A ultra-atividade da convenção coletiva nos contratos individuais do trabalho

Resumo: Diante da divergência doutrinária existente sobre o tema – a ultra-atividade da convenção coletiva aos contratos individuais de trabalho – uma série de problematizações é levantada. Discute-se a possibilidade de incorporação das cláusulas normativas ao contrato individual de trabalho após o prazo de vigência da negociação coletiva. Neste ínterim, questiona-se: a) Uma vez inserida no contrato individual de trabalho, qual seria o prazo de validade da negociação coletiva?; b) Qual o fundamento que determina a aplicação obrigatória das cláusulas normativas nos contratos de trabalho?; c) A que limites está sujeita a negociação coletiva, ela tem ultra-atividade ou incorpora-se ao contrato individual de trabalho? Dentro desta temática, o presente trabalho pretende refletir acerca da ultra-atividade das normas coletivas e suas conseqüências nas relações de trabalho.


Sumário: 1. Introdução. 2. Da convenção ou acordo coletivo. 3. Das correntes existentes. 4. A questão da ultra-atividade. 5. Referências


1. INTRODUÇÃO:


A Constituição da República Federativa do Brasil, por meio do seu legislador constituinte, estabeleceu um complexo de garantias mínimas ao trabalhador visando cumprir os fundamentos da então República Brasileira consubstanciado no alcance da dignidade da pessoa humana e a valorização social do trabalho.


Tal é o objetivo do direito do trabalho – individual e coletivo – através do estabelecimento de princípios e regras de proteção ao emprego, visando à manutenção deste e o alcance de melhores condições de emprego, bem como o amparo do trabalhador, enquanto sujeito hipossuficiente que é na relação empregatícia.


Em seu art. 7º caput, a Constituição Federal dispõe que:


“são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visam à melhoria de sua condição social”.


Do supracitado artigo, aduz-se que a norma constitucional não restringiu os direitos trabalhistas. Ora, eles são apenas os direitos mínimos fundamentais, podendo, portanto, outros serem acrescidos.


Esse acréscimo, de acordo com a previsão constitucional pode vir através de negociação coletiva, processo no qual o empregado é representado pelo sindicato, estando, pois em condição de igualdade para negociar melhores condições de trabalho.


Assim, a Constituição da República consagrou o princípio da autonomia privada coletiva, consistente no poder de auto-regulamentação das relações de trabalho que conferiu, através dos sindicatos, a empregados e empregadores para defesa de seus interesses.


Esse poder auto-regulamentador concretiza-se através da negociação coletiva que, atualmente, tem um papel fundamental na nova ordem democrática brasileira, na perspectiva de que patrões e empregadores contribuam como parceiros no desenvolvimento econômico do país.


O Estado confere poder normativo a empregadores e empregados, por meio de sindicatos, para que aqueles, sem esquecer os princípios protecionistas mínimos, possam amortecer o choque de interesses existentes na relação jurídica laboral, procurando atender as reivindicações dos trabalhadores.


Através do procedimento da negociação coletiva, as classes patronais e laborais, representadas pelos seus respectivos sindicatos, irão compor os seus conflitos, fixando condições de trabalho aplicáveis a toda a categoria em questão.


2. DA CONVENÇÃO OU ACORDO COLETIVO


Da mencionada convenção coletiva serão estabelecidos preceitos obrigacionais e normativos que serão as futuras cláusulas dos instrumentos normativos – Convenção ou Acordo Coletivo – e que regularão os contratos individuais de todos os trabalhadores e empregadores alcançados pelo procedimento.


A negociação coletiva no Brasil é obrigatória, não importando se esta terá êxito ou não. Uma vez alcançado êxito, entretanto, a negociação coletiva estabelecerá preceitos a serem atendidos pelas partes. Serão estabelecidas cláusulas obrigacionais – que estabelecem direitos e obrigações entre as partes –, cláusulas normativas – que criam normas aplicáveis às relações de trabalho –, cláusulas in mellius – que estabelecem condições mais favoráveis aos trabalhadores – e cláusulas in pejus – que estabelecem condições menos favoráveis aos trabalhadores, bem como cláusulas econômicas, gerais e de organização.


Neste diapasão, impende consignar o entendimento do mestre Pinho Pedreira[1]:


“Cláusulas obrigacionais são as que criam deveres para as próprias partes (p. e. os sindicatos, na convenção), como as sanções por seu inadimplemento, a criação de comissões paritárias para dirimirem divergências quanto à sua interpretação, as que impõem o dever de paz ou de influência junto aos membros da categoria no sentido da observância das obrigações que lhes imponha o acordo ou a sentença, a instituição de processos de recurso e de mecanismos de conciliação e arbitragem a criação de obras sociais, como colônias de férias e creches. É indubitável que as cláusulas dessa natureza não gozam de ultratividade. A sua vigência cessa com a do instrumento normativo que as encerre.Muito diferente é o que se passa com as cláusulas normativas, aquelas que predeterminam o conteúdo dos contratos individuais de trabalho, salvo quando estes estipulam condições mais favoráveis do que as nelas consignadas.”


A negociação coletiva implica, então, a delimitação de preceitos que culminarão em normas coletivas, que, por sua vez, regerão os contratos individuais de trabalho.


As normas originadas da negociação coletiva tem prazo de vigência, determinado pelas partes ou pela Lei, neste caso, o prazo é de 02 (dois) anos. Porém aquelas já estão incorporadas ao contrato individual de trabalho.


Impende explicitar que existe na doutrina e na jurisprudência uma discussão nada pacífica a respeito da ultra-atividade das normas trabalhistas. Em outras palavras, discute-se se as normas advindas do processo de negociação coletiva se incorporam ou não aos contratos individuais de trabalho após a expiração do prazo de vigência legal – 02 (dois) anos – ou o estabelecido pelas partes.


Neste ínterim, existem duas correntes: uma justificando e defendendo a incorporação das cláusulas oriundas da convenção coletiva aos contratos individuais de trabalho depois de expirado o prazo de vigência, e outra, ponderando pela não incorporação das mencionadas cláusulas, em tese pela não ultra-atividade.


3. DAS CORRENTES EXISTENTES


A corrente da incorporação é defendida por nomes como Mozart Victor Russomano, José Martins Catharino, José Augusto Rodrigues Pinto, Octavio Bueno Magano, dentre outros.


Em contraposição, a corrente da não incorporação das cláusulas da convenção pelo término da vigência deste nos contratos individuais de trabalho, tem como maior expoente o jurista Renato Rua de Almeida, seguido por outros tais como Sergio Pinto Martins.


Diante da importância dada pela Constituição Federal à negociação coletiva e do princípio norteador do Direito dó Trabalho, qual seja, a proteção do hipossuficiente econômico, é que se faz mister o presente trabalho com o escopo de analisar os instrumentos oriundos da negociação coletiva, que é a condição mais favorável ao trabalhador, bem como os princípios norteadores aos contratos individuais de trabalho.


O legislador constituinte estabeleceu direitos irrenunciáveis aos trabalhadores com a finalidade de garantir a igualdade substancial deste na relação de trabalho.


Ocorre, porém, que diante das grandes dificuldades econômicas e das peculiaridades da relação de trabalho, mister se faz que as partes interessadas tenham a oportunidade de discutir e chegar a um consenso sobre as condições de trabalho e as obrigações cabíveis a cada um.


Consagrou-se, então, a autonomia privada, sendo esta entendida como poder de auto-regulamentação conferido às partes interessadas.


A Constituição instituiu a negociação coletiva através dos sindicatos, pois a negociação direta não permitiria ao empregador a autonomia e a liberdade de negociar com o empregador como tem, quando representado por aquele.


A relação de trabalho pressupõe a subordinação hierárquica do empregado frente ao empregador, dificultando, assim, uma discussão de melhores condições de trabalho em posição de igualdade, sendo necessária, pois, para a discussão de melhorias na condição de trabalho, a representação da coletividade.


Como principal objetivo a ser alcançado pelo enfoque constitucional dada à negociação coletiva, tem-se o de proporcionar aos empregadores e empregados, no âmbito da representação sindical, a oportunidade de juntos, através da auto-composição, chegarem a denominadores comuns, acerca da posição de interesses decorrentes da relação de trabalho.


“O empregador e os empregadores, partes obrigadas pelo contrato laboral, ambos representados pelos respectivos sindicatos, têm o interesse de promover suas idéias para uma melhor convivência sócio-ecônomica. Assim, o diálogo entre eles é o verdadeiro espaço democrático para os debates sobre as condições de trabalho a serem estabelecidas entre empregados e empregadores. Este é o momento de negociação coletiva do trabalho”.[2]


Segundo Amauri Mascaro, a negociação coletiva é:


“uma forma de desenvolvimento do poder normativo dos grupos sociais segundo uma concepção pluralista que no reduz a formação do direito positivo à elaboração do Estado. É a negociação destinada à formação consensual de nomes e condições de trabalho que serão aplicados a um grupo de trabalhadores e empregadores”.[3]


O procedimento da convenção coletiva é o meio mais adequado para que as classes patronais e de trabalhadores, representadas pelos respectivos sindicatos, transacionem e elaborem normas para reger suas relações. Essas normas irão prever obrigações e direitos para os contratos individuais em vigor e os futuros, com a vantagem de, por serem normas elaboradas pelas próprias partes, adaptam-se melhor às condições da empresa e às condições de trabalho.


A negociação coletiva ganha cada vez mais respaldo na esfera do direito coletivo, visando a obtenção de normas de condições de trabalho, bem como adaptação dessas às realidades enfrentadas pelas empresas do mercado atual. Não é um processo que tem como escopo subtrair direitos trabalhistas, mas um processo pelo qual, em atenção aos imperativos legais, tem por objetivo o equilíbrio na busca da solução dos conflitos como também a convergência dos interesses das partes.


Afirma Mascaro (1999,p.521) que a função de regular as relações individuais está ligada aos primórdios da negociação coletiva. Função esta que é uma das maiores, justificando por si só a existência e sua relação com o contrato individual de trabalho. Assim sendo, tem-se na convenção coletiva a fonte criadora das normas coletivas, que são as cláusulas normativas cujo conteúdo está intimamente ligado às relações individuais de trabalho.


Por assim dizer, pode-se entender as cláusulas normativas como aquelas referentes às condições de trabalho e serão integradas ao contrato individual. Octavio Bueno, referindo-se às cláusulas normativas diz que:


“Determinam e moldam o conteúdo das relações individuais de trabalho, não gerando obrigações imediatas e diretas para as partes convenientes, porém criando obrigação de seus representados respeitarem as cláusulas ajustadas quando da celebração de contratos individuais”. (Magano, 1972, p. 109-110).


“A norma coletiva não é um contrato de execução, criando imediatamente um contrato individual de trabalho. Ele prescinde condições gerais de trabalho, encerrando cláusulas que irão regular os contratos individuais de trabalho em curso ou futuros” (Martins, 2003, p. 759), por isso imprescinde dos instrumentos negociais para a sua concretização.


Assim, as cláusulas coletivas ao predeterminarem o conteúdo dos contratos individuais de trabalho, cumprem um dos princípios objetivos da negociação coletiva, que é a obtenção de novas condições de trabalho adequadas à situação da empresa. E, ocorrendo a celebração de um dos diplomas negociais coletivos, as normas contidas nessas, serão inseridas no contrato individual de trabalho, se forem mais benéficas ao trabalhador, e somente podem ser suprimidas ou alteradas ou minoradas por nova negociação coletiva.


Cumpre salientar que a principal função do direito do trabalho, seja no ramo coletivo seja no individual, consiste “na melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem sócio-econômica” (Delgado, 2003, p.27), garantindo-se a dignidade da pessoa humana e a valorização social do trabalho, através de princípios e núcleos basilares que impedem a violação de um patamar civilizatório mínimo para o empregado.


4. A QUESTÃO DA ULTRA-ATIVIDADE


Através da negociação coletiva concretiza-se a função de geração de normas jurídicas que tanto enaltece o papel do direito coletivo do trabalho na atualidade. Desse modo, é possível a criação de normas jurídicas que irão reger os contratos de trabalho das respectivas bases representadas na negociação coletiva.


A convenção coletiva desde os primórdios está intimamente ligada ao contrato individual de trabalho. Suas normas incidem diretamente sobre este, por versarem sobre as condições de trabalho e por suprirem insuficiências do mesmo.


Ocorrendo, então, a produção de normas coletivas e seguindo-se à assinatura da convenção ou acordo coletivo, aquelas passarão a integrar o contrato individual de trabalho das categorias participantes da negociação.


Os contratos individuais serão modificados pelas normas coletivas e, passarão a ser regidos por essas. A regra é a imodificabilidade do contrato individual de trabalho, não podendo ocorrer alterações prejudiciais ao empregado. Entretanto, a Constituição de 1988 ao dispor sobre a flexibilização de alguns direitos e possibilitar a ampliação dos direitos fundamentais do trabalhador, através da negociação coletiva, conferiu a possibilidade de alteração contratual por meio de convenção ou acordo coletivo.


Uma vez inseridas no contrato individual de trabalho, as normas coletivas passam a fazer parte destes, e consequentemente, vigora sobre elas o princípio da inalterabilidade até que outra norma coletiva venha a revogá-la.


Pelos princípios inerentes ao direito do trabalho, e principalmente pelo princípio protetor, que as normas oriundas dos instrumentos coletivos se aderem aos contratos individuais até que outro diploma negocial venha a reger de modo diverso à matéria regulada nestes.


O fenômeno da ultra-atividade das normas coletivas alude aos efeitos das normas coletivas sobre os contratos individuais de trabalho. É uma tese defendida pela maior parte da doutrina trabalhista sobre a incorporação das cláusulas coletivas das convenções ou acordos coletivos aos contratos individuais de trabalho.


A teoria da ultra-atividade das normas coletivas tem como premissa a aderência das cláusulas coletivas originadas do processo de negociação coletiva aos contratos individuais de trabalho a partir da data de sua vigência. Ou seja, se a razão de existir do processo negocial é o equilíbrio entre a capacidade do empregador e a necessidade de empregados, ela tem como principal objetivo regular contratos individuais de trabalho.


Vale elucidar, entretanto, que embora exista entendimento firme e pacífico no Tribunal Superior do Trabalho, consubstanciado no Enunciado nº 227, afirmando que “as condições alcançadas por sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando de forma definitiva os contratos”, a incorporação das cláusulas normativas oriundas de uma negociação coletiva é assunto bastante discutido na doutrina.


Os que negam a ultra-atividade consolidam este entendimento afirmando que a própria lei estabelece como requisito de validade dos instrumentos normativos a determinação do prazo de vigência.


Para a corrente que defende a incorporação, as cláusulas estabelecidas numa convenção coletiva permanecem, ainda que não renovadas, uma vez que se inserem automaticamente aos contratos individuais de trabalho e este passam a ser fonte de direito e não mais a norma coletiva.


Pode-se dos argumentos expostos, concluir que apesar do princípio basilar do contrato individual de trabalho ser o da inalterabilidade, não se pode afastar este, em momento algum, o princípio da proteção ao hipossuficiente e da condição mais benéfica ao trabalho, a fim de que seja garantida a este não uma proteção paternalista, mas que seja garantida a proteção da dignidade do homem que trabalha para sobreviver em meio a um mercado de trabalho nos moldes atuais.


 


Referências:

PEDREIRA, Luiz de Pinho. Principiologia do Direito do Trabalho. Ano 1996.

LEBRE, Eduardo Antonio Temponi. Direito Coletivo do Trabalho, 1ª edição. Porto Alegre: Síntese.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito processual do trabalho. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

DELGADO, Maurício Godinho de. Curso de Direito do Trabalho. 6ª edição. São Paulo: LTR, 2007.

MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Negociação Coletiuva e Contrato Individual de Trabalho. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.

CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 5ª ed. São Paulo, LTR, 2003.

PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: LTR, 2003.


Notas:

[1] PEDREIRA, Luiz de Pinho. Principiologia do Direito do Trabalho. Ano 1996. Pág. 134

[2] LEBRE, Eduardo Antonio Temponi. Direito Coletivo do Trabalho, 1ª edição. Porto Alegre: Síntese.

[3] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito processual do trabalho. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

Informações Sobre o Autor

Dayane Sanara de Matos Lustosa

Advogada e Correspondente Jurídico do LUSTOSA Assessori a e Consultoria Jurídica. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana Bahia. Colaboradora de vários sites e revistas jurídicas


Equipe Âmbito Jurídico

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