Resumo: Nos últimos anos, o tema relacionado aos desastres naturais tem ecoado de forma contundente. Nesse cenário de episódios extremos, o de maior ocorrência são as enchentes e, mais especificamente, as inundações urbanas, reservando às populações que residem nessas áreas danos que, por muitas vezes, são irreversíveis. Nesse âmbito, o presente artigo busca refletir sobre as enchentes nas comunidades ribeirinhas sob o enfoque do seguinte crucial questionamento: de quem é a responsabilidade pelos danos causados por essas enchentes? Tal questionamento existe, visto que se verifica, muitas vezes, a omissão estatal em implementar políticas públicas que atendam de modo adequado e suficiente à tutela do ambiente, especialmente no tocante a ocupação irregular e a sua relação com os desastres naturais.
Palavras-chaves: responsabilidade civil; enchentes; população ribeirinha.
Abstract: In recent years, the issue related to natural disasters has echoed forcefully. In this scenario of extreme episodes, the most frequent are floods, and more specifically, urban flooding, reserving to the people these areas damage which in many cases are irreversible. In this context, this article seeks to reflect on the floods in riverine communities under the focus of the crucial question: who is responsible for damage caused by these floods? Such questioning exists because there is often a public omission to implement policies that address adequate and sufficient protection of the environment, especially regarding the illegal occupation and its relationship with natural disasters.
Keywords: civil responsibility; floods; riverine community.
Sumário: Introdução. 1. Repartição de competências em matéria ambiental na constituição de 1988. 2. Responsabilidade civil do estado pelos danos causados às pessoas atingidas por desastres naturais. 3. O dilema socioambiental das cidades. 4. Gestão de recursos hídricos. 5. Populações ribeirinhas. Conclusão. Referências.
Introdução
O Estado tem como responsabilidade fornecer prestações socioambientais (moradia, saúde, alimentação, renda mínima, assistência social, qualidade ambiental, etc.) às pessoas e, principalmente, àquelas atingidas por tais episódios[1].
O artigo 2º da Lei 12.608/12 deixa bem claro que é dever da União, dos estados, do distrito federal e dos municípios adotarem as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre.
É preciso deixar claro que a denominada “injustiça social”, afeta de forma mais intensa as pessoas que são menos favorecidas economicamente, as quais possuem um acesso mais restrito aos serviços públicos essenciais (água, saneamento básico, educação, saúde, etc.), bem como dispõem de um acesso muito mais limitado à informação de natureza ambiental, o que acaba por comprimir a sua autonomia e liberdade de escolha, impedindo que evitem determinados riscos ambientais por absoluta (ou mesmo parcial) falta de informação e conhecimento, ou seja, não têm percepção global do risco. Diante de tal quadro de injustiça socioambiental, reforça-se o dever do Estado de tutelar os direitos fundamentais e a dignidade de tais pessoas, inclusive sob a perspectiva da sua responsabilização por condutas omissivas em face do seu dever de proteção ambiental quando guardem alguma relação causal, mesmo que indireta, com os danos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos por tais pessoas, (LEITE & AYALA, 2002).
No Brasil, existem legislações, na maioria das vezes complexas para a solução de tais problemas e ainda para dificultar o processo, tanto de preservação quanto de recuperação das áreas afetadas, a determinação de qual ente será àquele que efetivamente solucionará o problema.
Sabe-se que o desastre ocorre localmente e que o município não tem o poder de gestão desses eventos até que tal situação seja enxergada pelo ente federal e o recurso seja disponibilizado para medidas cabíveis.
O município pode não dispor de recursos financeiros para o enfrentamento a um desastre, entretanto cabe a ele a legislação de ordenamento do uso e ocupação do solo, conforme artigo 37 da Lei 10.257/01 e, neste aspecto, ele é responsável pela ocupação irregular. A gestão ambiental dos solos possui atribuição compartilhada entre os três níveis federativos (união, estados e municípios), mas cabe ao poder público municipal, e seus gestores, a atribuição complementar de estabelecer diretrizes sobre o uso e ocupação de áreas não contempladas pelos níveis federal e estadual. Cabe ainda, ao município, executar diretamente a política urbana e em particular a gestão ambiental do território urbano.
O fato é que, nas condições atuais, não se vislumbra uma comunicação efetiva entre os entes federados quanto a essa questão, ou seja, a realidade respectiva a cada localidade só pertence a ela, não há visão desta pelos órgãos federais, que é de onde advêm os recursos como no caso de um reconhecimento de situação de emergência ou de estado de calamidade pública, após declaração pelo município (Lei 12.608/12). Essa realidade precisa ser enxergada pelos órgãos gestores de recursos hídricos, pois nem mesmo com o advento da Lei 12.608/12[2], determinando a atuação articulada entre todas as esferas de governo, sancionada pelo governo federal, que se apoia conceitualmente e estrategicamente em uma abordagem de cunho preventivo, onde se coloca como objetivo maior a eliminação radical das áreas de risco através da instituição e manutenção pela União de cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, acompanhada da obrigação do monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas consideradas de risco, dará à situação local a visibilidade adequada de sua verdadeira realidade se não houver uma figura capaz de possibilitar essa interligação.
Em vista disso, a construção deste artigo foi provocada por um momento de reflexão e discussão sobre os problemas incidentes nas populações ribeirinhas e a responsabilização dos danos a elas causados, como, por exemplo, se é beira de rio, portanto área de preservação permanente, porque o poder público mantém essas populações e, ainda, se é área de risco porque não há a remoção da população pela Defesa Civil? Além disso, questiona-se qual o órgão/ente responsável, quando da ocorrência de um desastre, e quais são os procedimentos adotados, diga-se paliativamente, como a decretação de situação emergência e ou estado de calamidade pública e, caso as medidas não sejam tomadas, quais as ações compatíveis e qual o papel do Ministério Público.
1. Repartição de competências em matéria ambiental na constituição de 1988
Segundo SILVA (2004), a Constituição de 1988 (doravante denominada simplesmente "CF") foi a primeira a tratar deliberadamente da questão ambiental. Pode-se até dizer que ela é uma constituição eminentemente ambientalista. Assumiu o tratamento da matéria em termos amplos e modernos. Traz um capítulo específico sobre o meio ambiente, inserido no título da ordem social. Mas a questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da ordem constitucional.
MEIRELLES (1999) alude que:
Pela primeira vez em nossa história política, a Constituição de 1988 contemplou o meio ambiente em capítulo próprio, considerando-o como ‘bem de uso comum do povo’ e essencial à qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo e defendê-lo, para as gerações presentes e futuras (art. 225).
No entanto, no tocante à repartição de competências, em tal área, constata-se um sistema por demais complexo e intrincado, com previsão de competências privativas, comuns e concorrentes para os três níveis de poder das entidades que compõem a federação brasileira.
Pode-se verificar a magnitude do problema ao detectarmos que o meio ambiente é único, indissociável, indivisível e integrado, e, talvez, por isto mesmo, embora a CF contenha um capítulo específico sobre o meio ambiente, a questão permeia – explicita ou implicitamente – sete dos nove títulos que a compõem.
Entretanto, não é tarefa fácil percorrer este labirinto onde existem caminhos definidos – competência material e legislativa exclusiva ou privativa – e outros que se interpenetram, caso das competências material comum e legislativa concorrente.
Diante disso e, na tentativa de diminuir a complexidade da análise, ainda que temática e numericamente, passemos à análise da questão no que se refere aos aspectos ambientais.
A competência privativa ou exclusiva da União está disposta nos artigos 21 – competência material e 22 – competência legislativa.
Apesar de ser incumbência dos municípios promover o adequado ordenamento territorial, é incumbência primeira da União, não só elaborar mas também executar plano de ordenação do território. Ademais o inciso VII do artigo 30 contém o alerta de que a competência do município é no que couber.
Mas o que se deve realçar é o fato de que estamos tratando de competências privativas/exclusivas da União e nos deparamos com atribuições que têm relação direta com os municípios.
As competências materiais e legislativas dos estados estão contidas no artigo 25 §§ 1º a 3º da CF nos quais se encerra o caráter privativo, exclusivo e, até mesmo, remanescente que tais disposições lhes confere.
“Art. 25. Os estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e s que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
§ 1º São reservadas aos estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.
§ 2º Cabe aos estados explorar diretamente, ou mediante concessão a empresa estatal, com exclusividade de distribuição, os serviços locais de gás canalizado.
§ 3º Os estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.”
Nota-se que não há uma referência expressa, em tal dispositivo, aos aspectos diretamente relacionados à matéria ambiental, mas como eles regem-se e organizam-se pelas suas próprias constituições e leis que adotarem – observados os princípios da CF – abre-se, aos mesmos, vasta competência no campo legislativo incluindo, indubitavelmente, as questões ambientais.
Tal poder é reforçado pelo disposto no § 1o, do artigo 25 da CF –“são reservadas aos estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição” – medida que, sem dúvida, credencia os estados a fazerem não só o que a CF lhes autoriza, como também, tudo que por ela não lhes for vedado.
Este é um fato que merece destaque, uma vez que tal princípio é usual e rotineiramente dirigido às pessoas físicas e jurídicas de direito privado, já que os atos das pessoas jurídicas de direito público são vinculados ao princípio da legalidade, onde só é possível fazer o que a lei expressamente autoriza.
Com base em tais disposições, que se somam à contida no parágrafo único do artigo 22 – já enfocada – e às determinações do artigo 24 – competência legislativa concorrente com a União, vê-se o quanto o estado é dotado de previsões constitucionais que lhe autoriza a legislar nos mais variados campos.
De outra parte não se pode olvidar que no exercício da sua competência legislativa privativa ou exclusiva – art. 25 – os estados deverão estar adstritos aos princípios da Carta Magna, assim como no caso da competência concorrente – art. 24 – haverão de respeitar as normas gerais, ou a moldura legal fixada pela União.
No artigo 30, incisos III a IX constam as competências materiais dos municípios, ficando a competência legislativa contemplada nos incisos I e II de tal artigo. Seguindo a regra geral à que estão submetidos os estados – observar os princípios da CF e as normas gerais da União – os municípios quando do exercício de suas competências legislativas deverão observar, além do acima mencionado, as leis estaduais, de forma a não ferir o ordenamento legal a que estão submetidos eis que, como visto anteriormente, mesmo na competência privativa da União ou dos estados, (vide p. ex. o inciso IX do artigo 21 e o § 3º do artigo 25) existem determinações que influenciam diretamente o ordenamento territorial do município.
No tocante à competência legislativa concorrente a ser exercida pelos estados, atentemos para o seguinte: dispõe o parágrafo 1o do artigo 24 que “no âmbito da legislação concorrente, a competência da união limitar-se-á a estabelecer as normas gerais” e, logo em seguida, o parágrafo 2o estabelece que “a competência da união para legislar sobre normas gerais, não exclui a competência suplementar dos estados”.
Percebe-se, à primeira vista, uma maior autonomia dos estados, nesta questão. Em primeiro lugar pelo fato de a palavra utilizada no § 1º, referindo-se à União é o verbo limitar: a competência da União limitar-se-á a estabelecer as normas gerais. Em segundo lugar, porque até mesmo nesta função – estabelecimento de normas gerais – ainda há o concurso do estado, a teor do § 2º: a competência da união para legislar sobre normas gerais, não exclui a competência suplementar dos estados.
Na prática, entretanto, à luz da doutrina mais acurada do direito ambiental e algumas jurisprudências já existentes sobre a questão, a leitura de tal artigo assume contornos mais complexos. Segundo MACHADO (2012):
Normas Gerais são aquelas que pela sua natureza podem ser aplicadas a todo território brasileiro. (…) a norma não é geral porque é uniforme. A generalidade deve comportar a possibilidade de ser uniforme. Entretanto, a norma geral é aquela que diz respeito a um interesse geral. E continua afirmando que a norma federal não ficará em posição de superioridade sobre as normas estaduais e municipais simplesmente porque é federal. A superioridade da norma federal (…) existe porque a norma federal é geral.
Já para MARTINS (2002) ao estabelecer que:
…muito embora os doutrinadores tendam a não ver a superioridade entre os diversos entes federativos (…) entendo que a própria lexmaxima oferta tais diferenças, na medida em que faz prevalecer a legislação federal sobre a estadual e esta sobre a municipal no que diz respeito à competência comum e legislativa concorrente (…); embora (a Constituição Federal) não sendo da União, mas da Nação, foi produzida pelo aparelho legislativo que a União emprestou ao País, em face de ter sido o poder constitutivo derivado da Emenda Constitucional nº 26/86.
Em muitos casos, só mesmo a intervenção do Poder Judiciário é que vai definir a questão quando posta em termos práticos, em face da constatação da sua real complexidade: um só ambiente e variados atores disciplinando, fiscalizando e legislando, quais sejam a união, os estados e os municípios, através dos seus três poderes, bem como os cidadãos tomados individualmente[3] ou integrando uma Organização Não Governamental[4], que podem agir diretamente ou através do Ministério Público[5].
2. Responsabilidade civil do estado pelos danos causados às pessoas atingidas por desastres naturais
Cabe, preliminarmente, mencionar que existe uma divergência doutrinária no que tange à natureza da responsabilidade civil do Estado no tocante a condutas omissivas, sendo que alguns autores acreditam que tal responsabilidade seja subjetiva e outros no sentido de que tal seria objetiva. Diante de tal controvérsia, Freitas (2005) defende ter a responsabilidade estatal, por omissão, natureza objetiva. Para o autor:
… a consagração, entre nós, da aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, § 1º) é um dos argumentos mais robustos contra a teoria segundo a qual não poderia o Estado ser objetivamente responsabilizado por omissões.
Em termos gerais, mais precisamente no que diz respeito à responsabilidade civil ambiental, o ordenamento jurídico brasileiro atribuiu natureza objetiva a tal responsabilidade, ou seja, a sua apuração dispensa a verificação de culpa do agente causador do dano, conforme se verifica no art. 14, § 1º, da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) e no art. 225, § 3º, da CF. Existe unicamente a necessidade de verificação da ação ou omissão do agente poluidor, do nexo causal e do dano ambiental causado para a configuração da responsabilidade e o seu respectivo dever de reparação.
No que tange à amplitude do dano ambiental, tem sido adotada a classificação mencionada por BENJAMIN (1998) no qual o mesmo pode abarcar não somente o dano ecológico propriamente dito como também o dano pessoal, podendo ter natureza tanto patrimonial (material) quanto moral (imaterial).
Já no que diz respeito à questão da responsabilidade do Estado, o art. 3º, IV, da Lei 6.938/81, afasta qualquer dúvida no que acerca da possibilidade de responsabilização do ente estatal, na medida em que enquadra na condição de agente poluidor “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental[6]”.
Cabe reiterar que não é somente a ação do ente estatal capaz de ensejar a sua responsabilidade, como ocorre quando o próprio Estado empreende atividades lesivas ou potencialmente lesivas ao ambiente, mas também, como menciona MILARÉ (2005), quando “se omite no dever constitucional de proteger o meio ambiente (falta de fiscalização, inobservância das regras informadoras dos processos de licenciamento, inércia quanto à instalação de sistemas de disposição de lixo e tratamento de esgotos)”.
Para MACHADO (2012), a omissão do Estado em fiscalizar e impedir a ocorrência do dano ambiental é ainda mais grave, no âmbito constitucional, devido à imposição e força normativa dos princípios da prevenção e da precaução (art. 225, § 1º, IV, da CF, e art. 1º, caput, da Lei de Biossegurança – Lei 11.105/05), os quais modulam a atuação do Estado, impondo cautela e prevenção ao seu agir, de modo a antecipar e evitar que o dano ambiental ocorra[7].
Nesse sentido, Freitas (2005) menciona que, baseado no princípio da prevenção, “quando o mal for conhecido, devem-se tomar as medidas aptas a evitá-lo, sob pena de omissão objetivamente causadora (não mera condição) de dano injusto, à vista da inoperância estatal (insuficiência do agir exigível)”. O autor ainda menciona, tendo como base o princípio da proporcionalidade, que cabe ao Estado, no que diz respeito aos seus deveres de proteção ambiental, atuar na margem normativa que se estabelece entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, ou seja, se, por um lado, o ente estatal não pode atuar de modo excessivo a ponto de violar o núcleo essencial do direito fundamental em questão, na outra face do princípio, também não pode omitir-se ou atuar de forma insuficiente na promoção do direito fundamental, sob pena de sua ação – no primeiro caso – ou omissão – no segundo caso – acarretar em prática antijurídica e inconstitucional.
No que diz respeito às enchentes, SEGALLA (2002) afirma que a incidência destas ocorre com mais frequência nas áreas com maior ocupação populacional, onde os sistemas de drenagem, sob responsabilidade do poder público, não são tão eficientes. Diante disso, indaga-se se há ou não possibilidade de responsabilidade do Estado em decorrência das enchentes. Para SEGALLA (2002), a resposta é clara e positiva, desde que a enchente tenha como nexo de causalidade a omissão de um dever seu de zelar pelo bem estar de seus habitantes. O autor ainda cita como amparo legal desta afirmativa o artigo 182 da CF, o qual versa que a política de desenvolvimento urbano, efetivada pelo Poder Público municipal, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar da população, não podendo este escusar-se de sua responsabilidade nos casos em que houver desconforto social dos indivíduos, com representação patrimonial. Deparamo-nos novamente com o crescimento sem planejamento de uma cidade, sem previsão de um sistema de drenagem eficaz, gerando um colapso a cada chuva com maior volume de água. Em casos como este, em que se está diante de dano causado por fenômeno da natureza, importa, para o reconhecimento do dever de indenizar, a demonstração de que a omissão ou atuação deficiente da Administração Pública concorreu, de forma decisiva, para que o evento acontecer, deixando de realizar obras que razoavelmente lhe seriam exigíveis ou deixando de fiscalizar ocupações irregulares , além do dano causado ao particular e do nexo de causalidade.
Para que se responsabilize o Poder Público, deve existir uma omissão a um dever legal de agir, ou seja, aquele tinha a obrigação de atuar e operar segundo certos padrões de eficiência, e se manteve inerte ou foi ineficiente (OLIVEIRA, 1996). Na realidade, qualquer que seja o fundamento invocado para embasar a responsabilidade objetiva do Estado, exige-se como pressuposto indispensável para a determinação daquela responsabilidade, a existência de um nexo de causalidade entre o dano e a atividade ou omissão do Poder Público, ou de seu nexo com o ato do funcionário. Estabelecido o liame causal, surge daí o dever de indenizar. A causa provocadora do dano tem que ser necessariamente vinculada ao Estado, ainda que não seja a causa única da ocorrência. Significa que a causa que propiciou o dano tem de relacionar-se direta ou indiretamente com o resultado apontado como injusto. Para caracterizar a relação de causa e efeito é necessário que o administrado prove que o Poder Público concorreu para o resultado.
Segundo GONDIM & MEDEIROS (2004), a ocorrência de inundações em áreas urbanas e ribeirinhas tem-se intensificado, tornando-se mais frequente a cada ano. Este agravamento é função tanto da crescente impermeabilização do solo, decorrente da urbanização acelerada, como da imprevidente ocupação urbana de áreas ribeirinhas, que sempre constituíram os leitos naturais dos cursos de água e, que por força de Lei, ainda são áreas de proteção permanente. A combinação desses processos demanda a aplicação de medidas e intervenções que necessitam da articulação dos sistemas de gestão urbana, os quais pertencem à esfera de competência dos municípios, com exceção das regiões metropolitanas e macrorregiões, sobre as quais se aplicam os princípios constitucionais de cooperação no exercício de funções públicas de interesse comum.
3. O dilema socioambiental das cidades
BUCCI (2002) menciona que um aspecto da sustentabilidade que deve ser enfatizado é com relação à gestão das cidades no tempo, ou seja, a administração atual e futura dos recursos ambientais da cidade associada à gestão social. Para que isso ocorra é necessário encontrar soluções buscando o alcance da sustentabilidade para as gerações presentes e futuras. Nesse sentido, os objetivos do interesse público não podem ser sacrificados pela alternância no poder, essencial à democracia. A grande questão é: seria possível então exigir dos Poderes Públicos a implementação de políticas públicas para a preservação do meio ambiente urbano? Essa indagação conduz à distinção: a) da escolha das diretrizes da política pública para concretização de determinadas metas, ou seja, da formulação de determinadas políticas públicas; e b) dos próprios objetivos que a política pública visa alcançar, quer dizer, sua efetiva execução.
Cabe ressaltar que somente os municípios com mais de 20.000 habitantes tinham obrigatoriedade de elaboração do Plano Diretor por força do dispositivo legal inciso I do art. nº 41 da Lei 10.257/01. Com a promulgação da Lei nº 12.608/12, foi inserido o inciso IV que prevê essa obrigatoriedade também para cidades incluídas no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.
Se não cabe ao Judiciário a formulação de políticas públicas no meio ambiente urbano, é de responsabilidade dos representantes do povo, quer dizer, ao Poder Legislativo, organizar as grandes linhas das políticas públicas e ao Poder Executivo sua execução. Ressalte-se que essa separação das funções estatais não é absoluta, pois, a concretização das políticas públicas implica na permanência de uma parcela da atividade “formadora” do direito nas mãos do governo (Poder Executivo), perdendo-se a nitidez da separação entre os dois centros de atribuição, (BUCCI, 2002).
Por outro lado, MIRRA (1996) destaca que cabe o controle judicial de omissões do Poder Público na execução das políticas públicas no meio ambiente urbano, ou seja, é de responsabilidade do Judiciário, através de ações judiciais, determinar que os governos adotem medidas de preservação do meio ambiente, tais como a implantação de sistema de tratamento de esgotos[8] ou de resíduos sólidos urbanos[9] ou, ainda, a implantação definitiva de espaço territorial protegido, já instituído por norma, ou a preservação de um bem de valor cultural. Em realidade, o Judiciário impõe a execução das políticas públicas que já foram estabelecidas na CF, em leis ou formuladas e adotadas pelo próprio governo. Em matéria ambiental “não há mais, propriamente, liberdade efetiva do administrador na escolha do momento mais conveniente e oportuno para a adoção de medidas específicas de preservação”. O Poder Público tem, portanto, o dever de agir para alcançar os objetivos e as metas previstas em normas constitucionais e infraconstitucionais.
Para MEDAUAR (2010), o desenvolvimento das cidades deverá levar em conta os limites da sustentabilidade, ou seja, o desenvolvimento urbano deve ocorrer com ordem e isento de degradação, propiciando, dessa forma, uma vida urbana digna para todos. Trata-se de um direito coletivo da população a cidades sustentáveis, ou seja, o direito ao acesso a condições de vida urbana digna, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e aos equipamentos e serviços públicos.
Cada espaço necessita receber uma destinação e um monitoramento específico com o intuito de manter o equilíbrio. A cidade não deve ser apenas planejada por normas padronizadas, é imprescindível que haja uma articulação entre as dimensões econômicas e sociais e as dimensões territoriais com vistas à gestão do solo, (JACOBI, 2006).
Com o objetivo de definir as estratégias a serem utilizadas é necessário que haja uma integração e organização entre as diretrizes e os instrumentos de desenvolvimento urbano, de modo que as políticas habitacionais se articulem com a política fundiária, hídrica e ambiental, visando à formação e a garantia de um ambiente socialmente justo e ecologicamente equilibrado quanto à ocupação do território.
O maior desafio para os urbanistas e administradores da atualidade é desenvolver uma cidade que seja autossustentável com qualidade de vida. Para obter esta qualidade é preciso respeitar o meio ambiente e organizar as cidades de maneira saudável, evitando, dessa forma a incidência de problemas futuros, tais como a falta de abastecimento e recursos, dentre outros.
De acordo com JACOBI (2006), apesar de existir um quadro que preocupa pela sua complexidade e pelas dificuldades de gerar respostas mais efetivas, observam-se alguns movimentos e empenho do poder público na formulação e implementação de políticas, planos, programas e projetos que enfatizam a sustentabilidade ambiental.
4. Gestão de recursos hídricos
Segundo a CF, o domínio de água é divido entre a União e os estados, da seguinte forma: (1) são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham (CF art 20, inciso III); (2) são bens dos Estados as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, na forma da lei, as decorrentes de obras da União (CF, art. 26, inciso I).
Embora a CF não inclua explicitamente os rios no rol de bens dos estados a exemplo do que se verificava no art. 5º da Constituição de 1967 que previa entre os bens dos estados, os lagos e rios em terrenos de seu domínio e os que têm nascentes e foz no território estadual, por tradição, tem-se interpretado a CF como se tivesse, neste tópico, a redação adotada na Constituição de 1967, conforme destacam CABRAL & KELMAN (2003) e, por consequência, os governos estaduais têm exercido absoluta competência administrativa nos rios que têm foz e nascente em seu território, mesmo quando esses rios desembocam em outros rios que fluem em direção a outros estados.
A situação atual, do nosso ponto de vista, não confronta a CF. Somos do entendimento de que quando as águas superficiais e subterrâneas fluírem para outros estados, a competência estadual deve estar vinculada aos parâmetros e critérios adotados para cada bacia hidrográfica.
A norma constitucional, em seu art. 21, inciso XIX, indica a competência administrativa da União para “instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. Por outro lado, em termos de competência formal, a CF no art. 22, inciso IV, determinou a competência privativa da união para legislar sobre água. No parágrafo único deste mesmo art. 22 é previsto que lei complementar poderá autorizar os estados a legislarem sobre esse assunto. Todavia, tal lei ainda não foi editada. Como se pode notar, as premissas instituídas pela CF estão bem claras no que tange aos direcionamentos diferenciados dados aos institutos jurídicos, dominialidade e competência e aos papéis dos entes federados. Entretanto, notamos que não há uma boa assimilação dos comandos constitucionais, provocando uma série de desencontros políticos, jurídicos e administrativos, com retardo e desvios na gestão da água no Brasil.
A Lei nº 9.433/97 regulamentou parcialmente o art. 21, inciso XIX, através da criação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Em seu art. 1º, indicou os fundamentos da norma: (1) água é um bem de domínio público; (2) a gestão deve ser descentralizada e participativa; (3) a bacia hidrográfica é a unidade territorial para planejamento e gestão dos recursos hídricos.
O art.4º da Lei nº 9.433/97 determina que a União e os estados devem se articular para implementar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Isto significa que a União, através da Agência Nacional de Águas (doravante denominada simplesmente de “ANA”), e as autoridades estaduais devem atuar harmônica e complementarmente através de um sistema unificado, específico para cada bacia hidrográfica, para outorga, fiscalização e cobrança pelo uso dos recursos hídricos.
Todavia, nenhum texto legal regulamenta a forma como se deve dar a articulação em bacias hidrográficas nacionais, composta por rios de diferentes domínios. A ANA propôs e está implementando uma estratégia para avançar que se baseia na construção de acordos sociais estabelecidos nos comitês de bacia hidrográfica, visando a formação de consensos sobre a utilização dos recursos hídricos e evitando assimetrias entre usuários ou entre estados.
Cabe ainda salientar que, em termos de outorga/autorização de direitos de uso de Recursos Hídricos, a Política Nacional de Recursos Hídricos, nos artigos 11 a 18, especifica as regras para esse instrumento de gestão. A ANA, além do cumprimento da norma da Política Nacional, está subordinada ao que dita sua lei de criação, Lei 9.984/00, da Resolução 16/01 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), e da Resolução ANA 135/02.
Segundo CUNHA (2004), no que tange às outorgas, muitas dificuldades se manifestam. Destaca que a ANA é autoridade responsável para outorgar os usos de recursos hídricos em corpos de água de domínio da União, mas não escapa, entretanto, de referenciar sua atribuição federal com órgãos e entidades estaduais e municipais, tanto os que tratam da água como também os que detêm competência ambiental, e, por outro lado, àqueles que são responsáveis por atividades setoriais, como é o caso da saúde, irrigação, energia etc. Esclarece ainda, que um dos temas que vem sendo debatido no que diz respeito às outorgas trata da sua articulação com as licenças ambientais. O disciplinamento dessa articulação tem fundamento no § 1º do art. 10 da Resolução 237/97 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), que determina: “No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar, obrigatoriamente, a certidão da Prefeitura Municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a autorização para supressão de vegetação e a outorga para uso da água, emitida pelos órgãos competentes”. Complementa, explicitando que a integração proposta perpassa também por procedimentos de difícil implementação operacional, como por exemplo, a articulação com órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), a despeito de sistemas jurídicos diferenciados para gestão dos bens ambientais, e, ainda, a conciliação com outros órgãos e entidades concedentes de direitos para atividades e serviços (geração de energia elétrica, mineração etc).
Como podemos constatar, o município não configura na divisão dos domínios das águas não tendo, portanto, gestão sobre os eventos que possam diretamente afetar seu âmbito de atuação, ou seja, o território municipal, onde ocorrem os desastres como, por exemplo, as enchentes em áreas ribeirinhas.
5. Populações ribeirinhas
É muito comum, desde tempos remotos, as cidades nascerem e crescerem a partir dos rios por razões óbvias como, por exemplo, além de funcionar como canal de comunicação, dão suporte a serviços essenciais, que incluem o abastecimento de água potável e a eliminação de efluentes sanitários e industriais, ainda há presença de solos férteis nas regiões ribeirinhas, para cultivo, estabelecimento de portos e, vários outros motivos. Entretanto, embora a localização ribeirinha das cidades seja vista como um meio estratégico para o desenvolvimento da humanidade, ela não é eficiente para a conservação do meio ambiente, muito menos como garantia de vida digna.
Ao longo desses cursos d´água, em tese, deveriam ser observadas todas as normas que regulam as Áreas de Preservação Permanente (APPs). O que ocorre, na prática, é que elas vêm sendo ignoradas na maioria dos núcleos urbanos brasileiros. Essa realidade se associa a graves prejuízos ambientais, como o assoreamento de corpos d´água, e a eventos que acarretam sérios riscos para as populações humanas, como as enchentes.
As APPs foram instituídas por meio do Código Florestal, Lei 4.771/65, e regulamentadas pela Resolução CONAMA 303/02. Este Código teve como um dos objetivos a garantia da preservação das margens dos recursos hídricos de forma física e ecológica, embora tenha sido pouco respeitada (BRASIL, 1965).
Cabe mencionar que este Código foi revogado pela Lei 12.651/12, deixando explícito o conceito de Área de Preservação Permanente, conforme inciso II artigo 3º e a faixa que é considerada como tal, discriminada no artigo 4º desta Lei. Entretanto, excetua tais preceitos através do seu artigo 8º, como os casos de áreas urbanas consolidadas (àquela que trata o artigo 47 da Lei 11.977/09), já bastante antropizadas, onde não há mais riqueza ambiental alguma a ser preservada; locais onde a presença maciça de construções urbanas e ações do homem impedem a preservação do meio ambiente, com rios e cursos d’água correndo em galerias de concreto subterrâneo; locais que historicamente o homem vem se fixando, onde o desrespeito à legislação ambiental e ao meio ambiente é fato e atravessa os séculos como é o caso das populações ribeirinhas. O cenário atual que se tem, como já mencionado, é de cidades que não cumprem a legislação vigente e que sofrem constantes problemas advindos das enchentes por não haverem respeitado a dinâmica natural dos rios.
Em cidades onde a frequência de inundações é alta, as áreas de risco tem sido ocupadas por subabitações, uma vez que representam espaço urbano pertencente ao poder público. Entretanto, o que se verifica é que quando o administrador municipal transfere essa população para um local seguro, outras pessoas com dificuldades econômicas acabam se alojando nesses locais de risco.
As administrações estaduais têm se mostrado inaptas tecnicamente e financeiramente para planejar e controlar esses impactos, já que os recursos hídricos são tratados, ainda, de forma setorizada (energia elétrica, abastecimento urbano e tratamento de esgoto, irrigação e navegação), sem que haja maior interação na administração e seu controle.
Pode-se inferir que a ocupação urbana no Brasil ocorre de forma desordenada e que denota também a ausência de planejamento por parte dos órgãos públicos. A realidade da atuação municipal demanda atuação preventiva e repressiva do Ministério Público, existindo amplo instrumental a ser manejado, sobretudo para observância das metragens estabelecidas pelo Código Florestal quanto às áreas de preservação permanente urbanas e quanto a utilização da verba oriunda de decretação de emergência/calamidade pública, disciplinada agora pela Lei 12.608/12.
Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que existe uma grande quantidade de leis dificultando a comunicação entre os entes e sua aplicação adequada. Para todas as competências/obrigações, temos em dispositivos legais a sanção tanto para ação inadequada quanto para omissão.
A gestão no Brasil é de que é atribuição da União a prevenção das inundações e secas (CF, art. 21), quando ocorre uma inundação é declarada calamidade pública, o município recebe recursos financeiros a fundo perdido e não necessita de concorrência pública para a execução das intervenções ou ações. Isto incentiva a falta de prevenção e não inibe a ocupação de área de risco. A política de remoção não pode ser assistencialista porque pode gerar custos infinitos.
Em virtude disso, torna-se difícil, às vezes, determinar sobre quem recairá a responsabilidade pelos danos ocorridos e, principalmente, em virtude de danos causados por enchentes às populações em área de proteção permanente.
Na maioria das vezes não há a responsabilização do ente público por essa omissão, o que ocorre é, quando do advento de evento natural danoso, o mesmo é transformado em desastre. A partir daí, são destinadas verbas para utilização em casos de estado de emergência e calamidade pública (Lei 12.340/10) e até sua liberação, devem ser obedecidos critérios constantes da lei.
Em virtude da urgência que a situação demanda, é difícil promover um planejamento para as ações a serem desenvolvidas o que enseja em desvios de verbas, má administração e gera uma ineficiente solução dos problemas que ensejam tal desastre.
Assim, só mesmo a prática equilibrada, ponderada e equânime dos variados entes políticos na execução diária das suas competências materiais comuns e legislativas concorrentes é que irá delinear este tênue limite – horizontal e vertical – que separa suas responsabilidades.
Uma certeza, entretanto, temos: se tais competências forem utilizadas para o bem comum, para a real proteção, preservação, conservação, uso racional, sustentável e equilibrado dos recursos naturais, muitos pontos de discórdia deixarão de existir.
Afinal, em se tratando de meio ambiente, o que está em jogo é um bem de valor incalculável, intergeracional e indissociável: a vida.
Advogada, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Defesa e Segurança Civil, Universidade Federal Fluminense
Doutora, Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Defesa e Segurança Civil, Universidade Federal Fluminense
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