Resumo: O presente trabalho analisa a polêmica questão da razoabilidade temporal do processo em face de sua efetividade, demonstrando a inseparável ligação entre tutela emergencial e direitos fundamentais. Sem prejuízo, tece considerações a respeito dos intrigantes conflitos de preceitos constitucionais que circundam a tutela de urgência, embasando-se, à luz da moderna e desejável visão constitucional do processo civil, na festejada hermenêutica da ponderação de valores.
Palavras-chave: Tutela de urgência; Direitos fundamentais; Acesso à justiça; Efetividade processual; Ponderação de valores.
1. Em tempos de imensurável dinamicidade das relações humanas, ganha especial enfoque a questão da efetividade do processo no tempo. Não são raras as vezes em que vislumbramos o perecimento do direito material (que se busca proteger) em face da morosidade processual.
Como já lembrou José Augusto Delgado (2005, p. 359), “há consciência de que, não obstante o avanço do processo nos últimos cem anos, ele não se preocupou com a eficácia do fenômeno tempo. Hoje não pode mais ser ignorada essa situação. Há exigência de que o Estado a enfrente de modo definitivo e que a resolva de modo mais rápido possível”.
Entra em cena, pois, a denominada tutela de urgência, que objetiva, em linhas gerais, acelerar e efetivar a resposta jurisdicional almejada, afastando as degradantes e indesejadas conseqüências que o fator tempo pode gerar a um processo judicial.
Aliás, é da própria finalidade de “[…] abrandar os males do tempo e garantir a efetividade da jurisdição” (DIDIER JR., 2008, p. 598) que a tutela de urgência assume espeque constitucional. Como bem observou o jurista italiano Vittorio Denti (1985, p. 164), a tutela d’urgenza constitui um atributo fundamental da função jurisdicional.
Deveras, na medida em que se prevê, categoricamente, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, inc. XXXV, CF/88), por certo que se está admitindo a tutela emergencial, mesmo porque esta é pressuposto para a concretização do acesso à justiça.
Evidentemente, pois, que a inafastabilidade jurisdicional não se exaure na garantia de acesso ao Judiciário. Em verdade, esta representa apenas o conteúdo formal do postulado, ao passo que, substancialmente, a norma garantidora abarca a idéia da própria efetividade da apreciação judicial.
Quer-se dizer, em outras palavras, que não basta o Estado, a pretexto de forjar a observância do preceito da inafastabilidade, garantir ao jurisdicionado a mera apreciação judicial de um conflito. O que se deve ter em mente é que o mandamento contido no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal, traz ínsita a idéia de efetividade processual, compreendendo, assim, uma apreciação adequada e tempestiva.
O direito fundamental à inafastabilidade jurisdicional não deve ser visto mais em sua concepção tradicional, como mera garantia do cidadão em face do Estado. Muito pelo contrário. Deve-se primar, hoje, por uma interpretação coadunada com a visão constitucional do processo civil. Assim, impõe-se pensar o dever do Estado de apreciação jurisdicional como direito constitutivo institucional do cidadão, com ampla e desejável potencialização[1].
Ademais, a garantia eficaz dos direitos fundamentais passa pela sua conectividade com o Processo. De fato, os direitos essenciais da pessoa humana, em sua dimensão procedimental (perspectiva objetiva dos direitos fundamentais), constituem diretrizes valorativas, que atrelam os órgãos estatais, de forma precípua, à observância do núcleo constitutivo das normas jurídicas essenciais.
Nessa tendência, aliás, sem prejuízo de sua duvidosa necessidade, é que a Emenda Constitucional 45/2004 introduziu explicitamente no ordenamento jurídico pátrio o direito fundamental à razoável duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII, CF/88), evidenciando a necessidade de uma melhor distribuição do ônus do tempo do processo entre seus sujeitos.
2. Relativizando a discussão, por vezes inócua, no que tange à discriminação entre tutela cautelar e tutela antecipatória[2], certo é que ambas integram o gênero da tutela de urgência[3], reclamantes, pois, por uma rápida e imperiosa prestação judicial.
O conteúdo emergencial que se pode atribuir à tutela jurisdicional guarda íntima e inseparável relação com o direito substancial a que se pretende proteger (em sentido amplo). Isto se justifica quando nos atentamos àqueles direitos cuja essência (núcleo substancial) não comporta demasiada tolerância lesiva.
Como se percebe, o direito à tutela jurisdicional efetiva “[…] engloba o direito à pré-ordenação de técnicas processuais capazes de dar respostas adequadas às necessidades que dele decorrem” (MARINONI, 2004, p. 147). Compreende, acima de tudo, uma tutela eminentemente tempestiva, e, quando o direito material assim o exigir, satisfatoriamente preventiva.
Disso decorre, por exemplo, a impossibilidade de se aplicar, de forma irrestrita, a regra do art. 273, § 2º, do Código de Processo Civil. Com efeito, não são poucas as vezes em que a irreversibilidade é inerente à própria satisfação do direito material litigioso, não sendo possível, pois, que se obstrua a efetividade do provimento judicial ao autor simplesmente pelo perigo de irreversibilidade do provimento.
Por mais, tal restrição consubstanciaria numa equivocada ponderação de direitos fundamentais, haja vista que, demonstrados os requisitos necessários para a antecipação de tutela, o mero perigo de irreversibilidade do provimento não teria o condão de afastar a maior plausibilidade do direito do demandante em relação ao pouco provável direito do demandado.
Além disso, na medida em que a tutela emergencial mitiga a segurança jurídica, relativizando, por exemplo, o direito fundamental ao contraditório da parte adversária, acaba por garantir, de outro lado, o direito fundamental do demandante à efetividade da tutela jurisdicional.
3. Se, por um lado, a tutela de urgência representa um louvável instrumento de equilíbrio entre os postulados fundamentais da inafastabilidade do controle judicial e da efetividade processual, por outro lado consubstancia-se num cinzento meio de relativização de direitos outros não menos essenciais.
Veja a complexidade do conflito: na medida em que se pretende, por meio da tutela de urgência, uma proteção substancial dos direitos materiais fundamentais em jogo, faz-se concretizar o direito, também fundamental, de tutela jurisdicional efetiva. Ao mesmo tempo, entretanto, acaba por mitigar os direitos (igualmente fundamentais) à segurança jurídica e ao contraditório.
Daí se vislumbra a pertinência e necessidade em se buscar um apropriado e eficaz método de solução dessas afoitas tensões que circundam o tema. Aliás, se a tendência atual é, nas palavras de Dinamarco (2001, p. 798), a busca por um processo civil de resultados, em harmonia com a moderna visão constitucional do processo, não há dúvida de que sua concretização passa pelo estudo da tutela de urgência.
De início, deve-se atentar que os princípios constitucionais, embora coexistentes, encontram-se hodiernamente em conflito. Isto porque, não sendo possível submetê-los a uma lógica hierárquica, acabam por embasar uma dialética inerente à ordem normativa constitucional.
A despeito de não haver uma hierarquização entre os postulados fundamentais, pode-se pensar, valendo-se das palavras de Alexy (2002, p. 532), numa eventual relação de prioridade prima facie entre eles. Sendo assim, numa perspectiva argumentativa e superficial, poder-se-ia privilegiar o direito à vida (via de regra, elementar para o gozo dos demais) em detrimento do adverso direito conflitante.
Nessa esteira, e a título de exemplo, quando se colidem o direito do segurado, acometido de grave enfermidade, de permanecer recebendo assistência médica, a mercê de seu Plano de Saúde (manifesto direito à vida), e o direito de reembolso da seguradora pelos serviços a serem prestados[4], não há dúvida de que milita uma presunção (carga argumentativa implícita) em favor do primeiro.
Ainda quanto ao exemplo acima, nada há de errado em se afirmar que só se poderá obstar a tutela emergencial em favor do segurado se houver uma robusta argumentação em sentido contrário, que afaste a presunção de prioridade prima facie do fundamentalíssimo direito à vida[5].
4. Se os direitos fundamentais consubstanciam-se nos mais profundos (e inerentes) direitos do homem, em incontestável referência à “[…] base jurídica da vida humana no seu nível atual de dignidade” (OLIVEIRA, 2008, p. 231), sua restrição deve implicar necessariamente numa relação de conciliação com outros direitos igualmente essenciais (CANOTILHO, 1963, p. 134).
Salienta-se, dessa forma, a incisiva e imperiosa ligação entre a proteção eficaz dos direitos fundamentais (sustento jurídico da vida humana) e a moderna hermenêutica constitucional da jurisdição.
Conforme salienta Marinoni (2008, p. 53), “a compreensão da lei a partir da Constituição expressa uma outra configuração do positivismo, que pode ser qualificada de positivismo crítico ou de pós-positivismo, não porque atribui às normas constitucionais o seu fundamento, mas sim porque submete o texto da lei a princípios materiais de justiça e direitos fundamentais, permitindo que seja encontrada uma norma jurídica que revele a adequada conformação da lei”.
Nessa linha, muito embora se vislumbre um perigoso “fascínio pelo direito infraconstitucional, a ponto de se ‘adaptar’ a Constituição às leis ordinárias”. (STRECK, 2002, p. 30-31), forçoso que se amolde as tutelas antecipatória e cautelar ao preceito supralegal da inafastabilidade jurisdicional.
Não obstante, deve ser vista com ressalvas a assertiva, de modo irrestrito, de que o tempo é inimigo da efetiva tutela jurisdicional. A bem da verdade, a carga temporal é ínsita ao processo, que pressupõe um conjunto lógico e ordenado de atos processuais tendentes a embasar o provimento judicial.
Conforme lembra Didier Jr. (2008, p. 598), a rigor, o tempo é um mal necessário à boa tutela dos direitos. Tem-se como imprescindível para uma adequada e plena aplicação do devido processo legal, da qual integra o contraditório, o decurso de um razoável e considerável lapso temporal. Trata-se, assim, de consectário da segurança jurídica.
Logo, nada há de errado em colocarmos o conteúdo temporal do processo como um desdobramento inexorável do due process of law, o qual, primando por um “mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes” (CASTRO, 1989, p. 50), impõe aos litigantes uma paridade de armas e oportunidades (e aqui se inclui o contraditório).
Em que pese a salutar função que desempenha, “[…] a tutela de urgência, em qualquer de suas espécies, não há de ser vista como panacéia, aplicável com inteiro desembaraço e sem senso de medida a toda sorte de situações concretas” (BARBOSA MOREIRA, 2003, p. 11).
5. É indiscutível o substrato constitucional da chamada jurisdição emergencial, porquanto seja inegável que “[…] do direito de ação decorrem, como conseqüência lógica, os direitos à antecipação e à segurança da tutela do direito material, eventualmente ameaçado de lesão no curso do processo” (MARINONI, 2008, p. 218).
Como ensina Luiz Guilherme Marinoni (2008, p. 356), “muitas vezes apenas uma tutela imediata – antecipatória ou cautelar – é apta para tornar efetiva a prestação jurisdicional”. Assim é que, “sendo o direito do autor mais provável que o do réu [verossimilhança da alegação e fumaça do bom direito], e restando evidenciado o perigo na demora [periculum in mora], não há como negar a tutela urgente, ainda que o réu não tenha exaurido o seu direito de defesa”.
Nessa conjectura, e para o real alcance da tutela emergencial, não se pode olvidar, pois, da conhecida, porém geralmente esquecida, técnica da ponderação de valores constitucionais[6].
Dessa forma, valendo-se das palavras de Carlos Alberto de Oliveira (2008, p. 240), pode-se dizer que “[…] com a ponderação desses dois valores fundamentais – efetividade e segurança jurídica – visa-se idealmente a alcançar um processo tendencialmente justo”. Observe-se, porém, que só se pode determinar o conteúdo axiológico do termo justo se levarmos em consideração as peculiaridades do caso concreto.
Finaliza-se com a perspicácia inerente de Barbosa Moreira (2003, p. 11), que, com nítido cunho ponderativo, bem salientou: “A crônica judiciária registra casos em que, a título de antecipação de tutela, se ordenou a entrega imediata de medicamentos ao requerente, e até o arrombamento de armários dos hospitais públicos, com tal fim, e sob cominação de prisão do secretário estadual de saúde, se se opusesse. Também já se chegou a determinar a inversão, em favor do requerente, da ordem de pacientes que aguardavam o transplante de órgãos, como se o juiz pudesse saber com certeza absoluta quem, na lista de espera, tem maior urgência na intervenção. Desse tipo de excessos seria bom que não tivéssemos de defender-nos, como seria igualmente bom que não precisássemos, por outro lado, lamentar uma exagerada timidez na decretação de providências urgentes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: aqui, como em quase tudo, in medio est virtus”. Ou, em bom português, “a virtude está no meio-termo”.
Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Presidente Prudente (Toledo). Professor convidado nos Cursos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de Dracena, dentre outras instituições. Mestrando em Direito. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente. Advogado. Membro do Grupo de Estudos “Processo Civil Moderno e Acesso à Justiça”, coordenado pelo prof. Dr. Gelson Amaro de Souza. Colaborador da American University College of Law (Washington, EUA).
Mestre em Direito pela ITE de Bauru e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor nas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente. Procurador Aposentado do Estado de São Paulo. Advogado.
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