Resumo: O objetivo do presente estudo é discorrer sobre a possibilidade de inclusão de uma Sociedade de Propósito Específico — SPE para os fins da Lei no 12.846/2013, especialmente no que se refere aos acordos de leniência. Buscar-se-á abordar a inserção da SPE no ordenamento jurídico brasileiro, sua natureza jurídica, constituição e controle. Pretende-se, ainda, considerando a possibilidade de constituição diversificada de uma SPE, seja por pessoas jurídicas de direito público ou privado, examinar a espécie de controle exercido no âmbito desse tipo de sociedade, de modo a verificar se é cabível a inserção de uma sociedade de propósito específico controlada pelo poder público no contexto jurídico-normativo trazido pela Lei Anticorrupção brasileira de nº. 12.846/2013, que trata da responsabilização administrativa de pessoas jurídicas por atos lesivos cometidos contra a administração pública e estabelece regras visando à formatação de acordos de leniência.
Palavras-chave: Sociedade de Propósito Específico – Lei anticorrupção brasileira – Princípios da Administração Pública – Controle – Acordos de leniência.
Abstract: The purpose of this study is to discuss the possibility of including a Special Purpose Company – SPE in the liability area for the purposes of Law nº. 12.846 / 2013, especially with regard to leniency agreements. It will be sought to address the insertion of the SPE in the Brazilian legal system, its legal nature, constitution and control. It is also intended to consider the possibility of a diversified constitution of an SPE, whether by legal entities governed by public or private law, to examine the kind of control exercised in this type of society, in order to verify if it is possible to insert a company of special purpose controlled by the public power in the legal-normative context brought by the Brazilian Anti-Corruption Law nº. 12.846 / 2013, which deals with the administrative accountability of legal persons for harmful acts committed against the public administration and establishes rules for the format of leniency agreements.
Keywords: Special Purpose Company – Anti-Corruption Law – Principles of Public Administration – Control – Leniency Agreements.
Sumário: 1. Introdução – 2. Da Sociedade de Propósito Específico – 3. A SPE e o controle pelo poder público – 4. A SPE e a Lei nº. 12.846/2013 – 5. Conclusão – 6. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
A cooperação entre as sociedades tem se destacado nas discussões e debates como um meio capaz de tornar as empresas mais competitivas para enfrentar os problemas que surgem em uma sociedade cada vez mais complexa e que busca acelerar seu desenvolvimento econômico e social.
Nesse contexto, tem-se a sociedade de propósito específico como mais uma modalidade de organização que representa esse cenário que incentiva o estabelecimento de parcerias e a colaboração entre pessoas jurídicas que pretendem explorar novos negócios e partilhar riscos e custos para explorar novas oportunidades.
No caso de contratos firmados junto ao poder público, especialmente no âmbito de Parcerias Público – Privadas, a SPE, caso tenha em sua composição, parceiros públicos, e a depender do tipo de controle exercido sobre ela, discute-se sobre a possiblidade desse tipo de sociedade ser inserida no contexto da Lei Anticorrupção para fins de leniência, já que essa norma que tem por objetivo a preservação do patrimônio púbico e a proteção de pessoas jurídicas controladas pelo poder público.
2. DA SOCIEDADE DE PROPÓSITO ESPECÍFICO
Conceitualmente, a Sociedade de Propósito Específico – SPE é a sociedade cujo objeto social é limitado a um só fim específico, ou seja, a razão de ser dessa sociedade é justamente o cumprimento desse propósito específico, findo o qual, a mesma será extinta.
A SPE se apresenta como um modelo de negócio com origem em institutos tipicamente norte-americanos, como a joint venture (equity ou corporate joint venture), por meio do qual duas ou mais pessoas físicas e/ou jurídicas unem suas habilidades, recursos financeiros, tecnológicos e industriais, para executar objetivos específicos e determinados de forma lucrativa; em regra, de curta duração ou com prazo determinado.
Segundo a doutrina, o controle da joint venture, seja ele representado por ações ou por quotas, deverá ser distribuído da maneira mais equilibrada possível entre os seus integrantes. O mesmo não se observa com a sua administração, que poderá ser exercida por grupo de membros de forma mais individualizada.
Com o advento do Código Civil de 2002, permite-se a constituição de uma SPE[1]. “Restou, pois, legalmente estabelecida que a atividade de uma sociedade possa se restringir à realização de uma ou mais atividades determinadas, com vistas à exploração de um só negócio”[2].
Entretanto, a SPE não compreende uma forma legal de associação societária expressamente prevista na legislação nacional. Sua constituição dar-se-á sob o manto de qualquer um dos modelos societários personificáveis, respeitadas as disposições legais de constituição e funcionamento do referido tipo societário. Se sociedade limitada, deverá observar as regras do Código Civil. Caso se organize como uma sociedade anônima, deverá respeitar as normas da Lei nº. 6.404/76.
A Lei nº 11.079, de 31/12/2004, que instituiu o regime das Parcerias Público-Privadas – PPP prescreve, inclusive, a possibilidade de adoção da forma de companhia aberta pela SPE (S/A aberta), com a admissão de negociação em mercado de seus valores mobiliários (§2° do art. 9°[3]).
O instituto “SPE” foi introduzido de forma literal em nosso ordenamento jurídico por meio da Lei nº. 11079/2004. A instituição da SPE, na verdade, está no centro dessa lei, cujo objetivo é unir os esforços da iniciativa pública e privada[4].
No caso, por exemplo de um empreendimento que decorre da outorga de concessão de uso de bem público, de titularidade da União, a Administração deve realizar licitação para esse fim.
De posse da concessão, deve ser constituída um Sociedade de Propósito Específico, cujo objeto social deverá se reportar às atividades necessárias à estruturação, implantação, operação e exploração do bem público concedido pelo prazo definido na outorga.
Uma vez provida de personalidade jurídica, a SPE, sob uma das formas societárias previstas na legislação brasileira, passa a responder pelos direitos e obrigações decorrentes da realização do empreendimento para o qual foi constituída, podendo, inclusive, ser acionada em juízo.
A responsabilidade dos sócios da SPE será determinada pelo tipo societário escolhido: se constituída sob a forma de limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social, nos termos do artigo 1.052 do Código Civil.
Na hipótese da SPE ser constituída sob a forma de uma sociedade anônima, a responsabilidade dos sócios ou acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, conforme prevê o artigo 1º da Lei das Sociedades Anônimas.
Atualmente, sobretudo após o advento da Lei nº. 11.079/04, tornou-se comum a constituição de uma SPE para a formação das PPP’s, de modo que são utilizadas para grandes projetos de engenharia, com ou sem a participação do Estado, tais como na construção de usinas hidroelétricas, redes de transmissão, dentre outros.
Sob esse aspecto, a SPE é também uma forma de empreendimento coletivo, usualmente utilizada para compartilhar o risco financeiro da atividade desenvolvida. Não obstante, a modalidade de SPE pode ser aplicada nos empreendimentos coletivos de pequenos negócios.
O caput do artigo 9°[5] da Lei n. 11.079/04 estabelece que, antes da celebração do contrato, deverá ser constituída uma SPE, cuja função será implantar e gerir o objeto da parceria. Ou seja, a SPE será formada entre a entrega do objeto do certame ao vencedor e a assinatura do contrato, sendo que ela figurará como parte no negócio.
O parceiro privado em si, vencedor da licitação, não aparecerá como parte contratual, mas, sim, a SPE.
À luz da exposição de motivos nº. 355/03 do Projeto de Lei nº. 2.546/03, que discutiu a inserção das PPP’s no ordenamento jurídico brasileiro, constata-se que a SPE foi instituída com o objetivo de oferecer à Administração Pública garantias para a adequada conclusão de um negócio a ser executado, tendo em vista o esforço e recursos necessários à conclusão do processo de contratação e o prazo geralmente estendido de vigência do contrato[6].
O § 3º do artigo 9º, por sua vez, além determinar a adoção de contabilidade e demonstrações financeiras padronizadas, estabelece que a SPE deva obedecer a padrões de governança corporativa[7].
Entretanto, a sua colocação não se resume a isso, de sorte que uma SPE pode servir também de instrumento nas operações de recuperação judicial de empresas e de securitização de créditos.
A Lei de Falências nº. 11.101/2005, que regula a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, faz menção à SPE ao prever que “constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: […] XVI – constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor (art. 50)”.
A SPE se trata, portanto, de um modelo de organização empresarial pelo qual se constitui uma nova empresa com personalidade jurídica, seja sociedade limitada ou sociedade anônima, com um objetivo específico, podendo em alguns casos ter prazo de existência determinado.
3. A SPE E O CONTROLE PELO PODER PÚBLICO
Em se tratando do controle, ou melhor, de sua distribuição, há sensível diferença em relação à SPE, pois, no caso das parcerias públicas privadas, o controle societário deverá ser exercido, salvo raras exceções, pelo parceiro privado, e não pelo setor público.
A maioria do capital votante nas SPE’s não pode estar nas mãos da Administração Pública, pois, se estiver, ter-se-á uma sociedade de economia mista, e não uma SPE, conforme dispõe o § 4° do art. 9° já referido[8].
Porém, em caso de inadimplemento de contratos de financiamento, a maioria do capital votante da SPE poderá ser adquirida por instituição financeira controlada pelo Estado (§ 5º do artigo 9º[9]), tratando, pois, de exceção à vedação prevista no § 4º.
Na composição de uma Sociedade de Propósito Específico poderão participar diversas empresas estatais e privadas, com percentuais de participação bastante diversos, de modo que poderá haver diversas empresas estatais acionistas da uma SPE.
Sempre com o intuito de preservar o patrimônio público, a Lei Anticorrupção expressamente busca proteger pessoas jurídicas controladas pelo poder público, as quais podem ser divididas em pessoas jurídicas de direito público e privado. As primeiras são as autarquias e outras entidades criadas por lei. As segundas são as empresas públicas, com patrimônio exclusivamente público, e as sociedades de economia mista, com parcela de capital privado, mas com controle público[10].
Dessa forma, no direito positivo brasileiro, as empresas controladas pelo Estado são denominadas genericamente de “empresas estatais”, sendo as duas principais espécies as empresas públicas e as sociedades de economia mista.
Alexandre Santos de Aragão[11] coloca uma grande questão conceitual em relação às empresas estatais, notadamente quanto às sociedades de economia mista. Segundo o autor, “deve-se verificar a intensidade e a natureza do controle que o Estado deve possuir sobre a sociedade para, além de um mero acionista minoritário, ter uma ingerência a ponto de ela passar a ser qualificada como uma empresa estatal pertencente à Administração Pública”. [grifei]
O ponto central que ora se discute refere-se à natureza e à intensidade do controle estatal capaz de qualificar uma sociedade anônima como uma sociedade de economia mista. Sobre o assunto, encontramos na legislação brasileira os seguintes dispositivos relativos ao controle acionário de empresas:
a) Decreto-lei 200/67: Art. 5º. Para os fins desta lei, considera-se: III – Sociedade de Economia Mista – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta. (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 900, de 1969)
b) Lei 6.404/76 (Lei das S/A): Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
c) Lei 13.303/2016 (Estatuto da Estatais): Art. 4o . Sociedade de economia mista é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou a entidade da administração indireta.
Como se percebe pelo “critério formal”, nos termos do Decreto-lei no 200/67 e da Lei no 13.303/2016, o acionista controlador é identificado em função da detenção pelo Estado de mais de 50% das ações com direito a voto.
Entretanto, a Lei no 6.404/76 introduz um conceito de controle societário distinto, “de natureza material”, pouco importando o número de ações com direito a voto de cada um dos acionistas, mas por quem efetivamente comanda a companhia.
Dessa forma, é perfeitamente possível que uma sociedade de economia mista, com o capital extremamente diluído, possua, com poucas ações, um acionista que logre nomear a maioria dos seus administradores.
Para Vitor Rhein Schirato[12], as sociedades “materialmente” controladas pela Administração Pública se aproximam das empresas estatais, sem, contudo, expressamente incluí-las em seu conceito:
“O elemento-chave para a determinação do regime jurídico não é a existência de uma sociedade de economia mista ou não, e sim a existência ou não de controle estatal da entidade, seja pela via patrimonial (detentora da maioria das ações com direito a voto), seja pela via compartilhada (em decorrência de acordo de voto). Sempre que existir controle acionário detido pelo Estado, haverá um regime mais aproximado ao das empresas estatais, e não das empresas privadas. A razão para tanto parece-nos muito simples: não é possível ler a Constituição Federal a partir do Decreto-lei 200/67. É dizer, a noção de sociedade de economia mista para os fins do art. 37 da Constituição Federal não é aquela constante do art. 5º do Decreto-lei 200/67, mas, sim, aquela resultante da Lei 6.404/76, específica sobre o tema das sociedades anônimas. Por conta disso, havendo uma sociedade direta ou indiretamente controlada pelo Estado, haverá o regime jurídico típico das empresas estatais, com as obrigações que lhe são inerentes. Assim, se o Estado detiver o poder de determinar as decisões da assembleia geral de acionistas e de eleger a maior parte dos membros da administração de uma empresa, haverá um regime jurídico com alguma influência do Direito público, eis que se estará diante de uma sociedade de economia mista. […] Diante disso, a questão repousará não sobre o regime jurídico da entidade, mas, sim, sobre a existência ou não do poder de controle. A razão para tanto é muito simples: contam as empresas público-privadas com acordo de acionistas que transferem ao acionista público certos poderes relacionados ao controle da entidade. Portanto, necessário analisar, diante das circunstâncias específicas de cada caso concreto, se os poderes acometidos ao acionista público são suficientes para lhe assegurar o controle da entidade, em conformidade com o conceito demarcado no Capítulo III, ou não. Caso haja controle, haverá submissão a regime mais aproximado ao das empresas estatais.” (grifos nossos)
No mesmo sentido, já se manifestou o Tribunal de Contas da União – TCU por meio do Acórdão no 1.220/2016 – Plenário, conforme transcrição abaixo:
“4. O exercício pelo Estado da preponderância do poder de controle numa empresa público-privada importa na sua caracterização como sociedade de economia mista de fato. O Estado não pode adotar técnicas societárias com a finalidade de burlar o regime constitucional aplicável às empresas estatais. 5. Para fins de aplicação do art. 24, inciso XXIII, da Lei 8.666/1993, entende-se por controlada a empresa em que a União, direta ou indiretamente, detenha a preponderância pela titularidade de direitos de sócio que lhe asseguram o domínio nas deliberações sociais ou o poder de eleger a maioria dos administradores.”[13] (grifos nossos)
Sobre esse tema, Filipe Machado Guedes[14] também se posiciona na mesma linha em relação ao controle disfarçado do Estado em sua atuação como acionista minoritário. O autor analisa a participação do grupo Eletrobras na Norte Energia S.A., com seus 49,98% do capital da sociedade com direito a voto, somado à participação do grupo Amazônia Energia Participações, com seus 9,77% do capital com direito a voto. De acordo com ele,
“Argumenta-se que, apesar de o controle formal do grupo Amazônia Energia ser vinculado à Light S.A., a condução das atividades empresariais parece estar a cargo da CEMIG, sociedade de economia mista de Minas Gerais – também presente no bloco controlador da Light. Desse modo, a maioria do capital social votante da Norte Energia S.A. estaria, segundo o autor, nas mãos da Administração Pública, não obstante de entes federados distintos. O autor destaca, ainda, a participação dos fundos de assistência social Petros (patrocinada pela Petrobrás) e Funcef (patrocinada pela Caixa Econômica Federal), cada um possuindo 10% de participação, que, malgrado não façam parte da Administração Pública, estão sob influência inequívoca da União”. (grifos nossos)
Ainda conforme a doutrina de Felipe de Melo Fonte[15], “o controle é um mecanismo de dominação disciplinado pela legislação societária, operado no âmbito interno da sociedade”. E prossegue o autor dizendo que “Controla uma sociedade quem detém o poder de comandá-la, escolhendo os seus administradores e definindo as linhas básicas de sua atuação.” (grifos nossos)
Importante destacar que, conforme Acórdão TCU no 2839 – 2016 Plenário, a Unidade Técnica daquele Tribunal teve a percepção durante fiscalização realizada que, apesar do Grupo Eletrobrás ter sua participação minoritária (49,98%), na prática, é o controlador da SPE Norte Energia S.A., circunstância que lhe garante tratamento equivalente ao de uma sociedade de economia mista, conforme de depreende dos trechos transcritos abaixo:
“439. Não se verifica, tampouco, a viabilidade de um grupo de controle constituído pelos parceiros privados, haja vista os parceiros institucionais, aos quais se faculta a formação de um bloco para exercícios dos direitos de voto, possuírem, na melhor das hipóteses, 30,05% das ações. Um possível bloco formado por todos os parceiros institucionais não suplantaria a força do grupo Eletrobras, que possui 49,98% dos direitos de voto.
795.No caso em tela, esta Equipe de Auditoria obteve diversas evidências que o grupo Eletrobras, ao invés de praticar atividade de fomento da sociedade, atuou como empreendedor do negócio além de exercer o controle de fato da Norte Energia.
796.Verificou-se domínio das estatais na estruturação do negócio, por meio da atuação da Chesf, da Eletronorte e a Eletrobras serem os detentores dos estudos anteriores à implantação. Compete, ainda, ao grupo estatal, a indicação dos responsáveis pelas áreas de maior relevância técnica na implantação do empreendimento além da supervisão da maior parte dos recursos investidos. Outrossim, o grupo Eletrobras, por força do acordo de acionistas, é o responsável pela Engenharia do Proprietário (equipe designada para fiscalização, pelo proprietário, da implantação da obra), além de, à Eletronorte, atribuírem-se os serviços de Operação de Manutenção da UHE Belo Monte. Por fim, não se verificou participação relevante dos parceiros privados em nenhuma atividade fim da Norte Energia.
797.A predominância das atividades do grupo estatal na Norte Energia resulta na capacidade de comando das principais atividades da empresa – estruturação, implantação, operação, e exploração da UHE de Belo Monte – mesmo sem a estatal possuir a titularidade da maioria dos direitos de voto em assembleia de acionistas. Por conseguinte, considera-se que há fortes indicativos de desvio de finalidade dessa participação, diante do exercício do controle de fato do grupo Eletrobras além de sua atuação como acionista empreendedor – não se vislumbrando, com base na situação fática verificada, atividade de fomento pela atuação do grupo Eletrobras no âmbito da Norte Energia.
Voto do Relator
20. Até mesmo pelo acordo de acionistas, a ingerência do Grupo Eletrobras sobre a Norte Energia é ampliada, relativamente à sua parcela acionária. Conquanto não chegue a deter metade das ações (49,98%), o Grupo tem a prerrogativa de nomear o presidente do Conselho de Administração e mais quatro dos seus membros, num total de cinco, número igual ao que cabe aos demais acionistas (ainda há dois membros eleitos). Já para a Diretoria, o Grupo também nomeia o seu presidente, os diretores de construção e de fornecimento e montagem, cujas autoridades se sobressaem por serem os responsáveis por mais de 80% dos investimentos de Belo Monte, e o diretor de relações institucionais ou socioambiental, num total de quatro, dos sete componentes. Portanto, fora os membros eleitos, o Grupo Eletrobras possui nove executivos, contra oito dos outros acionistas, podendo fazer predominarem os seus interesses, numa situação típica de poder de controle.
21. Além do mais, o acordo de acionistas atribui ao Grupo Eletrobras a Engenharia do Proprietário, que lhe dá a função de representar a Norte Energia na coordenação e acompanhamento da implantação de Belo Monte junto aos contratados, bem como concede à Eletronorte a operação e manutenção da usina. São mais duas características que revelam, deste modo, alto grau de comando do Grupo sobre a concessionária.
22. Por conseguinte, em fase posterior do processo, após as devidas oitivas, convém aprofundar o exame da questão da atuação do Grupo Eletrobras na Norte Energia, a fim de esclarecer a dúvida sobre se sua participação minoritária encobre o funcionamento de uma típica companhia pública na forma de SPE.
23. A definição é relevante, antes de mais nada, para saber se a jurisdição deste Tribunal alcança a própria Norte Energia ou apenas suas sócias estatais e respectivos representantes na administração da sociedade, bem como para estabelecer quais são os cofres a serem ressarcidos no caso da verificação de prejuízos causados à SPE por terceiros.” (grifos nossos)
Vale registrar ainda que o Tribunal de Contas da União vem se valendo do conceito de “influência dominante” para alargar a competência daquela Corte e aplicar alguns ônus do regimento jurídico administrativo às sociedades em que o Estado, embora detenha participação acionária minoritária, exerça o “controle material” dos rumos da companhia, conforme dispõe o Acórdão TCU no 1344/2015 – Plenário, do qual extrai-se a seguinte transcrição:
“[…] os fatos jurídicos efetivamente realizados no plano da existência é que devem servir de baliza para a real aplicação da norma jurídica, não podendo ser esquecidos ou afastados pelo mero uso formal de uma útil engenharia jurídico-financeira, mormente quando dentre os propósitos figura o de tentar afastar o exercício constitucional pelo TCU do controle externo sobre a administração da coisa pública.” (grifos nossos)
Importante destacar, ainda, a predominância do capital de origem pública na SPE Norte Energia, seja por meio de aportes diretos de estatais federais ou estaduais, seja em razão de aportes de fundos de pensão provenientes de estatais federais, ou mesmo as vultosas quantias obtidas junto ao BNDES para financiamento do projeto, com potencial possibilidade de ocorrência de fraudes entre controlador e as empresas construtoras, conforme revela o Acórdão TCU no 1569/2015 – Plenário nos trechos transcritos abaixo:
“46. No caso de Belo Monte, verifica-se o envolvimento das principais empresas relacionadas à Operação Lava-Jato nas obras de construção, havendo o agravante da grande predominância de capital de origem pública, seja por meio de aportes diretos de estat ais federais ou estaduais, seja em razão de aportes de fundos de pensão provenientes de estatais federais, ou mesmo as vultosas quantias obtidas junto ao BNDES para financiamento do projeto, que montam R$ 22,5 bilhões.”
79. Considerando o descontrole, por parte de estatais não controladoras das SPEs e do BNDES, no acompanhamento da construção dos empreendimentos e dos gastos das SPEs, há reais possibilidades de inflacionamento artificial dos investimentos realizados, que beneficiariam os sócios controladores com maiores aportes de capital dos demais sócios e com a captação de mais financiamentos a juros subsidiados.
80. A presença de empresas denunciadas na Operação Lava-Jato por prática de propina e sobrepreço nesses contratos e, principalmente, em Belo Monte, cuja SPE possui contrato com seis das principais empresas denunciadas, potencializa a possibilidade de ocorrência de fraudes entre controlador e empresas construtoras.
81. Considerando o volume de recursos investidos em Belo Monte, que possui em seu capital social parcela superior a 75% de recursos de origem pública, sua importância para o setor elétrico, o percentual de 65% de avanço físico da obra, e o número de empresas denunciadas na Operação Lava-Jato, envolvidas em sua construção, sugere-se a abertura imediata de fiscalização nesse empreendimento.”
Com isso, depreende-se dos Acórdãos do Tribunal de Contas da União que sendo relevante a participação de uma empresa ou grupo de empresas em uma SPE que contratou com a Administração Pública, aquela estaria atuando como acionista empreendedor e controlador de fato, nada obstante a SPE tenha sido constituída com a maioria do capital com direito a voto pertencente a grupos privados.
Trata-se na realidade, do típico caso de “controle material”, que necessita apenas da consolidação de certa situação fática, relativamente à direção do funcionamento dos órgãos da companhia.
Dito isso, a questão primordial que se coloca refere-se à possibilidade de inclusão de uma Sociedade de Propósito Específico como sujeito passivo da Lei Anticorrupção n.º 12.846/2013, notadamente em decorrência de atos lesivos que eventualmente possam ter atingido uma SPE na vigência da Lei, e que seja constituída com acionistas de diversas entidades integrantes da Administração Pública.
4. A SPE E A LEI no 12.846/2013
O caput do artigo 1º da Lei n.º 12.846/2013 previu a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas que pratiquem atos contra a administração pública nacional ou estrangeira.
Na sequência, o parágrafo único do seu art. 1º especificou a abrangência subjetiva da nova lei – ou sujeito ativo – citando especificamente as associações, fundações e sociedades, sendo que, neste último caso, estabeleceu a sua aplicação às sociedades empresárias e às sociedades simples nacionais, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como às sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.
Tendo como o objetivo a tutela da administração pública nacional ou estrangeira contra atos ilícitos cometidos por pessoas jurídicas, a Lei nº. 12.846/2013 tipificou condutas relacionadas a pagamento de vantagens ilícitas a agentes públicos e condutas relacionadas a qualquer tipo de fraude, inclusive no âmbito de licitações e contratos públicos, o que demonstra grande preocupação do legislador em defender a administração pública contra condutas desse tipo.
No que tange aos sujeitos passivos, a Lei Anticorrupção foi silente quanto à definição do conceito de Administração Pública nacional para os fins por ela estabelecidos, suscitando a necessidade de uma interpretação sistemática de seus artigos com outros diplomas legais e conceitos doutrinários.
A Lei Anticorrupção tem por objetivo primordial a proteção e defesa da Administração Pública nacional ou estrangeira. E, conforme dispõe o art. 4, inciso I, do Decreto-lei nº 200/67, a Administração Pública pode ser classificada em direta e indireta, dependendo da sua forma de organização.
A Administração direta se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios, modelo este seguido nas esferas estadual e municipal. A Administração indireta compreende as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas e as sociedades de economia mista.
Nada obstante referida Lei ser conhecida como "Lei Anticorrupção", não se limitou aos atos vinculados à prática corruptiva, abrangendo, ainda, todas as condutas que atentam contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Ainda no escopo da abrangência do conceito de Administração Pública conferido pela LAC, percebe-se que é possível haver um diálogo de fontes entre a Lei Anticorrupção e a Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº 8.429/92, haja vista que ambas dispõem sobre moralidade administrativa e combate à corrupção, no sentido de contemplar também os atos lesivos contra entidades cuja criação ou custeio o erário haja concorrido para formação do patrimônio e/ou receita anual, na forma em que se encontra proposta no art. 1º da Lei de Improbidade Administrativa (LIA).
A Lei Anticorrupção não deve ser interpretada de forma isolada, mas sim em um contexto lógico sistêmico-normativo, como um mecanismo que veio agregar às leis já existentes, inclusive, às Leis 8.429/1992 e 8.666/1993, voltada à proteção da Administração Pública, sendo, portanto, integrante do “sistema normativo de combate à corrupção”. Atualmente, as Leis 8.429/92 e 12.846/2013 constituem o Sistema de Probidade Administrativa, com matriz constitucional, nos termos do art. 37, parágrafo 4º da CF/88.
Nesse sentido, a Lei de Improbidade Administrativa contempla, no parágrafo único do art. 1º, como sujeito passivo, inclusive a administração pública que concorre com menos de 50% do patrimônio da entidade, conforme transcrição abaixo:
“Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.
Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”. (grifos nosso)
Nota-se que a Lei de Improbidade Administrativa abrange como sujeito passivo, entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo fiscal ou creditício de órgão público, bem como aquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de 50% do patrimônio ou receita anual.
Portanto, trata-se de mecanismo que concorre efetivamente para a promoção do interesse público primário, notadamente quando apura infrações relacionadas a atos lesivos, devendo a Administração Pública se valer de mecanismos mais eficazes para repressão de condutas que violam o patrimônio público, não só do Estado, mas de toda a coletividade, como são os atos previstos também na Lei Anticorrupção.
A Constituição Federal, em seu artigo 37[16], estabeleceu os princípios a que está sujeita a administração pública. Quando a norma legal busca proteger os princípios, vislumbra-se o intuito de evitar a prática de atos contra a administração pública que caracterizam a violação desses princípios. Os princípios, na realidade, são da essência da administração pública. Assim, quando a Lei Anticorrupção busca protege-los, está, em última instância, protegendo a própria administração pública.
Com esse objetivo, a norma também deixa claro que sua intenção não é somente defender o patrimônio público, pois poderá haver a prática de atos ilícitos contra a administração pública que não necessariamente acarretem prejuízos ao erário, embora atentem contra os princípios que a regem.
Dessa forma, sendo essas participações financiadas com recursos públicos da União, os administradores das estatais federais que porventura participarem de uma SPE, por força do princípio da indisponibilidade dos interesses tutelados pelo poder público (Lei 9.784/1999), possuem o dever legal de exercer fiscalização dos negócios da SPE e de velar pela boa utilização dos respectivos aportes de capital.
É imprescindível destacar que quando se fala em Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público, tem-se aqui interesse público em seu sentido amplo, abrangendo todo o patrimônio público e todos os direitos e interesses dos cidadãos em geral, o que significa dizer que esses bens e interesses públicos são indisponíveis à Administração Pública, bem como a seus agentes públicos, pertencendo, em verdade, à coletividade.
Diante disso, considera-se que uma Sociedade de Propósito deve ser incluída no pólo passivo para fins da LAC, ou seja, no escopo de empreendimentos declaradamente contaminados pela prática de atos lesivos à Administração Pública, em eventual acordo de leniência a ser celebrado ao amparo na Lei no 12.846/2013, desde que seja controlada materialmente, nos termos da Lei no 6.404/76, por pessoa ou grupo de pessoas jurídicas pertencente à Administração Pública Federal.
Caso uma SPE seja materialmente controlada pela Administração Pública Federal, aproximar-se-á mais das empresas estatais do que das empresas privadas. Essa preponderância do poder de controle na SPE importa na sua caracterização como sociedade de economia mista de fato. Na realidade trata-se de uma típica companhia pública na forma de SPE.
A determinação do regime jurídico não é a existência de uma sociedade de economia mista ou não, e sim a existência ou não de controle estatal da entidade. Sempre que existir controle acionário detido pelo Estado, haverá um regime mais aproximado ao das empresas estatais, e não das empresas privadas.
O próprio Tribunal de Contas da União, como já dito anteriormente, decidiu no caso do Grupo Eletrobras, que este exercia o poder de determinar as decisões da assembleia geral de acionistas e de eleger a maior parte dos membros da administração, inclusive as nomeações do Diretor Presidente e dos diretores responsáveis por mais de 80% dos investimentos, o que poderia resultar na predominância dos seus interesses, numa situação típica de poder de controle, em que havia um regime jurídico com maior influência do direito público, de modo a demonstrar o alto grau de comando do Grupo sobre a SPE, o que era capaz de qualificá-la como uma sociedade de economia mista de fato.
Destacou a Corte de Contas, nesse caso, que o Grupo Eletrobras, com seus 49,98% do capital da sociedade com direito a voto, somado à participação do grupo Amazônia Energia Participações, com seus 9,77%, revelava que a maioria do capital social votante da SPE Norte Energia S.A. estava, na realidade, nas mãos da Administração Pública, não obstante de entes federados distintos, aliado ao fato de que fora identificado pelo TCU, que o volume de recursos investidos na SPE Norte Energia S.A. atingia montante superior a 75% de origem pública, com potencial possibilidade de ocorrência de fraudes entre controlador e as empresas construtoras.
5. CONCLUSÃO
A Lei Anticorrupção surgiu com o objetivo de prevenir e reprimir práticas corruptas no país, especialmente quando envolver pessoas jurídicas que se relacionem com o poder público.
Por força do princípio da indisponibilidade dos interesses tutelados pelo poder público, seus administradores, em especial aqueles que gerenciam as empresas estatais que participam de uma sociedade de propósito específico, possuem o dever de zelar pelo interesse público e pela boa utilização dos respectivos aportes de capital, já que nesses casos, as respectivas participações são financiadas com recursos públicos.
Com isso, na hipótese de ocorrer a prática de atos lesivos em desfavor de uma SPE materialmente controlada pela Administração Pública ou envolvendo diretamente esse tipo de sociedade, a responsabilidade administrativa das pessoas jurídicas envolvidas nas irregularidades pode e deve ser investigada com amparo na Lei no 12.846/2013, inclusive para os fins de eventual celebração de um acordo de leniência.
Coordenadora-Geral de Responsabilização de Entes Privados da CGU. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB e em Farmácia Clínica pela Universidade de Brasília – UnB. Especialista em Direito Público. Auditora Federal de Finanças e Controle da Controladoria – Geral da União – CGU. Corregedora Setorial da CGU (2006-2016)
Auditor Federal de Finanças e Controle do Ministério da Transparência e Controladoria – Geral da União – CGU. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB e em Engenharia Agronômica pela Universidade de Brasília – UnB. Especialista em Direito Disciplinar na Administração Pública pela Universidade de Brasília – UnB.
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