A transmissão dolosa da AIDS: a consciência da sociedade frente à dogmática jurídica atual

“- Agora olhe para o rio, para as arvores, para os pássaros, olhe para toda a natureza a sua volta. E imagine até que o que você não consegue ver, os peixes dentro do rio, as formigas no chão, os insetos nas flores…E pense que tudo isso está vivo, vivo sobre a terra. Pense profundamente nisso.


Engraçado não é? Parece uma coisa tão óbvia, mas até então eu nunca tinha parado pra pensar naquilo. Ainda mais assim, pensando, pensando…Comecei a sentir uma energia diferente, uma coisa bem forte. Caramba, quanta vida tinha por ali, era mágico. Ele continuou:


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– Agora respire fundo outra vez e pense que, como o rio, como a árvore, as flores, os bichos, você também está viva e é mais um deles sobre a terra. Você faz parte de tudo isso.


Eu-estou-viva. Você já parou pra pensar nisso algum dia? Então, pare. Tire tudo da sua cabeça e só pense nisso, mas bem fundo. Nós estamos vivos! Comecei a rir, joguei a cabeça pra trás e deitei.


– Que isso, Valéria, ficou louca?


– Não. Mas é que é uma sensação muito boa. I Am alive!


-Agora me diz, não é um milagre?


– É. Todos nós somos um milagre.”


(Trecho do livro “depois daquela viagem”, de Valéria Polizzi)


Síndrome da imunodeficiência Adquirida; este é nome oficial, adotado pela comunidade cientifica, que identifica, no rol das doenças, a AIDS. Para quem a conhece de perto, a tradução vem em forma de doenças oportunistas, silenciosas, acompanhadas de um diagnóstico assustador. O ataque sorrateiro do vírus HIV no organismo do contaminado só não é pior do que uma coisa: o preconceito que vem como “brinde”. Conviver com uma expectativa de vida natural diminuída, não se sabe por quanto tempo, esperar pela manifestação dos sintomas, temer qualquer sinal de gripe – pensando que pode ser o princípio de uma pneumonia ou tuberculose, ficar preso o resto da vida à drogas experimentais e à companhia constante do fantasma da morte deve certamente ser no mínimo comparável à sensação de exclusão, à de estar inserido no estigma de “incurável”.


Embora hoje a ciência tenha evoluído bastante, infelizmente a cura ainda não chegou. Por mais eficazes que sejam os coquetéis, por mais que a expectativa de vida dos contaminados aumente a cada dia, a AIDS ainda é considerada mortal. É triste dizer que, mais cedo ou mais tarde, o portador não conseguirá vencer os males acarretados pela sua baixa imunidade.


Obviamente, isso ocorrerá com todos nós: um dia, todos vão morrer, e não temos como evitar.Todavia, quando existe embutido no organismo um vírus incurável, a morte se torna uma infeliz determinante, e o indivíduo vive em função de um amanhã incerto e obscuro, mais do que aquele que não é portador. É como se vivesse à beira do precipício, podendo despencar a qualquer momento, e a paz se faz distante de seu âmago.


Baseada nesta idéia, de que o individuo contaminado vive lado a lado com a angústia, é que a sociedade vem se solidarizando com a causa. Desde os tempos da descoberta da doença, no inicio da década de 1980, não faltam ONGs, políticas públicas e programas de conscientização, no sentido de evitar a propagação do vírus, bem como informar sobre a convivência com este, no período pós-contágio. E, como não podia deixar de ser, os poderes públicos, impulsionados pelo clamor social, vêm cada vez mais se mobilizando para empregar as idéias fermentadas no seio da sociedade. É a força do povo que move o Estado, bem se sabe; é de pilar importância que aquela se manifeste em prol da observância da qualidade de vida do contaminado, sem a qual evoca-se inevitavelmente um problema de saúde publica – dado o caráter de epidemia que hoje reveste a propagação da AIDS.


Há que se frisar que o Estado de Direito, embora dinâmico, é de natureza intrinsecamente reativa; ele funciona em resposta ao impulso social. A sociedade, por sua vez, é a mola propulsora e, seus anseios, a energia para a propulsão. Ou seja, é uma cadeia circular: a sociedade deseja, exige, O estado reage e responde, e esta resposta se reflete na própria sociedade. Seguem algumas colocações da Civilista Maria Helena Diniz, que ajudam a chegar a uma melhor percepção; vejamos:


“Percebe-se que o Direito só pode existir em função do homem. O ser humano é gregário por natureza, não só pelo instinto sociável, mas também por força de sua inteligência, que lhe demonstra que é melhor viver em sociedade para atingir seus objetivos. O homem é essencialmente coexistências, pois não existe apenas,mas coexiste, isto é,vive necessariamente em companhia de outros indivíduos. Com isso, espontânea e até conscientemente, é levado a formar grupos sociais. (…)


Como o ser humano encontra-se em estado convivencial, é levado a interagir; acha-se sob a influencia de alguns homens e esta sempre influenciando outros. E como toda interação perturba os indivíduos em comunicação recíproca, para que a sociedade possa conservar-se é preciso delimitar a atividade das pessoas que a compõem, mediante normas jurídicas.”(DINIZ,Maria Helena. – , p. 242;243)


No âmbito do Poder Judiciário, enfoque especial deste artigo, grande tem sido o avanço no sentido de viabilizar os direitos dos portadores de HIV/ AIDS, muitas vezes ausentes de nossa legislação, não por esquecimento do legislador, mas por defasagem temporal das leis vigentes e demora no processo de atualização por meio de novas leis. O nosso Código Penal, por exemplo, data de 1940, época em que não havia incidência da AIDS, ou, conforme for, não havia esta sido descoberta até então.


Entretanto, o Direito, como bem se sabe, não é uma ciência exata, e permite, na busca do justo, que se utilizem vias alternativas. E assim as chamadas fontes formais do Direito, encabeçadas por seus princípios gerais, e as formas de auto-integração da lei, como a equidade e a analogia, respectivamente, bem como os seus desdobramentos, como a interpretação extensiva, acrescentam forças à luta pela dignidade daqueles que, diante das circunstâncias, já perderam tanto.


É cediço que, se houver realmente uma vitima no contexto da epidemia, seria o portador do vírus; é ele, afinal, quem vive a peleja. Porém, a natureza do ser humano é falha, passível de se corromper frente a sentimentos menores, como o ódio, o rancor, a vingança. É sob este prisma que o presente discurso se desenvolve: Quando o portador passa de vitima a vilão, querendo disseminar a epidemia dolosamente, ou seja, de forma consciente, como puni-lo? Qual a posição da sociedade frente a este comportamento? Como os operadores do Direito, agindo em reflexo ao impulso social, têm se manifestado a respeito?


Enquanto aguarda a edição de novas leis, já em tramitação há tempos, por sinal, a comunidade jurídica tem se preocupado com esta problemática. Diante da omissão legislativa, juízes e juristas têm se apegado principalmente à analogia para resolver dissídios pendentes. A transmissão consciente, de forma dolosa, do vírus HIV, talvez não seja a única questão a ser debatida, mas, no âmbito do direito penal, certamente é a mais inquietante. Isso porque a discussão se acalora diante do impasse que nem mesmo a medicina parece resolver de forma pacífica: A AIDS é ou não uma doença mortal? Uma vez que ela é uma moléstia incurável, seria a transmissão consciente uma tentativa de homicídio, ou mesmo um homicídio propriamente dito, haja visto que o individuo irá padecer e falecer finalmente, mesmo que os coquetéis prolonguem sua vida?


Hoje, a doutrina especializada e o comportamento dos tribunais se direcionam no sentido de que o mais viável seria enquadrar a conduta como sendo o delito descrito no artigo 131 do Código Penal, que se refere ao crime de perigo de contágio de moléstia grave- a AIDS não é considerada doença venérea, dada a variedade dos veículos de contaminação, cuja pena é a de reclusão, de um a quatro anos,e multa. O artigo, porém, só alcança o perigo de contágio.


Os penalistas, em sua esmagadora maioria, hoje, acreditam que, caso ocorra a contaminação, a conduta de transmissão, de forma dolosa e consciente do vírus HIV, configura o delito descrito no artigo 121 do Código penal – homicídio. A partir desta linha de raciocínio se desenvolvem outras tantas, como bem nos lembra o jurista João José Caldeira Bastos: “Há Jurisprudência para todos os gostos. Com uma boa retórica se consegue justificar, inclusive, até uma nova categoria de homicídio: ‘Homicídio qualificado-privilegiado!’” (BASTOS, João José Caldeira. 2008, p.122). Vejamos , primeiramente, as que pertencem a correntes menores de pensamento.


Quanto à forma de execução do crime, o Código penal arrola algumas que causam aumento pena, por serem consideradas mais gravosas. São as chamada qualificadoras. Nelas estão compreendidas, por exemplo, o motivo cruel, insidioso, o torpe e a dissimulação, lembrados, respectivamente:


“O meio cruel parece mais adequado, pois, sabendo-se que a AIDS é fatal e que certamente trará sofrimento para a vítima, o agente que quer sua morte através da transmissão da moléstia, aumenta desnecessariamente o sofrimento daquela, revelando sadismo fora do comum, contrastando com os sentimentos de dignidade, de humanidade e de piedade..(HAGA, Simone Cristina Hakemi. Da transmissão da AIDS e sua tipicidade no código penal Brasileiro. 2002, p. 50)


A questão que aqui se argumenta, é a de que a AIDS seria meio insidioso ou cruel. Acredita-se que a transmissão da AIDS é um meio cruel,haja vista que, tal doença é fatal e que trará sofrimento à vítima,onde com a transmissão o agente revela um sadismo fora do comum,contrastando com os sentimentos de dignidade, humanidade e piedade.( BECHELANI, Adelita aparecida. Aspectos penais e da bioética na transmissão do vírus HIV. 2003, p. 66,67.)


Antônio Sérgio Caldas de Camargo Aranha, acredita que o meio é insidioso:Ora, sabendo o contaminado que praticar atos idôneos pode transmitir a moléstia a outrem, que de eventual contágio e transmissão decorrerá a morte da vítima, é de questionar-se se o delito não passa a ser o de tentativa de homicídio qualificado (meio insidioso de conduta),que poderá consumar-se se o ofendido vem a falecer em período curto de tempo e antes do próprio agente, transmissor da doença. (HAGA, Simone Cristina Hakemi. Da transmissão da AIDS e sua tipicidade no código penal Brasileiro. 2002, p. 50)


Torpe é o motivo que contrasta violentamente com o senso ético comum e faz do agente um ser à parte no mundo social-juridico em que vivemos. Entram nessa categoria, por exemplo, a cobiça, o egoísmo inconsiderado, a depravação dos instintos. (…) O prazer de matar, a libido de sanguine, essa rara e absurda satisfação que o agente encontra na destruição da vida de outrem e que vem muitas vezes associada a fatos de natureza sexual ou constitui expansão do sentimento monstruoso de ódio aos outros homens. (GRECCO, 2006, p. 181)


Dissimulação é o comportamento anterior do agente consistente em disfarçar, ocultar ou esconder a intenção de matar. Age de modo que a vitima não perceba seu fim homicida. Procura, por várias formas, conquistar a confiança da vitima, inspirando nela até mesmo o sentimento de amizade para, quando esta mostrar-se absolutamente confiante e despreocupada, só aí executar o homicídio”. (TELLES,Ney Moura. 2004, p. 74)


As posições supracitadas mostram correntes que existem e não podem ser subjugadas, haja vista que o Direito das gentes possui subjetividade que lhe é inerente enquanto ciência humana. Ainda que minoria no mundo jurídico, tais posicionamentos são perfeitamente aplicáveis, bastando, para tanto, que o julgamento se dê sob a sua ótica de entendimento. Em nada vão de encontro à noção de justiça.


Todavia, mister se faz frisar que a corrente dominante não é a que defende condutas qualificadoras; ela se prende tão somente ao núcleo do tipo penal – matar alguém, como diz o enunciado do artigo 121 do código penal.


O comportamento dos tribunais e os principais nomes do Direito Penal, atualmente compartilham da seguinte premissa: É plausível a tese de que a contaminação incorreria o portador transmissor no crime de tentativa de homicídio; caso haja morte do contaminado, o crime então consumar-se-ia. Isso porque, para que se tenha consumado o homicídio de fato, é preciso que a vitima venha a falecer. E ainda, a morte da vitima deve conter nexo de causalidade com a conduta do agente transmissor – eis a dificuldade encontrada para se punir quem pratica ato de tamanha repulsa. O penalista Ney Moura Telles esclarece:


“Não basta a existência de uma conduta dolosa e um resultado morte. Entre ambos deve haver nexo de causalidade. É a relação de causa e efeito indispensável para atribuir, ao agente da conduta, a responsabilidade pela causação da morte da vitima” (TELLES, 2004, p. 81).


O nexo de causalidade também encontra respaldo legal, no artigo13,§1°,primeira parte, do Código Penal: “A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação, quando, por si só, produziu o resultado”.


Acrescentando à discussão,o referido autor tenta ainda estreitar a linha tênue que divide a imputação justa do agente transmissor que age com o dolo de matar, e da interpretação errônea que resultaria em injustiça ou impunidade. Salutar a reflexão. Senão, vejamos:


“A consideração sobre o instrumento utilizado, a localização da lesão produzida, as relações entre agente e vitima, os antecedentes do fato, o local em que se deu, e acerca de outras circunstancias que envolvem o acontecimento é indispensável para que se possa concluir pela existência do dolo na conduta do sujeito.” (TELLES, Ney Moura. 2004, p. 51)


Diante de tamanha complexidade, no tocante à interpretação, do caso em concreto, é preciso que os operadores do direito exerçam a sua análise acerca da lei de forma hermenêutica, cuidadosa e pensando sempre no coletivo, a fim de se que consiga alcançar a noção de equilíbrio mais próxima daquela representada pela figura da deusa  Têmis – símbolo mais popular da justiça.


Não obstante, passemos à corrente dominante – lembrando que o Direito evolui com a sociedade, e reflete os seus anseios:


“Assim, o perigo de seu contágio tipifica-se no artigo 131 do CP, ou, dependendo da intenção do agente ao contagiar a vitima, até mesmo no crime de homicídio (grifo nosso).( BASTOS, João José Caldeira – citando Celso Delmanto. 2008, p. 157)


E se o sujeito, portador de AIDS e consciente da natureza mortal da moléstia, realiza ato de libidinagem com a vitima, com intenção de transmitir o mal e lhe causar a morte, vindo ela a falecer? Responde por homicídio doloso consumado. (BASTOS, João José Caldeira – Citando Damásio de Jesus. 2008, p. 158)


Há dolo eventual de homicídio na conduta do agente que pratica o coito ou doa sangue quando sabe ou suspeita ser o portador do vírus da AIDS ( Síndrome de Deficiência imunológica adquirida), causando assim a morte do parceiro sexual ou do receptor. Nada impede que o agente deseje a morte da vitima em decorrência da contaminação, revelando-se então a tentativa de homicídio.( grifo nosso).( MIRABETE, Julio Fabrini. 2005, p. 65)


A síndrome da imunodeficiência adquirida ainda é considerada pela medicina uma doença fatal, embora atualmente, venha sendo controlada com coquetéis cada vez mais fortes de remédios.Portanto, caso o agente tenha relação sexual com alguém, sabendo-se contaminado e fazendo-o sem qualquer proteção, tendo a intenção de transmitir a moléstia ou assumindo o risco de assim causar, deve responder por homicídio consumado – em caso de morte do contaminado- ou tentativa de homicídio – caso a morte não ocorra. O mesmo se dá quando o portador da AIDS atira sangue em outra pessoas com o propósito de contaminá-las. (grifo nosso). ( NUCCI, Guilherme de Souza. 2009, p. 490)


A prática de qualquer ato capaz de transmitir AIDS, a alguém,poderá configurar, dependendo da intenção do agente,o crime previsto no art. 131, CP, ou mesmo homicídio ( PINTO,Ângela Pires. A culpabilizacao ou co-responsabilidade:responsabilização na não-declaracao da sorologia ao parceiro sexual.)


O fato do sujeito, sabedor de que é portador da síndrome da imunodeficiência adquirida – AIDS – passar a buscar parceiros para ter relações sexuais no intuito de transmitir a doença aos mesmos, até como forma de desabafar sua revolta. Nesse caso, não se pode falar em crime de perigo de contagio venéreo e sim de homicídio ou tentativa de homicídio, conforme o caso.(…) Isso porque, a AIDS é doença letal. Dessa forma, quando alguém, com AIDS tem relações sexuais com alguém querendo transmitir a doença responde por tentativa de homicídio ou homicídio consumado, conforme o resultado atingido.(…) Também responde por tentativa de homicídio o sujeito que atira sangue contaminado sobre a vitima.(grifo nosso).(GAYA, Soraia Texeira.Homicídio praticado através da AIDS. Revista Consultor Jurídico, de 20-09-2005.www.justributario.com.br)


Os juízes de direito têm julgado os casos de transmissão de AIDS com evento morte como homicídio consumado ou tentado. E também os especialistas são unânimes ao afirmar que, havendo a intenção, a vontade matar,ou seja, presente o elemento subjetivo do agente, por meio de transmissão da AIDS, fica tipificado o crime de homicídio ou de tentativa de homicídio, se Transmissão (…) A tentativa estará configurada se o agente portador do vírus HIV tiver a intenção de matar, mas não ocorrer a transmissão da AIDS. Considerando que é do conhecimento da ciência, e geral, que a AIDS, desde que transmitida concretamente causa a morte da vítima, caracterizará homicídio consumado, se a vítima vier a óbito em decorrência de ato consciente e doloso do agente, ou seja, com animus necandi.(HAGA, Simone Cristina Akemi. Da transmissão da AIDS e sua tipicidade no código penal Brasileiro. 2002, p. 35;50)


 A conduta do parceiro soropositivo e que informa a contaminação a terceiro, que insiste na prática do ato sexual, mas vem, posteriormente, a falecer em decorrência da contaminação, é causa valorativamente desaprovada do resultado, o qual lhe será imputado a título de homicídio, desde que comprovada, no plano da tipicidade subjetiva, a existência de dolo em sua conduta.(…)No caso em enfoque – em que alguém, voluntariamente, aquiesce em manter relações sexuais com um parceiro que lhe avisa, previamente, sobre sua contaminação pelo vírus HIV e, posteriormente, mercê da sua contaminação, vem a falecer – não existem maiores questionamentos entre o efetivo nexo de causalidade entre a conduta do parceiro contaminado e a contaminação da vítima, haja vista a relação de interdependência entre uma e outra. É-se, possível, portanto, afirmar que o parceiro causou a morte da vítima, porquanto a causação resolve-se, unicamente, no plano físico, naturalístico ou ôntico (grifo nosso)(COSTA, William da. HIV – homicídio e a nova dimensão normativa da tipicidade penal. Disponível em http://www.lfg.com.br. 05 de dezembro de 2008.)”


Não só a doutrina reflete o que a sociedade  pensa, na conjuntura em se dão os entendimentos dominantes. O comportamento dos tribunais também produz sua jurisprudência embasados na tendência da época. Vejamos como pensam nossos juízes hoje:


“Se alguém pratica ato capaz de transmitir não apenas moléstia grave, mas moléstia eminentemente mortal e o faz dolosamente, incide em tentativa de homicídio. (TJSP, RT 784/587)


Em havendo dolo de matar, a relação sexual forçada e dirigida à transmissão do vírus da AIDS é idônea para a caracterização da tentativa de homicídio” (STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 18.10.1999, v.u.).


“Estupro. Réu portador do vírus HIV. Probabilidade de transmissão de doença incurável e que acarreta a morte. Tentativa de homicídio. Dolo eventual. Possibilidade. Materialidade e autoria suficientemente provadas. Decisão dos srs. jurados que não se mostra manifestamente contrária à prova dos autos. Manutenção. Soberania dos veredictos do Tribunal Popular. Apelo improvido” (TJRS, Câm. de Férias Criminal, Apel. Crim. nº 70000012872, Rel. Des. Marco Antonio Barbosa Leal, j. 09.11.1999, v.u.).


É notória a tendência atual. Ainda que existam posicionamentos em sentido contrário ou divergente, o Direito Brasileiro – que acompanha a corrente internacional, visando à criminalização da transmissão consciente da AIDS, se coloca junto àqueles que repudiam a disseminação dolosa da doença, que já é considerada epidemia e que, posto que é letal, não pode jamais servir de instrumento para assassinos legítimos.


Diante do que ora fora exposto, este discurso aqui se encerra, lembrando que o debate acerca do tema não pode cessar. Além de inesgotáveis as variáveis  que ensejam a discussão, trata-se de uma problemática que envolve a todos nós. Afinal, devemos atentar para o fato de que a AIDS não é transmissível apenas por via sexual; mesmo que haja todo o cuidado e proteção, a conduta dolosa do agente transmissor pode nos pegar desprevenidos – como num hospital, por exemplo. A próxima vitima pode ser um filho, um amigo, um pai. Nós ou eles, esta classificação não mais existe, todos estamos vulneráveis.


Há que se desenvolver mais programas de conscientização, mais políticas publicas; a luta contra a propagação da epidemia não pode parar, pois esta mesma não pára; no âmbito do Direito, é importante que haja consciência de nossa casas legislativas a respeito, quando da edição de leis atuais, que alcancem os novos delitos, além de tornar o acesso à justiça mais viável, informando os súditos das atividades do estado.


Os chamados grupos de pressão, formados por organismos dedicados à inserção dos programas e políticas públicas voltados para a questão – leia-se partidos políticos, ONGs, grupos de apoio e Poder Executivo, devem estar atentos para a atualização da literatura a respeito, uma vez que não são poucos os exemplos de meios informativos que se encontram obsoletos, frente à nova realidade jurídica. Quando a sociedade está bem informada, a corrente em prol da prevenção e da não disseminação, em qualquer de suas formas, só tende a se fortalecer.


Informação. Este sempre é o melhor remédio; aliás, no caso da AIDS, a melhor vacina até hoje descoberta.


 


Referências bibliográficas:

BASTOS, João José Caldeira. Curso crítico de direito penal. 2ª Ed., Florianópolis: Conceito editorial, 2008.

BECHELANI, Adelita aparecida. Monografia. Aspectos penais e da bioética na transmissão do vírus HIV. 2003.

COSTA, William da. HIV – homicídio e a nova dimensão normativa da tipicidade penal. 2008. Disponível em: http://www.lfg.com.br.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 17ª Ed., São Paulo: Saraiva.

GAYA, Soraia Texeira. Homicídio praticado através da AIDS. Revista Consultor Jurídico, de 20-09-2005.Disponível em:www.justributario.com.br

GRECCO, Rogério. Curso de direito penal – parte especial. 2ª Ed., Vol. II. Niterói – RJ: Impetus, 2006.

HAGA, Simone Cristina Hakemi. Da transmissão da AIDS e sua tipicidade no código penal Brasileiro. 2002, p. 50)

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. 22ª Ed., Vol. II. São Paulo: Atlas. 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado – versão compacta.  São Paulo: Revista dos tribunais, 2009.

PINTO,Ângela Pires. Monografia. A culpabilização ou co-responsabilidade:responsabilização na não-declaração da sorologia ao parceiro sexual . 2003

TELLES,Ney Moura. Direito penal – parte especial. 1ª Ed, Vol. II. São Paulo: Atlas, 2004.

Informações Sobre o Autor

Olívia Ricarte

Advogada, pós – graduanda em Direito Constitucional.


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Equipe Âmbito Jurídico

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