A resposta preliminar nas ações penais originárias – a posição do Superior Tribunal de Justiça

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, julgando um Agravo Regimental interposto nos autos da Ação Penal Originária nº. 697, decidiu que não se aplicam os arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal (que tratam da resposta preliminar após o recebimento da denúncia ou da queixa) ao procedimento previsto na Lei nº. 8.038/90 (ações penais originárias). O então relator do caso, Ministro Teori Zavascki (hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal) havia decidido que a Lei nº. 8.038/1990 “já atende suficientemente o direito ao contraditório ao permitir que o acusado apresente seus argumentos em juízo antes mesmo que a denúncia seja aceita. Para ele, não pode haver sobreposição de leis processuais.” De acordo com a decisão agravada, “o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao realizar o juízo de admissibilidade da inicial acusatória, já enfrentou todas as teses defensivas que poderiam, em tese, acarretar a rejeição da denúncia ou a própria improcedência da acusação (preliminares e lastro probatório mínimo apto a tornar verossímil a acusação)”. Ressalte-se que a Ação Penal 697, que tramita no Superior Tribunal de Justiça, originou-se da Ação Penal nº. 552, que tramitava no Supremo Tribunal Federal e foi enviada ao Superior Tribunal de Justiça, pois um dos acusados (que era Ministro do Superior Tribunal de Justiça), foi aposentado pelo Conselho Nacional de Justiça e perdeu a prerrogativa da função. Nada obstante, outro acusado na mesma ação penal é um Procurador Regional da República, cujo foro é do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, a, final, da Constituição Federal).

Entendemos acertada esta decisão do Superior Tribunal de Justiça, assentando que esta específica modificação quanto à necessidade da resposta preliminar após o recebimento da denúncia ou da queixa, não se aplica ao rito previsto para as ações penais originárias (arts. 1º. a 12 da Lei nº. 8.038/90).

Preliminarmente, relembremos que a Lei nº. 11.719/2008 alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos.[1]

Com a nova redação, o art. 396 passou a estabelecer que, “nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias.”[2]

Ou seja, caso o Juiz não rejeite desde logo a peça acusatória (ou não a receba, como preferem alguns), com fulcro em um dos incisos do art. 395 (em decisão interlocutória, a ser enfrentada com o art. 581, I), deverá recebê-la (em decisão que entendemos deva ser fundamentada, como toda decisão judicial[3]) e determinar a citação do acusado para oferecimento de uma resposta preliminar, cujo prazo será de dez dias. Dispõe o parágrafo único que tendo sido o réu citado por edital este prazo de dez dias “começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.”

Nesta defesa prévia (que, na verdade, deveria ser anterior ao recebimento e à citação do réu, garantindo-se um verdadeiro contraditório prévio), “o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário.” (ART. 396-a). É importante que o patrono do acusado saiba que, apesar do recebimento da peça acusatória, a sua resposta, se convincente, poderá levar desde logo à absolvição sumária, evitando os demais termos do processo, inclusive o interrogatório.

Caso não seja “apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.” Onde houver Defensoria Pública instalada, os autos ao seu representante serão enviados. Em nenhuma hipótese os autos serão conclusos para a decisão sem esta resposta prévia. Esta resposta é obrigatória e deverá ser necessariamente subscrita por um advogado (constituído ou nomeado, ou pelo Defensor Público[4]), sob pena de nulidade absoluta.

Nada obstante, o certo é que a Lei nº. 8.038/90, no art. 4º., já estabelece que “apresentada a denúncia ou a queixa ao Tribunal, far-se-á a notificação do acusado para oferecer resposta no prazo de quinze dias.” Após esta resposta preliminar (esta sim um verdadeiro e efetivo contraditório prévio) e, se for o caso, depois da réplica prevista no art. 5º. (“se, com a resposta, forem apresentados novos documentos, será intimada a parte contrária para sobre eles se manifestar, no prazo de cinco dias”), “o relator pedirá dia para que o Tribunal delibere sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas.” (grifo nosso).

Não há, portanto, qualquer necessidade de nova resposta preliminar, caso admitida a acusação pelo Tribunal, pois qualquer matéria de fato ou de direito relativa aos interesses da defesa já foi esgrimada pela defesa e analisada na sessão de julgamento, quando se deliberou sobre a admissibilidade da peça acusatória ou sobre a procedência ou não da ação penal, em um verdadeiro julgamento antecipado do processo.

Não há falar-se em prejuízo algum para o réu, pois ele teve já teve a oportunidade de se manifestar após o oferecimento da denúncia ou queixa (e antes mesmo do seu recebimento), enfrentando todas as questões juridicamente relevantes, dando ao Tribunal a possiblidade de, inclusive e desde logo, absolvê-lo sumariamente.

Aliás, é importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal decidiu que o momento de realização do interrogatório dos acusados com prerrogativa de foro deverá ser realizado por último. O Ministro relatou da Ação Penal nº. 528, Ricardo Lewandowski decidiu no sentido de que os réus sejam interrogados ao final do processo, considerando a nova sistemática mais favorável a defesa. “Não se pode negar que se trata de um tema de altíssima relevância dado o reflexo que a referida inovação legal exerce sobre o direito constitucional, a ampla defesa, embora não tenha tido ainda o Supremo Tribunal Federal a oportunidade de posicionar-se definitivamente a respeito dele, nem mesmo em sede de questão de ordem”, avaliou o Ministro Ricardo Lewandowski. Ele lembrou que o tema chegou a ser debatido pelos Ministros anteriormente, em uma questão de ordem suscitada na AP 470, contudo, como naquela ação penal o interrogatório já havia sido realizado, a discussão não prosseguiu. Para o relator, “parece-me relevante constatar que se a nova redação do artigo 400, do CPP, possibilita ao réu exercer de modo mais eficaz a sua defesa, tal dispositivo legal deve suplantar o estatuído no artigo 7º, da Lei 8038, em homenagem aos princípios constitucionais que são aplicáveis à espécie”, afirmou. Segundo ele, é mais benéfico à defesa possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção de outras provas como eventuais perícias. Nesse caso, conforme o relator, o acusado terá a oportunidade de esclarecer divergências “que não raramente afloram durante a edificação do conjunto probatório”. Quanto à discussão sobre o aspecto formal, o Ministro entendeu que o fato de a Lei nº. 8038/90 ser norma especial em relação ao CPP, “em nada influencia o que até aqui se assentou”. “É que, a meu sentir, a norma especial prevalece sobre a geral apenas nas hipóteses em que estiver presente alguma incompatibilidade manifesta insuperável entre elas, nos demais casos, considerando a sempre necessária aplicação sistemática do direito, cumpre cuidar para que essas normas aparentemente antagônicas convivam harmonicamente”. Dessa forma, o relator negou provimento ao agravo regimental, entendendo que o interrogatório deve ocorrer no final do processo.

É bem verdade que o art. 8º. a lei especial prevê uma “defesa prévia” no prazo de cinco dias, “contado do interrogatório ou da intimação do defensor dativo”.  Obviamente, como o interrogatório não mais será realizado após a citação, este prazo de cinco dias para a defesa prévia deverá ser contado a partir da citação do réu e, na prática, servirá apenas para que a defesa arrole as suas testemunhas, pois a matéria defensiva (processual, de fato ou de mérito) já foi alegada na resposta preliminar (antes do recebimento da denúncia ou da queixa) e enfrentada pelo Tribunal quando do juízo de admissibilidade e de procedência da acusação (repetimos).

 

Notas:
[1] Sobre a reforma do Código de Processo Penal, veja-se o que comentamos na obra Curso Temático de Direito Processual Penal, Curitiba: Juruá, 2010.
[2] Para o Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, a redação dada ao art. 396 (referindo-se à citação e não notificação, bem como determinando desde logo o recebimento da peça acusatória) acabou “com o contraditório prévio e se prestou um desserviço à nação, usurpando a democracia processual embora, no discurso de justificação, a retórica fácil tenha induzido em erro algumas pessoas.” Para ele, “a salvação, destarte, pode vir por uma interpretação conforme à CR, entendendo-se que onde se disse citação (e diante dos postulados constitucionais) só se pode tomar por sentido a notificação, sob pena de inconstitucionalidade. (…) Por elementar, todos os juízes e tribunais podem fazer a interpretação conforme à Constituição e, se for o caso, usar a técnica da nulidade parcial sem redução de texto, não sendo necessário esperar pela decisão do STF em controle concentrado. Só assim podem resolver, desde logo, os problemas que vieram com o novo texto legal do art. 396. A matéria é de importância transcendental e, por elementar, atinge a todo cidadão comprometido com a defesa da CR e da cidadania, razão por que a questão deve ser discutida e solucionada com urgência.” (www.paranaonline.com.br, 21/09/08). No mesmo sentido, Lênio Luiz Streck, “A jurisdição constitucional e o duplo juízo de admissibilidade do artigo 396 do CPP: uma solução hermenêutica”, in www.leniostreck.com.br. A propósito veja-se esta notícia da Agência Câmara do dia 26 de Março de 2010: “Biscaia afirma que a lei está correta e agiliza o processo penal. A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania rejeitou nesta quarta-feira (24) o Projeto de Lei 4947/09 , do deputado Paes de Lira (PTC-SP), que propõe corrigir um erro na redação do Código de Processo Penal , trocando o termo "receber" por "autuar" no a rtigo 396. O projeto, que tramita em caráter conclusivo Rito de tramitação pelo qual o projeto não precisa ser votado pelo Plenário, apenas pelas comissões designadas para analisá-lo. O projeto perderá esse caráter em duas situações: – se houver parecer divergente entre as comissões (rejeição por uma, aprovação por outra); – se, depois de aprovado pelas comissões, houver recurso contra esse rito assinado por 51 deputados (10% do total). Nos dois casos, o projeto precisará ser votado pelo Plenário., será arquivado, a menos que seja apresentado recurso para sua análise pelo Plenário.  O artigo 396, que está no capítulo da instrução criminal, estabelece que o juiz deverá receber a denúncia ou queixa no prazo de dez dias, caso não a rejeite preliminarmente. O recebimento significa, na prática, dar início ao processo. A partir dessa fase, o denunciado se transforma em réu e é citado para apresentar sua defesa. Para o autor da proposta, o artigo trata da fase preliminar do processo, então o correto seria o juiz autuar a denúncia. Nesse caso, o magistrado ouve a versão do denunciado antes de decidir se recebe ou não a queixa. O relator, deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), foi contra a proposta porque, para ele, não houve falha na redação da lei. O objetivo do texto, diz Biscaia, é tornar mais ágil o processo penal brasileiro. Houve a intenção clara e indiscutível do legislador de não ampliar o instituto da defesa preliminar a todos os processos, afirma”.
[3] A propósito, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello indeferiu pedido de liminar formulado por um Deputado Federal no Habeas Corpus (HC) 100660, no qual ele pede o trancamento da Ação Penal (AP)  497, em curso no STF por crime contra a administração pública. O Ministro se reportou a jurisprudência firmada pelo STF no julgamento dos HCs 82242, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, HC 87005, relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa, e HC 93056, de relatoria do próprio Ministro Celso de Mello, para afastar alegação da defesa de que não teria havido fundamentação do recebimento da denúncia. Segundo Celso de Mello, nos julgamentos mencionados, a Suprema Corte decidiu que não é necessária, embora desejável e conveniente, a fundamentação do ato que recebe a denúncia. No entender dele, “salvo disposição legal em contrário, não se estende ao recebimento da denúncia a norma inscrita no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal (CF)”. Esse dispositivo exige a fundamentação das decisões judiciais. Entretanto, segundo Celso de Mello, esse preceito “somente alcança os atos revestidos de conteúdo decisório”. Grifo nosso.
[4]Juiz de primeiro grau determinou a intimação pessoal do réu acusado de homicídio culposo, nos termos do artigo 396 do CPP. Intimação pessoal não configurada. Nomeação de advogado dativo pela Ordem dos Advogados, que apresentou resposta à acusação. Cerceamento de defesa evidente, vez que o acusado não pôde escolher seu defensor de confiança. Violação à ampla defesa, bem como ao artigo 396 do CPP. Nulidade absoluta. Anulação da ação penal desde o oferecimento de resposta pelo dativo. Ordem concedida para que o acusado seja intimado pessoalmente nos termos da nova Lei processual” (TJSP – 5ª C. HC 990.09.164868-0 – rel. Pinheiro Franco – j.17.09.2009).

Informações Sobre o Autor

Rômulo de Andrade Moreira

Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.


Equipe Âmbito Jurídico

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