Resumo: A pós-modernidade, com todos os avanços tecnológicos de seu tempo, trouxe um problema novo e de difícil solução: a necessidade de proteção penal dos bens jurídicos difusos e coletivos. A delinqüência do milênio assumiu contornos que não se ajustam às regras e modelos conceituais da teoria geral do delito, consolidada em prol dos bens jurídicos individuais e promovida pela secularização. O desafio do jurista contemporâneo é promover a dogmática adequada à contenção dos grandes riscos com respeito aos direitos fundamentais e garantias do cidadão, o que pode ser possível através da edição de tipos de perigo abstrato aferíveis de valores e princípios constitucionais, sem desprezar outras construções dogmáticas que se encontram em fase de elaboração.
Palavras-chave: pós-modernidade – bens jurídicos difusos e coletivos – proteção penal.
Abstract: The post-modernity, with all the technological advances of this time, brought a new problem and difficult to solve: the need of criminal law protection of the collective legal rights. The criminality of the millennium has taken shape that do not conform to the rules and conceptual models of the general theory of crime, consolidated for the benefit of individual legal rights and promoted by secularization. The jurist’s challenge is to promote contemporary dogmatic adequate to contain the major risks with respect to fundamental rights and guarantees of the citizen, what may be possible by editing the type/law of abstract danger with its related values and constitutional principles, without neglecting other dogmatic buildings which are in preparation.
Keywords: post-modernity – legally protected collective right – protection law
Sumário: 1. Introdução. 2. O Direito Penal da atualidade. 3. A tutela penal dos bens jurídicos difusos e coletivos. 4. Buscando soluções para a legítima tutela dos bens jurídicos supra-individuais. 5.Conclusão. 6.Referências.
“Não faz muito tempo, um entrevistador – após uma longa conversa sobre as características de nosso tempo que despertam viva preocupação para o futuro da humanidade, sobretudo três, o aumento cada vez maior e até agora incontrolado da população, o aumento cada vez mais rápido e até agora incontrolado da degradação do ambiente, o aumento cada vez mais rápido, incontrolado e insensato do poder destrutivo dos armamentos – perguntou-me no final, se, em meio a tantas previsíveis causas de infelicidade, eu via algum sinal positivo. Respondi que sim, que via pelo menos um desses sinais: a crescente importância atribuída, nos debates internacionais, entre homens de cultura e políticos, em seminários de estudo e em conferências governamentais, ao problema do reconhecimento dos direitos do homem.” Norberto Bobbio – A Era dos Direitos
1. INTRODUÇÃO
Com o avanço da tecnologia, resultado do período em que se convencionou chamar de pós-modernidade, surgiram novos riscos sociais, que vêm causando repercussão em diferentes áreas da Ciência. Assim, os interesses difusos ou supra-individuais, molestados com a probabilidade de danos de grande monta, vêm exigindo da Ciência Jurídica, sobretudo do Direito Penal, resposta eficaz na contenção desses riscos.
A ação do homem sobre o meio-ambiente, as lesões e ameaças produzidas pela biotecnologia, os acidentes nucleares, os mercados econômicos, com as grandes fusões e o agigantamento de conglomerados de empresas que podem colocar em risco a liberdade econômica e a livre concorrência, a proteção da infância e juventude, ameaçada com a proliferação da prostituição infantil e da exploração de menores, são exemplos a justificar a necessidade da tutela penal dos bens jurídicos transindividuais.
É importante perceber que esses bens jurídicos se distinguem, sobremaneira, dos demais. Para eles, as regras aplicáveis ao Direito Penal tradicional não se mostram eficazes, e é preciso ter consciência de que sua dogmática encontra-se ainda em fase de elaboração.
Com a finalidade de dar corpo ao incipiente sistema que se delineia, alarga-se a cominação dos tipos de perigo abstrato, cuja formulação clássica vem sendo questionada por parte da doutrina, por ferir o princípio da lesividade.
Argumenta-se, ainda, com a possibilidade de um Direito no qual se flexibilizarão as regras de imputação e se relativizarão as garantias político-criminais no campo material e processual, anunciando-se tendências que já são a tônica em leis específicas contra os delitos econômicos, organizados, corrupção e outros crimes of the powerful.
Entretanto, com todas as dificuldades que cercam o Direito Penal da pós-modernidade, há de se reconhecer a importância da tutela penal em face dos bens jurídicos coletivos e difusos para a contenção dos riscos de grandes proporções. Porém se questiona: como deverá ser realizada sua legítima tutela, já que o direito penal da secularização, fundado na proteção dos bens individuais, não possui as ferramentas adequadas e eficazes para conter a criminalidade de nossos dias?
Tal interrogação tem motivado a doutrina contemporânea, a qual vêm sustentando possíveis soluções para este grande problema que desafia a inteligência dos penalistas da atualidade. Com o propósito de estimular a reflexão sobre o tema, importa desenvolver este breve estudo.
2 O DIREITO PENAL DA ATUALIDADE
Conforme Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, o Direito Penal da atualidade possui sete “pecados capitais”: hipertrofia irracional, instrumentalização, inoperatividade, seletividade e simbolismo, excessiva antecipação da tutela penal (prevencionismo), descodificação, desformalização (flexibilização das garantias penais, processuais e execucionais), e prisionização.[1]
Acentuam os autores referidos haver uma expansão patológica do Direito Penal que se caracteriza, inicialmente, com a “incriminação generalizada de afetações lesivas mínimas”, em flagrante desrespeito ao princípio da subsidiariedade e fragmentariedade.
Pontuam que a hipertrofia do Direito Penal conta hoje com uma dupla fonte de impulso: o movimento de “lei e ordem” dirige-se às classes marginalizadas assim como a prisionização dos excluídos; e o “clamor geral”, suscitado pela “esquerda punitiva”, ataca as classes abastadas exigindo resposta penal para a macrocriminalidade. Ambos os movimentos carregam a bandeira da criminalização ou do endurecimento do Direito Penal.
Textualizam que essa hipertrofia do Direito Penal é fruto da evolução da idéia do Estado de Direito, que nasceu com a pretensão de submeter o próprio Estado ao Direito. À medida que o Estado foi crescendo e ganhando novas missões, maior a necessidade de invocação da tutela penal. E com a sociedade de riscos, concluem que o processo vem se agravando gradativamente.[2]
A antecipação da tutela penal, que consiste na criminalização adiantada de algumas condutas frente ao que tradicionalmente foi considerado seu núcleo básico ou clássico, ou seja, a lesão ou o perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido, é também criticada pelos aludidos juristas.
Eles apontam a tendência legislativa e político-criminal, em especial das últimas duas décadas, no sentido da proliferação de tipos de perigo abstrato que se destinam à tutela de bens jurídicos supra-individuais, em face da sociedade de risco. Argúem que essas condutas não apenas suscitam conflitos com princípios clássicos da doutrina penal como também repercutem em problemas de legitimação do direito de punir, de sua fundamentação e de seus limites.[3]
Merecem atenção tais constatações, pois retratam sem pudor e com perspicácia a dura realidade do Direito repressivo de nossos dias.
O grave problema deste tempo é que em meio a todo esse arsenal de defeitos ou “pecados” do direito penal da atualidade, como se referem os mencionados juristas, existe a necessidade real de conter os incontáveis riscos advindos da sociedade pós-moderna. Para tanto, os bens jurídicos coletivos e difusos vêm sendo incluídos, mediante contundentes críticas de segmentos da doutrina, sob a tutela penal.[4]
Como toda mudança provoca a desestabilização de conceitos e instituições, é fácil perceber os motivos da denunciada patologia do Direito Penal da atualidade.
Assim, o grande desafio do jurista da pós-modernidade é compatibilizar as garantias conquistadas ao longo da história dos Direitos Humanos com as transformações sociais provocadas pela tecnologia.
3. A TUTELA PENAL DOS BENS JURÍDICOS DIFUSOS E COLETIVOS
A sociedade pós-moderna abriga conceitos de coletivismo e direitos difusos que passaram a exigir o debruçar do legislador na tutela desses legítimos interesses.
Trata-se de uma evolução natural do Direito que se afirma, agora, na proteção das massas. Ao mesmo tempo em que a produção de riquezas é benéfica ao corpo social, o avanço da tecnologia ocasiona o correspondente acervo de riscos[5], até então desconhecido.
Surge a chamada “sociedade de risco”, assim denominada por Ulrich Beck, na qual os problemas e conflitos da sociedade são substituídos por outros que se originam da “produção, definição e divisão dos próprios riscos produzidos de maneira técnico-científica”. [6]
Assim, grande parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provém de decisões de outros no manejo da techne: “riscos mais ou menos diretos para os cidadãos (como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos etc.)”, que derivam “das aplicações técnicas dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações, etc.” [7]
A revolução tecnológica provocou, assim, profunda transformação da criminalidade que aparece cada vez mais imbricada com atividades lícitas e, por isso, de difícil visibilidade, como bem vislumbra Maria Auxiliadora Minahim.[8] Refere-se a fatos acidentais. São as chamadas, por Silva Sanchez, conseqüências lesivas da “falha técnica”, problema este do qual se parte de que “um certo porcentual de acidentes graves resulta inevitável à vista da complexidade dos desenhos técnicos”. Sobre esse tipo de criminalidade o autor espanhol textualiza que “se trata de decidir, entre outras coisas, a questão crucial dos critérios de localização das ‘falhas técnicas’, ou no âmbito do risco penalmente relevante, ou no âmbito próprio do risco permitido”.[9]
Acrescente-se que a sociedade tecnológica de caráter competitivo vem empurrando à marginalidade muitos indivíduos que passam a constituir fonte de riscos pessoais e patrimoniais aos demais membros. Ademais, amplia-se gradativamente a delinqüência dolosa tradicional em face da adoção das novas técnicas como instrumento, o que possibilita a produção de resultados especialmente lesivos. É a tecnologia utilizada a serviço do crime, exemplificada pela chamada ciberdelinqüência (delitos associados aos meios informáticos e à internet), e pela criminalidade organizada, cujos grupos podem operar internacionalmente.
Com pretensão de responder à demanda, diante do novo quadro de condutas ilícitas, vem surgindo um Direito Penal completamente transformado, diferente daquele que se firmou com o Iluminismo, ao abrigar tipos que primam por falta de técnica legislativa, leis desnecessárias que punem infrações de pouca gravidade e que tolera a flexibilização das garantias.
Porém, é de suma importância observar que a sociedade de risco pode ensejar a deflagração de danos de aviltada gravidade, que não devem ser desconhecidos pelo Direito Penal, embora se reconheça que devam ser também prevenidos em outras instâncias jurídicas e sociais.
A ameaça ao equilíbrio ecológico e, em conseqüência, à própria preservação da vida na terra e a todos ideais reconhecidos de sociedade livre, democrática e saudável justifica, sobremaneira, a intervenção da esfera penal com a proteção de bens jurídicos supra-individuais, ao lado daqueles que já fazem parte do rol de suas preocupações tradicionais, constituída de bens jurídicos individuais.
Roxin percebe com lucidez a impossibilidade de limitação da tutela penal aos bens jurídicos individuais, entendendo que certos pressupostos indispensáveis à vida em comum como os próprios “bens da comunidade” são merecedores desta proteção.[10]. Afirma que a única restrição prévia à eleição dos bens jurídicos reside na Constituição, e lança um conceito de bem jurídico vinculado político-criminalmente, derivado da Lei Fundamental com base na liberdade do indivíduo e nos limites da capacidade punitiva do Estado.[11]
O professor alemão sustenta em acréscimo que a unidade sistemática entre Política Criminal e Direito Penal também deve ser realizada na construção da teoria do delito, embora ainda inexistam tentativas nesse sentido.[12]
Em via oposta, a Escola de Frankfurt, em especial Cornelius Prittwits e Winfried Hassemer, postula pela necessidade de continuar a guardar, para o Direito Penal, o seu âmbito clássico de tutela. Para a proteção dos grandes riscos causados pela sociedade pós-moderna defende a intervenção de outros ramos do Direito, nomeadamente o Direito Administrativo, além de outros meios de controle social “não jurídicos”.[13]
Silva Sanchez aponta, em face das dificuldades de entrosamento da dogmática do Direito Penal clássico e do novo Direito Penal do risco, a alternativa da transferência da função da tutela jurídico-penal desse novo Direito para o âmbito do Direito Administrativo, nele incluído o Direito Administrativo Sancionatório. Propõe ainda um Direito Penal de três velocidades: no primeiro, haveria a possibilidade de admissão de um modelo de menor intensidade garantística dentro do Direito Penal sempre que as sanções previstas para os ilícitos correspondentes não fossem de prisão; no segundo, em casos em que são impostas penas de prisão, entende deva manter-se o rigor dos pressupostos clássicos de imputação de responsabilidade; no terceiro, o jurista trata do “Direito Penal do Inimigo” de Jacobs, no qual a pena de prisão concorre com a ampla relativização das garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais, a ser utilizado como instrumento de abordagem de fatos em emergência.[14]
Jorge de Figueiredo Dias, de outro pólo, considera inadmissível possam ser atribuídas apenas sanções administrativas a condutas socialmente tão gravosas que podem por em risco “a vida planetária, a dignidade das pessoas e a solidariedade com as outras pessoas – as que existem e as que estão por vir”, aduzindo ocorrer aqui o que lembra a velha crítica da “burla de etiquetas”, que põe o princípio jurídico-penal da subsidiariedade e de ultima ratio de “pernas para o ar”. Assim, julga devam ser tais condutas, que considera de extrema gravidade, criminalizadas.[15]
Claus Roxin[16] registra, com indubitável acerto que, em cada situação histórica e social de um grupo humano, os pressupostos imprescindíveis para a existência em comum se concretizam numa série de condições valiosas como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de atuação ou a propriedade, as quais todo o mundo conhece; “numa palavra os chamados bens jurídicos”; e “o Direito Penal tem que assegurar esses bens jurídicos, punindo a sua violação em determinadas condições”.
Prossegue Roxin, aduzindo que, no Estado moderno, junto a esta proteção de bens jurídicos, surge a necessidade de garantir, se necessário, através dos meios do Direito Penal, o cumprimento das prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por parte do Estado. Finaliza:
“Com essa dupla função, o Direito Penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens constitutivos da sociedade e a garantia das prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento de sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna.”
Na esteira dos ensinamentos de Figueiredo Dias e de Claus Roxin, em face de suas profundas e racionais reflexões, não se pode aceitar seja relegada somente a meios não jurídicos de mera política social, à esfera civil ou ao chamado direito sancionatório (administrativo) a proteção contra os megarriscos da era pós-moderna. É, pois, o Direito Penal legítimo para tutelar os ilícitos sociais de extrema gravidade.
Faz-se importante salientar ainda que os bens supra-individuais têm ligação primordial com o indivíduo, enquanto pessoa, cidadão, que é o grande destinatário de toda a norma jurídica. “Portanto, há justificativa sob o ponto de vista axiológico-constitucional, de sua inclusão na esfera do direito penal”, o que enseja a realização de “estudos que inspirem sua construção dogmática”.[17]
4. BUSCANDO SOLUÇÕES PARA A LEGÍTIMA TUTELA PENAL DE BENS JURÍDICOS SUPRA-INDIVIDUAIS
Muitos juristas começam a refletir sobre possíveis mudanças no cenário do Direito Penal dessa era, por considerarem que importantes interesses coletivos e difusos devem ser legalmente protegidos pelo Direito repressivo.
Em verdade, a proteção dos bens jurídicos supra-individuais vem se fazendo mediante a criação de “crimes de perigo abstrato”. Porém, segmentos doutrinários afirmam que nesses delitos não existe a constatação de uma lesão efetiva a bem jurídico. Daí fundarem-se críticas, quanto à edição desses tipos. Então, questiona Renato Silveira: como adequar o princípio da lesividade a situações em que se pretende proteger sob a esfera penal bens jurídicos supra-individuais?[18]
Utilizar-se-á aqui da classificação proposta por Faria Costa, com o escopo de verificar-se a existência de uma certa gradação da ofensividade. Pontua que a ofensividade pode “estruturar-se em três níveis, todos eles tendo como horizonte compreensivo e integrativo a expressiva nomenclatura do bem jurídico: dano/violação; concreto por em perigo e cuidado-de-perigo”.[19]
Os três níveis em que se apresenta a ofensividade correspondem, respectivamente aos crimes de dano, de perigo concreto e de perigo abstrato, porque, para o jurista português, os últimos têm como fundamento o desvalor do cuidado de perigo, ou seja, “consistem em proibir conduta que seja apta a vulnerar algum bem jurídico”. [20]
Kindhäuser sustenta que nos delitos de perigo abstrato, “se vislumbra uma ‘lesão sui generis’, considerando que a lesão à segurança de um bem equivaleria à perigosidade da conduta”. [21]
Walter Kargl assevera, de outro pólo, com propriedade, que a danosidade não pode ser entendida naturalisticamente como dano. Augura que a proteção penal, ao recair o interesse sobre a coisa, tutela o que viria a ser a moralidade do dano, que não se confunde com a moralidade do Direito. Assim, certifica: “não sendo mais necessário o vislumbrar fático do dano, entende-se que, nestes casos, dar-se-á a lesão com a mera situação de perigo a que é submetido o bem”.[22]
Atesta, Renato Silveira, que a tipificação dos delitos que protegem os bens supra-individuais há de se realizar na forma de “perigo abstrato”. Mas que a delimitação de como o Direito Penal poderá vir a cuidar de situações abstratas é um dos grandes impasses da atualidade.
Para tanto, a valorização social do interesse protegido faz-se de suma importância, cujo conceito de prejuízo social pode ser aferido com base na conexão entre os níveis culturais e econômicos. Assim, o critério da comprovação danosa não deve ser aplicado de maneira radical. Situações existirão, afirma, em que ela não é evidente. Entretanto, a prática demonstra a danosidade, que já é do conhecimento comum, “tendo sido anteriormente atestada”. [23]
A formulação de Renato Silveira reveste-se, desta maneira, de grande funcionalidade, pois consegue discernir situações fáticas que podem justificar em tese a imputação de condutas de perigo abstrato em face de danos que são efetivamente reais e de grande monta.
Não se pode perder de vista que a utilização dos tipos de perigo abstrato para a proteção penal de bens jurídicos transindividuais ocorre porque faz parte, muitas vezes, da “natureza das coisas”. Há bens, como o meio-ambiente, que pareciam inesgotáveis e que hoje constituem fonte de inquietação exigindo, em certos casos, uma tutela antecipada.[24]
Não é sem razão que Constituição Federal preocupou-se em resguardar esse bem que é imprescindível à humanidade.[25] Ângelo Roberto Ilha da Silva ressalta que:
“Um sinal evidente da necessidade de preservação do meio ambiente pode se notar nas alterações do ozônio contido na estratosfera, cuja camada está a uma altura um pouco além do 20Km da superfície da Terra. Esse gás é tão imprescindível que sem ele a vida seria impossível sobre a face da Terra, pois funciona como uma camada protetora dos raios ultravioleta provenientes do sol. O assim chamado buraco na camada de ozônio traz como conseqüência o aquecimento de nosso planeta, além de problemas cancerígenos e deterioração de plantas e animais.”[26]
Ademais, ao constatar-se a necessidade de incriminar, através de tipos de perigo abstrato condutas que isoladamente não seriam danosas, mas que somadas apresentem um dano relevante, não se poderia imputar ao legislador um desatendimento ao princípio da lesividade, assevera Ângelo Roberto Ilha da Silva.[27]
Todavia, é importante observar que embora os crimes de perigo possam ser muitas vezes estruturados para a proteção dos bens supra-individuais, eles devem ser estritos a um mínimo indispensável de condutas, sob pena de contribuírem sobremaneira para a expansão do Direito Penal, além de ofenderem aos princípios fragmentários e de ultima ratio tão duramente conquistados pela secularização.
Acrescente-se que os legisladores deverão tomar muito cuidado com a técnica de redação desses tipos, sugerindo-se a criação de tipos suficientemente concretos. Não devem “se deixar cair nas armadilhas de uma técnica legislativa casuística”.[28]
Ademais, o bem jurídico a ser protegido pela norma de perigo abstrato deve ser aferível, pelo legislador, do plexo de valores constitucionais primordiais, em consonância com o respeito à pessoa humana.
Contudo, admite Renato Silveira que, com as devidas precauções, os bens supra-individuais “passarão a ser parte viva da dogmática criadora de tipos penais de perigo abstrato, verdadeiro sustentáculo deste novo Direito Penal”. [29]
Claus Roxin propõe ainda uma estruturação dos tipos negligentes, carro-chefe das condutas de risco, que atenda ao princípio da determinação, através de uma tipologia e sistematização dos deveres de cuidado no eficaz preenchimento da norma formulada em branco, como comumente ocorre nos delitos de dever.[30] Trata-se de formulação em fase inicial que muito poderá contribuir na solução dos crimes culposos advindos dos grandes riscos causados pela tecnologia deste milênio.
Vem-se refletindo ainda sobre a elaboração de uma nova dogmática jurídico-penal que acolha a responsabilização da pessoa jurídica, aceite a autoria mediata por via do domínio da organização, nos casos dos crimes organizados ou até a autoria de escritório, descrita por Zaffaroni e Pierangeli.[31] E não se deve esquecer que será de suma importância a efetivação de tratados internacionais, que regulem os delitos de conteúdo transnacional e de tribunais penais internacionais, competentes para o julgamento desses crimes.[32]
Todavia, qualquer mudança encetada na dogmática do Direito Penal da pós-modernidade só terá legitimidade se respeitar os direitos fundamentais do homem, representados, sobretudo, através de suas garantias individuais.33
Assim, a breve incursão que se fez inicialmente sobre os “pecados” do Direito Penal da atualidade deverá servir como “marco” a uma profunda e comprometida reflexão na busca de soluções eficientes para a tutela dos bens jurídicos supra-individuais na pós-modernidade, sempre calcada nos estritos limites dos princípios constitucionais.
5. CONCLUSÃO
Os riscos causados pelos avanços tecnológicos da sociedade contemporânea fizeram surgir, no campo do Direito Penal, a necessidade de proteção aos bens jurídicos difusos e coletivos.
Os interesses econômicos derivados da globalização vêm ensejando a utilização do desenvolvimento científico em prol de interesses minoritários que podem causar danos de grande monta a uma infinidade de pessoas. Merecem relevo as ameaças produzidas pela biotecnologia, as interferências do homem no meio ambiente, a formação de cartéis, a exploração de menores e outros tantos exemplos, que justificam plenamente a tutela penal.
Entretanto a proteção dos bens jurídicos supra-individuais não se ajusta à dogmática do Direito Penal clássico. Para solucionar o problema, parte da doutrina contemporânea entende desarrazoada a criminalização dessas condutas, considerando deva surgir um direito sancionador, ligado ao Direito Administrativo, para os fins de punição dos ilícitos. Fala-se, inclusive, em flexibilização das garantias constitucionais.
Outrossim, as condutas que atingem bens jurídicos difusos e coletivos vêm sendo tipificadas através de tipos de perigo abstrato. Porém, para que sejam considerados legítimos, devem ser reservados a um mínimo indispensável de infrações que se justifiquem pela intensa gravidade do provável dano, sob pena de contribuírem para a expansão do Direito Penal, além de ofenderem aos princípios fragmentários da secularização. Devem ainda observar a boa técnica legislativa.
O bem jurídico a ser protegido pela norma de perigo abstrato também há de ser aferível em face de valores e princípios primordiais assegurados na Constituição Federal.
Claus Roxin, ao lançar as bases de sua doutrina funcionalista em Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, propõe uma nova estruturação dos tipos culposos, que muito contribuirá à específica dogmática que ainda se encontra em fase de elaboração.
Mas o grande desafio posto ao legislador da pós-modernidade é dar eficaz proteção aos bens jurídicos supra-individuais. Para tanto deverá proceder aos ajustes necessários na dogmática penal, conforme uma política criminal voltada aos reais direitos do ser humano.
Procuradora de Justiça do Ministério Público da Bahia. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Processo Civil e Penal pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Professora convidada do Curso de Especialização em Ciências Criminais da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Capacitação e Educação em Direitos Humanos da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia. Ex-Professora de Direito Penal da Faculdade 2 de Julho
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