do Estado em aplicar de forma satisfatória os recursos arrecadados com os impostos.

Isto é, a lei ao reconhecer a responsabilidade objetiva do Estado, quando este se omite, deu ao mesmo tempo uma garantia ao cidadão tanto quanto impôs um dever de agir ainda mais acentuado ao Estado, que não deve se manter inerte.

De todo o exposto, percebe-se que a jurisprudência vem evoluindo no sentido do reconhecimento da responsabilidade objetiva do Estado nas omissões que envolvem situações de trânsito, buscando dar efetividade ao disposto no Art. 1°, § 3º do Código de Trânsito Brasileiro.

É a conclusão a que se pode chegar com este artigo.

 

Referências
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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito Administrativo. 23° Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
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COUTO E SILVA, Almiro. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Cadernos de Direito Público RPGE, Porto Alegre, v. 27, 2004.
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TELLES, Antônio Queiroz. Introdução ao Direito Administrativo, RT:SP, 1995.
Notas:
[1] Em data conhecida como o 28 Pluvioso do Ano VIII, no calendário Napoleônico (oito anos após 1792).
[2] GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 8° Edição. Saraiva: São Paulo. 2003, pag.968.
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.531.
[4] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 278.
[5] GASPARINI, Diógenes. op. cit., p.970.
[6] STF, RE.109615/ RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, Julgamento: 28/05/1996, Publicação: 02-08-1996.
[7] STF RE 591847, Rel. Min Ricardo Lewandowski, julgado em: 26/08/2009, publicado em: 18/12/2009.
[8] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito Administrativo. 23° Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, pag.895-900. Nesse sentido, igualmente, e há muitos anos, BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, Vol.II, 1979. É o mesmo pensamento presente, ainda, em FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 6° edição. São Paulo: Malheiros, 2003, pag.264
[9] CARVALHO FILHO Manual de Direito Administrativo. 24° Edição. Editora Lumen juris, Rio de janeiro. 2011. op. cit., p.518.
[10] MOTTA, Sylvio; DOUGLAS, William. Direito constitucional. 8°. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2001, p.309.
[11] Nesse sentido: STF, RE 382054/RJ, Relator: Min. Carlos Velloso, julgado em:03/08/2004, publicado em: 01/10/2004.
[12] Em sentido contrário, entre outros: LAZZARINI, Álvaro. Responsabilidade civil do Estado por atos omissivos dos seus agentes. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – RJTJSP. n. 117, p. 8-26.
[13] CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 10° edição. Salvador: editora Juspodium, 2011., pag.343.
[14] ARAS, José. Curso Prático de Direito Administrativo. Salvador: Editora triunfo. 2015.pag.443.
[15] Neste sentido: COUTO E SILVA, Almiro. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Cadernos de Direito Público RPGE, Porto Alegre, v. 27, 2004, pag. 149-170.
[16] Cumpre aqui salientar que predomina o entendimento que esta hipótese é verdadeiro caso de responsabilidade por risco integral, entendida esta como aquela que deriva unicamente do dano causado, de modo que não haveria a quebra do nexo por nenhuma hipótese excludente de responsabilidade. Sobre o tema: RIBEIRO BARROS, Adriano Celestino. A responsabilidade Civil e o Dano Nuclear. Disponível em:http://www.conjur.com.br/2009-out-09/responsabilidade-civil-dano-nuclear-ordenamento-patrio. Acessado em 20 de dezembro de 2015.
[17] Neste sentido: STF, RE272389, Relator: Min. Gilmar Mendes, julgado em: 01/02/2005, publicado em: 08/04/2005.
[18] STF Ag.REg RE: 538902/MT, Relator: Min. Ayres Brito. Segunda Turma, data de julgamento: 29/03/2011, data de publicação: 22/06/2011.
[19] STJ Resp 951625/RS, Relatora: Min. Eliana Calmon. Segunda Turma, data do julgamento: 19/09/2008, data da publicação: 21/10/2008.
[20] STJ Resp 647216/DF, Relatora: Min. Denise Arruda, Primeira Turma, data do julgamento: 27/03/2007, data da publicação: 30/04/2007.
[21] No âmbito do Supremo Tribunal Federal, ainda que em decisões monocráticas, é possível se vislumbrar uma tendência futura no sentido de se reconhecer a responsabilidade objetiva. Veja-se:
RE 449385, Relator: Min. Dias Toffoli, julgado em 08/04/2010, publicado em 27/04/2010.
RE 476196, Relatora: Min. Ellen Gracie, julgado em 19/12/2008, publicado 04/02/2009.
[22] STJ. AgRg no AResp 534613/SC. Relator: Min. Herman Benjamim, Segunda Turma, data do julgamento: 18/12/2014, Data da publicação: 02/02/2015. No mesmo sentido: STJ. AgRg no AREsp 607.947/PB, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 18/12/2014, publicado em 03/02/2015.
[23] TJ-RS. Apelação Cível Nº 70061276838, Relatora: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, Décima Segunda Câmara Cível, Julgado em 30/07/2015, publicado em: 04/08/2015.
[24] TRF-5 – AC: 200983000131730, Relator: Manoel Erhardt, Primeira Turma, Data de Julgamento: 12/07/2012, Data de Publicação: 19/07/2012.
[25] TRF-1 – AC: 452 DF 1999.34.00.000452-9, Relator: João Batista Moreira, Quinta Turma, Data de Julgamento: 02/12/2009, Data de Publicação: 17/12/2009.

Informações Sobre o Autor

Eduardo Herbert Lordão Souza

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia UFBA. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes UCAM/RJ


Equipe Âmbito Jurídico

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