A Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica no novo Código Civil

Sumário: 1. Introdução. 2. A proposta de inserção da teoria da desconsideração no texto do Novo Código Civil. 3. Análise crítica sobre o artigo 50 do novo Código Civil. 3.1. A confusão patrimonial. 3.2. A subcapitalização societária. 4. Considerações finais.

1. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica dos entes coletivos consolidou-se, entre os operadores do direito, como mecanismo de extrema utilidade na busca de soluções justas para as questões do tráfico negocial. Embora carente de base normativa na legislação civil e comercial, essa teoria acabou por inserir-se definitivamente no contexto no nosso sistema jurídico, em especial na seara societária, por meio dos estudos doutrinários e aplicação jurisprudencial[1].

No direito Brasileiro, o primeiro texto legislativo a trazer expressa previsão sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica dos entes coletivos foi a Lei 8078/90, batizada como Código de Proteção e Defesa do Consumidor [2]. Após, duas outras leis repetiram a ousadia do diploma consumerista: a Lei 8.884/94, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica[3], e a Lei 9.605/98 que disciplina a responsabilidade por lesões ao meio ambiente[4]. Entretanto trata-se de normas de aplicação específica a determinadas matérias e que, portanto, não serviram como cláusula geral de aplicação da teoria da desconsideração. Entre estes textos, o primeiro foi o que causou maior eco na doutrina, sendo alvo de rígidas críticas [5].

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Atualmente, dentre as várias inovações trazidas pelo Novo Código Civil, encontramos, em seu artigo 50, a previsão normativa genérica da teoria da desconsideração.

2. O Projeto do novo Código Civil que tramitou por longo período em nosso Congresso Nacional, foi elaborado inicialmente na década de setenta, sob a presidência de Miguel Reale. Das diversas novidades apresentadas no novo texto, desperta a atenção a normatização genérica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dos entes coletivos.

A redação inicialmente apresentada foi a seguinte: ”a pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado, ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução”, acrescida de parágrafo, dispondo que “neste caso, sem prejuízo das sanções cabíveis, responderão conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se tiver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração”[6].

Esta proposta de normatização da teoria da desconsideração, como não poderia deixar de ser, foi alvo de várias e severas críticas por parte de nossos doutrinadores, mormente por vincular a figura da desconsideração com a dissolução da sociedade.

As críticas mais ardorosas vieram da doutrina comercialista, embora os civilistas também tenham registrado suas ressalvas[7].

Miguel Reale, atendendo a tais ponderações, modificou a redação inicial do dispositivo em apreço, que passou a ser a seguinte: “A pessoa jurídica não pode ser desvirtuada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade”[8].

O novo texto inovou em relação ao anterior, deslocando a legitimidade do pedido de desconsideração da personalidade jurídica para os sócios, afastando, assim, a legitimidade do lesado e possibilitando a dissolução da entidade como sanção alternativa excepcional: “tais sejam as circunstâncias”.

Entretanto, como refere Fábio Ulhoa Coelho, novamente a teoria da desconsideração da pessoa jurídica não foi devidamente traduzida no texto projetado que introduziu a sanção de exclusão do sócio responsável – diversa da sanção decorrente do desconhecimento da autonomia da pessoa jurídica, que é a ineficácia episódica de seu ato constitutivo – tornando alternativa a sanção da dissolução da sociedade[9].

O jurista Rubens Requião manifestou-se em sentido contrário a esta proposição, argumentando que “o anteprojeto havia dado solução diferente, determinando a dissolução da sociedade. Mas isso, como contraditamos na ocasião, importava em punir os demais sócios atingidos. Não seria justo. A comissão, porém, embora melhorando o texto, não acolheu a doutrina em toda a sua pureza” [10].

Inconformado com o rumo que estava sendo seguido para a normatização da teoria da desconsideração, Rubens Requião apresentou a seguinte proposta de redação para o artigo 48 do Projeto de Código Civil: “A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à pratica de atos ilícitos ou abusivos de sócio. Neste caso, o juiz, desconsiderando a existência da personalidade jurídica, a pedido do credor do sócio, poderá permitir a efetivação de sua responsabilidade sobre os bens incorporados na sociedade para a sua participação no capital social”.

O substitutivo apresentado por esse renomado jurista não foi bem acolhido pela nossa doutrina, pois restringiu a teoria da desconsideração aos casos em que ela servia para atender às pretensões dos credores particulares dos sócios. Nessas situações, os nossos tribunais já encontravam a solução através da penhora de cotas e ações da sociedade por dívidas pessoais dos sócios [11].

O Projeto de Código Civil, em que pesem todas as críticas, foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984, mantendo-se, na questão relativa à normatização da teoria da desconsideração, a redação anterior à proposta por Rubens Requião .

Finalmente, o relator Josaphat Marinho apresentou a seguinte redação ao artigo 50 do Projeto: ”Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”[12] .

O novo texto chamou à ordem o tratamento normativo proposto para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, até então, como demonstrado anteriormente, confuso e contraditório. Com a sanção do projeto de Código Civil, o artigo 50 será a futura base normativa da teoria da desconsideração no direito privado brasileiro.

3. Por ser relativamente recente, a nova redação ainda não foi detalhadamente analisada pela doutrina. Alexandre Couto Silva, no entanto, aponta a falta de indicação da fraude em seu sentido amplo (de acordo com a noção do direito norte-americano) e da busca do ideal de justiça[13]. Entendemos que a idéia de fraude está inserta de forma implícita na redação do art. 50 do novo codex, quando faz referência ao abuso da personalidade jurídica e ao desvio de finalidade. Da mesma forma, a busca do ideal de justiça está presente em toda a atuação do Direito, não sendo necessário pontuar este aspecto.

Numa ligeira análise, ainda que sem maiores aprofundamentos, percebe-se que essa normatização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é, em muito, superior às propostas que a antecederam, caracterizando-se pela adequação e precisão no tratamento dispensado à matéria. Cabe anotar ainda que a previsão não é limitativa, permitindo a utilização do instituto nos diversos ramos do Direito.

O texto mantém-se apegado à utilização excepcional da teoria, submetendo-a ao prudente critério do Judiciário. O fenômeno da desconsideração é inserido no plano da eficácia, seguindo o entendimento da melhor doutrina sobre a questão, e há extensão da responsabilidade não somente aos sócios, mas também aos administradores da sociedade.

3.1. O Novo Código inova ao arrolar, como motivo suficiente para justificar a aplicação da teoria da desconsideração, as situações de confusão patrimonial, seguindo na esteira da doutrina estrangeira e atendendo a anseios de doutrinadores pátrios, o que certamente irá gerar influências nas decisões jurisprudenciais de nossos tribunais [14].

De acordo com Menezes Cordeiro, a confusão de esferas jurídicas verifica-se quando, por inobservância das regras societárias, ou mesmo, por qualquer decorrência objetiva, não fique clara, na prática, a separação entre o patrimônio social e o do sócio ou os dos sócios [15].

O direito positivado estabelece uma separação específica entre o patrimônio societário e o patrimônio pessoal de cada um de seus sócios. Tal limitação é estabelecida, inequivocamente, em benefício dos sócios, aos quais cabe concretizar essa separação formal, tornando-a e mantendo-a efetiva.

Ocorre que, em muitas situações, os sócios não dão importância à separação patrimonial estabelecida formalmente pela legislação, originando uma confusão entre os seus bens pessoais e os pertencentes ao patrimônio social [16].

Neste contexto, devem ser distinguidas duas situações, ou seja, a mistura de sujeitos de responsabilidade e a mistura de massas patrimoniais.

Nos grupos econômicos, a mistura de sujeitos de responsabilidade é verificada quando houver a identidade dos membros da administração ou gerência de duas ou mais sociedades [17], quando houver desrespeito às formalidades societárias ou, ainda, pela utilização de uma única sede para a atuação de várias sociedades de responsabilidade, com firmas e ramos de atuação assemelhados, o que pode vir em prejuízo dos credores sociais[18].

Karsten Schmidt explica que aquele que desejar assegurar a autonomia patrimonial dos sujeitos e a conseqüente limitação de responsabilidade, não deve utilizar-se apenas de adequado complemento à denominação social, mas também manter a possibilidade de distinção de identidade dos sujeitos de responsabilidade [19].

Na mistura de patrimônios, as fronteiras da autonomia patrimoniais da sociedade e de seus sócios tornam-se fluida, ensejando a perda da responsabilidade limitada de quem lhe dá causa. Tal situação pode apresentar-se em várias configurações, desde a inexistência de separação patrimonial adequada na escrituração social até a situação em que, na prática, os patrimônios de ambos não forem suficientemente diferenciados[20]. Nessas situações, os membros da sociedade não poderão invocar, perante os credores sociais a sua propriedade sobre objetos que eles próprios classificam alternadamente como seus ou da sociedade [21]. O jurista argentino Daniel E. Moeremans, ao indicar a confusão patrimonial como um dos casos de aplicação da teoria da desconsideração pondera: los miembros de una persona jurídica sólo pueden alegar la limitación de responsabilidad que tiene su base en el principio de división de patrimonios, cuando los mismos respectan dicha división”[22] .

Em decisão proferida na Apelação n. 9247 pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, relatada pelo desembargador Edgard de Moura Bittencourt, a ocorrência de confusão patrimonial foi o motivo ensejador da responsabilidade pessoal do sócio, afastando-se o princípio de que a pessoa da sociedade não se confunde com o de seus membros. O caso trata de questão envolvendo um hospital que assumiu a forma de sociedade anônima, e o seu patrimônio confundiu-se com o patrimônio pessoal de um de seus sócios que adquiria bens para seu uso em nome da sociedade. Assim, foram encontrados, na residência desse sócio, bens que não seriam apropriados para um hospital, como televisor e geladeira doméstica, adquiridos em nome da sociedade anônima[23].

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada também quando ocorre a chamada condução externa, ou seja, situações em que a empresa é controlada por outra. Fábio Konder Comparato aponta a confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada como critério fundamental para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica que ele chama de externa corporis, explicando que, sendo a pessoa jurídica nada mais do que uma técnica de separação patrimonial, se o controlador, que é o maior interessado na manutenção deste princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem por que os juízes teriam que respeitá-lo, transformando-o numa regra puramente unilateral [24].

Cabe anotar que a ocorrência de uma certa confusão patrimonial entre as empresas do mesmo grupo econômico é praticamente inevitável e irá ocorrer em maior ou menor grau, pois está ínsita no próprio sentido da atuação econômica conjunta[25]. Assim, existirá permanentemente uma tensão que caracterizará esta questão no sentido de que estimular ou não a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no grupo econômico, que terá que ser solucionada, em cada caso concreto, pelo julgador. No sistema brasileiro, as empresas componentes do mesmo grupo não possuem, como regra geral, responsabilidade solidária pelos débitos assumidos pelas demais empresas do grupo [26], de forma que essa tensão se torna ainda mais latente.

3.2. Entretanto entendemos que o texto do artigo 50 do Novo Código Civil pecou ao omitir-se em relação a um ponto tormentoso na questão da limitação de responsabilidade dos sócios em nosso sistema, que é a ocorrência da subcapitalização como motivos para o reconhecimento da desconsideração.

O nosso sistema jurídico, na esteira da legislação de vários outros países, não estabelece regra genérica sobre a exigência de capital mínimo para a constituição e funcionamento das sociedades comerciais [27]. Neste contexto normativo cabe questionar se a inexistência de determinação de valor do capital mínimo proporcionaria a ampla liberdade na fixação deste pelos fundadores das sociedades.

A resposta a essa questão deve ser buscada na análise sistemática do nosso direito societário, em que existe ampla liberdade na escolha do objeto social e da estrutura societária a ser adotada. Assim, as leis e princípios societários brasileiros terão incidência tanto no caso de constituição de uma pequena sociedade de âmbito familiar para a exploração de atividade mercantil de reduzida monta e de visão despretensiosa quanto no caso de união de gigantesco capital para a exploração de atividade econômica de alta complexidade, como sói ocorrer na atividade industrial.

Com base nessa realidade, qualquer tentativa normativa de fixar um valor mínimo a ser observado na formação do capital social não se mostra uma prática adequada.

Embora não existindo e nem sendo adequada uma fixação genérica de capital social mínimo, podemos identificar especialmente um princípio a ser observado em cada situação concreta, ou seja, a regra de que o capital societário deve ser adequado a que a sociedade desenvolva a sua atividade sem gerar riscos exagerados no mercado. Trata-se de observância do princípio da adequação do capital social.

A inadequação do capital aos recursos necessários para o desempenho seguro da atividade social e para suportar os riscos de sua atividade ficou conhecida como subcapitalização, conforme ressaltado anteriormente, estimulando o surgimento entre nós do questionamento no sentido de identificar se, no direito brasileiro, existe a responsabilidade pessoal dos sócios pela subcapitalização da sociedade.

Trata-se de discussão que grande parte da doutrina parece evitar, mas que encontramos, em especial, na produção doutrinária de Fábio Ulhoa Coelho, Calixto Salomão Filho e Fábio Konder Comparato.

O jurista Fábio Ulhoa Coelho manifesta-se expressamente sobre esta polêmica, entendendo que o acionista não responde pela subcapitalização da Companhia, uma vez que, de acordo, com a sistemática da Lei das Sociedades Anônimas, a responsabilidade dos sócios dessas sociedades é limitada ao preço das ações subscritas ou adquiridas, não podendo as situações de capitalização social inadequada excepcionar esta regra [28].

Na mesma orientação, o autor segue analisando a possibilidade de responsabilização dos sócios nos casos em que, em vez de aumentarem o capital social subscrevendo novas ações, os sócios optam por aportar recursos a título de financiamento, adquirindo debêntures ou outros valores mobiliários emitidos pela sociedade. Mesmo aqui, o autor entende que não há responsabilidade dos acionistas, pois a lei societária não veda a estes a subscrição desses títulos, ao contrário, estimula-a quando confere direito de preferência nos casos de existência de cláusula de conversibilidade. Idêntico raciocínio é aplicado pelo autor aos contratos de mútuo quando a sociedade é mutuária e os sócios os mutuantes [29].

Finalizando a sua análise da questão, Fábio Ulhoa Coelho é enfático: “o acionista não tem, em outros termos, dever de capitalizar a sociedade anônima, nem mesmo na hipótese de patrimônio social insuficiente ao atendimento das indenizações por atos ilícitos” [30].

Calixto Salomão Filho, analisando a doutrina no direito alemão, destaca que, em relação a subcapitalização, é necessário distinguir entre os casos de subcapitalização simples e qualificada. Esta última representa as situações em que o capital social é claramente insuficiente para o cumprimento dos objetivos e o desenvolvimento da atividade social, de forma que os perigos criados pelos sócios no exercício do comércio são insuficientes para concretizar a responsabilidade. Nos casos de subcapitalização simples, esta não se mostra evidente, sendo necessário demonstrar o elemento subjetivo – culpa ou dolo dos sócios em não prover o capital suficiente para a atividade social [31].

Este autor posiciona-se expressamente de forma contrária à responsabilização pessoal dos sócios em casos de inadequação do capital social, ponderando que: “sancionar a subcapitalização nestas hipóteses parece um rigor excessivo, pois o legislador não impõe obrigação de capital mínimo, sendo difícil exigir do sócio que faça a previsão correta no momento de constituição da sociedade”[32].

Mas, diferentemente de Fábio Ulhoa Coelho, Calixto Salomão Filho aceita a possibilidade de responsabilização pessoal dos sócios nos casos de subcapitalização qualificada [33]. Este autor propõe, também, uma solução peculiar para os casos em que, frente à insuficiência do capital os sócios, em vez de aportarem valores para reforçar o capital social, realizam empréstimos à sociedade. Para estas situações, o autor propõe, com a intenção de ser um remédio mais eficaz contra a subcapitalização, que seja adotada uma visão mais realista e ampla do capital societário, considerando como tal todos os empréstimos feitos pelos sócios á sociedade em situação de crise [34].

Fábio Konder Comparato, por sua vez, apresenta um entendimento diferenciado em relação aos casos de subcapitalização, aceitando a responsabilização pessoal dos sócios neste caso, em especial em relação ao sócio controlador. Nas palavras do autor: “um dos deveres do controlador, em relação aos credores sociais, é o de prover adequadamente a companhia de capital, tendo em vista o fato de que este representa a principal garantia do passivo social. Nessas condições, se a sociedade necessita de um incremento de recursos próprios, para continuar a exercer, satisfatoriamente, a sua atividade empresarial, não compete ao controlador fazer-lhe empréstimos, mas subscrever e integralizar aumentos de capital. Ao colocar-se na posição de credor mutuante, e não de subscritor de novas ações, ele quis, sem dúvida, furtar-se ao risco do investimento. Mas este constitui uma das regras essenciais do jogo. A lei não pode coonestar a sua supressão” [35].

Identificados os principais posicionamentos teóricos sobre a subcapitalização e suas conseqüências no sistema jurídico societário brasileiro[36], ousamos apresentar, em nível de contribuição para eventual reflexão às ponderações que seguem.

Na esteira do jurista alemão Herbert Wiedemann, entendemos que a limitação de responsabilidade não é uma manifestação de Direito Natural, nem algo que possa aproximar-se da noção de liberdade ou garantia constitucional e sim um privilégio concedido pela ordem jurídica e que, como tal não pode fazer surgir perigos para os credores [37]. Assim, esse privilégio da limitação de responsabilidade somente poderá ser efetivado se forem observadas as situações exigidas pelo ordenamento, em especial, a exigência de um capital social adequado, ou seja, a presença no ativo societário de bens que comportem responder pelos débitos da sociedade.

Ao constituírem a sociedade, com a adoção de forma societária à qual o ordenamento reserve esse privilégio da limitação de responsabilidade, os sócios assumem o dever de assegurar a existência de um capital adequado para garantir a atividade da empresa. Trata-se de condição implícita que, se não cumprida, não autorizará o surgimento da limitação de responsabilidade.

O Direito não pode tolerar a atuação de sociedades temerárias, dotadas de pequena porção patrimonial totalmente insuficiente para atender aos encargos contratuais assumidos e aos riscos oriundos do desenvolvimento da sua atividade, gerando instabilidade no tráfico negocial. Dotar sociedades, que se encontram nesta situação, de limitação de responsabilidade é preterir os valores sociais em função de benefícios injustificáveis para os membros da pessoa jurídica [38].

Uma situação que constantemente vem ensejando a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica pelos nossos tribunais, com fulcro na insuficiência patrimonial, é a dissolução irregular da sociedade, pois, nestes casos, os credores se vêem desprovidos de sua garantia – o patrimônio da sociedade – sem que sejam observadas as formalidades legais para o encerramento da atividade da sociedade [39].

4. Analisando o artigo 50 do Novo Código Civil, verifica-se uma visível evolução em relação às redações que a antecederam, com a adoção de conceitos indeterminados – abuso da personalidade jurídica e o desvio de finalidade – que não encerram a questão e permitem ao julgador, no caso concreto, criar o melhor direito.

A previsão da confusão patrimonial como motivo determinante da desconsideração já vinha ocorrendo, embora ainda de forma bastante tímida, pela jurisprudência de nossos tribunais, de forma que o art. 50 do novo codex servirá como estímulo para o desenvolvimento dos debates sobre o tema.

Como aspecto negativo frente à redação proposta, parece ser apenas o esquecimento de inclusão da questão da subcapitalização como motivo autorizador da aplicação da teoria da desconsideração. Trata-se, entretanto, de questão complexa, que ainda não foi devidamente enfrentada pela doutrina brasileira, mas que merece ser objeto de reflexões.

 

Notas:
[1] Atualmente nota-se nos julgados de nossos Tribunais uma utilização extremamente ampla da teoria da desconsideração, nos mais variados assuntos e das mais diversas ordens. Não se verifica a  busca do patrimônio pessoal dos sócios apenas na discussão judicial das dívidas assumidas  pela pessoa jurídica societária em benefício exclusivo de seus membros. É comum encontrar-se a sua utilização para resolver questões que extrapolam os limites do Direito Comercial tradicional, como no dever geral de indenização, em discussões relativas às relações de consumo  e até mesmo em temas de Direito de Família. Sobre este último enfoque aponta Rolf Madaleno que “É larga e producente sua aplicação no processo familiar, principalmente frente à constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, o rol mais significativo de seus bens (…) quando o marido transfere para sua empresa o rol mais significativo de bens matrimoniais, sentença final de cunho declaratório haverá de desconsiderar esse negócio específico, flagrada a fraude ou abuso, havendo, em conseqüência, como matrimoniais esses bens, para ordenar sua partilha no ventre da separação judicial, na fase destinada a sua divisão, já considerados comuns e comunicáveis”(in Direito de Família: aspectos polêmicos, Livraria do Advogado, 1998. p. 27).
[2] Os termos da previsão do instituto no CDC são os seguintes: “Art. 28.  – O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da  sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração  também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por  má administração. § 1º ( vetado); §. 2º – As sociedades integrantes  dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações  decorrentes deste Código; § 3º – As sociedades consorciadas são solidariamente  responsáveis  pelas obrigações  decorrentes deste Código; §. 4º – As sociedades  coligadas só  responderão  por culpa ; § 5º – Também  poderá ser desconsiderada  a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento  de prejuízos  causados  aos consumidores.”.
[3] O art. 18 dessa lei repete a redação do caput do art. 28 do Código Consumerista.
[4] O art. 4º dessa lei estatui que “poderá ser desconsiderada a  pessoa jurídica  sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.
[5] Fábio Ulhoa Coelho, ao comentar esta inovação legislativa apontou que “contudo, tais são os desacertos do dispositivo em questão que pouca correspondência se pode identificar entre ele e a elaboração doutrinária da teoria” (in Curso de Direito  Comercial, 2º vol, Saraiva, 1999, p. 49). Leandro Zanitelli se manifestou dizendo que … afora isso, resta observar a total inutilidade deste dispositivo e, até  mesmo, o seu aspecto pernicioso. Não era preciso determinar, em expresso dispositivo de lei, que o abuso da pessoa jurídica deve ser sancionado com a desconsideração, simplesmente porque esse já era o entendimento consagrado na época, entendimento que encontra justificativa na própria relatividade dos direitos e demais situações subjetivas. Perniciosa, a intervenção legislativa, porque  realizada no âmbito de um microssistema, dando assim, vazão o argumento de que, em outros setores do Direito Privado, não pertencentes ao restrito universo do Direito do Consumidor, a desconsideração, mesmo em face do abuso, não seria permitida”(in Abuso da Pessoa Jurídica e Desconsideração, Revista da Faculdade de Direito Ritter dos Reis,  mar/jul 2000, vol III, p. 198/199). Mais enfática ainda são as críticas desenvolvidas por Rachel Sztajn: “Claramente  o texto do art. 28 da Lei 8078/90 não segue a filosofia que informa aplicação da teoria nos sistemas de origem. O texto mistura defeitos dos atos para os quais o sistema já prevê remédios próprios. Ou o legislador não entendeu a função da teoria da desconsideração ou, ao que parece, desejou banalizar, vulgarizar a técnica, para torná-la panacéia nacional na defesa do consumidor” (in Desconsideração da Personalidade Jurídica, Revista Direito do Consumidor, vol II, p. 71). Entendemos que tais observações críticas são exageradas, pois apesar da inequívoca falta de aprimoramento do texto consumerista nesta questão,  o tema deve ser analisado de forma a se extrair dele o entendimento mais consentâneo com o sentido finalístico da norma tuitiva. Não é momento para críticas  destrutivas que só  viriam a  debilitar  a legitimidade do texto consumerista. É preciso que se proporcione uma análise construtiva, buscando  luzes que venham a tornar mais nítida a utilidade e a devida aplicação do artigo 28 do CDC. Essa é a tarefa da doutrina, ou seja, a construção para otimizar os textos normativos desprovidos de clareza.
[6] Rubens Requião havia, na época, proferido conferência sobre o tema, cujo texto foi encaminhado para a Comissão Revisora do Código Civil, inspirando a tentativa inicial de incorporação  da teoria da desconsideração  à legislação nacional. Na exposição de motivos, foi feita a seguinte referência justificativa do dispositivo em questão proposto; “visando  a preencher sentidas lacunas da legislação vigente, disciplinou-se o processo de exclusão dos associados e sócios. Pela mesma razão, acolhendo-se sugestão do Prof. Rubens Requião, cuidou-se de prevenir e repelir os abusos  perpetrados à sombra da personalidade jurídica”.
[7] Jose Lamartine Corrêa de Oliveira, em análise ao texto proposto para a Parte Geral do Projeto de Código Civil, anotou, na época, as seguintes observações ao artigo em questão: “O art. 49, na esteira da experiência fornecida pelo Direito Comparado, procurou coibir a chamada ‘fraude por meio da pessoa jurídica’ ou ‘abuso da personalidade jurídica’. Bem teria andado se tivesse a Comissão se limitado à norma do parágrafo único, que, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, manda responder em  tais casos, pelas dívidas ‘conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração’. Até aí tudo muito bem. O que não se concebe, porém, é que, para se sanar a lesão de que a pessoa jurídica foi vítima, pois seu nome foi utilizado, em proveito próprio, por sócios ou administradores desonestos, seja a pessoa jurídica dissolvida. E é isso, nada mais, nada menos, que é autorizado pelo ‘caput’ do mencionado art. 49, que permite a dissolução da pessoa jurídica de que se abusou, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, e por decisão judicial. Cura-se a doença cortando-se a cabeça do doente. Acode-se ao lesado tirando-se-lhe a vida. Urge retirar ao Anteprojeto o perigoso radicalismo dessa sanção  de dissolução” (in A Parte Geral no Anteprojeto de Código Civil, RT, v. 466, 1974. p. 276).
[8] Jonas Keiti Kondo, na época, em estudo dedicado ao tema, apresentou a seguinte proposta de redação, que não chegou a ser considerada pela doutrina: “Quando sob a camuflagem da pessoa jurídica, o sócio praticar atos ilícitos ou abusivos, de modo a fugir às regras da responsabilidade ou causar prejuízos a alguém, o juiz, a pedido do prejudicado, poderá desconsiderar a personalidade jurídica da entidade, naquele período em que foi praticado o ato lesivo, para alcançar aqueles bens do devedor que encontravam-se ocultados sob a personificação da sociedade e a ela incorporados” (in Natureza da Pessoa Jurídica: Desconsideração da Pessoa Jurídica, Jurisprudência Brasileira, vl. 102, p.31).
[9] In Desconsideração da Pessoa Jurídica,  RT, 1989, p.51.
[10] In Projeto de Código Civil – Apreciações Críticas Sobre a Parte Geral e o Livro I (Das Obrigações), RT, vol. 477, 1975. p. 20. Resumem-se em dois  tópicos as principais críticas apresentadas pelo autor ao texto em análise: (a) não se deve conferir legitimidade nem ao Ministério Público – o problema é todo de interesse privado – nem aos sócios, que são terceiros na pendenga creditícia, mas sim aos credores insatisfeitos, despidos das garantias que o patrimônio do devedor confere; (b) a doutrina da desconsideração deve ser acolhida em sua pureza, não se trata de dissolver a sociedade, mas de deixar de levar em conta, no caso concreto, a sua autonomia.
[11] Ao elaborar a sua proposta o autor ressaltou expressamente que: “a verdade original da doutrina é que ao penetrar na personalidade jurídica, desestimando-a, o juiz não anula a sociedade, que continua normalmente as suas atividades, apenas desfalcada dos bens do sócio fraudulentamente nela incorporados”(in Abuso de Direito e Fraude da Personalidade Jurídica, RT, vol. 410, p.20). O texto  apresentado não representa a original teoria da desconsideração  da personalidade jurídica, mas sim aproxima-se da chamada “teoria da desconsideração inversa”, muitos vezes utilizada em questões relativas ao Direito de Família, quando são buscados na pessoa jurídica bens desviados do patrimônio pessoal de um dos cônjuges (sócio ou não), no intuito de fraudar a meação ou a pretensão a alimentos.
[12] O Relator assim justificou a emenda: “O art. 50 do Projeto vai além da desconsideração da personalidade jurídica, pois admite, ‘tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade’. Mas o art. 51 trata dos ‘casos de dissolução da pessoa jurídica’ ou da cassação da autorização para seu funcionamento. Convém, portanto, caracterizar a ‘desconsideração’ em artigo substitutivo. A evolução do direito e a preocupação do legislador de preservar critérios éticos no conjunto das relações associadas recomendam essa caracterização num Código Civil novo. Os doutrinadores que julgam essa providência admissível no direito brasileiro salientam, geralmente, que ela não envolve ‘a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração  de sua ineficácia para determinado efeito em caso concreto’ (Rubens Requião, Abuso de Direito  e Fraude Através da Personalidade Jurídica, in Rev.  dos Tribunais, Vol. 410, dez. 1969, p. 12, cit.  P. 17). Vale dizer: cumpre distinguir entre  despersonalização  da desconsideração da personalidade jurídica. Nesta, “subsiste o princípio da autonomia  subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes, mas esta distinção é afastada, provisoriamente e tão só no caso concreto” (Fábio Konder Comparato, O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 3ª ed., Forense, 1983, p. 283). Ademais, não basta  que haja suspeita de desvio de função, para que se aplique o grave princípio. Conforme advertiu  professor Lamartine Correa de Oliveira, ‘não  podem ser  entendidos como verdadeiros  casos de desconsideração todos aqueles casos de mera imputação de ato’: ‘é necessário fazer com que a imputação se faça com predomínio da realidade sobre a aparência (A Dupla Crise da Pessoa Jurídica, Saraiva, 1979, p.p. 610 e 613). Dentro desses pressupostos, e considerando a sugestão do acadêmico Marcelo Gazzi Tadei, orientado pelo professor Luiz Antônio Soares Hentz, buscamos o delineamento seguro da ‘desconsideração’, para situá-la no Projeto. Consultamos um estudioso da matéria, com trabalho já publicado, professor Fábio Konder Comparato, submetendo-lhe esboço do dispositivo. Assinalando também a necessidade de diferenciar  despersonalização e desconsideração, o ilustre professor concorreu, valiosamente, para a configuração tentada. Acentuou, mesmo, que ‘a causa da desconsideração da personalidade jurídica não é,  apenas,  o desvio dos fins estabelecidos no contrato social ou nos atos constitutivos. O abuso pode  também consistir na confusão entre  o patrimônio social e o dos sócios ou administradores, ainda que mantida a mesma atividade prevista, estatutária ou contratualmente’. Justificou a menção, no texto, ao Ministério Público, visto que ‘ele também pode intervir no processo sem ser parte. Buscando contornos claros, ressaltou: É preciso deixar bem caracterizado  o fato de que os efeitos da desconsideração  da personalidade jurídica são meramente patrimoniais e sempre relativos a obrigações determinadas, pois a pessoa jurídica não entra em liquidação. A menção genérica a ‘relações de obrigação justifica-se pelo fato de que o direito do demandante pode ser fundado em um delito civil e não em contrato’.  Em conclusão, observou: ‘Finalmente, a fórmula sugerida – extensão dos efeitos obrigacionais  aos bens particulares dos administradores  ou sócios da pessoa jurídica – visa a  superar a discussão sobre se esta  responde ou não, conjuntamente com os sócios ou administradores. Na prática, como é óbvio, recorre-se à superação da personalidade porque  os bens da pessoa jurídica  não bastam para satisfazer a obrigação’. Daí o artigo substitutivo proposto corresponder ao texto elaborado pelo douto professor, apenas empregado  o vocábulo processo e não ‘feito’, dada a proximidade da palavra ‘efeitos’” (Flávia Lefèvre Guimarães, Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código do Consumidor – Aspectos Processuais, Max Limonad, 1998. p. 43/44).
[13] In Aplicação  da Desconsideração  da Personalidade  Jurídica no Direito Brasileiro, Ltr, 1999, p. 90.
[14] Fábio Konder Comparato levantou reclamações expressas quanto às redações anteriores do Projeto de Código Civil sobre o tema da teoria da desconsideração, pela falta de previsão da  confusão patrimonial como motivo para aplicação desta teoria. Diz o autor:  “o dispositivo é criticável a mais de um título. Em primeiro lugar, porque põe, como ‘conditio iuris’ de sua aplicação, um pressuposto que não corresponde, exatamente, ao problema  aqui focado. A confusão patrimonial não representa,  propriamente falando, um ‘desvio dos fins estabelecidos no ato constitutivo’. Não se trata da proibição  da prática de atos ‘ultra vires’ não previstos no objeto social, pois os patrimônios da sociedade e do sócio podem confundir-se, praticamente, no desempenho da atividade empresarial, prevista nos estatutos ou atos constitutivos”(in O Poder de Controle na Sociedade Anônima, RT, 1976, p. 368).
[15] In  Responsabilidade Civil dos Administradores, Almedina, 1997. p 324.
[16] O TJRS, ao decidir a Ap. Civ. nº 597013036, aplicou a teoria da desconsideração com  fulcro na confusão de patrimônios, em acórdão assim ementado: “Embargos. Penhora de patrimônio de sociedade. Alegação  de que nada tem com a execução. Desconsideração  da Pessoa Jurídica. Cabível a constrição de acervo pertencente a uma empresa, de que faz parte a sociedade executada, e que  pertence a um conglomerado familiar em que as titularidades e patrimônios se interpolam e se substituem” (3ª Câm. Civ., Rel. Des.  José Carlos Teixeira Giorgis).  Decisão interessante foi proferida pela 7ª Câm. Civ. do TJRS, ao utilizar o fundamento da confusão  entre sócio e sociedade a fim de aplicar a teoria da desconsideração para resolver questão processual: “Ação de ressarcimento de danos. Desconsideração da Pessoa Jurídica. Se a empresa se confundia com a pessoa de seu sócio-proprietário, afasta-se a  revelia da firma, acolhendo-se a contestação  ofertada por este último. Anula-se o processo para que o feito seja instruído” ( Ap. Civ. nº 597093848, Rel. Des.  Eliseu Gomes Torres).
[17] No julgamento da Ap. Civ. nº 196208243, o TJRS aplicou a teoria da desconsideração  em acórdão assim ementado: “Arresto – Teoria da desconsideração da pessoa jurídica – Empresas que têm sede no mesmo local, sendo também os mesmos sócios, marido e mulher. Aplica-se a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, podendo ser arrestados bens de uma, na hipótese da obrigação ter sido firmada pela outra” (3ª Câm. Civ., Rel. Des. Gaspar Marques Batista). Nas razões do voto, são apresentados os seguintes argumentos: “inexiste qualquer pejo na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, neste caso,  pois segundo o autor, as duas empresas tem o mesmo endereço,  o que não foi contestado pelo réu. Tudo indica que,  em concreto, seus bens e objetivos se confundem. Fica difícil de entender, outro motivo que não o de fraudar, quando se transfere o uso e gozo gratuito do único imóvel disponível, para outra pessoa jurídica, formada pelos mesmos sócios, com a agravante de serem marido e mulher. Nessas circunstâncias, a pessoa jurídica criada posteriormente, passa a ser uma simples réplica da primeira, com ela se confundindo. A conquista das empresas é a capacidade de gerar  riquezas, e não a possibilidade de fraudar a confiança daqueles que com  elas se relacionam”.
[18] Conforme Pedro Cordeiro,  A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, Associação Acadêmica da  Faculdade de Direito de Lisboa,1994.p. 102.
[19] Apud Pedro Cordeiro, in obra citada, p. 103.
[20] Uma das inevitáveis situações de confusão patrimonial ocorre nas sociedades unipessoais, ou seja, onde  o controle societário é centralizado em um dos sócios, sendo que os demais apenas emprestam o seu nome para a obtenção do requisito formal subjetivo mínimo para a criação da pessoa jurídica. O  TJSP proferiu a seguinte decisão, aplicando a teoria da desconsideração com  base na confusão patrimonial: “Sociedade anônima – Desconsideração da personalidade jurídica – Admissibilidade – Empresa constituída por apenas um acionista, vez que os demais dela se retiraram – Hipótese em que a pessoa jurídica e a pessoa física  se misturam sem seus negócios que dificultam a sobrevivência individual de cada uma.  Incumbe ao juiz o dever de  indagar, examinar, perquirir as atividades empresariais, a forma e o modo pelo qual estão atuando as empresas, se o fazem para cumprir efetivamente o objetivo social ou  se de baixo da capa da personalidade jurídica procedem em detrimento da lei. A ‘disregard doctrine’ não visa anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica em relação  às pessoas ou bens que atrás delas se escondem. Na hipótese a pessoa jurídica e a pessoa física de seu único acionista e administrador, já  que os demais se retiraram da empresa,  misturam-se em negócios que dificultam a sobrevivência individual de cada uma” (Ap. Civ.  nº 201.018-1/1, 4ª Câm. Civ., Rel. Des. Barbosa Pereira). Neste caso, entretanto, entendemos que  a melhor atitude não seria a  aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica societária e sim o fim desta, eis que não mais existe o seu requisito essencial, que é a presença de, no mínimo, dois membros. Assim, seria caso de dissolução da companhia, nos termos do disposto no artigo 206, I, d, da Lei 6404/76.
[21] Luiz Roldão de Freitas Gomes, ao tratar das hipóteses em que o princípio da limitação de responsabilidade dos sócios deve ser mitigado, contempla argumentos referentes a desconsideração da personalidade jurídica em casos de confusão patrimonial, mencionando que na “determinação  de casos  não se há, necessariamente, de inferir que não inocorra em responsabilidade em situações outras, posto que não expressamente contempladas na lei, máxime quando venha a auferir  proveito dos atos praticados pela sociedade, cuja atuação  é moldada a este fim, guiada pela sua vontade, usando-a para a consecução de objetivos individuais, com ela se identificando, de tal a ser por ele nominada, confundindo-se os patrimônios, promíscuos os  negócios sociais e dele, o sócio. Em situações tais, se se revela insuficiente o patrimônio da sociedade a responder por obrigações contraídas no evidente interesse do sócio que a controla e dirige soberanamente, de tal sorte que, inadimplidas, impliquem injusto e intolerado prejuízo a credores, que levaram em conta, de boa fé, ao vincularem-se, a pessoa e bens do sócio que surgia como o senhor, beneficiário e garante do negócio, hão aqueles de poder  dirigir-se contra os bens do sócio,’ ut singuli’, independente da forma  societária e, nas sociedades  de quotas de responsabilidade limitada, a despeito da integralização da respectiva participação social” – grifamos. (in Desconsideração da Personalidade Jurídica,  O Direito, 1990. vol. 1,  p. 08)
[22] In Extensión de la Responsabilidad de los Socios en las Sociedades de Capital en Virtud del ‘Disregard of the Legal Entity’. Revista del Derecho Comercial y de las Obrigaciones, p. 720. O autor refere que “cuando el patrimonio  de los socios no puede ser distinguido del patrimonio de la sociedad, se habla  de una confusión de patrimonios (Vermögensvermengung). Cuando, en cambio, la división  de la persona juridica y de sus miembros no se puede distinguir exteriormente, se habla de confusión de esfera (Sphärenvermischung). Este último caso se presenta cuando , por ej., el nombre, la organización (libros, cuenta bancária y bienes patrimoniales), la imputación patrimonial o las formalidades societarias no son cumpridas, y, por lo  tanto, no se puede reconocer si se está en presencia de un acto societario o de los socios. En tal caso, no pueden alegar los socios que ellos son proprietarios de los bienes que aparecen como sociales, o afirmar este caráter cuando aparecen como bienes privados”. Entendemos despicienda esta diferenciação apresentada pelo autor, pois, em ambas as situações identificadas – confusão de patrimônios e confusão de esferas – poderá haver a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica do ente societário e não poderão os sócios valer-se da oposição do dogma da separação patrimonial entre os bens da  pessoa jurídica e os de seus membros. Em situação semelhante, decidiu o TARS: “Incontrovertida a qualidade de controladora da agravante e a impossibilidade da controlada cumprir com a condenação judicial, correta a desconsideração da pessoa jurídica da controladora e sua inclusão no processo, como efetiva responsável pelo pagamento das dívidas da empresa que domina a controla, modo absoluto” (Ag. Inst. nº 195081294, 8ª Câm. Civ., Rel. Juiz  Alcindo Gomes Bittencourt).
[23] A ementa deste  acórdão  sintetiza a idéia nos seguintes termos: “como ficção útil da lei, a personalidade coletiva não pode isolar-se da personalidade dos sócios que a compõem, sob pena de fugir-se à realidade, mormente na época  que atravessamos, em que raras são as empresas comerciais  ou industriais em nome individual”. No corpo do acórdão, o relator argumenta que: “ Há, no caso, completa confusão do patrimônio da pessoa física do executado com o do embargante, o que resultou evidente prejuízo para quem contratou com aquele. Trata-se de bens encontrados no apartamento do executado, que não representa justificativa aceitável; são bens que não podiam ter sido adquiridos para um hospital, como a embargante (televisão, vitrola e geladeira doméstica). A embargante se organizou em sociedade anônima, cujo patrimônio se confunde com o do executado, que não quis  provar nem dizer quantas ações tem e quem é o maior acionista. Hoje em dia, a atividade comercial gira quase sempre em firmas coletivas. Há pessoas físicas que têm todo o seu patrimônio envolvido em diversas firmas. Individualmente nada possuem. em obrigações assumidas em nome individual, estariam os credores em inferioridade patente se se isolassem da garantia das obrigações assumidas, quer os bens quer as atividades do devedor associado a firmas. (…) A assertiva  de que a pessoa da sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios – é um princípio jurídico, mas não pode ser um tabu, a entravar a própria ação do Estado na realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude do juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao direito” (in RT 238/394) Cabe ressaltar que essa decisão data de  11.04.55 e nenhuma referência expressa faz à até então desconhecida entre nós, teoria da desconsideração da personalidade jurídica do ente societário.
[24] In obra citada, p. 362. Este autor informa que um outro critério utilizado  na Europa e nos Estados Unidos, para desconsiderar a  autonomia da pessoa jurídica de sociedades componentes de um grupo econômico, é o da confusão aparente de personalidades. O autor explica que “não apenas a confusão interna – isto é, quando  os administradores são comuns, as assembléias gerais reúnem-se no mesmo local e, praticamente, no mesmo horário; as empresas possuem departamento  unificados e os empregados recebem ordens, indistintamente, de várias administrações, não sabendo  ao certo para quem trabalham – mas também a confusão externa, ou seja, a sua apresentação perante terceiros”. O autor cita como exemplo uma decisão da  Corte de Cassação Francesa, de 11929,  em que foi reconhecida a confusão patrimonial, com a conseqüente extensão da responsabilidade  pelos débitos de uma sociedade a outra, considerando o fato de  as duas sociedades possuírem razões sociais praticamente idênticas,  a mesma sede social, mesmas sucursais, mesmo número de telefone e mesma assinatura em sua correspondência (p. 373/374).
[25] Fábio Konder Comparato  explica que “o interesse individual de uma sociedade é sempre subordinado  ao interesse geral  do complexo de empresas agrupadas. Com isso, são praticamente inevitáveis as transferências de um ativo  de uma sociedade à outra, ou uma distribuição proporcional de custos e prejuízos entre todas elas. O dilema do direito tradicional é, pois, muito claro: ou se aplicam, rigidamente, as normas editadas para o funcionamento de uma sociedade isolada, tornando ilegal ou abusiva essa confusão patrimonial, e condenando, portanto, o grupo econômico a uma vida à margem da norma jurídica; ou, ao contrário, suspende-se, completamente, a aplicação dessas normas, e, em conseqüência, os interesses, tanto dos não controladores quanto  dos terceiros credores, ficam ao desamparo” (in obra citada, p.376).
[26]  O art. 266 da Lei nº 6404/76 estabelece que “ As relações entre as sociedades, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação  dos administradores das sociedades filiadas serão estabelecidas na convenção do grupo, mas cada sociedade conservará personalidade jurídica e patrimônios distintos”. Clóvis do Couto e Silva, ao analisar o tema dos Grupos de Sociedades,  frisa que “ A Lei 6404, como tantas outras, não se inseriu, ainda, em sua totalidade, na praxe  judicial, de modo que sobrevivem muitos modelos jurídicos da anterior lei  de Sociedades Anônimas (D. L. 2.627/40) especialmente certos modelos teóricos e formas de raciocínio, como, por exemplo,  a concepção tradicional de pessoa jurídica. Essa sobrevivência  de conceitos é, na verdade,  tão importante que dificulta  ou até  mesmo impede se considerem  as sociedades controladas ou os credores como figurantes de uma relação fiduciária e, pois,  dela não se extrai nenhuma conseqüência jurídica superadora do  conceito tradicional de sociedade anônima” (in Grupo de Sociedades,  RT, vol. 647, p.21). Com o mesmo tom de crítica, em relação ao tratamento dispensado aos grupos de sociedades pela legislação espanhola, manifesta-se   Cristobal Molina Navarrete, in Persona Jurídica y Disciplina de los Grupos de Sociedades, Ed. Publicaciones del Real Colégio  de España, 1995, em especial na p. 145 e seguintes.
[27] Apenas para a exploração de algumas  atividades específicas, como seguradoras e instituições financeiras, entre outros casos, existe a determinação, em nosso sistema, de capital social mínimo.
[28] In Curso de Direito Comercial,  vol. II,  p. 173.
[29] In Curso de Direito Comercial, vol. II,   p. 173/174.
[30] In. Curso de Direito Comercial, v. II. p. 174.
[31] In O Novo Direito Societário, Malheiros, 1995, p. 90-91. O próprio autor reconhece, neste último caso, que a evidente dificuldade de produção de prova da subcapitalização simples faz com que, na maioria dos casos em que esta espécie é discutida, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade venha a ser negada.
[32] In obra citada, p. 91.
[33] Este autor refere que “o mais correto parece ser considerar a fixação do montante do capital como  componente da  ‘business judgement rule’ do sócio e admitir a desconsideração  somente nos casos em que a subcapitalização for extremamente  evidente (qualificada)” (In obra citada, p. 90-91).
[34] In obra citada, p. 91.
[35] In obra citada,  p. 370.
[36] Rachel Sztajn também faz referência à aplicação da teoria da desconsideração para atender a casos em que se percebe a insuficiente capitalização da sociedade comercial,  vinculando-a à idéia de boa-fé. Diz a autora “as regras desenvolvidas para a limitação de responsabilidade patrimonial dessas pessoas são as observâncias dos requisitos e das formalidades legais necessárias a  regular capitalização, de forma a não elidir obrigações existentes. Em outras  palavras, o agir de boa fé na constituição da pessoa jurídica, e não apenas observar as formalidades, é requisito  básico, infralegal para que os sócios das sociedades aproveitem a limitação  da responsabilidade patrimonial que decorre da personificação  da organização” (in obra citada, v.2, p 69).
[37]Apud Lamartine de Oliveira, A Dupla Crise da Pessoa Jurídica, Saraiva, 1979.p. 404. Georg Winter, também na doutrina alemã, embora deixando de considerar a limitação de responsabilidade um privilégio, desenvolve raciocínio que chega a conclusão similar. Diz este autor que ‘a limitação de responsabilidade é princípio  com que todos temos que conviver, pois só ele torna viável a existência da empresa de médio porte.  Longe de ser um ‘privilégio’, é um princípio da mais alta importância que também deverá  dominar  as regras jurídicas que venham  a compor o futuro Direito Empresarial geral. Mas é evidente  que só a existência  de regras jurídicas que assegurem  a existência de um patrimônio social mínimo (sobre o qual incidirão as pretensões dos credores) torna este princípio adequado ao tráfico jurídico e econômico. O fenômeno da subcapitalização é, por isso mesmo, da mais alta gravidade, já que põe em risco a própria justificação do instituto da responsabilidade limitada” (obra citada, p. 409).
[38] O autor alemão Herbert Wiedemann propôs que no direito germânico fosse adotada solução legislativa ciando uma limitação temporal de responsabilidade frente à subcapitalização, para combater a ‘mortalidade infantil’ das sociedades comercias. Na visão do autor, deveria haver um prazo de cinco anos, no qual o ente coletivo ficaria em observação:  ‘ se a sociedade conseguiu sobreviver durante cinco anos, e sobreveio a falência posteriormente, quando já superado este período crítico inicial, não se deveria supor, em caso de dúvida, tivesse nascido subcapitalizado’ (Apud Lamartine de Oliveira, A Dupla Crise da Pessoa Jurídica, p. 405).
[39] Vejam-se as seguintes ementas: “Sociedade comercial – Paralisação – Falta de bens – Inexistência de distrato – Penhora de bens de sócio – Cabimento – Embargos de Terceiro rejeitados. Admite-se a execução contra  um sócio, se a sociedade não mais exerce atividade, sem que tenha sido distratada, e não se encontrem bens de sua propriedade” (Ap. Civ. nº 10.470 – 3ª Câm. Civ. Rel. Des. Reynaldo Alves. TJSC); “Sociedade Comercial – Responsabilidade Limitada – Dissolução irregular – Responsabilidade dos sócios por dívidas da empresa – Admissibilidade de  incidência de penhora sobre seus bens pessoais – Inteligência dos arts. 596 do CPC e 2º da Lei 3.708/19. A determinação legal de  que os sócios não respondem pelas dívidas sociais (art.  596 do CPC) diz respeito a regular extinção da empresa e à regularidade das obrigações sociais. A irregularidade da atuação, constatada pelo desaparecimento da empresa sem a regular quitação de seus débitos, impõe outro entendimento, ou seja,  o de que o art. 2º da Lei 3.708/19 autoriza o alcance dos bens pessoais dos sócios para  completar o capital social que foi diluído pela má gestão dos negócios da sociedade”(RT/635, p. 225/226); “Sociedade comercial – Execução – Penhora  de bens particulares dos sócios – Admissibilidade – Empresa em situação irregular , cujos bens desapareceram – Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica – Declarações de voto vencedor e vencido. Estando a sociedade comercial em situação irregular, cujos bens desapareceram, mas aquela continua a existir, é justo que sejam penhorados bens de seus sócios, que bastem para o pagamento da dívida assumida pela empresa, aplicando-se no caso, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica”. ( RT/713, p. 95/98).

 


 

Informações Sobre o Autor

 

José Tadeu Neves Xavier

 

Advogado da União.
Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS, Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Professor na Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul – FEMARGS, Professor no Instituto de Desenvolvimento Cultural – IDC,
Professor na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS,
Professor na Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul – FESDEP.

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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