Resumo: O artigo analisa parte do desenvolvimento da teoria do devido processo legal em sentido substantivo pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
Palavras-Chave: Constituição; Devido Processo Legal; Suprema Corte.
Abstract: The article analyses the development of the substantive due process of law theory bz the United States Supreme Court.
Keywords: Constitution; Due Processo of Law; Supreme Court.
Sumário: 1. Introdução; 2. Histórico; 3. Críticas; 4. Conclusões; 5. Bibliografia.
1. Introdução
A função jurisdicional do Estado é tratada de modo bastante diverso nos dois grandes sistemas de direito atuais. Na civil law, o Judiciário é visto com os olhos da desconfiança e do receio, visão esta que não encontra paralelo nos sistemas da common law. Tal receio tem raízes históricas que se estendem desde a revolução francesa até a utilização do Fürherprinzip na Alemanha nazista.[1] John Henry Merryman, da Stanford Law School, ensina que, ao contrário dos países pertencentes à tradição do direito continental europeu, “os Estados Unidos e a Inglaterra têm uma história do direito diversa, na qual o poder Judiciário se encontrava tradicionalmente ao lado do cidadão contra o arbítrio do poder Estatal. O Poder Judiciário não foi o principal inimigo da revolução inglesa ou daquela americana. Aliás, os juristas da common law também não tiveram de suportar mais de vinte anos de governo totalitário, com os seus constantes ataques às barreiras postas em seu caminho por um ordenamento jurídico de caráter liberal.”[2]
O maior poder dado à Jurisdição é, sem dúvida, o de controlar a constitucionalidade dos atos normativos. Assim, quando pensadas nesta perspectiva, as diferenças entre as duas visões de Judiciário se tornam ainda maiores. Desde que o Justice Marshall proferiu sua opinião no célebre caso Marbury v. Madison,[3] não restam dúvidas de que a Supreme Court dos Estados Unidos da América se tornou um órgão extremamente importante dum ponto de vista político.[4]
Mesmo com tanto poder concentrado na Jurisdição, o entendimento pré-constituição americana, e que ainda se mantém, já era o de que o Judiciário sempre será o ramo menos perigoso dos poderes do Estado (the least dangerous branch).[5] Como explica o eminente Alexander Hamilton, “quem quer que atentamente considere os diferentes departamentos do poder, tem de perceber que em um governo no qual eles estão separados uns dos outros, o Judiciário, pela natureza de suas funções, sempre será o menos perigoso para os direitos políticos da Constituição, porque ele será o de menor capacidade em ofendê-los ou feri-los.”[6] Comentando o posicionamento dos Founding Fathers da Constituição Americana, o grande Rui Barbosa assim afirmou que: “[s]e manuseardes O Federalista, vereis como Hamilton advoga ali essa autoridade extraordinária, que os patriarcas da grande república entregavam à justiça federal sobre os atos do Congresso e do Executivo. O Judiciário, observava o célebre americano, é o mais fraco dos três ramos do poder e, conseguintemente, o menos propenso a usurpar, não tendo influência alguma sobre a espada ou a bolsa pública, não podendo, assim, tomar nenhuma deliberação ativa, e dependendo, até, afinal do Governo para a execução das próprias sentenças. Dele pois não é de temer que empreenda nada contra as liberdades constitucionais. Todas as cautelas, pelo contrário, deve adotar o povo, para que o Judiciário não seja suplantado pelos outros dois poderes, e, quando entre as duas opressões houvéssemos de optar, menos grave seria sempre a dos tribunais que a dos governos ou a dos congressos.”[7]
Apesar de todo este poder, visando manter sua própria legitimidade, bem como as bases do princípio da separação das funções do Estado – mesmo após o instituição da judicial review–, utilizou a Suprema Corte de certas técnicas de autolimitação de seus próprios poderes, com base em algumas premissas fundamentais: “a presunção de constitucionalidade; a abstenção nas chamadas ‘questões políticas’; a necessidade de configuração de um ‘caso’ ou ‘controvérsia’; a exclusão do julgamento dos motivos, da justiça ou da sabedoria da lei; a persistência das partes da lei não-abrangidas pela declaração de inconstitucionalidade e o princípio cada vez mais limitado do stare decisis ou da obrigatoriedade dos precedentes.”[8]
Ao menos com relação ao julgamento da razoabilidade (reasonableness) dos atos do Legislativo, a Suprema Corte rompeu de um modo exagerado com as próprias premissas que havia estabelecido. De que forma? Mediante o uso não autorizado e pernicioso da teoria do devido processo material ou substancial. Como explica Lêda Boechat Rodrigues, o que os Justices da Suprema Corte “principalmente fizeram, dos fins do século XIX até 1937, foi julgar dos motivos do legislador e da justiça e sabedoria das leis, através da interpretação dada à cláusula de due process of law, com desvirtuamento dos critérios puramente judiciais e a invasão de atribuições de outros poderes, sobretudo do Legislativo.”[9]
Por centenas de vezes entendeu a Suprema Corte que a inconstitucionalidade dos atos normativos e executivos correspondia a uma ofensa ao devido processo substantivo.
A cláusula do devido process legal está prevista nas Emendas Quinta e Décima Quarta da Constituição americana.[10] Se existe algum ponto pacífico na doutrina do devido processo legal, é o de que, por ocasião da inclusão da cláusula na Bill of Rights, ela se referia exclusivamente às garantias processuais.[11] A existência de um conteúdo processual ou procedimental (procedural) na cláusula do devido processo nunca gerou maiores controvérsias. Mesmo antes da Convenção da Filadélfia, Alexander Hamilton já esclarecia que: “as palavras ‘due process’ têm uma significação técnica precisa e, são somente aplicáveis aos processos e procedimentos das Cortes de justiça; elas nunca podem ser referidas a um ato do legislador.”[12]
Por alterar o curso histórico e exegeticamente adequado da due process clause, a Suprema Corte a ela conferiu um sentido substantivo (ou material). A razão para tanto é que em determinadas circunstâncias, a Corte americana simplesmente não dispunha de uma argumentação jurídica sustentável para suas opiniões políticas e, tal senso substancial era uma panacéia para tais problemas. O raciocínio no qual está ancorada a teoria é o seguinte: se o devido processo legal protege a vida, a liberdade e a propriedade, então toda vez que o legislador promulgar um ato normativo, não poderá fazê-lo se tal intervenção privar qualquer cidadão de sua vida, liberdade ou propriedade de um modo arbitrário; não razoável. Conforme expressam Daniel Farber, William Eskridge Jr. e Philip Frickey, “a teoria por detrás do devido processo ‘substantivo’ é a de que alguém é privado de sua propriedade sem o devido processo legal se tal privação é embasada em um decreto legislativo arbitrário.”[13]
Esta teoria ampara os aspectos mais controversos da tese da judicial review, pois a Corte, ao seu bel-prazer, diz quais leis violam o trinômio vida – propriedade – liberdade de uma forma não razoável, com amparo na regra da razão (rule of reason), ou no critério da razoabilidade (standard of reasonableness).[14]
O momento é de reflexão. A doutrina e, mais recentemente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, têm feito alusões à vigência do devido processo legal substantivo no Brasil. O fato da Constituição de 1988 ter sido a primeira a prever de modo expresso a cláusula não parece autorizar a conclusão de que ela foi recepcionada em ambos os sentidos (procedural e substantive), seja pela incoerência da própria doutrina do sentido substancial, seja pela inutilidade de sua presença no ordenamento jurídico brasileiro.
Desde logo se adota uma postura crítica em relação aos desenvolvimentos dados pela Suprema Corte americana a esta faceta substancial do devido processo. Juristas de diferentes correntes têm se oposto à doutrina do substantive due process. Neste contexto atua destacadamente John Hart Ely, da Harvard Law School, defendendo que, “em verdade, esta interpretação da cláusula – como incorporando um mandado geral para rever o mérito substantivo da legislação e outros atos governamentais – não somente poderia ter sido evitada, mas ela era provavelmente errada. A cláusula do devido processo legal da 14.ª emenda tem origem em idêntica disposição que a da 5.ª emenda, salvo que esta última é aplicável ao governo federal. Existe um consenso geral que a primeira delas era compreendida, ao tempo de sua inclusão, para se referir exclusivamente a procedimentos legítimos.”[15]
Dentre os inúmeros juristas norte-americanos que opõem sérias restrições a esta doutrina encontram-se, v.g., Raoul Berger[16] e Laurence Tribe[17] – ambos da Harvard Law School –, o Justice Hugo Black[18] e o Justice Antonin Scalia[19].
2. Histórico
A expressão ‘devido processo legal substancial’ é uma contradição em termos.[20] Como pode um instituto processual ser ao mesmo tempo substancial? Seria o mesmo que dizer que o ambiente está escuramente iluminado. O próprio aspecto lingüístico já constitui per se uma barreira instransponível.[21] Porém, haja vista a notória utilização da doutrina pela Suprema Corte, não se prenderá a exposição em tais argumentos de pouca valia. Ao invés disto, optar-se-á por demonstrar alguns aspectos bastante interessantes sobre a história do desenvolvimento da doutrina do substantive due process, aspectos estes capazes de muito revelar sobre seu conteúdo.
2.1 O caso Dred Scott
Questão que chama a atenção é o fato dos autores brasileiros que defendem a vigência e a utilidade do sentido material do due process no Brasil terem buscado no modelo norte-americano só o que quiseram, como se fosse possível, numa doutrina jurídica, importar o que é bom, deixando no país de origem o que é prejudicial. Por exemplo, no Brasil, não se costuma citar o caso Dred Scott[22] como sendo a primeira decisão da Suprema Corte Americana a acolher a tese de devido processo substantivo.
Esta famosa, porém, infame, decisão da Suprema Corte, tinha o seguinte pano de fundo: Dred Scott era negro e escravo no Estado do Missouri. Entre os anos de 1833 até 1843, ele residiu no Estado de Illinois (um Estado livre) e, em uma área do Território da Louisiana, onde a escravidão era proibida pelo Missouri Compromise de 1820. Depois de retornar ao Missouri, Scott propôs ações nas Cortes do Estado em busca de sua liberdade, alegando que, o fato de ter residido em um território livre fez dele um homem livre. Por não obter sucesso na Jurisdição estadual, Scott propôs uma nova ação em uma Corte Federal. O dono (master) de Scott sustentou que nenhum descendente de ‘Negro Africano’ de puro-sangue, ou descendentes de escravos, poderiam ser cidadãos, no sentido do Artigo III da Constituição americana. A questão posta para julgamento foi: Dred Scott era um homem livre ou um escravo? A Corte decidiu que ele era um escravo. Debaixo dos artigos III e IV, decidiu que, ninguém, senão um cidadão dos Estados Unidos, poderia ser cidadão de um Estado e, que, somente o Congresso poderia conferir cidadania nacional. O Chief Justice Taney – até hoje uma das figuras mais impopulares de toda a história americana – chegou à conclusão que nenhuma pessoa descendente de um escravo americano jamais foi cidadão no sentido do artigo III da Constituição. A Corte então entendeu que o Missouri Compromisse era inconstitucional, por violar o devido processo legal em sentido substantivo, privando os donos de escravos de suas propriedades de um modo irrazoável.
De tão vexatória que foi, a decisão do caso Dred Scott não foi citada nos anais dos cem anos da Corte, conforme informa Louis B. Bodin, em clássica obra.[23] Foi um começo e tanto para esta doutrina extremamente controvertida! Desde que o caso Dred Scott foi decidido em 1857,[24] a cláusula do devido processo legal tem sido incorretamente interpretada, como tendo um sentido substantivo. Porém, como ressalta o Justice Antonin Scalia, por si só, o devido processo é incapaz de conferir novas liberdades aos cidadãos:
“As palavras realmente têm um alcance limitado de significado, e nenhuma interpretação que vá para além deste alcance é admissível. Meu exemplo favorito de ponto de partida – e certamente o ponto de partida que possibilitou aos ao juízes atuarem como legisladores extremamente livres – pertence à Cláusula do Devido Processo encontrada na Quinta e na Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que diz que ninguém será ‘privado da vida, liberdade, ou propriedade, sem o devido processo legal.’ Ela foi interpretada para prevenir que o governo retirasse certas liberdades para além destas, tal como a liberdade de expressão (free speech) e de religião, que são especificamente mencionadas na Constituição. (Aliás, o primeiro caso da Suprema Corte a usar a Cláusula do Devido Processo neste sentido foi Dred Scott – um parentesco não desejável). Bem, pode ou não ser uma coisa boa garantir liberdades adicionais, mas a Cláusula do Devido Processo muito obviamente não suporta esta interpretação. Em seus inescapáveis termos, ela garante somente processo.”[25]
O uso desenfreado da doutrina substantive due process transforma o Judiciário num super-Legislativo. O memorável Justice Louis Brandeis, ao proferir opinião discordante em Jay Burns Baking Co. v. Bryan,[26] entendeu que, decidir determinadas questões com base no devido processo substantivo, é “um exercício dos poderes de uma super-legislatura – não o cumprimento da função constitucional de judicial review.”[27]
2.2 The Slaughter-House Cases
Após a guerra civil americana e a ratificação de novas Emendas, importante papel tiveram os casos do matadouro; os Slaughter-House Cases.[28] A importância de tal decisão residia no fato de que seria a primeira vez que a Suprema Corte interpretaria o conteúdo da então novel Décima Quarta Emenda.[29] Conforme destacam Gerald Gunther e Kathleen Sullivan – da Stanford Law School – “os casos do matadouro tiveram como preocupação imediata um esforço a fim de que se visse nas Emendas um conteúdo substantivo, ao invés de processual (procedural): o empenho tinha por objetivo utilizar as Emendas como arma em apoio à livre iniciativa (free enterprise) e contra a legislação que estabeleceu o monopólio estatal.”[30]
Os açougueiros de Nova Orleans tentaram sua sorte invocando três fundamentos constitucionais: a cláusula do devido processo; a cláusula da igual proteção das leis e; a cláusula dos privilégios e imunidades (privileges or immunities),[31] todas constantes da Décima Quarta Emenda.
Importa dizer que, ao menos de forma temporária, a Corte demonstrou todo o receio que tinha em aceitar a teoria do substantive due process (talvez por medo de repetir a desastrada decisão Dred Scott). O Justice Miller, dando a opinião da Corte, sobre a doutrina do substantive due process, afirmou, “é suficiente dizer que, debaixo de nenhum tipo de construção desta provisão constitucional [Due Process Clause] que já tenhamos visto, ou que julgamos admissível, pode a restrição estabelecida pelo Estado da Louisiana no exercício de seu intercâmbio com os açougueiros de Nova Orleans, ser tida com a privação de propriedade, dentro dos limites desta provisão.”[32] O caso foi julgado ainda na judicatura do Chief Justice Chase (1864 – 1873), mas, mesmo durante a judicatura do Chief Justice Morrison Waite (1874 – 1888), a Suprema Corte houve por bem se recusar a invalidar leis dos Estados da Federação com base em substantive due process.[33]
Não se pretende enxergar tal inicial resistência à doutrina do substantive due process como sendo a interpretação mais adequada que a Suprema Corte já deu à Décima Quarta Emenda da Constituição. Muito pelo contrário, os Slaugther-House Cases tiveram uma conseqüência nefasta para o devido processo e para todo o desenvolvimento da judicial review nos Estados Unidos. Explica-se: ao julgar improcedente o pedido de fiscalização da constitucionalidade feito pelos açougueiros com base nos três fundamentos supracitados, a Suprema Corte não só deixou de enxergar substância no devido processo, mas, principalmente, mediante uma interpretação restritiva, transformou a cláusula de privilégios e imunidades num verdadeiro defunto.[34]
A cláusula de privilégios e imunidades havia sido inserida na Constituição com o objetivo específico de servir de canal de abertura de novos direitos materiais.[35] Isto quer dizer que: direitos, tais quais a liberdade e a privacidade, supostamente não deveriam ter sido protegidos pela devido processo substantivo, mas, sim, pela cláusula de privilégios e imunidades. Só não o foram porque a Suprema Corte ‘matou’ esta última nos casos do matadouro. Como explicam Gunther e Sullivan: “[o] que explica a relutância da Corte em dar um conteúdo mais alargado à cláusula de privilégios e imunidades da Décima Quarta Emenda? Pode-se dizer que, um esforço por uma leitura ampla de tal cláusula, rejeitada nos casos do matadouro, tornou-se desnecessária quando posteriores Cortes enxergaram as cláusulas do devido processo e da igual proteção expansivamente.”[36]
Assim, a Suprema Corte, nos Slaughter-House Cases, acabou por entrelaçar o destino da cláusula do devido processo e da cláusula de privilégios e imunidades, conferindo à primeira poderes que indubitavelmente deveriam pertencer à segunda. Porém, conforme ressaltado por Laurence Tribe, da Harvard Law School, tal entrelaçamento tem gerado problemas:
“Não obstante o fato de a cláusula de o devido processo estar, num sentido muito grosseiro, presentemente alcançando os resultados que a Décima Quarta Emenda foi escrita para atingir mediante a cláusula de privilégios e imunidades, o uso da cláusula do devido processo como veículo para a incorporação de direitos substantivos – incluindo direitos enumerados nas primeiras oito Emendas – apresenta vários problemas significativos (…). Para alguns distintos estudiosos da Constituição, estes problemas – em especial, a ginástica textual necessária para encontrar proteção de direitos substanciais em uma provisão cujas palavras parecem muito evidentemente preocupadas com processo – se tornaram insuperáveis.”[37]
A cláusula do devido processo legal ‘teve’ de ser lida pela Suprema Corte num sentido substantivo, haja vista que ela própria desintegrou a cláusula dos privilégios e imunidades, ao qual havia sido designado tal papel.[38] Em conclusão: o devido processo usurpou uma função que não lhe cabia. Como salienta Laurence Tribe, “[t]alvez o aspecto mais desgraçado da inteira história do tratamento miserável que a Corte tem dado à cláusula dos privilégios e imunidades (ao menos anteriormente à 1999) é que, não fosse a decisão nos casos do matadouro, a doutrina do devido processo substantivo jamais teria sido necessária para realizar o objetivo claramente contemplado pela Décima Quarta Emenda – a saber, a proteção constitucional de direitos individuais substantivos (incluindo, mas não se limitando, àqueles garantidos na Bill of Rights) contra a usurpação estatal.”[39]
2.3A ascensão e o declínio do substantive due process – Lochner v. New York
Anos após ter rejeitado a doutrina do devido processo substantivo – e ter reduzido a nada a cláusula dos privilégios e imunidades – nos Slaughter-House Cases, emergiu no cerne da Suprema Corte um movimento que visava a anular tal postura, a fim de que se fizesse o controle de constitucionalidade dos atos normativos dos Estados com base na cláusula do devido processo.[40] Tal movimento teve seu zênite no julgamento do célebre caso Lochner v. New York,[41] marco principal da doutrina do devido processo substancial.
Lochner tem como pano de fundo uma lei – decretada pelo Estado de Nova Iorque – que proibia os padeiros de trabalharem mais de 60 horas por semana, ou 10 horas por dia. A Corte considerou inconstitucional a lei. Por maioria – a opinião da Corte foi dada pelo Justice Peckman – se entendeu que a lei interferia na liberdade de contratar e, conseqüentemente, violava o direito à liberdade garantido a empregadores e empregados debaixo da cláusula do devido processo legal. A Corte viu na lei de Nova Iorque uma norma trabalhista na qual o Estado não tinha nenhum fundamento razoável (reasonable ground) para interferir na liberdade e, determinar quantas horas se podia trabalhar.
Tamanho foi o impacto causado por tal decisão que, tal período de tempo, compreendido entre os anos de 1895 e 1937, ficou conhecido como o ‘Governo dos Juízes’, dado o poder da Corte nesta era também denominada de era Lochner.[42] Tal enorme poder era justamente amparado na doutrina do devido processo legal substantivo.
Razão assistia ao notável Justice Oliver Wendell Holmes Jr., quando proferiu voto discordante neste célebre caso, Lochner v. New York:[43] “Máximas gerais não decidem casos concretos. A decisão dependerá de um julgamento ou intuição mais sutil que qualquer premissa maior articulada. Mas eu penso que esta máxima como foi colocada, se for aceita, nos conduzirá para muito além deste objetivo. Toda opinião [da Corte] tende a se tornar lei. Eu penso que a palavra ‘liberdade’, na 14.ª Emenda, é deturpada quando utilizada para prevenir o resultado natural de uma opinião dominante, a não ser que se possa dizer que um homem racional e justo necessariamente iria admitir que a lei proposta iria infringir princípios fundamentais, na forma em que eles foram compreendidos pelas tradições de nosso povo e de nosso direito.”[44]
A era Lochner foi um desastre em termos de legitimação da atuação da Suprema Corte. Porém, como destacam Gunther e Sullivan, “a Corte moderna ainda não retirou de Lochner a lição de que todas as intervenções judiciais via devido processo substantivo são inconvenientes. Antes, ela desistiu de fazer um exame cuidadoso na maior parte das áreas econômicas, mas, aumentou sua intervenção no que se refere ao alcance de interesses extrapatrimoniais não explicitamente protegidos pela Constituição.”[45] A Suprema Corte passou a entender que apenas pelo fato de fazer um exame minucioso das leis estaduais, isto já era motivo mais do que suficiente para que julgasse da sabedoria de tal lei, anulando-a quando não gostasse dela e deixando-a viger quando gostasse.
Na era Lochner, a Suprema Corte anulou mais de 200 atos normativos estaduais, principalmente relacionadas a atividades econômicas, a sindicatos e à regulamentação da economia. Foi feita uma interpretação extremamente larga dos termos ‘liberdade’ e ‘propriedade’ protegidos pelo devido processo, com base nos quais a Corte traçava uma relação de meio e fim com as leis promulgadas nos Estados.[46]
A defesa de um determinado modelo econômico – laissez faire – pela Jurisdição representada na Suprema Corte, colocava em cheque a divisão dos poderes e, impôs grandes obstáculos à governabilidade no período da grande recessão.[47] Devidos às pressões internas e externas, ocorreu o inevitável declínio do ‘Governo dos Juízes’. Graças às opiniões discordantes de grande Justices – tais como Holmes, Brandeis, Cardozo, Hughes e Stone –, a Suprema Corte conseguiu reverter o movimento e abandonar os males de tal intervenção indevida no âmbito econômico.[48]
De acordo com o decidido em Ferguson v. Skrupa,[49] quando a opinião da Corte foi dada pelo Justice Hugo Black, “a doutrina que prevaleceu em Lochner, Coppage, Adkins, Burns e, em casos similares – que o devido processo autoriza as Cortes a declararem inconstitucionais as leis quando elas acreditarem que o legislador agiu tolamente – desde há muito foi descartada. Nós retornamos à proposição constitucional original de que as Cortes não devem substituir as crenças sociais e econômicas dos corpos legislativos, que são eleitos para elaborar leis, por suas próprias convicções.”[50]
2.4 A renovação – Griswold, Roe, Glucksberg e Lawrence v. Texas
Com o fim da era Lochner, a Suprema Corte praticamente deixou de se imiscuir na condução das políticas econômicas do Executivo e do Legislativo. Entretanto, isto não significou – como seria bom que tivesse significado – o fim do uso de devido processo como direito material. Ficando de lado as doutrinas econômicas, a atenção da Corte se voltou para os direitos individuais.[51]
A situação ainda era alarmante. A Suprema Corte continuava a se utilizar do devido processo substantivo para algo que a cláusula não havia sido projetada. O estado de coisas no período posterior à segunda guerra mundial pode ser capturado com nitidez na opinião discordante do Justice Hugo Black, no caso Adamson v. California[52] – segundo ele próprio, a decisão mais importante de sua carreira. Merece citação trecho profundo desta magnífica opinião:
“É preciso reconhecer, é claro, que a fórmula direito-natural-devido-processo, a qual a Corte hoje reafirma, foi interpretada para limitar substancialmente o poder desta Corte de prevenir violações estatais às liberdades civis individuais garantidas pela Bill of Rights. Mas esta fórmula também já foi usado no passado e pode ser usada no futuro, para permitir a esta Corte, ao julgar legislações reguladoras, a vagar pelos vastos campos da política e da moral, e a invadir, muito livremente, o domínio legislativo dos Estados, bem como do Governo Federal. Desde que Marbury v. Madison foi decidido, a prática ficou firmemente estabelecida, para o bem ou para o mal, que Cortes podem derrubar leis que violem a Constituição. Este processo, é claro, envolve interpretação e, como palavras podem ter muitos significados, interpretação obviamente pode resultar em limitação ou ampliação do propósito original de uma cláusula constitucional e, por meio disto, influenciar questões políticas. Mas declarar a inconstitucionalidade de lei sob a perspectiva dos princípios enumerados na Bill of Rights e em outras partes da Constituição é uma coisa; invalidar leis por causa da aplicação do ‘direito natural’ que se crê ser superior e não definido pela Constituição é uma outra. ‘Neste caso, cortes procedendo dentro dos claros limites constitucionais buscam executar políticas contidas na Constituição; no outro perambulam com vontade própria na ilimitada área de suas próprias convicções sob a forma da razoabilidade (reasonableness) e realmente selecionam políticas, uma responsabilidade que a Constituição incumbiu aos representantes legislativos do povo’.”[53]
Convencido de seu posicionamento em Adamson v. California, o Justice Black combateu os abusos da doutrina do devido processo substantivo até o fim de sua carreira na Suprema Corte. Em outra decisão importante, desta feita já em 1965, Black sustentou, em Griswold v. Connecticut,[54] que: “Eu não acredito que nos tenha sido outorgado pela cláusula do devido processo ou qualquer outra provisão ou provisões constitucionais, o poder de medir a constitucionalidade, com base em nossas próprias convicções, de que a legislação é arbitrária, caprichosa ou irrazoável, ou que visa a propósitos não justificáveis, ou que é ofensiva às nossas próprias noções de ‘modelos civilizados de conduta’. Uma tal avaliação da sabedoria da legislação é um atributo do poder de fazer leis, não do poder de interpretá-las. O uso por cortes federais de tal fórmula ou doutrina ou outras coisas semelhantes para vetar leis federais ou estaduais simplesmente retira do Congresso e dos estados o poder de fazer leis baseadas nos seus próprios julgamentos de eqüidade e sabedoria e, transfere este poder para esta Corte para final determinação – um poder que foi especificamente negado às cortes federais pela convenção que estruturou (framed) a Constituição.”[55]
A Corte que decidiu os casos relativos ao New Deal de Roosevelt e, a Corte presidida por Earl Warren,[56] trouxeram a doutrina do substantive due process para um patamar menos autoritário e mais adequado à separação das funções estatais, pondo um fim a era Lochner, que foi perdendo sua força,[57] até ser considerada praticamente morta na Suprema Corte.[58]
Porém, a doutrina ganhou força novamente – já na corte Burger – na ainda muito controversa decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade,[59] peça central do direito ao aborto nos EUA. Comentando esta tendência, Frank R. Strong corretamente entendeu que: “o devido processo substantivo da 14.ª Emenda não ofereceu nenhum fundamento para Griswold ou Roe, salvo um desculpa para que os Justices pudessem atuar em favor de seus próprios valores.”[60]
A Corte Warren foi a mais bem sucedida da história na defesa das liberdades civis. Boa parte de suas importantes decisões foi tomada com amparo na doutrina do devido processo substantivo, o que demonstra que ela também tem um lado positivo.
Porém, é de se notar que, qual a reação da Corte Warren ao se ver acuada pela falta de expressa disposição constitucional que permitisse impor sua visão de que, p. ex., o aborto era correto? Decidiu com base no devido processo substantivo. Não se está aqui julgando o acerto ou o erro daquela Corte em garantir o direito ao aborto, o que se está a analisar é o fato de que a Constituição americana, em nenhuma provisão específica, garante tal direito. Ao invés de se tentar uma leitura inepta da cláusula do devido processo, a Corte, ao se defrontar com tais situações teria, como ensina Laurence Tribe, duas saídas: ou reverte os casos do matadouro e se utiliza da cláusula de privilégios e imunidade, ou se utiliza da cláusula do direitos não enumerados.[61]
A Corte Rehnquist julgou dois casos importantes em matérias de devido processo substantivo, são eles: Washington v. Glucksberg,[62] de 1997 e, Lawrence v. Texas,[63] talvez a mais importante decisão do ano de 2003. No primeiro caso, a Suprema Corte deixou bastante clara a verdadeira natureza jurídica do substantive due process ao responder o questionamento de quais direitos podem ser vistos como componentes da noção de due process. A resposta foi a seguinte, dada pelo Chief Justice Rehnquist, que forneceu a opinião da Corte: “nós temos regularmente observado que a Cláusula do Devido Processo protege especialmente aqueles direitos e liberdades fundamentais, que estão, objetivamente, ‘firmemente enraizados na história e na tradição da nação’, id., at 503 (opinião plural); Snyder v. Massachusetts, 291 U.S. 97, 105 (1934) (‘tão enraizados nas tradições e na consciência de nosso povo de modo a ser tomado como fundamental’), e ‘implícito no conceito de liberdade ordenada’, de modo que ‘nem liberdade nem justiça existiriam se eles fossem sacrificados,’ Palko v. Connecticut, 302 U.S. 319, 325, 326 (1937).”[64]
3. Críticas
As posições daqueles que criticam a doutrina do devido processo substantivo – principalmente as defendidas pelo Justice Black – têm de ser lidas adequadamente, haja vista que se considera correta a função jurisdicional do Estado de controlar a razoabilidade das leis; não se nega que é papel de uma corte constitucional tomar importantes decisões políticas,[65] principalmente quando atua como verdadeiro órgão contra-majoritário.[66] O que se nega é que se possa basear tal controle de razoabilidade na cláusula do devido processo legal em senso substantivo, ou seja, em última análise, com base num critério metajurídico e discricionário inventado pela Suprema Corte. Do posicionamento de Black, o que realmente se pode retirar é que as teses elaboradas pela Suprema Corte americana para embasar o devido processo substantivo incorporam ultrapassadas doutrinas de direito natural e, concedem à Corte – e à Jurisdição – poderes que pertencem exclusivamente ao Legislativo e ao Executivo, em seus respectivos espaços de atuação. Não se pode negar que os limites entre as funções do Estado formam uma zona de penumbra, mas não é por causa disto que se deve admitir um ‘mundo onde as Cortes não sejam em nada diferentes do Legislativo’.[67]
Não se pode admitir que o mérito legislativo seja aferido ao bel-prazer dos juízes que componham uma Corte Constitucional, mas é exatamente assim que se comporta(va) a Suprema Corte americana. Segundo o Justice Black, “talvez a mais clara, franca e breve explicação de como esta visão do devido processo funciona encontra-se em uma declaração julgada hoje no sentido de que esta Corte pode invocar a cláusula do devido processo legal para por abaixo procedimentos ou leis estaduais aos quais ‘não pode tolerar’.”[68]
A única leitura aceitável do conteúdo da cláusula do devido processo legal é a que enxerga ali a necessidade de que o processo deve ser procedimentalmente justo.[69] Ao analisar a due process clause, o Justice Antonin Scalia – pregando a interpretação textualista – entende que as “palavras têm sim um alcance limitado de significado e, nenhuma interpretação que vá além deste alcance é aceitável.”[70]
São exatamente a estas mesmas conclusões que chegou o mestre do direito comparado, o emérito Mauro Cappelletti ao examinar os precedentes da Suprema Corte sobre o substantive due process:
“É claro, todas as leis pressupõem desigualdades e restringem as liberdades de algumas pessoas, não obstante, obviamente, todas as lei não ofendem conceitos de due process ou de igual proteção. Já que nenhuma das cláusulas aparenta oferecer ajuda clara na distinção entre a lei constitucional daquela inconstitucional, ao interpretar estas cláusulas, o juiz é compelido ao risco de tornar-se um one-man legislature, repesando ele mesmo os concorrentes interesses individuais e sociais que anteriormente haviam sido balanceados no curso do processo legislativo. Basicamente por acatar eslicada às questões de regulação econômica estatal – buscou esquivar-se de um princípio da ‘proporcionalidade’ muito flexível, que usute processo, a Suprema Corte, em sua jurisprudência do devido processo substantivo e igual proteção – particularmente como aprparia a função do legislativa de sopesar os concorrentes interesses sociais e individuais afetados pelas escolhas legislativas.”[71]
4. Conclusões
Independentemente do modo como decidem os Tribunais, a malsinada teoria do devido processo substancial não deveria ser aceita como forma de justificar decisões judiciais no Brasil porque é per se inconsistente. Uma teoria jurídica é inconsistente quando, conforme ensina Claus-Wilhelm Canaris, “contém uma contradição lógica, que leve por si mesma a uma contradição valorativa insustentável”.[72]
Uma contradição lógica aflige uma teoria quando “se pode deduzir dela qualquer proposição e, inclusive, a preposição contraditória oposta.”[73] Canaris afirma que as contradições lógicas são raras na ciência jurídica, porém, o mesmo não ocorre com as contradições valorativas decorrentes da contradição lógica.[74] Estas contradições são facilmente perceptíveis na história da doutrina do devido processo legal substantivo, já que absolutamente recheada de exceções sem nenhuma causa, como se viu das decisões supracitadas. Um teste de razoabilidade aleatório não tem condições de legitimar nenhuma decisão. Como ensina Canaris sobre tais teorias, “haja vista que se ela dá lugar a uma exceção gratuita, não se vê porque não se está facultando também para propor uma segunda, e assim sucessivamente outras exceções, sem precisar de razão alguma. Dado que uma teoria assim é, em última análise, «compatível» com qualquer solução, a mesma não está, certamente, em condições de legitimar a nenhuma solução em absoluto.”[75]
O melhor para a interpretação da Constituição brasileira é que não se fale em devido processo substantivo em momento algum, para que sejam evitadas confusões conceituais. Entretanto, a única hipótese aceitável de se trabalhar o tema seria importar não o devido processo substantivo em si – já que instituto inútil no Brasil –, mas os primorosos testes de razoabilidade que a Suprema Corte americana tem utilizado mais recentemente para identificar violações a direitos fundamentais.[76]
Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Mestre UFPR e Doutor USP em Direito. Procurador do Estado do Paraná
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