Resumo: O presente artigo se propõe a analisar a revisão contratual sob a ótica do art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor. O dispositivo é analisado duplamente, tanto sua primeira parte, referente ao instituto da lesão, quanto à revisão contratual propriamente dita, decorrente da onerosidade excessiva, contida na parte final do inciso, sendo abordados os requisitos e fundamentos revisionais.
Palavras-chave: Consumidor; Contratos; Revisão; Lesão; Onerosidade excessiva.
Abstract: This article intends to analyze the contractual revision from the perspective of the 6th article, section V, of the Brazilian Code of Consumer Protection. The article is analyzed twice, both its first part, referring to the institute of injury, and the final part, about the contractual revision that raises from incidental excessive onerosity, including the requirements and grounds of revision.
Keywords: Consumer; Contracts; Revision; Injury; Excessive onerosity.
Sumário: 1. Introdução. 2. Comentários gerais sobre o art. 6o, V, do CDC. 3. A primeira parte do dispositivo: instituto da lesão. 4. A segunda parte do dispositivo: revisão contratual por onerosidade excessiva superveniente. Conclusão.
1. Introdução
O ordenamento consumerista que hoje conhecemos não era tão protetivo em outras épocas. Nem sempre se cogitou acerca da hipossuficiência do consumidor frente o fornecedor, pois vigorava o princípio da autonomia da vontade e as práticas de mercado costumeiras. Todavia, com o aumento do crédito e crescimento econômico, o consumo foi crescendo de maneira vertiginosa.
Necessária era uma regulamentação que protegesse os consumidores, frente ao aumento da oferta e da procura. A legislação civil esparsa não atendia às expectativas do consumo coletivo e o regime privatista do Código Civil é inoperante em questões ligadas à sociedade consumista.
Algumas leis ordinárias extravagantes surgiram antes do advento do CDC, as quais mencionavam, eventualmente, a figura do consumidor, buscando certa proteção ao mesmo, porém sem muita amplitude ou sem delinear princípios e procedimentos relativos à defesa dos consumidores. Exemplo seria a Lei 1.521, de 26 de dezembro de 1951, a qual trata dos crimes contra a economia popular e a Lei 4.137, de 10 de Setembro de 1962, que dispõe acerca da repressão ao abuso do poder econômico.
Entretanto, tais leis esparsas não eram suficientes para conter os abusos e o desequilíbrio entre consumidores e fornecedores. Era necessária uma regulamentação mais rígida. Essa necessidade foi aumentando com o crescimento dos contratos de massa, das estratégias de marketing de consumo, das mudanças tecnológicas e econômicas. Os consumidores possuíam informações insuficientes sobre produtos e serviços que, aliados às publicidades enganosas e abusivas tornaram imperiosa a regulamentação dos direitos consumeristas.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a proteção ao consumidor não poderia mais passar despercebida. Ganhou sede constitucional e foi elevada à categoria de direito fundamental. O artigo 5º da Carta Magna prescreve, em seu inciso XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
O Código de Defesa do Consumidor surgiu com o advento da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. O código é considerado um dos mais modernos em sede de defesa do consumidor, consistindo em um subsistema autônomo, vigente dentro do sistema constitucional brasileiro.
É também uma lei principiológica, a qual concretiza, em legislação infraconstitucional, vários princípios tutelados pela Carta Magna, tais como o princípio da igualdade, a garantia da imagem, da honra, entre outros, também balizando seus preceitos com sede nos objetivos primordiais da ordem constitucional, sobretudo o respeito à dignidade da pessoa humana. É uma norma de ordem pública e de interesse social, prevalente sobre todas as demais normas anteriores ainda que especiais que com ela colidirem.
2. Comentários gerais sobre o art. 6o, V, do CDC
Como não poderia deixar de existir, o CDC trouxe importante inovação na tutela dos contratos de consumo. Cuida-se da revisão contratual por onerosidade excessiva, prevista no art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor.
O artigo supracitado possui a seguinte redação, in verbis:
“Art. 6o São direitos básicos do consumidor:
(…)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. (grifos nossos)”
A revisão contratual prevista no CDC é um direito básico do consumidor, e apenas deste. No dispositivo, vislumbramos a possibilidade de modificação das cláusulas que estabeleçam, no momento mesmo da formação do contrato, prestações desproporcionais, o que caracteriza, devido à vulnerabilidade do consumidor frente ao fornecedor, o instituto da lesão. Na segunda parte, deparamos com o direito à revisão contratual em razão de fatos supervenientes que tornem as prestações demasiadamente onerosas.
O consumidor, como parte vulnerável no microssistema jurídico do Código de Defesa do Consumidor, contrata por necessidade, pois não pode abrir mão de bens e serviços básicos do dia-a-dia e da vida moderna, muitas vezes consumindo para a sua própria subsistência, além do seu lazer ou divertimento.
Devido a essa necessidade, muitas vezes o consumidor é lesado, no momento mesmo da formação do vínculo contratual, tendo freqüentemente que aceitar condições manifestamente desproporcionais para ter acesso aos bens e serviços de que não pode abrir mão. Esta situação configura a lesão, que autoriza a modificação das cláusulas contratuais consideradas desproporcionais, as quais geram obrigações iníquas. Cuida-se de direito previsto na primeira parte do art. 6º, inciso V: a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais.
3. A primeira parte do dispositivo: instituto da lesão
O instituto da lesão surgiu no direito romano, atribuída sua origem a duas constituições imperiais, de Diocleciano (ano 285 d.c.), conhecida como lei segunda e outra de Maximiliano (ano 294 d.c.), a lei oitava.
A origem, todavia, pode-se prender apenas à lei segunda, de 285, pois a lei oitava fez referencia à lei segunda, dando como pressuposto a doutrina já anteriormente firmada.
Segundo a história, a lei segunda consistia numa resposta a uma consulta feita por um indivíduo chamado Lupus, cujo pai havia alienado um imóvel seu por preço irrisório. A lei segunda, portanto, consistia na resposta ao questionamento, nos seguintes termos:
“Respondendo como proceder, estatuiu-se que seria eqüitativo que se restituísse o preço ou se integralizasse o justo valor, tudo por ordem do juiz. Acrescentava-se que, injusto seria o preço que não alcançasse a metade do verdadeiro valor.” [1]
Pode-se observar, desde logo, que o requisito para a caracterização da lesão no direito romano era puramente objetivo.
Parte da doutrina defende que a autenticidade da história destas duas leis é duvidosa, porém esta é a origem do instituto da lesão que é retratada pela maioria dos doutrinadores.
O instituto da lesão foi combatido ferrenhamente por Clóvis Beviláqua, que omitiu o instituto do seu projeto de Código Civil. Tal posição consagrou-se vencedora, ficando o instituto de fora do Código Civil de 1916. Beviláqua sustentava a omissão argumentando que a parte ludibriada no contrato teria outros meios para resguardar o seu direito, mais precisamente fazendo uso dos institutos do erro, dolo, da fraude, simulação ou coação.
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, a lesão foi contemplada no art. 6º, inciso V, no tocante às relações de consumo. Posteriormente, foi incluída no Código Civil de 2002, em seu art. 157.
Após tais considerações, podemos afirmar que o instituto da lesão é uma forma de proteção ao contratante mais fraco, que se encontra em situação de inferioridade, vulnerabilidade. Isto pode ocorrer devido à vários fatores, tais como inexperiência ou necessidade, mesmo nos contratos que não sejam consumeristas. O contratante perde a noção do justo e do real, tendo sua vontade conduzida a praticar atos que constituem absurdos do ponto de vista econômico.
De fato, o instituto deve ser suscitado todas as vezes que a parte se encontre afundada em prestações desproporcionais. No direito do consumidor, o instituto deverá ser suscitado, de acordo com o art. 6º, inciso V, todas as vezes que o princípio do equilíbrio das prestações for ferido na origem dos contatos, com cláusulas que estabeleçam obrigações iníquas carreadas ao consumidor.
A lesão possui um elemento objetivo, desde o seu surgimento no direito romano, que consiste na comparação entre a vantagem obtida e o valor pago, sendo este último aferido segundos valores vigentes ao tempo em que se concluiu o negócio jurídico.
O elemento subjetivo do instituto da lesão consiste no aproveitamento de determinadas condições de um contratante, tais como sua necessidade e inexperiência, as quais levam o mesmo a contratar de uma maneira desproporcional. Basta haver o conhecimento, pela parte que causa a lesão, da situação de inferioridade da vítima, não necessitando que o mesmo induza a vítima à prática do ato nem a intenção de prejudicar. É o que a doutrina denomina de dolo de aproveitamento.
Portanto, o elemento subjetivo se traduz no aproveitamento das condições do contratante, o qual suportará cláusulas leoninas em razão de inexperiência ou do estado de necessidade em que se encontra no momento da contratação.
Nosso Código de Defesa do Consumidor contém positivado o instituto da lesão, porém o mesmo contém efeitos diversos e o código não utiliza expressamente o termo “lesão” para designá-lo. De qualquer forma, é atribuído o direito ao consumidor de modificar as cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais, suscitando a revisão por incidência do art. 6º, V, que se refere à revisão de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, o que não é outra coisa senão a figura da lesão.
A lesão está positivada, como já citamos anteriormente, no art. 6º, inciso V, primeira parte, além do art. 39, inciso V e 51, inciso IV, todos do CDC. Estes dois últimos dispositivos tratam de vedar o fornecedor de auferir vantagens manifestamente excessivas do consumidor e estabelecer vantagens consideradas iníquas.
O Código de Defesa do Consumidor elenca casos em que se presume ser a vantagem exagerada, autorizando a modificação de tais cláusulas. Tais situações são previstas no art. 51, §1º, incisos I a III, in verbis:
“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(…)
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.”
Embora contida no mesmo dispositivo que trata da revisão contratual por onerosidade excessiva superveniente, a lesão não se confunde com esta última. A lesão é estabelecida em cláusula concomitante, ou seja, já vem incluída no contrato que prevê a prestação desproporcional, não surge supervenientemente à celebração.
4. A segunda parte do dispositivo: revisão contratual por onerosidade excessiva superveniente. Conclusão.
Enquanto a lesão ocorre no momento da formação do vínculo contratual, a onerosidade excessiva, por sua vez, ocorre devido a fatos supervenientes, não havendo a inclusão de prestações desproporcionais na celebração, e sim após a formação do contrato.
Portanto, a onerosidade excessiva ocorre posteriormente à contratação devido a fatores que não existiam no momento da conclusão do contrato, nascendo daí o direito do consumidor de pedir a revisão da avença.
É na parte final do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor que encontramos a revisão contratual decorrente da onerosidade excessiva desencadeada por acontecimentos supervenientes à formação do vínculo contratual. A redação do Código, em seu art. 6º, é a seguinte:
“São direitos básicos do consumidor:
(…)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.” (grifos nossos)
Alguns autores defendem a adoção, no CDC, da teoria da imprevisão. Ousamos discordar destes autores, pois o CDC não exige, em seu art. 6º, inciso V, a incidência de fato extraordinário ou a imprevisibilidade dos fatos supervenientes, e sim a mera onerosidade excessiva, a qual por si só já autoriza a revisão contratual.
A exigência de fatos imprevisíveis e extraordinários não se harmoniza com o espírito protetor do CDC, o qual, interpretado sistematicamente e de maneira teleológica, nos orienta para a proteção total do consumidor, parte hipossuficiente, que muitas vezes seria prejudicado em juízo ao ter que demonstrar a imprevisibilidade do fato, requisito da teoria da imprevisão. Tal exigência não está nem mesmo presente no Código de Defesa do Consumidor, pois o mesmo exige apenas a onerosidade excessiva em razão de fatos supervenientes.
O Código consumerista reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, com base em vários princípios protetivos, entre eles a boa-fé objetiva e o equilíbrio das prestações. Além disto, o consumidor é protegido com base em preceito constitucional.
O CDC exige apenas que os fatos sejam supervenientes, mas não que sejam imprevisíveis. A superveniência aliada à quase impraticabilidade da prestação permitem a revisão do contrato para adequá-lo ao que foi avençado pelas partes.
Portanto, filiamo-nos à doutrina que defende a adoção, pelo CDC, da teoria da base do negócio jurídico, pois nessa não se exige a imprevisibilidade do fato para autorizar a revisão contratual. O modelo consagrado pelo diploma legal aproxima-se mais da teoria da base objetiva do negócio jurídico, prescindindo da exigência de imprevisibilidade.
Para a revisão contratual fundada na teoria da base objetiva do negócio jurídico é preciso analisar se foi atingida a base do negócio, ou seja, se ocorreu uma situação fora do comum, que não faça parte do cotidiano; se a economia contratual foi afetada, onerando excessivamente uma das partes e exigindo um esforço fora do padrão para o cumprimento da avença; se tal situação não foi provocada pelo contratante onerado e, por fim, se o ônus futuro não faz parte do próprio negócio pactuado ou se não foi determinado no contrato que a parte que pleiteia a revisão deveria suportá-lo.
Em resumo, a onerosidade excessiva deve ser desencadeada por um evento anormal, superveniente à formação do vínculo contratual, não devendo ser necessariamente imprevisível. Este evento futuro deve alterar sobremaneira os fundamentos da contratação, ou seja, deve tornar o cumprimento do contrato praticamente impossível devido à onerosidade gerada pelos fatos supervenientes. Apesar dos esforços do consumidor, ele simplesmente não pode entregar-se à ruína para cumprir o contrato, devendo pleitear a revisão contratual.
Porém, importante salientar que o consumidor não pode pleitear a revisão contratual apenas por não querer se esforçar para o cumprimento do contrato. Os fatos supervenientes devem onerar de maneira crucial a prestação, de tal modo que os esforços do consumidor para o cumprimento do contrato sejam frustrados.
Portanto, deve-se aferir a onerosidade excessiva não em relação àquele consumidor que a pleiteia, e sim objetivamente, indagando se outra pessoa, nas mesmas condições do consumidor em questão, seria capaz de cumprir a avença. Não se deve utilizar o instituto da revisão contratual para premiar a torpeza de algumas pessoas que agem de má-fé.
Lembramos, ainda, que o consumidor não pode ser o causador da onerosidade excessiva. Também não pode ser beneficiado pela revisão contratual aquele consumidor que já estava em mora ao tempo do pedido revisional. Admitir que o consumidor causador da onerosidade excessiva seja beneficiário da revisão contratual seria anuir com a má-fé, privilegiando o consumidor que ensejou a situação de desequilíbrio, causando uma insegurança desnecessária nos contratos de consumo.
Quanto à mora do devedor, alguma doutrina entende que o mesmo poderá pleitear a revisão contratual se a onerosidade excessiva ocorreu tão subitamente que não restou alternativa senão atrasar o pagamento das prestações, não podendo o mesmo propor a tempo a ação revisional. Por outro lado, caso a onerosidade tenha ocorrido antes da data limite para pagamento das prestações, é prudente que o consumidor deposite judicialmente os valores correspondentes, afastando assim a mora e, logo após, entre com o pedido de revisão.
Caso a onerosidade excessiva atinja o fornecedor, situação que poderá ocorrer no caso concreto, o dispositivo a ser aplicado é o art. 51, §2º do CDC, in verbis:
“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(…)
§ 2° A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.” (grifo nosso)
Todavia, frisamos que o pedido do fornecedor, neste caso, apenas pode ocorrer caso a nulidade de determinada cláusula afete a economia contratual. Não é o caso de revisão contratual direta por pedido do fornecedor, o qual deve arcar com os riscos do negócio. O CDC optou em fazer recair sobre os ombros do fornecedor os riscos decorrentes de transformações no quadro fático, pois os fornecedores reúnem melhores condições de diminuir o impacto do prejuízo através de suas atividades.
Em conclusão, salientamos que a revisão contratual se dá com efeitos ex tunc entre as partes, ou seja, com efeitos retroativos desde o surgimento da situação que tornou o cumprimento da avença excessivamente oneroso.
Procurador da Fazenda Nacional em Brasília – DF Pós-graduado em Direto Público. Pós-graduando em Direito Tributário.
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