Resumo: O presente artigo tece algumas considerações a respeito da possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial do direito civil ao direito penal, nos casos de sursis, suspensão condicional do processo e livramento condicional, além da perda dos dias remidos diante da prática de falta grave, como forma de garantir a extinção da punibilidade ou a progressão regime, através de uma interpretação constitucional garantista, levando-se em consideração o falacioso sistema criminal brasileiro e o medievo sistema carcerário, em busca de uma harmonização com os direitos humanos, como forma de minimizar a violência institucional e maximizar a liberdade individual.[1]
Palavras-chave: Garantismo – Direitos fundamentais – Extinção da punibilidade – proporcionalidade.
Abstract: This presents article some considerations about the possibility of applying the theory of substantive due performance of civil law to criminal law in cases of probation, the probation process, and the loss of the days before the redeemed of serious misconduct, in order to guarantee the extinction of punishment or progression scheme, through a constitutional warranty interpretation, taking into consideration the fallacious Brazilian criminal system and the medieval prison system, seeking a harmonization with human rights as a way to minimize institutional violence and maximize individual freedom.
Keywords: Safeguard – Fundamental rights – extinction of punishment – proportionality. –
Sumário: 1. Introdução; 2. Breves considerações sobre o garantismo penal; 3. Os princípios da proporcionalidade ou razoabilidade; 3.1. A proibição do excesso (Übermassverbot). 4. Interesse de agir e justa causa para o exercício da ação penal; 5. A teoria do adimplemento substancial; 5. Sursis, suspensão condicional do processo, livramento condicional e falta grave e perda dos dias remidos; 6. Conclusão; 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O sistema prisional brasileiro retrata uma das maiores atrocidades de todos os tempos no nosso país. A história de horror das penas supera em muito o horror dos crimes (Ferrajoli). A desumanidade indescritível das prisões só é suportada pela sociedade brasileira, de forma resignada, em razão da irracionalidade da nossa forma (alienada) de viver na era da globalização da riqueza (para alguns) e da miséria (para milhões).[2]
Segundo o relatório preliminar da ONU – Organizações das Nações Unidas sobre prisões arbitrárias no Brasil, divulgado em 28/03/2013, foi apontado que presos no país tem pouco acesso à juízes e defensores públicos, situação que contribui para a manutenção de pessoas presas que já poderiam estar em liberdade. Ainda segundo o relatório, o Brasil possui cerca de 550 mil presos, sendo que as prisões possuem a característica de atingir principalmente as pessoas pobres, que não tem recursos para pagar um advogado e que, por isso, fica limitada no acesso à justiça (novidade?).[3]
Não é de hoje a crítica ao sistema criminal brasileiro, cuja política de carcerização vem sendo aplicada cada vez mais a cada dia. Um retrato dessa política pode ser visto no documentário “Bagatela”, onde o sistema “Law and Order” é destacado e aplicado com uma “maestria” ímpar pelo magistrado entrevistado Airton Vieira, da 4ª vara criminal de São Paulo, que demonstra uma preocupação com a paz social digna de prêmio nobel.
Pois bem. Em Utopia, de Thomas More, segue-se uma veemente crítica aos reis e à maneira como estes conduziam o poder. A ruína moral, o arrefecimento de valores essenciais pela corrupção e pela ganância econômica tem conduzido o uso do poder real para outros fins e, no discurso com o personagem Rafael Hitlodeu, quando este é questionado sobre quais seriam as melhores maneiras de sanar o problema do banditismo, das penas e do desemprego, percebe-se nítida a preocupação de que o egoísmo de poucos é a origem dos problemas de muitos.[4]
Um exemplo disso é visto na obra “O custo de Justiça”, de Leon Tolstoi, onde um crime de homicídio foi cometido nos domínios de um pequeno reinado pacífico, tendo sido o criminoso condenado à morte por decapitação, sentença esta confirmada pelo Rei. Porém, o reino não dispunha de uma guilhotina e um carrasco para dar cabo à execução.
Outros reinos foram consultados e estabeleceram um preço para o empréstimo do necessário à execução, mas o valor era muito alto para aquela pequena sociedade. O Rei então resolveu cancelar a pena de morte para aplicar a pena de prisão perpétua. Mesmo assim a situação não foi resolvida, pois a manutenção da prisão perpétua para aquele criminoso ainda gerava um alto custo para o reino. Solução: conceder a liberdade ao acusado.[5]
Mas ainda assim a situação não se resolveu, pois o condenado se recusava a deixar a prisão, alegando que não tinha para onde ir, já que a sentença tinha arruinado com seu caráter e todos darão as costas a ele e, por estar a um tempo preso, tinha perdido o hábito de trabalhar. Qual foi a solução encontrada? Pagar uma pensão mensal ao condenado para que ele fosse embora da prisão. E assim ocorreu.
Já se disse que a pobreza é um sintoma de desigualdades e relações desiguais de poder profundamente enraizadas, institucionalizadas por meio de políticas e práticas adotadas elo estado, pela sociedade e pela família. Pessoas frequentemente não tem dinheiro, terra ou liberdade porque são discriminadas com base em um ou mais aspectos de sua identidade pessoal – sua classe, gênero, etnicidade, idade ou sexualidade -, e essa discriminação restringe sua capacidade de reivindicar e controlar os recursos que lhes permitem fazer opções na vida.[6]
Como é fácil condenar alguém por delitos de furto, principalmente aqueles mais insignificantes. E como é difícil condenar alguém pelo crime de lavagem de dinheiro, mesmo aqueles mais insignificantes. Ações penais temerárias, milhares de denúncias (aceitas) por contravenções penais (que sequer foram recepcionadas pela nova Constituição); laudos periciais assinados por policiais e por “peritos leigos” validados por juízes e tribunais…eis um retrato de como as garantias processuais ainda estão longe de chegar ao andar de baixo da sociedade.[7]
Segundo SHECAIRA[8], globalização e exclusão são faces de uma mesma moeda:
“O mesmo fenômeno que cria processos globais inovadores, também transforma o mundo, com acento nos países subdesenvolvidos (ou eufemisticamente denominados em desenvolvimento) numa sociedade abissalmente desigual. As relações de emprego são totalmente alteradas e o valor social do trabalho é modificado por demandas internacionais. Nesse sentido BAUMAN ressalta: ‘Os desempregados eram o exército de reserva da mão de obra. (…) Já não acontece desse modo. Exceto nos nostálgicos e cada vez mais demagógicos textos da propaganda, os sem emprego deixaram de ser um exército de reserva de mão de obra. As melhorias econômicas já não anunciam o fim do desemprego. Atualmente racionalizar significa cortar e não criar empregos, e o progresso tecnológico e administrativo é avaliado pelo emagrecimento da força de trabalho, fechamento de divisões e redução de funcionários. Modernizar a maneira como a empresa é dirigida consiste em tornar o trabalho flexível – desfazer-se da mão de obra e abandonar linhas e locais de produção de uma hora para a outra, sempre que uma relva mais verde se divise em outra parte, sempre que possibilidades comerciais mais lucrativas, ou mão de obra mais submissa e menos dispendiosa acenem ao longe”.
Em seguida, SHECAIRA conclui que é mais barato excluir e encarcerar pessoas do que incluí-las no processo produtivo, transformando-as em ativas consumidoras, através da provisão de trabalho, permitindo-lhes uma qualidade de vida que cumpra a condição de dignidade constitucionalmente prevista.[9]
Partindo então de uma instituição política contaminada pela corrupção, de um sistema de governo pautado por interesses cada vez mais escusos e seletivos, de uma sociedade onde há o império da desigualdade e da pobreza, marcada pela ausência e deficiência na criação e estruturação de políticas públicas, na punição descontrolada de condutas de baixo ou nenhum impacto jurídico-social, “o latrocida, nos dias de hoje, virou bode expiatório, visto que a sua conduta é testemunhada por toda a sociedade, ao contrário dos criminosos de colarinho branco, frequentadores assíduos das colunas sociais, que são bajulados pela população, que se orgulha de, ao seu lado, tirar fotos promocionais[10]”.
Afinal, como já afirmou BARATTA, citando RUSCHE, a história do sistema punitivo vai além da história do desenvolvimento de algumas instituições jurídicas. É a história da relação entre duas “nações” que compõem os povos: os ricos e os pobres.[11]
Visando evitar um longo e árduo processo, num sistema criminal que mais viola as garantias constitucionais do que as observa (ao menos para os pobres), extremamente desigual e quase sempre parcial, visando evitar sanções desarrazoadas e desproporcionais (que só ocorrem na Suíça), assim como contribuir para impedir que novas vítimas do sistema penitenciário brasileiro sejam lançadas no “calabouço”, sustentaremos a aplicação da teoria do adimplemento substancial como medida de extinção da punibilidade, nos casos que o cidadão tenha adimplido, de tal e qual forma as condições que lhe foram impostas quando da concessão do sursis, da suspensão condicional do processo, do livramento condicional e da impossibilidade de perda dos dias remidos em razão da prática de falta grave, não mais se justificando a continuidade da intervenção estatal-repressora.
Dentro do sistema constitucional garantista, de tutela das liberdades individuais e efetivação dos direitos fundamentais, utilizaremos a doutrina do adimplemento substancial como medida de política criminal para afastar uma punição exagerada e eventual carcerização daquele que cumpriu de maneira tal e qual as condições impostas no sursis, na suspensão condicional do processo, no livramento condicional que não justifica sua revogação, bem como aquele que, próximo da progressão de regime, comete falta grave e tem declarada a perda dos dias remidos, em razão da proibição do excesso sob a ótica do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade.
2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O GARANTISMO PENAL
O direito penal, mesmo que cercado de garantias e limites, conserva sempre uma brutalidade intrínseca, tornando-se problemática e incerta sua legitimidade moral e política. A pena constitui uma segunda violência que se acrescenta ao delito. O poder de punir e julgar é, certamente, o mais terrível e odioso dos poderes, pois exercido de forma violenta e direta sobre a pessoa e que se manifesta numa relação conflituosa entre o Estado e o cidadão, entre autoridade e liberdade.[12]
Segundo Luiz Regis Prado, ao termo garantismo está impingida a ideia de segurança, proteção, tutela, acautelamento ou defesa de algo, consoante uma acepção linguística inicial e perfunctória e, adiante, afirma que a teoria do garantismo penal visa à estruturação de um modelo normativo que satisfaça as exigências de um Estado democrático de Direito – democracia substancial e não apenas formal – fundamentado no homem e na sociedade, servindo a estes como instrumento de garantia de seus direitos fundamentais, impondo limitações ao poder punitivo estatal corroborado por alguns princípios penais fundamentais como a legalidade e a taxatividade, a necessidade e humanidade das penas, a proporcionalidade, lesividade, culpabilidade etc., estendendo-se ao processo penal reforçando determinadas diretrizes de proteção do indivíduo diante do arbítrio estatal, tais como a garantia do juiz natural, a necessidade uma correta formulação da acusação, a redução das penas por meio das medidas alternativas e transações como forma de simplificação do processo, entre outras.[13]
FERRAJOLI concebe o direito penal como um sistema de garantias (conforme a tradição liberal iluminista) do cidadão perante o arbítrio realizável pelo Estado ou pelos próprios indivíduos, defendendo um direito penal mínimo, isto é, que se limite às hipóteses de absoluta necessidade, segundo os princípios de um direito penal e processual penal garantista: legalidade, lesividade, proporcionalidade, ampla defesa, dentre outros.[14]
Dentro desse contexto, FERRAJOLI formulou três acepções de garantismo: a) como um modelo normativo de direito; b) como teoria crítica, distinguindo o “ser” do “dever ser” (normatividade x realidade); c) como filosofia política.[15]
Na primeira acepção, é garantista todo sistema penal capaz de minimizar a violência e maximizar a liberdade (plano político) e limitar o poder de punir do Estado na garantia dos direitos do cidadão (plano jurídico), procurando distinguir o modelo constitucional e o funcionamento efetivo do sistema.[16] Assim:
“[…] Uma Constitución puede ser avanzadísima porlos princípios y los derechos que sanciona y, sin embargo, no passar de serun pedazo de papel si carece de técnicas coercitivas – es decir, de garantias – qiue pérmitan el control y la neutralización del poder y del derecho ilegítimo.”[17]
Assim, pode-se dizer que o grau de garantismo do sistema penal brasileiro é relativamente alto, quando se observa os princípios e garantias constitucionais, caindo a nível despótico quando se leva em consideração sua aplicação prática, mormente se o acusado é de origem marginal.
Na segunda acepção, FERRAJOLI afirma que a palavra garantismo expressa uma aproximação teórica que mantem separados o “ser” do “dever ser” no direito, e propõe, como questão teórica central, a divergência existente entre modelos normativos tendencialmente garantistas e práticas operativas tendencialmente anti-garantistas, interpretando-a mediante a antinomia que subsiste entre validade (e inefetividade) do primeiro e efetividade (e invalidade) do segundo. É o que denominou de teoria da divergência entre normatividade e realidade.
Ao final da explicação da referida acepção, conclui que “…la perspectiva garantista, por el contrario, invita a la duda, estimula el espíritu crítico y la incertidumbre permanente sobre la validez de las leyes y de sus aplicaciones, así como la consciência del carácter em gran medida ideal – y por tanto irrealizado y pendiente de realización – de sus próprias fuentes de legitimación jurídica”.[18]
Na terceira acepção, trata o garantismo como filosofia política, pressupondo a separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo, na valoração do ordenamento, isto é, entre “ser” e “dever ser” do direito.
Em suma, o Constitucionalismo garantista é marcado por uma renovação do paradigma positivista sobre o direito e a democracia, completando o modelo tradicional positivista (chamado por Ferrajoli de “paleo-jus-positivista”), como um sistema de limitações e vinculações materiais à normatividade positiva.
Pois bem. A característica essencial do Constitucionalismo é pautada na existência de uma normatividade posta, superior à legislação ordinária, sendo diversificadas as técnicas utilizadas para assegurar esta superioridade. Nesse sentido, há o modelo estadunidense de controle difuso, cujas origens remetem à estrutura federalista dos Estados Unidos, que leva à não aplicação das leis constitucionalmente inválidas, bem como o modelo europeu de controle concentrado, concebido em oposição aos regimes totalitários, que acarreta a anulação das leis que estejam em desacordo com a Constituição, e é com base nos direitos fundamentais que se fundamenta a dimensão substancial da democracia constitucional.[19]
O garantismo jurídico, portanto, baseia-se nas liberdades individuais oriundas da doutrina iluminista, com o objetivo de agregar instrumentos jurídicos para a limitação do poder soberano. Tal limitação do poder estatal não se restringe ao Poder Executivo, mas abrange os demais poderes, especialmente o Legislativo, que no contexto da doutrina garantista está limitado e balizado em seu conteúdo por marcos materiais e a aplicação do direito deve ser precedida da preliminar “oxigenação constitucional de viés garantista”, para aferição da constitucionalidade formal e material.[20]
E, segundo Alexandre Moraes da Rosa[21], essa é uma das tarefas do ator jurídico garantista no Estado Democrático de Direito: tutelar materialmente os direitos e garantias individuais e sociais, pois:
“A Constituição é uma disposição fundante da convivência e fonte da legitimidade estatal, não sendo vazio, mas uma coalizão de vontades com conteúdo materializado pelos Direitos Fundamentais. A história do constitucionalismo é a progressiva ampliação da esfera pública de direitos, de conquistas e rupturas. Em outras palavras, a Constituição, nessa concepção garantista, deixa de ser meramente normativa (formal), buscando resgatar o seu próprio conteúdo formador, indicativo do modelo de sociedade que se pretende e de cujas linhas as práticas jurídicas não podem se afastar”.
Em excelente dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação da PUC/RJ, intitulada “A efetividade das garantias do condenado no marco da intervenção penal em um estado democrático de direito: análise do método APAC de cumprimento da pena restritiva de liberdade”, Maria Antonieta Rigueira Leal Gurgel afirma que:
“As violações aos direitos fundamentais do cidadão condenado a uma pena privativa de liberdade deveriam envergonhar as sociedades brasileiras contemporâneas, que se intitulam democráticas de direito. Tais violações ocorrem ainda com mais frequência em países cuja desigualdade social é gritante, como o Brasil. Ocorre que pouco avanço foi percebido ao longo das últimas décadas, no que tange à formulação de políticas públicas para viabilizar soluções e alternativas ao modelo adotado, apesar de só ser possível conceber a existência e a execução da pena privativa de liberdade, no contexto do Estado Democrático de Direito, se ela possibilitar a efetivação das garantias fundamentais do preso, reconhecendo-o como sujeitos de direito”.[22]
E, guardando semelhança a segunda acepção de garantismo propugnada por FERRAJOLI (Teoria da Divergência), afirma a autora acima citada que o Estado mínimo só é diminuto nas questões sociais, escondendo suas falhas e promessas não cumpridas, por detrás de um Estado Penal Máximo, fazendo com que graves problemas de cunho eminentemente social passem a ser encarados e tratados como questões policiais, apresentando-se o Direito Penal não como a ultima ratio, mas sim como a primeira e única alternativa para a sua “pseudo-solução”. É a enchente punitivo-repressora, desabando sobre a modernidade e afogando todos aqueles que estão no seu caminho.[23]
3. OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE OU RAZOABILIDADE
O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade não está expresso na Constituição mas tem seu fundamento na ideia de devido processo legal substantivo e na de justiça. Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo, o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade permite invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito)[24].
O princípio pode operar também no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto[25].
Esta função é ressaltada por Paulo Bonavides, quando afirma que uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado[26].
Menciona-se que a distinção entre o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade situa-se apenas em sua origem, pois aquele surgiu no direito anglo-saxão, como face material da cláusula do due process of law, ao passo que o segundo desenvolveu-se a partir da doutrina alemã, evoluindo a partir do direito administrativo, como mecanismo de controle dos atos do Executivo.
Afirma CANOTILHO[27] que com relação ao princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, também chamado de princípio da exigibilidade (ou princípio da necessidade ou da menor ingerência possível) é colocada a tônica na ideia de o cidadão ter direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão.
Por essa razão, torna-se imperioso que o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade seja analisado à luz dos métodos de interpretação constitucional, bem como à luz de outros princípios constitucionais, a fim de aplicar a norma ao caso concreto, sempre homenageando a força normativa da Constituição. A título de exemplo, citamos a seguinte ementa do Supremo Tribunal Federal (RE 443388/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, DJE 10/09/2009):
“DIREITO PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 180, § 1°, CP. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. DOLO DIRETO E EVENTUAL. MÉTODOS E CRITÉRIOS DE INTERPRETAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA PENAL. IMPROVIMENTO. 1. A questão de direito de que trata o recurso extraordinário diz respeito à alegada inconstitucionalidade do art. 180, § 1°, do Código Penal, relativamente ao seu preceito secundário (pena de reclusão de 3 a 8 anos), por suposta violação aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização da pena. 2. Trata-se de aparente contradição que é resolvida pelos critérios e métodos de interpretação jurídica. 3. Não há dúvida acerca do objetivo da criação da figura típica da receptação qualificada que, inclusive, é crime próprio relacionado à pessoa do comerciante ou do industrial. A ideia é exatamente a de apenar mais severamente aquele que, em razão do exercício de sua atividade comercial ou industrial, pratica alguma das condutas descritas no referido § 1°, valendo-se de sua maior facilidade para tanto devido à infraestrutura que lhe favorece. 4. A lei expressamente pretendeu também punir o agente que, ao praticar qualquer uma das ações típicas contempladas no § 1°, do art. 180, agiu com dolo eventual, mas tal medida não exclui, por óbvio, as hipóteses em que o agente agiu com dolo direto (e não apenas eventual). Trata-se de crime de receptação qualificada pela condição do agente que, por sua atividade profissional, deve ser mais severamente punido com base na maior reprovabilidade de sua conduta. 5. Não há proibição de, com base nos critérios e métodos interpretativos, ser alcançada a conclusão acerca da presença do elemento subjetivo representado pelo dolo direto no tipo do § 1°, do art. 180, do Código Penal, não havendo violação ao princípio da reserva absoluta de lei com a conclusão acima referida. 6. Inocorrência de violação aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização da pena. Cuida-se de opção político-legislativa na apenação com maior severidade aos sujeitos ativos das condutas elencadas na norma penal incriminadora e, consequentemente, falece competência ao Poder Judiciário interferir nas escolhas feitas pelo Poder Legislativo na edição da referida norma. 7. Recurso extraordinário improvido.”
O princípio da proporcionalidade/razoabilidade, em um Estado Democrático de Direito, deve atuar como instrumento de realização das normas e princípios positivados no texto da Constituição Federal, a fim de tutelar os direitos fundamentais presentes em determinado caso concreto, ora em prol do indivíduo, ora em prol da coletividade, visando coibir, principalmente, os excessos.
3.1. A proibição do excesso (Übermassverbot)
É possível que o vício de inconstitucionalidade substancial decorrente do excesso de poder legislativo constitua um dos mais tormentosos temas do controle de constitucionalidade hodierno. Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade, isto é, de se proceder à censura sobre a adequação e a necessidade do ato legislativo.[28]
A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se ratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.[29]
Constatando a existência de outras medidas menos lesivas aos direitos dos cidadãos, a revogação do sursis, da suspensão condicional do processo, do livramento condicional e a decretação da perda dos dias remidos em razão do cometimento de falta grave, diante do adimplemento substancial, infringirá o postulado da proporcionalidade ou proibição do excesso e será inconstitucional, pois o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medidas que se revela a um só tempo adequada e menos onerosa, como seria o caso, por exemplo, da extinção da punibilidade pelo adimplemento substancial das condições impostas na suspensão condicional do processo.
Afinal, num sistema penitenciário como o brasileiro, ao preso que comete falta grave (participar de um motim, por exemplo) apenas a uma semana de fazer jus à progressão, não seria crível declarar a perda dos dias remidos e fazer com que o mesmo continue no cárcere. E nem se diga, neste caso, que sob o viés da proibição da proteção insuficiente, por exemplo, não poderia progredir, pois nada impede a regressão de regime, se o caso, após a progressão.
Portanto, a proibição do excesso, diante do princípio da proporcionalidade, tendo em conta o adimplemento substancial, revela-se como medida adequada e necessária para a salvaguarda e efetivação dos direitos fundamentais insculpidos na constituição, máxime em face do medieval sistema penitenciário brasileiro e do completo desinteresse estatal na implementação de políticas públicas a fim de reduzir as desigualdades social (afinal, esse não é um objetivo da república?).
4. INTERESSE DE AGIR E JUSTA CAUSA PARA O EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL
A ideia de interesse de agir ou interesse processual está relacionada à utilidade da prestação jurisdicional que se pretende obter com a movimentação do aparato judiciário. Deve-se demonstrar, assim, a necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário para a obtenção do resultado pretendido, independentemente da legitimidade da pretensão. A fim de se verificar se o autor tem ou não interesse processual para a demanda, deve se questionar se, para obter o que pretende o autor, é efetivamente necessária a providência jurisdicional pleiteada[30].
Segundo parte significativa da doutrina, o interesse de agir deve ser analisado sob três aspectos distintos: a necessidade de obtenção da tutela jurisdicional pleiteada; a adequação entre o pedido e a proteção jurisdicional que se pretende obter; e a utilidade, que se traduz na eficácia da atividade jurisdicional para satisfazer o interesse do autor.[31]
Assim, no processo penal, o interesse de agir é aferido pelo binômio interesse-necessidade e interesse-utilidade.
Nesse aspecto, a “justa causa” é amplamente considerada como condição da ação no âmbito do direito processual penal e tratada como: a) parte do interesse de agir; b) uma quarta condição genérica da ação, juntamente com a legitimidade de agir, a possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir; c) uma quarta condição genérica da ação, juntamente com a tipicidade aparente, a punibilidade concreta e a legitimidade de agir.[32]
Independente da ótica que se olha para o interesse, inclusive para aqueles que se posicionam no sentido de que o interesse de agir não é aplicável ao processo penal, o descumprimento das condições do sursis e da suspensão condicional do processo, diante, por exemplo, do adimplemento substancial daquelas condições, deve obstaculizar o exercício da ação penal, ante a ausência de justa causa em razão da perda do interesse de agir.
E a justa causa aqui deve ser olhada por outro ângulo e não naquele consistente no fundamento probatório razoável para sustentar a acusação ou a probabilidade da condenação pois não está somente ligada ao conjunto probatório mínimo, mas vinculada a questões processuais, ligadas ao interesse de agir.
Conforme afirmado por DENILSON FEITOZA[33]: “O processo penal não pode se prestar a ser um lugar de retórica. A simples instauração de um processo penal gera consequências graves para a liberdade do réu. Para exemplificar, o réu pode estar sujeito a buscas domiciliares, conduções coercitivas, prisão temporária, prisão preventiva, recolhimento à prisão para apelar etc. Uma viagem programada para um outro estado ou país pode acabar acarretando uma prisão preventiva do réu, pelos simples fato de a autoridade competente não ter tido ciência de que se tratava de uma viagem corriqueira. A simples mudança de residência para outro estado também pode ter o mesmo resultado […] A dignidade da pessoa humana e a liberdade individual, constituindo-se em aspectos fundamentais da República Federativa do Brasil, devem encontrar uma realização efetiva, real, material no âmbito do direito processual penal”.
Levando em consideração, portanto, que o instituto da suspensão condicional da pena, por exemplo, tem por objetivo impedir as mazelas da prisão de curta duração, não é crível que o descumprimento mínimo de alguma condição imposta durante o período de prova possa impedir a extinção da pena, diante da perda superveniente da justa causa, faltando o interesse-necessidade para continuidade da ação penal.
5. A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
A substancial performance teve origem no direito inglês, no século XVIII, com o objetivo de superar os exageros do formalismo exacerbado na execução dos contratos em geral. Adimplemento, em sentido estrito, indica cumprimento da obrigação. Por vezes também é chamado de pagamento, implemento, solução, satisfação, quitação. A teoria do adimplemento substancial analisa a obrigação em seu aspecto essencial, e não secundário, examinando, no caso concreto, se a obrigação foi cumprida em seus pontos relevantes, importantes, essenciais, não valorizando elementos de somenos importância.
Referida teoria, avalia, portanto, o grau de "descumprimento" da obrigação em toda sua extensão, e não de maneira isolada ou com base na literalidade de certas condições impostas, atuando como instrumento de equidade diante da situação fático-jurídica subjacente, permitindo soluções razoáveis e sensatas, conforme as peculiaridades do caso.
Segundo ALVES JONES FIGUEIREDO[34], quando se trata de inadimplemento contratual, pode-se apresentar três situações distintas:
a) Inadimplemento relativo: embora tardio, o cumprimento da obrigação ainda é possível;
b) Inadimplemento absoluto: o descumprimento da obrigação inviabiliza a manutenção posterior do contrato, não restando outra alternativa senão a resolução da avença;
c) Inadimplemento insignificante: o descumprimento da obrigação atinge proporção mínima, não atingindo os efeitos esperados pelo contrato.
Quando se está diante do inadimplemento insignificante, numa situação em que o devedor não cumpre parcela pífia de sua obrigação e se ínfimo, insignificante ou irrisório o "descumprimento" diante do todo obrigacional não seria crível resolver o contrato, já que os efeitos pretendido pelas partes permanecem intactos frente ao inadimplemento insignificante.
Sendo assim, na hipótese de descumprimento de alguma das condições impostas na suspensão condicional do processo, por exemplo, diante de um adimplemento tão próximo do resultado final, exclui o interesse de punir do Estado, sendo de rigor a declaração da extinção da punibilidade do agente, pois não seria crível que ao réu seja concedido um benefício e, diante do cumprimento quase totalitário das condições que lhe fora imposta, deva responder uma ação penal.
A lei penal não pode sofrer de transtorno bipolar! (ou tudo ou nada). Em outras palavras: ou o acusado cumpre todas as condições impostas ou o benefício será revogado.
Diante do sistema de garantias preconizados pela Constituição Federal, o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade não está expresso na Constituição mas tem seu fundamento na ideia de devido processo legal substantivo e na de justiça. Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema.
Vê-se que a aplicação da teoria do adimplemento substancial, sob a ótica do princípio da proporcionalidade-razoabilidade, diante do insignificante descumprimento pelo réu de condições que lhe foram impostas no sursis processual, é suficiente para declarar a extinção da punibilidade do mesmo.
Importa destacar que o "adimplemento substancial" se contrapõe ao "inadimplemento fundamental". Neste último, é de rigor a revogação do benefício concedido ao réu, porquanto, efetivamente, há descumprimento das condições em seus elementos primordiais, inclusive com a frustração das legítimas expectativas do Estado que instituiu tal benefício ao réu que preencheu os requisitos da Lei.
Exemplo: a determinado sujeito é concedido sursis processual, com imposição de determinadas obrigações. Após o cumprimento de 90% (noventa por cento) das obrigações impostas, o sujeito deixa de cumprir apenas uma, , consistente no comparecimento em juízo pela última para justificar suas atividades. Não comparece. É intimado para justificar o descumprimento. Não justifica. O benefício então é revogado, e é dado continuidade à ação penal. Não seria crível determinar a extinção da punibilidade ante o “adimplemento substancial” das condições impostas? Não foi cumprida a finalidade essencial do instituto beneficiador?
Com base nestas premissas, pode-se dizer que, para a configuração do adimplemento substancial, nas hipóteses aqui colocadas, são necessários os seguintes pressupostos:
“i) cumprimento expressivo das condições impostas diante da análise das circunstâncias judiciais favoráveis ao acusado;
ii) condições realizadas pelo acusado que se aproxime da finalidade do benefício concedido; e
iii) boa-fé objetiva no cumprimento das condições impostas, ou seja, até o momento do descumprimento o réu vinha agindo de forma efetiva, concreta, sem frustrar ou criar embaraços ao normal cumprimento das condições.”
Impende abrir um parêntese para lembrar de um instigante estudo sobre Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo, em que desnuda as origens ideológicas de polêmica entre causalismo e finalismo, onde Francisco Muñoz Conde refere-se aos chamados “juristas terríveis” (furchtbare Juristen), assim designados pela sua colaboração com o nacional-socialismo, ao exercerem papéis destacados na política, na administração da justiça ou mesmo ensino jurídico.[35]
Muitos destes juristas distinguiram-se por terem proferido sentenças especialmente duras no exercício da função jurisdicional, não raras vezes resultando em pena de morte ou internação em campos de concentração, por fatos de escassa gravidade ou importância, evidenciando até onde pode chegar a perversão dogmática ao utilizar-se de um discurso técnico pretensamente neutro, atrelado a um positivismo legalista e formalista.
Colocada em risco a democracia e enfraquecido o papel do Estado na sua condição de promover e assegurar os direitos fundamentais e as instituições democráticas, a própria noção de cidadania como direito a ter direitos encontra-se sob grave ameaça, implantando-se, em maior ou menor grau, aquilo que Boaventura Santos denominou de “fascismo social”.
A partir das alarmantes estatísticas em termos de avanços na criminalidade, percebe-se, sem maior dificuldade, que à crise de efetividade dos direitos fundamentais corresponde também uma crise de segurança dos direitos, no sentido do flagrante déficit de proteção dos direitos fundamentais assegurados pelo poder público, no âmbito dos seus deveres de proteção[36].
A crise dos direitos fundamentais não se restringe mais a uma crise de efetividade, mas alcança inclusive a esfera do próprio reconhecimento e da confiança no papel exercido pelos direitos fundamentais numa sociedade genuinamente democrática. Constata-se, assim, infelizmente, uma progressiva descrença nos direitos fundamentais, ao menos a partir da ótica da massa de excluídos, ou passar a ser encarados como verdadeiros “privilégios” de certos grupos (basta apontar para a oposição entre os “sem-terra” e os “com terra’, os “sem-teto” e os "com teto", bem como os "com-saúde" e os "com-educação” e os que aos mesmos não têm nenhum acesso ou acesso precário e, principalmente, entre os “pobres” e os “abastados”).[37]
A discussão em torno das funções e limites do direito penal num Estado Democrático de Direito passa inquestionavelmente por uma reavaliação da concepção de bem jurídico e o seu devido redimensionamento à luz da nossa realidade (fática e normativa) constitucional (que é a de uma Constituição comprometida com valores de cunho transindividual e com a realização da justiça social), o que, por sua vez, nos remete à problemática dos deveres de proteção do Estado na esfera dos direitos fundamentais e aos contornos possíveis de uma teoria garantista (e, portanto, afinada com as exigências da proporcionalidade) do Estado, da Constituição e do Direito Penal.[38]
O princípio da proporcionalidade-razoabilidade, então, sob a ótica da proibição do excesso, traduz-se na impossibilidade de o Estado agir excessiva ou abusivamente na consecução de suas finalidade, ocorrendo na hipótese do adimplemento substancial das condições impostas ou da proximidade em se obter a progressão de regime caso não haja perda dos dias remidos em razão da prática de falta grave.
O adimplemento substancial, sob a ótica da proporcionalidade e da proibição do excesso deve ser utilizado como espécie de readequação dos fatos, de tal modo a adequar a sanção prevista ao caso concreto e suas peculiaridades, diante do sistema de garantias instituído com a Constituição Federal.
Voltando ao exemplo acima mencionado, qual o interesse do Estado em punir o réu daquela ação penal, diante do descumprimento de apenas e tão somente 10% (dez por cento) das condições impostas, consistente num último comparecimento em juízo para justificar suas atividades?
O Estado perdeu seu interesse. Não haverá justa causa para o desenrolar da ação penal, sob pena de cometimento de excessos, sendo de rigor a declaração da extinção da punibilidade, não podendo a lei penal ser interpretada em sua literalidade, deixando-se de lado toda uma realidade de práticas violadoras por parte do Estado dos direitos e garantias fundamentais, especialmente no que tange ao cumprimento das garantias mínimas previstas na Lei de Execução Penal.
Respeitados então, os três parâmetros mínimos elencados, deve-se analisar se o caso concreto se amolda à possível incidência da teoria do adimplemento substancial em atenção ao sistema constitucional de garantias.
5. SURSIS, SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO, LIVRAMENTO CONDICIONAL E REMIÇÃO DA PENA.
Antes de qualquer coisa, importa distinguir os institutos em apreço.
Sursis significa suspensão condicional da pena e tem por finalidade evitar a execução da pena de prisão de curta duração. Cuida, dessa maneira, de medida alternativa e ao mesmo tempo de um benefício, porque consiste numa execução mitigada da pena de prisão (STF, HC 77.724/SP). Isso porque, como se sabe, e principalmente no Brasil, a pena de prisão não ressocializa, ao contrário, dessocializa. Logo, quanto menos for utizada, menor o risco de piorar o condenado e mesmo que a prisão fosse ressocializadora, com certeza uma pena de curta duração não seria suficiente para o desenvolvimento de nenhum trabalho sério de recuperação.[39]
O sursis difere da suspensão condicional do processo, prevista no artigo 89 da Lei 9.099/95, chamada de sursis processual, pois nesta, o processo fica suspenso desde o início, caso o acusado concorde em cumprir determinadas condições.[40]
Já o que caracteriza o livramento condicional é a possibilidade de o condenado ser liberado sob certas condições depois de cumprir efetivamente parte da pena de prisão. É incidente da execução penal e faz parte do sistema progressivo de penas privativas de liberdade e, de outro lado, é medida alternativa que visa a reintegração do condenado à sociedade.[41]
A diferença entre o sursis e o livramento condicional reside no fato de que, no sursis o condenado não vai para o cárcere e já começa o período de prova e no livramento condicional o condenado vai para o cárcere, cumpre parte da pena e só depois consegue a liberdade e, no primeiro, o período de prova vem determinado pela lei em limites certos e, no segundo, é o tempo restante da pena (portanto, variável).[42]
Quanto à remição da pena (artigos 126 a 129 da Lei de Execuções Penais), o condenado que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto, tem o direito de remir (abater, resgatar) parte do tempo de execução da pena à razão de um dia de pena por três dias de trabalho (externo ou interno) ou um dia de pena a cada doze horas de frequência escolar, divididas, no mínimo, em três dias.
Feitas as distinções básicas entre os institutos do sursis, da suspensão condicional do processo, do livramento condicional e da remição da pena pelo trabalho ou estudo, passemos então a analisar como o adimplemento substancial poderia incidir in dubio pro reu em cada caso. Vejamos:
Observadas as condições previstas nos incisos do artigo 77 do Código Penal, a execução da pena privativa de liberdade não superior a dois anos poderá ser suspensa por dois a quatro anos e, no primeiro ano do prazo, deverá o condenado prestar serviços à comunidade ou se submeter à limitação de fim de semana (§1º, artigo 78, CP), podendo tais exigências serem substituídas na hipótese e condições previstas no §2º do artigo 78 do Código Penal.
Pois bem. Após o cumprimento da quase totalidade das condições impostas (digamos, noventa por cento) o condenado deixa de comparecer em juízo para informar e justificar suas atividades (Art. 78, §2º, “c”, do CP), bem como não justifica os motivos do descumprimento. Resta então revogar o benefício. Mas, diante desse descumprimento insignificante, ainda que injustificado, o condenado faz jus à extinção da pena, diante do adimplemento substancial das condições que lhe foram impostas, ainda que não cumpridas em sua totalidade, mas que o foram em sua finalidade essencial.
O mesmo raciocínio também se aplica ao descumprimento das condições impostas na suspensão condicional do processo, prevista no artigo 89 da Lei 9.099/95 e livramento condicional (caso haja o descumprimento, por exemplo, das condições previstas no artigo 132 da LEP).
No caso perda dos dias remidos em razão da prática de falta grave[43], preceitua o artigo 127 da Lei de Execuções Penais que o juiz poderá revogar até um terço do tempo remido.
O simples cometimento de falta grave não pode acarretar na perda dos dias remidos. Por exemplo: aquele que possuir aparelho celular dentro do presídio, comete falta grave. Mas se o condenado, diante da remição da pena, estiver apenas a alguns dias de progredir para o regime semiaberto, a teoria do adimplemento substancial deve incidir para que não seja obstaculizada a progressão. Diferente do condenado que tenta fugir do estabelecimento, mesmo se estiver a um dia de progredir. Há faltas e faltas que devem ser analisadas e sopesadas diante do caso concreto e, em sendo a progressão a mais recomendada, deve ser aplicada.
6. CONCLUSÃO
Finalizando, podemos então reconhecer e aplicar a "Teoria do Adimplemento Substancial" na esfera criminal, partindo da Constituição (princípios da proporcionalidade-razoabilidade, proibição do excesso, garantismo), estando em perfeita sintonia com os princípios e valores que norteiam o sistema jurídico contemporâneo, mecanismo de materialização da justiça criminal.
O mesmo Estado que pune com rigor, mesmo aquelas condutas mais insignificantes é o mesmo Estado violador dos direitos humanos e de todo sistema de garantias insculpidos na Constituição Federal.
O sistema penitenciário brasileiro é medieval e os que lá estão não podem ser tratados como “bruxas” perseguidas pela inquisição. O sistema de garantias implica que, diante de determinadas situações, aquele que adimpliu substancialmente com suas obrigações não seja levado ao cárcere e nem tenha nele seus dias postergados partindo sempre das três premissas acima mencionadas: (i) cumprimento expressivo das condições impostas diante da análise das circunstâncias judiciais favoráveis ao acusado; (ii) condições realizadas pelo acusado que se aproxime da finalidade do benefício concedido; e (iii) boa-fé objetiva no cumprimento das condições impostas, ou seja, até o momento do descumprimento analisar se o acusado ou condenado vinha agindo de forma efetiva, concreta, sem frustrar ou criar embaraços ao normal cumprimento das condições.
Feita essa análise, proibindo-se os excessos e, num juízo de proporcionalidade em respeito às garantias constitucionais, pode-se chegar ao mesmo fim que o cumprimento total das condições acarretaria, evitando, com isso, aumentar ainda mais a aplicação já desenfreada da política de carcerização adotada pelo sistema criminal brasileiro.
E tudo isso pode ser ainda interpretado com o conjunto de princípios e objetivos estatuídos pelas Regras de Tóquio sobre Penas e Medidas Alternativas, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas por meio da Resolução 45/110, de 14 de dezembro de 1990 que possui, como objetivo principal e fundamental, promover o emprego de medidas não privativas de liberdade, pretendendo estimular a criação, aplicação e execução de penas e medidas alternativas à prisão.
Na regra 14.3, proclama-se que: “O insucesso de uma medida não-privativa de liberdade não deve implicar automaticamente na imposição de medida privativa de liberdade”.
Portanto, a aplicação da teoria do adimplemento substancial no direito penal pode contribuir para que excessos sejam evitados, impedindo uma carcerização desnecessária, atentando-se a cada caso concreto e suas peculiaridades, pois:
“A prisão é um produto caro e reconhecidamente não ressocializa. Pelo contrário, dessocializa. Em razão da superpopulação, dos seus métodos e da sua própria natureza, é desumana e cruel; corta o vínculo com a comunidade, com a família, com o trabalho, com a educação etc. Há séria dúvida, por tudo isso, sobre se cumpre ou não seu papel de intimidação. Particularmente no que se relaciona com o sistema prisional brasileiro, ainda há que destacar: os presos não são separados por idade, natureza da infração, condição processual, praticamente nenhuma é a assistência médica, odontológica etc., sentem-se frustrados com o funcionamento da Vara das Execuções Criminais […] É, em síntese, fonte de um sem número de ilegalidades, que são toleradas e muitas vezes até estimuladas, sem respeito aos direitos humanos fundamentais”.[44]
Advogado. Pós-graduando em Direito Civil pelas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU; Aluno especial no Mestrado em Direito Negocial na Universidade Estadual de Londrina – UEL
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