Sumário: Introdução; 2. A instrumentalidade do processo penal; 3. O novo art. 156, I; 3. A violação da paridade de armas na busca pela verdade real. 4. Impulso oficial atacado e a aplicação do juíz natural; 5. Conclusão. Referências bibliográficas.
Resumo: O breve estudo que segue trata da imperiosa necessidade de não sufocar os valores democráticos mesmo diante da lei.
Palavras-chave: Processo, princípios, provas, inconstitucionalidade.
1. A instrumentalidade do Processo Penal
O Direito Penal tem a função primordial de proteção de bens jurídico-penais da mais alta valoração. Como bem preceitua o ilustre Régis Prado, “O Direito regula o convívio social, assegurando-lhe as condições mínimas de existência, de desenvolvimento e paz. Tanto assim é que sociedade e Direito se pressupõem mutuamente”. O combate à lesões aos bens jurídicos de maior valor é relevante frente de atuação na busca pela continuação da sociedade[1].
Por sua vez, o Direito Processual, apesar de constituir ciência autônoma, é, notoriamente, o instrumento para “tornar realidade o direito penal. Enquanto este estabelece sanções aos possíveis transgressores das suas normas, é pelo Processo Penal que se aplica a sanctio júris”.[2]
O Processo Penal, como norma infraconstitucional, deve ser interpretado e realizado sob os efeitos da Carta Constitucional e de seus Princípios e garantias individuais.
Os conceitos de Constituições, na doutrina, já se determinaram pelos valores, ao propósito, o professor Luisi em obra histórica:
“As constituições promulgadas nos últimos decênios se caracterizam pela presença no elenco de suas normas de instâncias de garantia de prerrogativas individuais, e concomitantemente de instâncias que traduzem imperativos de tutelas de bens transindividuais ou coletivos. Ou seja: os princípios do Rechsstaats e, ao mesmo tempo do Sozialstaats. Os primeiros configuram-se em preceitos asseguradores dos direitos humanos e da cidadania. Os segundos se fazem presentes na tutela dos valores sociais”.
Os postulados fundamentais foram inseridos, portanto, nos ordenamentos como reação às lesões permitidas e produzidas pelo Estado contra o cidadão, o qual, por muitas vezes perdeu sua característica mais óbvia a de ser humano.
As normas processuais, com base no teor constitucional, devem conter os ensinamentos e a carga de valores estabelecidos, como o Princípio da Imparcialidade do Juízo.
Tal Princípio determina que deve atuar o magistrado de forma a não prejudicar ou beneficiar qualquer parte, prova, ato ou situação do processo. O respeito à imparcialidade forma a chamada capacidade subjetiva, sem a qual o magistrado não pode exercer sua função, sob pena de ferir a Justiça.
2. O novo art. 156, I:
A Reforma Processual Penal, todavia, com a Lei 11.690/08, inseriu no ordenamento a possibilidade de o magistrado, antes mesmo de iniciada a ação penal, produzir provas.
O art. 156, I determina:
“Art. 156.A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”
Apesar do critério de proporcionalidade, preceito fundamental consagrado na nova ordem constitucional, o ferimento é flagrante, visto que não há ação penal instaurada ou acusação protocolada de forma regular, constituindo lesão ao Princípio da Inércia, Imparcialidade, Devido Processo Legal, além de ocorrer a formulação de uma prova contaminada.
A situação é agravada pelo contexto de delírio legiferante estabelecido no Brasil pela crescente criminalidade.[3]
3. A violação da Paridade de Armas na busca pela Verdade Real
O processo pressupõe que uma parte – seja o Ministério Público ou a parte ofendida – inicie o processo penal, já há a histórica determinação do ne procedat judex ex officio, ou seja, não pode o juiz iniciar o processo sem que tenha sido provocado por qualquer das partes.
Esse preceito, no entanto, não é respeitado com a reforma processual, visto que pode o juiz, mesmo sem iniciar a ação penal, produzir provas de ofício.
Não há qualquer acusação pendente e, ainda assim, o cidadão sofre com a pressão social de ter contra si a instrução de provas antecipada.
O juiz – que tem garantidos diversos direitos apenas para ter possibilidade de um julgamento justo e imparcial – avança sobre o acusado buscando produzir provas contra este sob a justificativa da verdade real.
A doutrina já se manifestou sobre a vedação, mesmo após a vigência das reformas do Código de Processo Penal, havendo acertada determinação por limitar a atuação das partes:
“ATENTADOS AO PUDOR CONTINUADOS. SISTEMA ACUSATÓRIO. GESTÃO DA PROVA. TESTEMUNHA OUVIDA DE OFÍCIO PELO JUIZ. NULIDADE. FRAGILIDADE PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. 1. A oficiosidade do Juiz na produção de prova, mesmo que sob a escusa da pretensa busca da ¿verdade real¿, é procedimento eminentemente inquisitório e que agride o critério basilar do Sistema Acusatório: a gestão da prova como encargo específico da acusação e da defesa. Precedentes da Câmara. 2. A condenação só pode emergir da convicção plena do julgador ¿ sua base ética indeclinável. A prova controversa, insegura e que não afasta todas as dúvidas possíveis enseja um desate favorável ao acusado, em homenagem ao consagrado princípio in dubio pro reo. Deram provimento ao apelo. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70026105965, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 17/09/2008)”
Novamente, o mesmo ilustre Relator ensina sobre a distinção das funções, necessária aplicação ao sistema de acusação e defesa:
“PROCESSUAL PENAL. ¿HABEAS CORPUS¿. SISTEMA ACUSATORIO. PROVA. GESTAO. PROVA TESTEMUNHAL PRODUZIDA DE OFICIO PELO JUIZ. ILEGITIMIDADE. – NULO E O ATO PROCESSUAL EM QUE RESTAM AGREDIDOS OS MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS SUSTENTADORES DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATORIO. – A OFICIOSIDADE DO JUIZ NA PRODUCAO DE PROVA, SOB AMPARO DO PRINCIPIO DA BUSCA DA ¿VERDADE REAL¿, E PROCEDIMENTO EMINENTEMENTE INQUISITORIO E AGRIDE O CRITERIO BASILAR DO SISTEMA ACUSATORIO: A GESTAO DA PROVA COMO ENCARGO ESPECIFICO DA ACUSACAO E DA DEFESA. – LICAO DE JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO. – ORDEM CONCEDIDA, POR UNANIMIDADE. (Habeas Corpus Nº 70003938974, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 24/04/2002)”
Tal exposto determina que a produção de provas, para condenar, deve ser buscada pelo órgão constitucionalmente investido para isto, de mesma forma, a defesa recebe seu arcabouço para proceder com as garantias dos direitos.
Assim, o magistrado atuar na produção de provas não atende ao próprio valor constitucional.
A Paridade de Armas fica cerceada, já que contra o acusado surge o aparato do Estado, já com a função de parcialidade, e também o magistrado, subvertendo sua própria função sob a bandeira de uma inexistente Verdade Real.
Notório é o fato de que se o magistrado requer a produção de determinada prova tal manifestação resulta de qualquer fundamento particular, já aniquilando, sem margens, a imparcialidade.
Acertada é a crítica de Borges de Mendonça:
“poderá estar se vinculando psicologicamente à causa, assim como antecipando eventual entendimento sobre o caso, justamente o que o princípio da inércia ou da iniciativa das partes visa resguardar”[4].
As provas sustentam versões apresentadas pela acusação ou pela defesa.
Tal arcabouço tem a função de convencer o magistrado, o qual, segundo preciso ensinamento de Aury Lopes, elege qual versão considera mais próxima aos fatos ocorridos em outro momento.[5]
Assim, o magistrado ao atuar como inquisitor já manifestará parcialidade para uma das partes e já estará subvertendo a função democrática do processo justo, objetivo da República.
4. Impulso oficial e Juiz natural
O magistrado atua segundo as regras democráticas, as quais estão substancialmente dispostas em preceitos fundamentais, os quais vinculam sua atuação e a limitam, sob pena de nulidade dos atos ou mesmo de desrespeito do julgador às normas sociais.
Entre tais normas, o Princípio da Inércia, o qual determina que o magistrado apenas atue quando provocado pelas partes do processo.
A busca de provas viola, evidentemente, tal preceito, além de informar o magistrado de uma situação da qual não há, de fato, informações precisas, sobre o objeto da investigação, o delito, o réu.
Além de tal situação, o juiz estará contribuindo para violar a finalidade de paz de que trata o direito, já que causará, de fato, atos perturbadores aos cidadãos investigados, visto que ter um processo já é lesivo, ainda mais, na sociedade, quando o processo teve início com atos de um juiz. Os Tribunais já se definiram:
“PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. PROVA. GESTÃO. ARTIGO 156, DO CPP. AGRESSÃO AO ARTIGO 129, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AO JUIZ É VEDADO PERSEGUIR PROVA. PALAVRA DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE VALOR PROBATÓRIO ABSOLUTO. – O texto do artigo 156, do CPP, proclamado pela acusação, fere expressamente a norma constitucional, quer genericamente diante da recepção do sistema processual acusatório, quer específicamente em seu artigo 129, I (onde resguarda o princípio da inércia da jurisdição): eis a regra básica do jogo no sistema processual democrático: um acusa (e prova), outro defende e outro julga – não se pode cogitar da inquisitorial relação incestuosa entre acusador e julgador. – A principiologia constitucional suplantou – desde muito – estratagemas como a crença mitológica de busca da ”verdade real”. Dela o que se alcança é o resultado das limitações históricas, culturais e ideológicas de cada um, exteriorizado na interpretação dos fenômenos mundanos. – Não prestar valor absoluto à palavra da vítima e não violar o princípio da inércia da jurisdição para buscar provas afasta a atividade jurisdicional dos dogmas processuais inquisitórios impregnados na legislação infraconstitucional e na atuação jurisdicional pátrias. – À unanimidade negaram provimento ao apelo. (Apelação Crime Nº 70006183826, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 28/05/2003)”
Assim, fica o magistrado vinculado as provas, já atacando a Constituição e, ainda mais grave o dano, esta parte processual não pode ser alterada, pois há o juiz natural.
O Egrégio Tribunal:
“Apelação-crime. Furtos. Nulidades. (I) Laudo pericial juntado aos autos sem que fosse dada vista as partes; perícia que tem vinculação com tese defensiva. Agressão aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. (II) Princípio da identidade física do juiz: a teor do disposto no art. 399, § 2º, do CPP, o magistrado que preside a instrução deve prolatar a sentença, salvo exceções legais. De ofício, prejudicado o apelo defensivo, decretaram a nulidade do processo a partir da sentença. (Apelação Crime Nº 70029072451, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 08/04/2009)”
A prova já contaminada e aniquilação de princípios não podem sobreviver, contudo, o juiz natural impede a alteração do julgador, assim, determina-se a nulidade absoluta do ato em razão do combate constitucional causado.
Jacinto Nelson de Mirando Coutinho determina:
“Como se sabe, o princípio do devido processo legal exige que o órgão julgador seja submetido ao princípio da inércia, buscando garantir, ao máximo, a sua imparcialidade e eqüidistância das partes.
Com efeito, quando se autoriza ao juiz a instauração ex-officio do processo, como era típico no sistema inquisitório puro, permite-se a formação daquilo que Cordero chamou de “quadro mental paranóico”, ou seja, abre-se ao juiz a “possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a ‘sua’ versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro.”[6]
Notório o fato, com efeito, de que a inércia impede que a parcialidade acompanhe o processo, visto que o magistrado que busca provas determina-se por uma razão, a qual pode estar ligada apenas a elementos particulares, já que nem mesmo processo e, com efeito, limites existem.
Os direitos fundamentais, como menciona Salo de Carvalho, adquiriram o caráter de intangibilidade, não podendo ser afastados do processo penal por qualquer razão, sendo, portanto, limites do processo.[7]
Assim, não pode haver ataque por parte do julgador aos direitos fundamentais, havendo respeito obrigatório a Paridade de Armas e a Ampla Defesa.
Novamente, lição de Coutinho sobre a parcialidade:
“O importante, enfim, neste tema, é ter-se um julgador consciente das suas próprias limitações (ou tentações?), de modo a resguardar-se contra seus eventuais prejulgamentos, que os tem não porque é juiz, mas em função da sua ineliminável humanidade.”[8]
Com efeito, necessário o respeito do julgador a Constituição, já que este como supraparte, apenas em razão de sua imparcialidade, não estruturar sua atuação sobre o ataque constitucional subversivo.
5 Conclusão
Diante das razões expostas, anota-se que é necessário que o magistrado assegure a característica de imparcialidade, evitando aniquilar os dispositivos constitucionais na busca de uma inexistente verdade real.
Deve haver, de fato, busca pela proteção dos valores, como determina Alves Gomes:
“Em uma sociedade democrática, o Direito, ao regrar comportamentos, deve orientar-se por princípios de justiça e preocupar-se com a proteção de todas as modalidades de valores fundamentais aos seres humanos”[9].
A busca, com efeito, deve ser por assegurar os objetivos de Justiça vistas na Carta Democrática, sob pena de atuar contra sua própria função.
Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de São Paulo (FADISP). Mestre em Direito pelo programa de mestrado em ciências Jurídicas do Centro Universitário de Maringá (CESUMAR) na linha de pesquisa Instrumentos de Efetivação dos Direitos da Personalidade, recebendo aprovação com nota máxima da banca. Pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor de pós-graduação na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor da Fundação Escola do Ministério Público (FEMPAR). Professor de pós-graduação na Faculdade Arhur Thomas (FAAT). Professor de pós-graduação na Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). Professor de pós-graduação não Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Professor de graduação no Instituto Catuaí de Ensino Superior (ICES). Parecerista em revistas científicas. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) com habilitação em Direito Penal e Processo Penal. Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado com experiência em direito penal e processo penal.
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