Resumo: O presente estudo aborda a saúde como direito fundamental social e difuso. Para tanto, inicialmente é feito um retrospecto das dimensões dos direitos fundamentais, abordando-se os direitos difusos enquanto direitos fundamentais. Posteriormente estudam-se as características dos direitos difusos e analisa-se, através de decisões do Supremo Tribunal Federal a classificação do direito à saúde enquanto direito fundamental difuso e social. Em todo momento reforça-se que a tutela do direito à saúde poderá ser feita de maneira individual, coletiva ou difusa, dependendo das peculiaridades do caso concreto em apreço.
Sumário: 1. Introdução; 2. As dimensões dos direitos fundamentais; 2.1 Da primeira dimensão dos direitos fundamentais; 2.2 Da segunda dimensão dos direitos fundamentais; 2.3 A terceira dimensão dos direitos fundamentais; 2.4 A quarta dimensão dos direitos fundamentais; 2.5 A quinta dimensão dos direitos fundamentais; 3 A conceituação de direito difuso: diferenciações em relação aos direitos coletivos e individuais homogêneos; 4. A saúde como direito fundamental difuso: implicações e considerações baseadas no entendimento do STF; 5 A guisa de conclusão: recolocando a pessoa humana com cerne do ordenamento juridico e o direito à saúde como fundamental difuso que pode ser pleiteado por meio de tutela coletiva ou individual; Referências bibliográficas.
1 Introdução
O presente artigo abordar a saúde como direito humano, fundamental social e difuso. Parte-se da dicção do artigo 196 da Constituição da República, ultrapassando-se, entretanto, a mera semântica para, dogmaticamente, afirmar o direito à saúde como direito difuso que requer, para sua concretização, atuação de todos os poderes públicos.
A órbita constitucional do direito à saúde ultrapassa a antiga classificação de norma de eficácia programática e insere o debate dentro da perspectiva da força normativa da Constituição, assim como do princípio da efetividade da mesma, premissas maiores do direito constitucional contemporâneo.
Assim, mais que a consideração de um direito individual, a saúde se mostra como um direito que pertence a uma generalidade indeterminável, podendo ser questionada por meio da ação civil pública pelo Ministério Público e também pela Defensoria Pública em prol, inclusive, de uma só pessoa. Isto significa dizer que há uma elasticidade com relação ao direito à saúde que a retirou, paulatinamente, do conceito hermético de tutela individual e a catapultou à seara dos direitos difusos, sem contudo retirar do contexto jurídico a possibilidade de tutela individual.
Sem sombra de dúvidas a transformação do conceito de direito à saúde irradia uma nova abordagem jurídica, assim como requer cada vez mais habilidade conceitual e dogmática sobre a temática. Neste sentido, trabalha-se, inicialmente a conceituação histórica dos direitos fundamentais de acordo com a classificação dos mesmos em dimensões, para, a seguir conceituar os direitos difusos diferenciando-os dos direitos coletivos e individuais homogêneos. A seguir, a atenção volta-se ao direito à saúde enquanto direito difuso, abordando o tratamento jurídico reconhecido em relação ao HIV e também aos medicamentos de forma genérica. Permeando a abordagem serão analisadas decisões do Supremo Tribunal Federal, no sentido de referendar a proposta classificatória deste texto.
Sem ter a ambição de esgotar o assunto, ou mesmo dar uma palavra final ou taxativa em relação a ele, ao fim deste ensaio se propõe uma abordagem do direito à saúde como direito difuso, sem, contudo, restringi-lo apenas à tutela coletiva.
2 As dimensões dos direitos fundamentais
A história dos direitos fundamentais conflui com a história da formação do Estado Moderno, que visou à garantia da segurança jurídica ao cidadão, sendo tal segurança vista de formas diversas, diante de contextos históricos igualmente diferenciados.
O objetivo inicial dos direitos fundamentais foi estabelecer mecanismos de proteção para a pessoa humana contra os mandos e desmandos daquele que detinha o poder político, figura representada primariamente pelo Rei, no século XVIII. Ou seja, os direitos fundamentais surgiram como instrumento de proteção do indivíduo em face de ações arbitrárias do próprio Estado.
A terminologia ‘direitos fundamentais’, entrementes, não é pacífica, e, por tal motivo Lunõ (1995, p. 10) destaca o século XVIII como referência para a modificação do termo ‘direitos naturais’ para ‘direitos dos homens’, e posteriormente para ‘direitos fundamentais’. Mesmo assim, é certo que todo o movimento histórico que levou a tal transformação não foi linear, sofrendo avanços e retrocessos.
O apogeu dos marcos em termos de direitos fundamentais é a Declaração dos Direitos do Homem, fruto da revolução Francesa de 1789. Nela prima-se pelo tripé igualdade, liberdade e fraternidade. Ocorre que, sob a saia da ideologia libertária encontravam-se, desde o início do processo, os anseios burgueses pela tomada do poder, e sua vontade de não abrir a perspectiva de ascensão política e todo e qualquer cidadão, tanto que mantiveram o voto censitário (FIORAVANTI, 2001). Por tal razão Soares (2000, p. 36) afirma que a revolução francesa foi dirigida aos sans cullotes e não aos pobres, que permaneceram miseráveis após todo o processo revolucionário.
A doutrina constitucionalista clássica ao dissertar sobre os direitos fundamentais classifica-os segundo gerações. A primeira abarcaria os direitos de liberdade, a segunda, os de igualdade e a terceira, os direitos de solidariedade. O termo geração, entretanto, vem paulatinamente sendo substituído pelo termo dimensão, isto porque geração traz em si uma ideia de sucessão, como se os direitos das gerações posteriores anulassem ou diminuíssem o âmbito de proteção daqueles elencados pela geração anterior. Esta crítica é trazida por diversos doutrinadores, entre eles Canotilho (2003, p. 386). Os direitos fundamentais, como se afirma desde o início, são direitos históricos, cuja eclosão no âmbito normativo apregoa o coroamento de uma vitória social ímpar, que não pode ser desconsiderada ou diminuída, ao contrário, deve-se sempre e progressivamente ampliar a proteção àqueles direitos essenciais à vida humana digna. Neste sentido, quando se utiliza a expressão dimensão concilia-se a concomitância das características de determinada categoria com a da subsequente, sem a necessidade de exclusão de uma para sua substituição por outra. Neste sentido, este ensaio abordará o temo segundo o jargão dimensão e não mais geração.
2.1 Da primeira dimensão dos direitos fundamentais
Os direitos de primeira dimensão são frequentemente associados à liberdade, tendo como marco os séculos XVIII e XIX, portanto a época das teorias contratualistas sobre a formação do Estado. Buscava-se fomentar a liberdade dos indivíduos e sua proteção contra as arbitrariedades estatais, mas sem qualquer plus de reconhecimento deste indivíduo como portador de necessidades a serem adimplidas pelo Estado. A configuração estatal era liberal, pugnando-se pelo absenteísmo estatal em prol da liberdade, em especial no atinente à atividade econômica.
À liberdade aqui destacada é atribuído um viés negativo, ou status negativus, que se consubstancia em um agir negativo do próprio Estado, em uma separação necessária que se estabeleceu entre sociedade civil e o Estado (BONAVIDES, 2009, p. 563-564). Os direitos preponderantes em tal dimensão podem ser percebidos como uma bipartição entre direitos civis ou liberdades individuais e direitos políticos, de participação política ou liberdades políticas (SAMAPIO, 2010, p. 242).
Os direitos civis expressam-se de maneira incipiente na Declaração da Virgínia de 1776, e na Declaração decorrente da Revolução Francesa. Prima-se pelos direitos a vida, a liberdade de locomoção, ao devido processo legal, a necessidade de justificativa para ensejar prisão ou mesmo a obrigatoriedade tributária. Tais direitos podem ser interpretados como uma espécie de princípio da legalidade que visou à proteção da individualidade humana, sua integridade e respeito, em face dos abusos praticados pelo Estado.
Por direitos políticos se percebe que o Estado Liberal positivou ou democratizou valores que deveriam ser os preponderantes no Estado de Direito (LUNÕ, 1995, p. 20). Em especial, a possibilidade de votar e ser votado, que, como já mencionado, estava restrita à classe abastada economicamente, ou seja, se chancelou o ingresso da classe burguesa ao poder de forma legítima, juridicamente.
2.2Da segunda dimensão dos direitos fundamentais
Posterior ao Estado Liberal houve sua transformação em Estado Social, o que não ocorreu sem uma justa causa. Tal modificação originou-se em função da constatação do incremento das desigualdades fáticas decorrente da livre iniciativa da sociedade civil, ou do absenteísmo estatal, o que trouxe consequências negativas para o próprio Estado, assim como para a iniciativa privada, que precisava de mercado consumidor para as riquezas produzidas. Acresça-se a diferença cultural, e a ausência da maior parte da população em relação a serviços necessários para uma vida digna, como saúde e educação.
A consolidação do capitalismo demonstrou que ele representa um grande antagonismo social, uma vez que a acumulação de capital por ele proporcionada concentrou-se nas mãos do dono dos meios de produção, não sendo dividida em termos de benesses sociais ao proletariado. Ao contrário, sob a ótica do capitalismo constata-se um ciclo insolúvel: o dono do capital acumulava mais valia e o proletariado mantinha-se cada dia mais pobre e explorado, sem a menor perspectiva de progressão social ou econômica. A classe proletária era afastada, inclusive, dos frutos do seu trabalho, qual seja, das manufaturas produzidas pelas grandes corporações desde a Revolução Industrial.
Viveu-se o paradoxo do capitalismo: produção de riqueza, manufaturas, tecnologias, avanços, porém, tudo isto não foi repartido ou entregue àqueles que se dedicavam braçalmente à produção, ou seja, ao proletariado.
Neste sentido, cogitou-se em modificação das premissas das bases de configuração estatal, obrigando a Direção Política dos países a interferirem na vida dos cidadãos positivamente, implementando direitos que por si só estavam distantes da realidade da maior parte da população. O Estado assim mudou sua feição de ator negativo para positivo. Segundo Sarlet (2011, p. 47), passou-se da acepção de liberdade diante do Estado para seu conceito através do Estado, de sua atuação positiva.
Esta transformação de paradigma iniciou-se com a Constituição do México, de 5 de fevereiro de 1917, seguindo-se da Constituição de Weimar, de 1919, e posteriormente difundindo-se pelo mundo.
A modificação mencionada foi impulsionada, igualmente, pela atuação de movimentos sociais proletários que reivindicavam melhores condições de vida, em especial os da Rússia. Através da luta de classe, os direitos relacionados ao bem estar social fizeram-se ecoar pelo mundo, demonstrando os limites que deveriam ser estabelecidos à atividade capitalista, ao mesmo tempo em que se redefiniram as garantias que deveriam ser ofertadas aos economicamente desvalidos, neste sentido a necessidade de prestações estatais a tais pessoas.
É dentro deste contexto que surge a segunda dimensão dos direitos fundamentais, abarcando educação, saúde, direito ao trabalho, ao lazer e demais prerrogativas conhecidas atualmente como direitos sociais.
Identificou-se como desiderato do Estado Social o elo entre a sociedade e o Estado (BONAVIDES, 2010) de forma duradoura, o que seria exercido pela democracia, elemento legitimador do Direito.
O Estado Social que se formou no início do século XIX foi se aperfeiçoando com o tempo, e incorporou características da dimensão que o antecedeu, sem, contudo, perder a sua principal característica: a proteção e cuidado com aqueles que são socialmente e economicamente mais fracos.
Dentro do viés do Estado Social os direitos fundamentais ecoam de forma significativa, já que é sua missão a efetivação dos mesmos, galgando-se, assim, o conceito de justiça social e, tanto quanto seja possível, objetivando-se ao respeito do princípio da igualdade material ou substantiva. Bonavides assim adverte:
“É Estado social onde o Estado avulta menos e a Sociedade mais; onde a liberdade e a igualdade não se contradizem com a veemência do passado; onde as diligências do poder e do cidadão se convergem, por inteiro, para transladar ao campo de concretização de direitos, princípios e valores que fazem o Homem se acertar da possibilidade de ser verdadeiramente livre, igualitário e fraterno. A esse Estado pertence também a revolução constitucional do segundo Estado de Direito, onde os direitos fundamentais conservam sempre o seu primado. Sua observância faz a legitimidade de todo o ordenamento jurídico.” (BONAVIDES, 2010, p. 70).
É aqui que os direitos fundamentais sofrem uma expansão de significando incidindo, inclusive, sobre as relações entre particulares (LUNÕ, 1995, p. 23). Diante da dimensão objetiva dos direitos fundamentais começa-se a repensar as relações entre os entes privados e a necessidade de o Estado discipliná-las, de forma a evitar que o poderio econômico de uns se sobreponha à dignidade de outros. Enfim, o Estado, acima de tudo, deve ser um agente de direcionamento e de baliza, regulamentador e conformador das situações que explicitam diferenças fáticas, para que o bem comum possa ser respeitado e alcançado, em todas as situações.
2.3 A terceira dimensão dos direitos fundamentais
Os direitos de terceira dimensão ultrapassam a visão de proteção individual e se projetam para além do indivíduo, tutelando anseios maiores, como a paz, a solidariedade e a fraternidade.
No início do século XX, o mundo é dividido pela disjunção classificatória dos países em desenvolvidos e subdesenvolvidos (ou, ainda, países em desenvolvimento). Neste momento urge necessário que os países em desenvolvimento tenham liberdade para se desenvolverem segundo seu próprio compasso, e lhes seja resguardado o direito à paz.
Segundo Bonavides (2010) pode-se pensar as dimensões dos direitos fundamentais de forma a que a primeira e a segunda dimensões tenham como destinatários os países desenvolvidos (SAMPAIO, 2010, p. 273), já a terceira dimensão estaria apontada para os países em desenvolvimento, que precisam de respaldo e proteção para ditarem sua forma de se autoconduzir, sem a interferência do poderia econômico e das pressões políticas dos países conceituados como desenvolvidos. Busca-se resguardar a autodeterminação dos povos e a prerrogativa de escolha do mecanismo de desenvolvimento mais adequado a cada um dos Estados, sobretudo chancelados pelo direito à paz.
Tal posicionamento torna-se relevante principalmente após o fim das Grandes Guerras mundiais, já diante da devastação econômica, de forma a se evitar uma ingerência dos países desenvolvidos àqueles em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.
Cita-se como representativos de tais direitos a proteção à paz, a autodeterminação dos povos[1], o desenvolvimento, o meio ambiente, o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural, denominado por Bonavides como “patrimônio comum da humanidade” (BONAVIDES, 2009, p. 569) e o direito de comunicação. (SARLET, 2011, P. 48). Tais direitos tem como fundamento a premissa da fraternidade e da solidariedade.
Esta dimensão apresenta desdobramentos internos e externos aos países. Internamente se proclama e torna-se necessária a proteção de comunidades subjugadas, como índios, quilombolas, ribeirinhos, autóctones, entre outros. Tal público passa a ser vislumbrado como minoria que deve ter seus direitos e conformações culturais protegidas pelo Ordenamento Jurídico pátrio, de forma efetiva (SAMPAIO, 2010, p. 273-278). Com tal proteção busca-se tornar efetivo o direito à diferença, prezando-se pela pluralidade, não se admitindo discriminações em virtude da diferença de opção, ou seja, um direito que é contramajoritário e deve ultrapassar a deontologia para firmar-se na faticidade.
Externamente, por sua vez, impõe-se que os Estados em desenvolvimento possam ter sua economia e demais manifestações protegidos contra os países desenvolvidos. Em especial busca-se proteger os países em processo de descolonização, resguardando-se a eles que possam decidir e conformar seu método de desenvolvimento segundo suas próprias escolhas e percepções, ao invés de se conformarem com um projeto político e econômico já previamente estabelecido e pronto para ser aplicado.
Nesta dimensão, ainda, se preza a expansão da proteção para além do indivíduo, sob a perspectiva dos direitos coletivos e difusos. Este último é vetor de discussões, trazendo-se sempre à baila como exemplo desta geração o meio ambiente, em especial o conceito de desenvolvimento sustentável, que permite o uso racional dos bens presentes visando-se a garantir sua utilização pelas gerações futuras.
Os direitos difusos, assim, são indetermináveis com relação a sua titularidade, não se podendo mensurar o que cabe a cada indivíduo especificamente ou repartidamente. Já os direitos coletivos seriam aqueles pertencentes à determinada classe de pessoas, que gozariam dos mesmos benefícios, portanto podendo demandá-los conjuntamente.
2.4 A quarta dimensão dos direitos fundamentais
Não há consenso doutrinário quanto à quarta dimensão dos direitos fundamentais, de forma que opta-se por trabalhar as premissas estudadas por Paulo Bonavides (2009), que remete aos direitos relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo político.
O pano de fundo da quarta dimensão é o fenômeno da globalização, bem como a premissa de um Estado Neoliberal, que busca integrar mercados econômicos ao mesmo tempo em que esvazia as funções/obrigações do próprio Estado.
Por isto, a globalização é percebida por Bonavides (2009 e 2010) como mecanismo perverso, como afronta à efetividade dos direitos fundamentais, rompendo-se, inclusive, com a noção e robustez do conceito de soberania se alcançada a integração plena dos mercados internacionais, como pretendido. Um cuidado ímpar merece ser tomado, entretanto: quando Bonavides fala de globalização ele a divide em globalização política e globalização econômica. A globalização econômica é percebida com desconfiança e descrença pelo autor, pelos motivos já apontados. Com relação à globalização política e normativa, a mesma é considerada como instrumento para a efetividade dos direitos fundamentais, calcada, principalmente, na noção de democracia. A democracia, neste ínterim, é percebida como mecanismo de implementação do Estado Social, como seu coroamento, e, junto a ele, como garantia de efetividade dos direitos sociais.
A democracia mencionada por Bonavides (2009) deveria ser a direta, utilizando-se das novas possibilidades tecnológicas da comunicação, assim como do direito à informação e da abertura política que o pluralismo político traz consigo. Ou seja, seria um sistema de abertura à participação popular, como um repúdio ao continuísmo político representado pela história política do país. Por tais razões, a democracia se coloca ao mesmo lado da informação e da pluralidade política, já que são estes dois elementos que lhe dão a oportunidade de se firmar como possível e efetiva.
A democracia, que aparece de forma implícita nos direitos de primeira dimensão se firma na quarta, para, aqui, fundar-se e dar coerência ao Estado Social e Democrático de Direito. Democracia, sob tal perspectiva, ultrapassa a visão de regime da maioria e firma-se como primado de respeito e efetividade de participação das classes minoritárias, que devem ser atendidas pelo Ordenamento Jurídico. Mas, para tanto, urge a necessidade de efetiva participação destas classes no rumo das decisões políticas do Estado, e assim a democracia a que se busca não é a tradicional, mas a deliberativa.
Neste sentido, há a necessidade de representantes das minorias lançarem-se nas discussões políticas trazendo suas necessidades para o debate público. Há ainda, a obrigação de o Estado, em todos os seus poderes, guindarem os anseios manifestados como manifestações de um grupo desigual que necessita de maior auxílio para se colocar em uma posição de equilíbrio.
Percebe-se nesta dimensão um plus às características do Estado Social, que tem como premissa a garantia pela igualdade substancial. Portanto, o Direito busca, de acordo com a quarta dimensão, promover um movimento legislativo pela inclusão e salvaguarda das minorias. Esta inclusão manifesta-se, por exemplo, por meio das normas do Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Maria da Penha, Estatuto do Torcedor, entre outros.
Com relação à democracia deliberativa, a mesma é exteriorizada na ‘obrigatoriedade’ de elaboração de orçamentos participativos, colegiados para confecção de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, tributação, urbanismo, entre outras previsões legislativas.
Ou seja, a quarta dimensão dos direitos fundamentais, se faz presente no constitucionalismo da atualidade, que prima pela inclusão das minorias, pelo respeito à diferença, e pela salvaguarda da efetividade dos direitos fundamentais, principal mecanismo de legitimidade do Estado Democrático de Direito.
2.5 A quinta dimensão dos direitos fundamentais
Bonavides (2009) remete a uma derradeira dimensão dos direitos fundamentais, que adstringe-se à paz, retirando-a da terceira dimensão, onde ocupava lugar desprestigiado e reinventando toda uma construção doutrinária sobre o direito à paz, que parte, em sua essência, das necessidades humanas.
O retorno das discussões sobre o direito à paz encontra abrigo após a década de 1970, quando na Assembleia-Geral da ONU de 15.12.1978 confecciona-se a Declaração das Nações Unidas sobre a preparação das sociedades para viver em paz.
O direito à paz deve ser percebido como uma decorrência do direito à vida, já que não pode vislumbrar uma vida digna sem a noção de segurança (no plano interno) e de paz (no plano externo ou internacional).
Direito intrigante, uma vez que possui tanto uma titularidade individual quanto coletiva. Individual no sentido de que o ser humano necessita da paz para desenvolver sua vida, em uma leitura que aproxima o direito à paz à segurança a nosso ver. Titularidade coletiva no sentido de se remeter a um direito atinente à toda Humanidade, uma vez que não se pode perquirir do direito ao desenvolvimento (enfocando na terceira dimensão dos direitos fundamentais) sem que no âmbito internacional se respeitem as individualidades de cada país e, ao mesmo tempo, se apregoa o princípio do livre desenvolvimento das Nações, como bem faz o art 4º da Constituição da República de 1988.
O direito à paz é um direito de cunho moral e ético, uma vez que traz em si o axioma da concórdia, que transcende o primado da legalidade para alcançar o da justiça, tendo em seu bojo a premissa de que todo o direito almeja ao bem comum, e que este apenas pode ser alcançado quando o ser humano conseguir conviver harmonicamente, sob o primado da comunhão de vidas e respeito ao próximo.
Bonavides (2009 a) assevera que o direito a paz determina que as ações de pessoas e grupos que visam a desestabilizar o convívio harmônico devem ser repelidas. Em suas palavras:
“Estuário de aspirações coletivas de muitos séculos, a paz é o corolário de todas as justificações em que a razão humana, sob o pálio da lei e da justiça, fundamenta o ato de reger a sociedade, de modo a punir o terrorista, julgar o criminoso de guerra, encarcerar o torturador, manter invioláveis as bases do pacto social, estabelecer e conservar, por intangíveis, as regras, os princípios e cláusulas de comunhão política.” (BONAVIDES, 2009, p. 590)
Sem dúvidas, o direito da atualidade exige mais que a mera legalidade. Ele conflui e bebe das águas da ética e da moralidade, em uma direção de pluralidade e respeito ao próximo, tendo na alteridade sua baliza, e, por isso mesmo fazendo do respeito à diferença um plus e não uma barreira.
Assim, no direito à paz há uma síntese da necessidade atual em relação às demandas jurídicas no sentido de se buscar a liberdade em sentido amplo, com respaldo e deferência ao respeito, à segurança e à igualdade, principalmente no sentido de se acrescer proteção à soberania nacional e à premissa de livre desenvolvimento da humanidade na busca constante pelo bem comum.
3. A conceituação de direito difuso: diferenciações em relação aos direitos coletivos e individuais homogêneos.
Antes de mais nada é preciso relembrar, e manter a premissa de que os direitos difusos são direitos fundamentais, de terceira dimensão. Assim, seja em qual hipótese forem analisados devem, sempre, para sua configuração e proteção representarem todas as prerrogativas inerentes à concepção de direitos fundamentais. Deve-se, também, entender o contexto de surgimento da classificação de direito difuso para, após, adentrar no direito à saúde, visando a identificá-lo ou não como direito difuso.
A categoria de direito difuso surgiu no mundo após a década de 1970. No Brasil a doutrina inspirou-se na class action americana, tendo como objetivo a inserção da tutela coletiva no direito nacional. Historicamente a tutela coletiva veio à lume pela dicção da Lei 7.347/1985, Lei da Ação Civil Pública. Posteriormente, a previsão se fez presente na Constituição de República de 1988 e no Código de Defesa do Consumidor, Lei 7.078/90.
O Código de Defesa do Consumidor trouxe no art. 81 a definição das modalidades de tutela coletiva, quais sejam, os conceitos de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. In litteris:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”
Entrementes, não há consenso doutrinário sobre a diferenciação entre os conceitos apresentados. Esta indefinição conceitual alcança os termos ‘direito’ e ‘interesse’, assim como a delimitação do que seria interesse público, social e coletivo (FERRAZ, 2005, p. 64-69). Há ainda que se ressaltar o uso dos termos ‘coletivo’ e ‘difuso’ como se fossem sonímias (MANCUSO, 1994, p. 71), o que não é adequado juridicamente. Mancuso reintera que enquanto os direitos coletivos já estão bem definidos e discutidos doutrinariamente, os direitos difusos ainda apresentam-se com grandes indagações (MANCUSO, 1994, p. 74). Há ainda a diferenciação no sentido qualitativo e quantitativo, afirmando-se que direitos difusos são mais abrangentes, podendo abarcar, inclusive, toda a humanidade, ou o conceito de homem em um sentido abstrato. Já os direitos coletivos restringem-se a determinado grupo ou a corporação em que determinadas pessoas estão inseridas (MANCUSO, 1994, p. 73).
Inicialmente deve-se definir o que sejam os interesses transindividuais ou metaindividuais para, posteriormente identificarem-se as características dos direitos difusos e coletivos e assim, serem ambos diferenciados.
Segundo Mazzilli (2009, p. 50), direitos transindividuais situam-se entre o interesse público e o interesse privado, sendo lato sensu, equivalente à tutela coletiva. Abarcam, nesta esteira, a subdivisão em direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. A tutela coletiva é importante para se “evitar decisões contraditórias, como ainda deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido em proveito de todo o grupo lesado” (MANZILLI, 2009, p. 50-51).
Legalmente os interesses ou direitos difusos são indivisíveis e referem-se a pessoas indeterminadas ligadas por uma relação de fato. O exemplo típico com relação a eles é o da proteção ao meio ambiente.
Interesses ou direitos coletivos, por sua vez, seriam os referentes a grupos determináveis, de natureza indivisível, cujos titulares podem ou não estarem relacionados entre si, porém todos estão ligados à parte contrária por uma situação jurídica base, como exemplo uma relação de emprego. Por sua vez, os interesses individuais homogêneos seriam divisíveis, tendo, entretanto, a mesma origem, como exemplo, a compra de determinado produto por consumidor.
Com relação aos interesses difusos, os mesmos são identificados como relacionados à “qualidade de vida em sociedade” (FERRAZ, 2005, p. 69), tendo um conteúdo fluido. Por não ter definição precisa defende-se que haja maior necessidade de proteção e tutela jurídicas (MANCUSO, 1994, p. 78). Esta indeterminação quanto aos seus contornos é denominada por Mancuso como litigiosidade interna (1994, p. 85), ou como sendo sua característica marcante no sentido de que os mesmos estão em constante transição ou mutação no tempo e no espaço (MANCUSO, 1994, p. 89). Neste sentido, tem-se que os interesses difusos adéquam sua configuração a partir das transformações sociais. Estão intimamente relacionados a um contexto profundamente dinâmico, fluido, sendo extraídos de situações contingenciais e emergenciais que requerem proteção. Seria o caso, por exemplo, da construção de uma barragem hidrelétrica[2], em que os atingidos formam uma associação e visam a resguardar seus direitos à história, moradia, tradição e cultura, todos eles considerados difusos no exemplo apontado.
De forma geral, pode-se entender que os direitos difusos caracterizam-se por uma situação de fato que requer proteção, ainda que não exista uma delimitação jurídica quanto a tal assunto, ou mesmo que a norma jurídica tenha caráter muito amplo ou genérico, impedindo uma delimitação precisa. Ressalte-se, ainda, a impossibilidade de mensuração exata do que cabe a cada um dos sujeitos desse direito, que é por si mesmo indivisível.
Interessante a colocação de Sarlet (2011, p. 126-127) no sentido de que muitas das discussões sobre os direitos difusos atinem aos seus destinatários, o que deveria ser tratado, entretanto, como atinente à titularidade dos mesmos. Seguindo a premissa estabelecida para os direitos fundamentais, tem-se que os titulares dos direitos difusos são todas as pessoas que se encontram sobre a situação questionada, de forma que, mais uma vez, recoloca-se a questão da universalidade e generalidade como eixos centrais das discussões sobre o tema. Neste viés aborda-se o direito à saúde, buscando delimitar tanto a titularidade como as discussões acerca da tutela adequada para buscar a efetividade de tal direito.
4. A saúde como direito fundamental difuso: implicações e considerações baseadas no entendimento do STF
O direito à saúde não se apresenta com classificação pacificada pela doutrina. Há quem impute a ele caráter coletivo, individual homogêneo e também difuso. Há ainda quem o considere de forma ambivalente: tanto possuindo dimensão individual quanto coletiva, posição que parece ser a mais acertada (WEICHERT, 2006, p.510).
Mancuso por diversos momentos classifica a saúde pública como liberdade pública ou direito público subjetivo. Afirma que ela não apresenta litigiosidade ostensiva como é típico dos direitos difusos. Neste sentido afirma que “no máximo, poderá ser questionada a qualidade ou o modo pelo qual aqueles valores vem tutelados pelo Estado, mas não se pode conceber a existência de interesses diametralmente opostos a esses valores”(MANCUSO, 1994, p. 87-88). Muito embora se respeite a opinião do autor, não se pode anuir com tal posicionamento. A saúde pública é, em sua essência, direito difuso. Por alguns momentos poderá ser pleiteada enquanto direito individual homogêneo, mas a sua discussão, no sentido do alcance da proteção conferida constitucionalmente pelo art. 196 da Constituição da República é em si de natureza difusa.
A conceituação como direito difuso, inclusive foi mencionada por Mancuso (1994, p. 123) ao relatar as demandas relacionadas ao tratamento do HIV na década de 1990, assim como os eventos relacionados aos sem terra, aos viventes da rua ou à comunidade gay. Em todos estes exemplos Mancuso conseguiu perceber a mutabilidade das situações de fato, sem uma construção normativa já organizada e que, não obstante, necessitavam da tutela estatal atribuída aos direitos difusos para que estes grupos vulneráveis tivessem seus direitos resguardados pelo Estado.
Retomando aos soropositivos, nota-se que os mesmo na década de 1990 entraram com várias ações para requerer medicamentos aptos ao tratamento da doença, o que pode ser vislumbrado pelo Recurso Extraordinário 273.834/ RS, cuja ementa segue-se:
“E M E N T A: PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. – O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. – O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF” (BRASIL, STF, RE 273834/ RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento 23/08/2000).
Este julgado foi a base para as discussões atinentes à saúde que se seguiram à década de 1990. Nele a saúde firmou-se como direito público subjetivo que deveria ser adimplido pelo Estado, superando-se a antiga classificação de que o art. 196 configurava-se como norma programática, dependente, assim, da vontade política do Poder Legislativo.
Interessante, ainda, trazer à discussão que com relação aos medicamentos relacionados à Aids, de forma específica, foi promulgada a lei 9.313/96, que determinou no art. 1º a gratuidade de toda a medicação necessária ao tratamento da doença. Posterior à edição de tal norma e do julgado acima relacionado, a Lei 9.313/96 foi utilizada por analogia[3] em relação a outros pedidos jurídicos que diziam respeito a pleitos por medicação para tratamento de saúde custeado pelo SUS, sendo que em muitos destes pleitos a resposta advinda do Judiciário foi favorável aos requerentes/pacientes (KRUEGER, 2006, p. 422).
Note-se que a saúde no julgado acima colacionado, assim como em muitos que se seguiram, ganhou o status de direito individual subjetivo. Entretanto, este caráter, em função do art. 127 e 129 da Constituição, passou a merecedor uma proteção diferenciada, via ação civil pública, estabelecendo-se a titularidade do Ministério Público para tal atividade. Nesta esteira, o art. 127, in fine, da Constituição estabelece que cabe ao Ministério Público a defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis. Relembrando, o art. 6º da Constituição, prevê os direitos sociais incluindo entre eles, expressamente, o direito à saúde. Por outro lado, o art. 129, II e III, também da Constituição da República, afirma que cabe ao Ministério Público zelar pelo respeito por parte dos Poderes Públicos dos serviços de relevância pública, bem como utilizarem-se da ação civil pública para a salvaguarda de direitos coletivos e difusos. Eis o contexto da controvérsia acerca da saúde pública. Seria ela direito individual, coletivo ou difuso? Como não há unanimidade na doutrina, e faticamente poucos se dediquem à controvérsia, a resposta será buscada nos julgados do Supremo Tribunal Federal, que também não expressão esta classificação no padrão aqui tratado. Entrementes, a discussão sobre o direito material à saúde possibilita a construção do mecanismo de tutela adequado para a busca da efetividade da saúde pública, bem como os efeitos decorrentes da classificação defendida.
Assim, importante que se remeta ao RE 407902/RS, de relatoria do Ministro Marco Aurélio:
“LEGITIMIDADE – MINISTÉRIO PÚBLICO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – FORNECIMENTO DE REMÉDIO PELO ESTADO. O Ministério Público é parte legítima para ingressar em juízo com ação civil pública visando a compelir o Estado a fornecer medicamento indispensável à saúde de pessoa individualizada” (BRASIL, STF, RE 407902/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 26-05-2009).
Através deste julgado conclui-se que mesmo que se considere a saúde sob a ótica de um direito individual, como muitos autores fazem, ainda assim o Ministério Público permanece competente para ajuizar ação civil pública visando ao requerimento de medicamentos indispensável à saúde de pessoa individualizada. Esta situação demonstra que se há competência do Ministério Público para interpor ação civil pública, o direito à saúde deve ser considerado como coletivo ou difuso, isto para guardar coerência com a expressão do art. 129, III, da Constituição da República, mencionado acima. Esta conclusão segue a premissa da concordância prática, estabelecida por Hesse (1995, p. 60) como critério hermenêutico para interpretação das normas constitucionais.
Não se para por aí. Tentando construir através dos julgados um conceito de saúde, buscam-se informações essenciais na STA 175, destacando-se a seguinte passagem:
“Cumpre assinalar que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante. Tenho para mim, desse modo, presente tal contexto, que o Estado não poderá demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhe foi outorgado pelo art. 196, da Constituição, e que representa – como anteriormente já acentuado – fator de limitação da discricionariedade político-administrativa do Poder Público, cujas opções, tratando-se de proteção à saúde, não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. Entendo, por isso mesmo, que se revela inacolhível a pretensão recursal deduzida pela entidade estatal interessada, notadamente em face da jurisprudência que se formou, no Supremo Tribunal Federal, sobre a questão ora em análise. Nem se atribua, indevidamente, ao Judiciário, no contexto em exame, uma (inexistente) intrusão em esfera reservada aos demais Poderes da República." (BRASIL, STF, STA 175-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 17-3-2010, Plenário, DJE de 30-4-2010.)
No julgado acima transcrito a tônica da discussão dizia respeito à impossibilidade, suposta, de o Judiciário ou o Ministério Público movimentarem-se no sentido do adimplemento do direito à saúde, sob a alegação de que se o mesmo é dependente de política pública, que seria exclusividade – ou ato discricionário – dos poderes democráticos. A alegação da separação de poderes – considerada como dogma – não prosperou, nem poderia. Hoje é pacífico o entendimento de que o princípio da separação de poderes é apenas uma forma de dinamizar a execução das funções públicas, e que todas elas devem complementar-se em prol da efetividade ou concretização dos direitos fundamentais, incluindo aqui, necessariamente, a saúde. Assim, o Judiciário é órgão legítimo para impor a concretização de direitos sociais, como a saúde e a educação. Da mesma forma o Ministério Público, como ‘fiscal’ dos direitos sociais e indisponíveis, pode e deve pugnar pela concretização dos mesmos através da ação civil pública. Mais uma vez reconheceu-se o caráter fundamental do direito à saúde. E, indo além, a característica difusa do mesmo, haja vista que o Ministério Público tem legitimidade para arguí-la. A única discussão possível, neste sentido, seria em qual classificação estaria inserida a saúde: se como direito coletivo u ou difuso. Mas tal debate seria vão, uma vez que o direito à saúde não se prende a classe específica, mas a todos, de forma genérica, ou seja, apenas poderia ser direito difuso.
Mas vai-se além. O destinatário do direito a saúde ultrapassa a noção de nacionalidade, uma vez que estrangeiro de passagem pelo Brasil pode ser amparado pelo SUS. [4] Isto não significa dizer que o Estado brasileiro tutele a vinda de estrangeiros exclusivamente para tratamentos médicos, o que oneraria sobremaneira o Sistema Único de Saúde, dando destinação diversa a verbas que seriam destinadas ao tratamento de nacionais. Ainda assim, nota-se que a dicção ‘todos’ presente no art. 196 da Constituição da República é demasiadamente ampla, tipicamente determinante de um direito difuso.
Pois bem, ainda que se argumente pela individualidade de determinados requerimentos de saúde, eles nada mais são que o exercício de um direito subjetivo, que não obstaculariza o conceito de direito difuso deste mesmo direito à saúde. Os direitos individuais em relação ao direito aos requerimentos por medicamentos ou procedimentos médicos são a concretização de um direito maior, qual seja, o direito à saúde em sentido amplo, determinado pela Constituição da República de 1988, no art. 196.
Sarlet afirma que inicialmente, e primariamente, os direitos sociais teriam tutela individual (2011, p. 131), o que não impede, entretanto, que tal tutela possa ocorrer de forma coletiva, ou mesmo difusa. Não há necessidade de disjunção, mas de coadunar objetivos e primar pela possibilidade de concretização do direito fundamental, objetivo do direito constitucional da atualidade (HESSE, 1995, p. 61). É certo que:
“(…) na constatação, de resto suportada pela jurisprudência atualmente dominante no STF, de que a titularidade dos direitos sociais e do direito à saúde de forma particular é tanto individual quanto coletiva e mesmo difusa, não se podendo, pelo menos não de forma generalizada, afastar uma litigância individual” (SARLET, 2011, p. 137).
Há ainda que ser ressaltado que em relação à saúde, várias são as possibilidades de os direitos difusos se manifestam, como por exemplo a formação de associações de portadores de determinadas doenças que se unem em prol de obterem tratamento ou medicamento. Um caso interessante é a ação das referidas associações no sentido de buscarem a agilidade nos registros de medicamentos e tratamentos médicos pela ANVISA, isto porque a lei 12.401/2011 determinou no art. 19-T medicamentos sem registro da ANVISA não podem ser custeados pelo Estado. Diante destas associações, urge de forma transparente o direito difuso ao tratamento médico, como ocorreu com o caso da Aids no início da década de 1990.
Ao que parece, quer-se desconfigurar o direito à saúde enquanto direito difuso pela possibilidade de o mesmo ter tutela individual. Mas neste caso, esta tutela não desnatura a materialidade do direito difuso, cuja norma motriz, ressalte-se, é o art. 196 da Constituição.
5 A guisa de conclusão: recolocando a pessoa humana como cerne do ordenamento jurídico e o direito à saúde como fundamental difuso, que pode ser pleiteado por meio de tutela coletiva ou individual.
A maior parte dos debates sobre a saúde configurar-se ou não como direito difuso desemboca apenas em uma questão procedimental, ouvidando-se da fundamentalidade do direito debatido.
É muito interessante classificar a saúde como direito difuso na medida em que tal colocação permite requerimentos mais abrangentes, mesmo que sem normas específicas em que haja tal previsão especificamente. É esta inclusive, a característica marcante dos direitos difusos: serem situações fáticas, que requerem proteção jurídica, muito embora ainda não se configurem como direito tutelado. Nas palavras de Mancuso, uma situação emergencial e contingencial. Ainda, que não possa ser delimitada ou repartida no sentido de dar a cada possível titular uma parcela apenas da proteção total.
Enquanto a saúde for considera como direito difuso, basta a dicção do art. 196 e 198, II, da Constituição da República para obrigar o Estado aos tratamentos de saúde, incluindo a questão da dispensação de medicamentos, incluídos ou não em listagens oficiais como o RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) .
Como se viu neste ensaio, o Ministério Público tem legitimidade para interpor os requerimentos de saúde através de ação civil pública, mesmo que se trate de direito de um só indivíduo. No mesmo sentido se atribui legitimidade à Defensoria Pública para a prática de tais ações.
Assim, mesmo que haja resistência de classificar o direito à saúde como coletivo ou difuso, a chancela à atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública através da ação civil pública já demonstra, por si só, o viés abrangente que a saúde traz em seu interior.
Não se pode desconsiderar a fundamentalidade da saúde humana, que decorre do direito à vida, e desemboca na qualidade de vida da pessoa humana. No mesmo sentido, não há como cercear o direito à saúde a determinada classe de pessoas que estejam relacionadas a determinada relação jurídica. O direito à saúde, repita-se, decorre do direito à vida, e não de outro fator. É um atributo indispensável à dignidade humana, de forma que parece pitoresco não classificar a saúde, de forma ampla, em um direito difuso, e igualmente individual e fundamental.
Tal consideração não determina que as tutelas pela saúde devam ser coletivas necessariamente. Podem ser individuais. Depende do caso concreto. O que não se anui é com a classificação excludente do direito à saúde como direito difuso.
Mas, ainda aqui vale uma última observação. Se as relações processuais são instrumentais e o que de fato sobreleva é o bem da vida a que se busca, não importa a nomenclatura a ser adotada. O que importa é recolocar o ser humano como centro da proteção jurídica e garantir a ele qualidade de vida, dignidade e saúde.
Advogada. Formada em Direito pela UFV. Mestre pela UFV. Doutoranda em Direito Público pela Puc Minas. Professora do Centro Universitário Newton Paiva e da Polícia Militar de Minas Gerais
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