A responsabilidade da Caixa Econômica Federal no caso da lotérica de Novo Hamburgo/RS

Recentemente o país se viu diante de uma notícia que poderia muito bem virar filme. Trata-se do caso da lotérica “Esquina da Sorte”, de Novo Hamburgo, Estado do Rio Grande do Sul. Segundo informações divulgadas pela imprensa, a referida lotérica organizou um “bolão” para o concurso 1155 da Mega Sena, do qual participaram cerca de quarenta apostadores, que concorreram ao prêmio de R$ 53,3 milhões de reais.


A polícia gaúcha ainda investiga o caso, mas há fortes suspeitas de que o estabelecimento tenha maliciosamente recebido o dinheiro das apostas e deixado de fazer o registro no terminal operado pela Caixa Econômica Federal, impossibilitando, assim, que as dezenas escolhidas (que por uma improvável coincidência foram sorteadas) participassem do sorteio. É possível, também, que um problema na impressão dos bilhetes tenha causado a falha no registro, hipótese ainda não descartada nas investigações. Alheios à origem do problema, os prejudicados anunciaram que buscarão judicialmente o pagamento do prêmio.


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Nesse contexto, o presente estudo tem por objetivo analisar, primeiramente, se os apostadores têm direito ao recebimento do prêmio e, em segundo lugar, caso a resposta seja positiva, se o pagamento competiria à CEF.


Com efeito, ao largo do fomento, da intervenção no ordenamento sócio-econômico e do exercício do poder de polícia, ao Estado também compete a prestação de serviços públicos, o que pode se dar de maneira centralizada (Administração Pública Direta) ou descentralizadamente, via os órgãos componentes da Administração Pública Indireta, ou por particulares, valendo-se, neste último caso, dos institutos da concessão, permissão e autorização[1].


Por autorização entende-se o instrumento por meio do qual a Administração Pública consente que particulares dediquem-se a atividades que, malgrado não se enquadrem em serviços públicos stricto sensu, gozam de relevante valor para a população[2].  É o que se tem, por exemplo, no caso das casas lotéricas, que são pessoas jurídicas de direito privado autorizatárias da comercialização de bilhetes e oferecimento de outras diligências, de maneira a operacionalizar a exploração da loteria federal.


De acordo com o art. 21, do Decreto Lei 204/67, à Caixa Econômica Federal compete conceder autorização à particulares para a exploração de lotéricas em todo o território nacional, sendo-lhe vedado, por outro lado, a transferência dos sorteios, que devem ser realizados por ela diretamente[3].


Apesar de prestado pela iniciativa privada, o serviço não perde sua natureza pública, porquanto a titularidade permanece com o Poder Concedente, tendo lugar apenas a transferência da exploração. Assim, titular que é da atividade, ao Estado asseguram-se uma série de prerrogativas sobre o serviço delegado, sendo-lhe dado, por exemplo, alterar as condições de sua prestação e exercer fiscalização sobre o particular[4]. É neste ponto que emerge a resposta para o caso sob análise.


Na atual visão a respeito da responsabilidade civil do Estado, doutrina e jurisprudência fazem uma cisão entre responsabilidade por comissão e por omissão. No primeiro caso, é fora de dúvida que o Estado responde objetivamente, o que, aliás, consta de forma expressa do art. 37, parágrafo 6º, da Magna Carta. Tratando-se de ato omissivo, contudo, faz-se uma divisão entre omissão genérica e específica. Há divergências sobre o tema, mas de uma maneira geral reputa-se que, em se tratando de omissão genérica, quando a inércia estatal não constitui causa imediata para a ocorrência do dano, sua responsabilidade é subjetiva, ao passo que, cuidando-se de omissão específica, hipótese em que o Estado é instado a atuar direta e particularmente e assim não o faz, a responsabilidade é objetiva, nos termos do dispositivo magno acima indicado[5].


É certo que a Administração Pública não é onipresente, não se lhe podendo esperar, portanto, que esteja em todas as casas lotéricas do país a fiscalizar o registro das apostas. Não se pode perder de memória, de outra banda, a pessoa do apostador, que deposita sua confiança no estabelecimento e nutre a legítima expectativa de, uma vez se tratando de serviço regulado, que o Poder Concedente exerce fiscalização regular e eficaz sobre o particular[6]. Destarte, comprovando que houve frustração da expectativa dos participantes do “bolão”, entende-se que há responsabilidade da CEF, o que se dá com esteio no princípio da proteção da confiança legítima, que tem fundamento na derivação Estado de Direito-Segurança jurídica[7].


É possível, ainda, valer-se da culpa in eligendo e in vigilando para se concluir pela responsabilidade da CEF. Isto porque, na qualidade de credenciadora, além de ter escolhido mal o prestador de serviço, também deixou de fazer a fiscalização da exploração da atividade desempenhada pelo particular. Nesse mesmo sentido, o Egrégio STJ, no REsp 803372/SP[8], manifestou-se pelo dever de indenizar, apontando, para tanto, que, cabendo à CEF o credenciamento dos estabelecimentos revendedores, a ela compete responder pelas conseqüências de sua opção.


Destaca-se, por oportuno, que a responsabilidade do Poder Concedente é subsidiária, de sorte que, diante da inadequada prestação do serviço e da omissão fiscalizatória da Administração Pública, deve-se inicialmente promover o esgotamento patrimonial do particular para que, em seguida, possa-se direcionar a pretensão perante a CEF[9].


Analisado o caso à luz do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, por sua vez, considera-se que há responsabilidade solidária da CEF. Primeiramente, sendo os apostadores prejudicados destinatários finais do serviço prestado, está-se a falar em relação jurídica disciplinada pela Lei 8078/90, o que se depreende da leitura dos seus artigos 2º e 3º.


Neste passo, o diploma em comento, ao trazer nos artigos 18 e 20 a responsabilidade por vício do produto e do serviço, estabelece que respondem, solidaria e objetivamente, todos aqueles que tenham participado da cadeia de consumo[10], o que inclui, por conseguinte, a CEF, isto é, quem promove o credenciamento e autorização de exploração do serviço.


No entanto, ressalta-se que qualquer ônus suportado pela CEF é passível de ressarcimento, motivo pelo qual lhe é dado mover ação de regresso em face da casa lotérica, na forma do art. 37, parágrafo 6º, in fine, da Lei Maior.


Pelo exposto, conclui-se que o inusitado caso ocorrido em Novo Hamburgo traz à CEF responsabilidade pelo pagamento do prêmio. Prima facie, defende-se a responsabilidade ao argumento de violação da confiança legítima dos apostadores, que puseram suas esperanças na casa lotérica em razão de se tratar de atividade fiscalizada e regulada pelo Estado. Ainda que assim não o fosse, entende-se que a CEF deve responder pelos danos causados, desta vez com base na culpa in eligendo e in vigilando, nos exatos termos do precedente do Egrégio STJ. Por fim, à luz do CPDC, melhor sorte não lhe assiste, uma vez que, por ser o órgão responsável pelo credenciamento e outorga da autorização de exploração, amoldando-se, nesta toada, à figura do fornecedor, responde de maneira objetiva e solidária com a lotérica “Esquina da Sorte” perante todos os apostadores prejudicados.


 


Notas:

[1] WILLEMAN, Flávio & MARTINS, Fernando. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 127.

[2] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Delegações de Serviço Público. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE). Disponível na internet: www.direitodoestado.com.br. Acesso em 24 de fevereiro de 2010.

[3] ANDRADE, Nilson Nunes de. Exploração de Loterias e Autorização de Sorteios, Pela Caixa Econômica Federal. Disponível na internet: www.camara.gov.br. Acesso em 24 de fevereiro de 2010.

[4] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Delegações de Serviço Público. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE). Disponível na internet: www.direitodoestado.com.br. Acesso em 24 de fevreiro de 2010.

[5] WILLEMAN, Flávio & MARTINS, Fernando. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 197.

[6] WILLEMAN, Flávio & MARTINS, Fernando. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 205.

[7] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O Princípio da Proteção da Confiança: Uma Nova Forma de Tutela do Cidadão em Face do Estado. Niterói: Impetus, 2009.

[8] Assim restou ementada a decisão: RECURSO ESPECIAL Nº 803.372 – SP (2005/0204683-2). RELATOR : MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA. RECORRENTE : CAIXA ECONÔMICA FEDERAL – CEF. RECORRIDO  : ADEMAR SALGADO. EMENTA: LOTERIA  ESPORTIVA.  BILHETE  PREMIADO.  RECUSA NO  PAGAMENTO  DO  PRÊMIO.  FALHA  DA  CASA  LOTÉRICA.  NÃO ENVIO  DO  CARTÃO.  RESPONSABILIDADE  DA  CEF.  CULPA  IN ELIGENDO. Tendo  as  instâncias  ordinárias  reconhecido  culpa  in eligendo ,  bem  como  falha  especificamente  imputada  à  ré,  ela  é  parte passiva  legítima e  responsável por pagar o prêmio de  loteria esportiva a que faz jus o acertador de todos os palpites do concurso. Recurso especial não conhecido.

[9] WILLEMAN, Flávio & MARTINS, Fernando. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 204.

[10] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Malheiros, 2006, p. 521.

Informações Sobre o Autor

Guilherme da Silva Manhães

Advogado na cidade do Rio de Janeiro, pós-graduando em Direito Privado pela Universidade Federal Fluminense


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Equipe Âmbito Jurídico

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