A União Europeia e o Direito Comunitário: uma manifestação regional do direito internacional

Resumo: A União Europeia, fruto do arranjo geopolítico do pós-Segunda Guerra Mundial, alcançou, após mais de 60 anos de sua criação, enquanto organização internacional uma inédita interdependência institucional. Partindo de uma perspectiva realista do Direito e das Relações Internacionais, o objetivo deste artigo é discutir os conceitos de intergovernabilidade e de supranacionalidade, para desfazer supervalorizações em relação ao direito da União Europeia, que é apenas um ramo regional do direito internacional.

Palavras-chave: União Europeia; Direito Internacional Westfaliano; direito comunitário; supranacionalidade; integração regional.

Abstract: European Union, yielded of a post-war geopolitical arrangement, has reached, after more than 60 years, as an international organization a novel institutional interdependence. According to a realist perspective of International Law and International Relations, this articles aims at addressing concepts of intergovernability and supranationality in order to deconstruct overvaluation in relation to European Union Law, that is a regional sector of International Law.

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Keywords: European Union; Westphalian International Law; communitarian law; suprantionality; regional integration.

Sumário: I- Introdução; II- O Processo de Formação e Desenvolvimento da União Europeia; III- O ordenamento jurídico e a pretensa supranacionalidade do Direito Comunitário; IV- Conclusão: o Direito Comunitário como um ramo regional do Direito Internacional Westfaliano.

I. Introdução

Os processos de integração não são novidades no mundo, principalmente na Europa[1] (TREIN, 2008).  As iniciativas de integração regional liderada pelo vetor econômico também não são pioneiras no cenário europeu; projetos relevantes foram promovidos durante o século XIX[2]. O projeto europeu do pós-Segunda Guerra conseguiu, entretanto, criar um arcabouço institucional e uma coesão monetária entre os membros inéditos para uma organização internacional. Seus alardeados êxitos no aprofundamento da cooperação interestatal serviram de inspiração a iniciativas integradoras em outras regiões, sobretudo na América do Sul, no tocante à teoria que justificou o projeto comunitário.

Influenciado por teorias liberais que emergiram no contexto do pós- Segunda Guerra Mundial, o projeto europeu, capitaneado por Robert Schuman e Jean Monnet, tinha forte inspiração no funcionalismo. Construto teórico, cujo maior expoente foi David Mitrany[3], que enfatizava a via econômica como o cunho prioritário para diminuição das discrepâncias comerciais entre os membros, harmonizando as economias nacionais e expandindo a prosperidade local. Estas visões liberais ou idealistas entediam que os grandes conflitos do século XX haviam ocorrido em função das rivalidades e das desigualdades econômicas, da não cooperação política e da intransigente postura soberana dos Estados na defesa de seus interesses, sobretudo, comerciais. Estas percepções foram modificando-se até se alcançar o neofuncionalismo[4], que advoga a cooperação econômica pela via comercial pode espraiar seus efeitos positivos para outras áreas e pode levar a integração a estágios considerados avançados, como no caminho para se atingir a união política (federalismo), por meio da complexificação da integração e da transferência de competências soberanas do Estado (que não era confiável para gerar estabilidade isoladamente, tendo em vista sua política interna e suas rivalidades históricas) à uma organização internacional. Uma solução duradoura para o alcance da paz perpétua seria a interdependência econômica, cujo êxito seria responsável por espalhar os benefícios a outras áreas, expandindo e setorizando a cooperação, o que é chamado de efeito spillover. Logo, a integração seria vista como um processo composto por etapas evolutivas. A mais desenvolvida, após se iniciar com uma área de preferências tarifárias, área de livre comércio, união aduaneira, mercado comum e união econômica, seria uma união política.

Analistas, entusiastas desta dinâmica[5], veriam na centralidade econômica, irradiadora de efeitos prósperos para outras áreas, a razão do alegado estágio avançado da União Europeia, o qual serviria de inspiração para as iniciativas de cooperação menos desenvolvidas, ideia que ganhou ainda mais relevo após a guinada europeia ao neoliberalismo, concretizada pelo Tratado de Maastricht.

Com as mudanças sistêmicas durante as décadas de 1970 e de 1980, a estratégia comunitária sofreu forte guinada. Abandonou a concepção do bem-estar social e direcionou-se pela ideologia neoliberal a seguir o caminho do privilégio aos capitais privados. Neste momento, a relativa paz, a prosperidade econômica e o fortalecimento institucional comunitário, alcançados pela Europa e alardeados por entusiastas neoliberais, criaram uma sensação ilusória de um modelo exitoso a ser utilizado por outras regiões. O funcionalismo deveria prevalecer, agora, todavia, capitaneado por um modelo econômico que abandonava o regionalismo fechado[6] para ingressar em uma lógica de regionalismo aberto[7], sem barreiras ao comércio mundial, escancarado ao mercado internacional, pressupondo que todos os países teriam condições iguais de competitividade e, se não o tivesse, poderiam se juntar aos vizinhos com os mesmo níveis de desenvolvimento para aumentar seu poder de barganha.

É neste panorama de relativização da soberania estatal, enfraquecimento do Estado-nação e fortalecimento da cooperação mundial via organizações internacionais[8] que o direito internacional alcançaria sua efetividade máxima e a paz e a estabilidade internacionais seriam garantidas. O conceito de supranacional[9] emerge nesta época e ganha prestígio a partir do espraiamento do ideário da globalização. Os defensores do direito cosmopolita[10] viam no direito comunitário sua maior expressão, dadas a operacionalidade e a dinamicidade atribuídas ao direito secundário da União Europeia, o qual não precisa passar pelo procedimento de incorporação interna dos Estados para vincular os destinatários da norma nos territórios nacionais, ou seja, possui efeito direto, o que motivou doutrina e jurisprudência comunitárias a desenvolver ainda mais teorizações sobre seu direito. Seu elevado grau de desenvolvimento normativo e regulatório, quando analisado pela via purista do Direito e liberal das Relações Internacionais, é superestimado, chegando ao ponto de gerar confusões conceituais ao ser classificar o direito comunitário como um direito supranacional, ou seja, funcionaria independentemente da vontade soberana do Estado-nação, lógica que deveria servir de exemplo para outras iniciativas de cooperação regional.

Esta particularidade pareceu inovadora ao direito internacional contemporâneo, pensado e difundido pelos ditames da Paz de Westfália[11], constituídos sob o postulado maior da soberania estatal. Inicialmente difundida na França (BODIN, 2011)[12], para resolver o conflito interno em torno da centralização, o valor fundamental da soberania veio a constituir o pilar das relações internacionais. Seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados e o da inexistência de um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica. De acordo com este sistema, os Estados seriam os principais detentores de direitos e de deveres, cujas fontes seriam oriunda do direito positivo (tratados internacionais) e do direito natural (costumes e princípios gerais de direito), devendo ter sua integridade respeitada por seus pares (não intervenção), a não ser em caso de conflito, no qual a guerra poderia ser considerada um meio legítimo de solução de controvérsias.

Em virtude da manutenção da vigência desta lógica hodiernamente, a visão realista[13] entende que as organizações internacionais e suas normas são, por essência, intergovernamentais, não podendo estar acima da vontade do Estado, se este assim não consentir. Logo, uma série de contradições será levantada sobre as peculiaridades da institucionalidade comunitário, de sorte questionar a suposta supranacionalidade do direito e da organização, afirmando que não há que se falar em um direito supranacional, mas sim em um direito internacional regional, podendo este ser efetivo ou não.

Desta forma, para a compreensão deste raciocínio, este trabalho será divido em uma primeira parte que contextualizará histórica e politicamente a formação e desenvolvimento da organização internacional europeia; em um segundo trecho que abordará as peculiaridades e o desenvolvimento do direito comunitário, bem como sua caracterização como supranacional; em uma terceira e última seção, que discutirá a estrutura do direito internacional westfaliano e concluirá a pesquisa com as observações sobre o direito comunitário enquanto um regional do direito internacional westfaliano.

II. O Processo de Formação e Desenvolvimento da União Europeia

O atual estágio alcançado pela Europa em seu processo de integração regional pode ser explicado a partir de uma análise crítica, que situa o processo como resultado, não exclusivo, mas considerável, das transformações internas e do sistema internacional. Construída pela interação de fatores internos (pacificação e recuperação econômica) e externos (projeção autônoma e contenção da influência soviética), o projeto integracionista foi desenvolvido a partir dos vetores de prevalência do capital e do desenvolvimento socioeconômico, com forte apoio e considerável complacência do poder hegemônico (TAVARES E BELLUZZO, 2004) [14]. Hodiernamente, acumula mais de 60 anos de experiência e um grau considerável de interdependência entre seus membros, além de uma vasta gama de instituições regionais, com foco em diversas áreas, o que não significa que todos os envolvidos são beneficiados[15].

Destruída materialmente, arrasada pelas perdas humanas e ocupada por tropas estrangeiras, a região, que, por pelo menos desde o século XVI, foi o epicentro mundial, viu-se uma posição ímpar dentro do sistema interestatal capitalista[16]. Como a oeste foi invadida pelos americanos e a leste, pelos soviéticos, a Europa tornou-se o centro da disputa de poder entre as duas grandes potências vitoriosas do conflito. Dividido o continente, as diferentes porções seguiram estratégias alinhadas com interesses externos. Enquanto que a parte oriental adotou a lógica soviética, a ocidental buscou enquadrar suas demandas à hegemonia estadunidense. Esta, por fazer parte da constituição da União Europeia, será alvo de maior aprofundamento deste estudo.

Desde a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, preparada pela Carta do Atlântico[17], em 1941, na qual a Grã-Bretanha reconheceu a hegemonia americana, os Aliados já começaram a pensar na reorganização mundial após o final do conflito[18]. A iminência da vitória aliada levou os países capitalistas a discutir o gerenciamento econômico internacional sob a égide da hegemonia estadunidense[19]. A ordem monetária foi instalada pelos Estados Unidos, como forma de organizar a configuração mundial do pós-guerra, sempre de acordo com seus interesses nacionais. O dólar foi alçado à condição de moeda internacional, única a ser conversível em ouro, enquanto as outras somente tinham o recurso de converterem-se em dólar. Ademais, criou-se o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento, BIRD, conhecido posteriormente como Banco Mundial, e o Fundo Monetário Internacional, o FMI, responsável pela correção do desequilíbrio na balança de pagamentos dos países. Desta reorganização mundial deriva ainda a Organização das Nações Unidas[20], que ratificou a força política e diplomática dos americanos, com o apoio dos europeus. A estes não cabiam uma opção de enfrentamento, mas de consentimento com o poderio americano, devido às condições internas de cada país.

Assim, à Europa Ocidental foi disponibilizada uma estratégia diferenciada, em relação a outras regiões, dentro do sistema hegemônico de poder, a qual foi, inevitavelmente consentida pelas elites locais ante a conjuntura internacional da época. Fiori explica a benevolência hegemônica aos europeus[21].

A questão interna gravitava em torno da situação econômica catastrófica, sendo necessário encontrar uma solução para sua reconstrução e pacificação, mantendo a remuneração satisfatória das elites liberais e impedindo a ascensão dos partidos socialistas internos. Os países europeus encontravam-se numa encruzilhada, desgastados pelo conflito, com perdas humanas, deterioração social e grande parte de sua cadeia produtiva e de sua infraestrutura comprometidas e, muitos, ainda, ocupados por potências estrangeiras, no Ocidente, pelos Estados Unidos, e no Oriente, pela União Soviética. O factível crescimento das ideias socialistas em meio à crise e a escassez de divisas motivaram o pragmatismo das elites capitalistas dos países ocidentais que aceitaram a ajuda financeira estadunidense e por meio dela criar um ambiente seguro e estável para a reconstrução econômica e social pela proliferação do capital, o qual foi obrigado a compor com os interesses do trabalho, articulando o Estado de bem-estar social e promovendo a cooperação entre as economias regionais, tanto no viés comercial quanto no aspecto socioeconômico.

A questão externa da integração foi determinada pelos rumos do embate entre Estados Unidos e União Soviética, que culminou na Guerra Fria. Era necessário retomar a proeminente projeção internacional e, ao mesmo tempo, às economias europeias ocidentais criar uma barreira de contenção à influência e aos capitais estatais soviéticos, os quais já haviam tomado a porção oriental do continente. A ameaça vinda do modelo político e econômico adotado pelo Leste Europeu ao capitalismo liberal estadunidense alterou a estratégia hegemônica quanto à situação dos antigos inimigos de guerra, em meados de 1947, sobretudo em relação à solução dada à questão alemã[22]. Cogitada para ser desindustrializada e tornar-se uma grande colônia agrícola[23], foi transformada na grande vitrine do capitalismo ocidental, por meio do projeto americano de desenvolvimento a convite[24] dos outrora inimigos de guerra[25]. Assim, mesclando os motivos internos e externos, a integração europeia passou a ser construída a partir da Alemanha Ocidental como o polo irradiador do crescimento econômico regional, em uma estratégia hegemônica de europeizar os interesses alemães[26].

Este arranjo inicial, responsável por dimensionar o projeto integracionista em duas vertentes: a de promoção dos capitais nacionais conjuntamente com a de fomento ao desenvolvimento socioeconômico, passou a ser refeito a partir das transformações na economia e na geopolítica mundiais. As transformações sistêmicas ocorridas, principalmente nas décadas de 1970 e 1980 levaram o processo europeu a ser repensado. Em um contexto de rompimento do padrão monetário internacional, bem como de questionamentos à hegemonia americana, e de desgaste e crescentes tensões na composição entre capital e trabalho, os Estados Unidos, com o auxílio britânico, lideraram uma ofensiva política e ideológica em favor do capital financeiro, livrando-o das amarras estatais, fortalecendo-o e, em contrapartida, enfraquecendo os pleitos trabalhistas, representados pelos sindicatos. Este movimento emergiu a crise mundial proporcionada pelo Choque de Juros estadunidense[27], o qual afirmou o padrão dólar flexível[28] e elevou a contestação do Estado de bem-estar social, propondo uma reforma neoliberal[29] às funções estatais. Este novo panorama arrefeceu o ímpeto comercial alemão e restringiu sua área de influência ao continente europeu, além de minar as bases do Estado de bem-estar social do pós-guerra, como bem sintetiza Carlos Medeiros[30].

Sentindo a necessidade de sair da inércia e de adotar uma postura reativa às transformações da época, os líderes europeus relançaram a integração, com o Ato Único Europeu, articulado por Jacques Delors, em 1985. O ideário globalizante impregnava o pensamento das elites, que romperam a acomodação do capital com o trabalho pelo bem-estar social para impor seus interesses ao bloco. A pressão pela abertura das economias ao capital financeiro era latente e considerada retoricamente como inevitável. A reunificação da Alemanha e a dissolução da União Soviética aceleram a remodelagem europeia, que culminou no Tratado de Maastricht, de 1992. O tratado internacional estruturou a integração por meio da formação da União Europeia, que abarcaria todas as iniciativas comunitárias anteriores sob o mesmo teto, mas com uma lógica distinta, que priorizava somente o viés do capital, abandonando o desenvolvimento socioeconômico[31]. Além disso, no documento, ficou expressa a intenção de transformação do mercado comum europeu em mercado único por meio da previsão de uma moeda comum para a zona comunitária. A integração europeia mostrava adaptabilidade ante a conjuntura internacional e, baseada na lógica neoliberal do regionalismo aberto, viria a servir de parâmetro para outras iniciativas de integração econômica no sistema mundial.

III. O ordenamento jurídico e a pretensa supranacionalidade do Direito Comunitário

Tendo em vista o processo que permitiu a constituição da União Europeia, cabe, neste momento, especificar o tema, dando ênfase particular à arquitetura jurídica do direito comunitário[32]. Criou-se a partir da jurisprudência do outrora Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, um ordenamento jurídico internacional autônomo em relação ao direito interno dos Estados e com uma lógica distinta daquela que rege a interação entre o direito internacional público e o direito nacional. Dentro desta construção, destacam-se os sujeitos (Estados e seus indivíduos são os destinatários das normas) e as fontes do direito comunitário, oriundas da jurisprudência (do Tribunal de Justiça da União Europeia e sua interação com os tribunais internos dos Estados-membros), dos princípios consagrados (pela jurisprudência, pela doutrina e por cartas) e do direito positivo, notadamente dos tratados internacionais e das decisões orgânicas internas (que compõe o direito primário e o secundário respectivamente).

Diferentemente do que acontece no Direito Internacional Público e de maneira próxima a que ocorre no direito interno, a jurisprudência assume um papel central nesta dinâmica. O Tribunal de Justiça da União Europeia foi criado pelo Tratado de Roma, em 1957, como Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, cujo objetivo é garantir o respeito ao direito na interpretação e aplicação dos tratados. Ao longo dos anos sofreu modificações estruturais, passando a contar, após o Tratado de Lisboa, de 2007, com três instâncias de julgamento, sendo a primeira referente a tribunais especializados, a segunda, ao tribunal geral, e a terceira, ao Tribunal de Justiça. O órgão como um todo exerce competência na verificação do cumprimento do direito comunitário (primário e secundário), na garantia de efetividade e construindo a hermenêutica das normas comunitárias. Suas decisões são importantes para a consolidação e o desenvolvimento deste ramo jurídico. Logo, a jurisprudência[33] europeia exerce papel bem além daquele esclarecedor de controvérsias dentro deste ordenamento, pois é conformador do ordenamento jurídico, bem como consagrador de princípios[34], os quais possuem, de acordo com a doutrina (ESPADA et ali, 2012), precedência hierárquica, com status jurídico semelhante ao do direito primário.

Atuando independentemente e harmonicamente com os tribunais europeus, estão os tribunais internos de cada Estado-membro. Estes interagirão com aqueles quando realizarem o controle de constitucionalidade do direito primário, após o procedimento de incorporação ao direito interno, e, principalmente, na efetivação do direito secundário e nos casos do reenvio prejudicial, instituto jurídico que permite o julgador nacional remeter o processo ou consultar a corte comunitária, quando surgir dúvidas em relação à lide julgada internamente quanto à aplicação e interpretação do direito comunitário (primário e secundário).

As regras e valores aplicados pelos órgãos jurisdicionais originam-se em sua grande maioria das manifestações do direito positivo, dos tratados internacionais[35]. O direito primário é hierarquicamente superior ao secundário, estando no topo do direito regional, como as normas constitucionais são no direito interno. Compõe-se pelos tratados internacionais celebrados entre os Estados- membros[36]. Por exemplo, engloba o Tratado de Paris, de 1951, que criou a Comunidade Europeia de Carvão e do Aço[37]; os Tratados de Roma[38], em 1957, que criaram a Comunidade Econômica Europeia e a EURATOM; o Tratado de Maastricht[39], de 1992; o Tratado de Amsterdã[40], de 1997; o Tratado de Nice[41], de 2001; e os Tratados de Lisboa[42], de 2007. Para que as normas oriundas destes documentos vinculem os Estados signatários é necessário que estes sejam incorporados pelo direito interno estatal, no qual cada Estado determina seu procedimento (a maioria prescinde do crivo parlamentar).  O direito primário[43] europeu é bem complexo em seu nível de cooperação entre Estados, visto que, além de regras conjuntas, é responsável por criar órgãos que regerão a institucionalidade comunitária. A estas instituições serão atribuídas competências pelos Estados signatários, as quais poderão ser exclusivas, compartilhadas e de coordenação. Em seu funcionamento emitirão documentos, os quais poderão ter valor jurídico.

O direito primário ou fundamental determina quais gozam desta prerrogativa: o Parlamento Europeu, o Banco Central Europeu (nos países que aderiram à moeda única) o Conselho da União Europeia (ou de Ministros) e a Comissão Europeia. As manifestações expressas dos três constituem o direito secundário ou derivado da União Europeia, o qual obedece aos procedimentos e competências previstos pelo direito primário, sendo composto por regulamento (que traz normas de caráter geral, sendo obrigatório em todos seus elementos e diretamente aplicável aos Estados-membros); diretiva (a qual vincula o Estado em relação ao resultado alcançar um objetivo geral, relegando às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios de efetivá-lo); decisão (específica e obrigatória às partes que envolver em todos seus elementos); e, por fim, pareceres e recomendações (manifestações consultivas que não são vinculantes, que só terão valor jurídico para colmatar as lacunas das normas obrigatórias).

No direito secundário da União Europeia reside uma particularidade que, aparentemente, não é comum a outras organizações internacionais voltadas à integração regional. A jurisprudência do Tribunal de Justiça Comunitário e a doutrina especializada, com base nesta, foram responsáveis por pensar a relação do ordenamento regional e das disposições nacionais de uma forma que viabilizasse e dinamizasse o funcionamento das instituições europeias. Com fulcro nos julgados Caso Van Gend em Loos[44], Caso Walrave[45], Caso Simmenthal[46], Caso Ratti[47], Caso Francovich[48] e Caso Costa/ENEL[49] o tribunal europeu consolidou dois princípios fundamentais: a primazia do direito secundário sobre o interno nas competências que lhe forem exclusivas, podendo torná-las inaplicáveis ou anulá-las, bem como afirmou o princípio do efeito direto, que possibilita a invocação das normas comunitárias perante os tribunais internos, sem necessidade de incorporação das normas estrangeiras (regulamentos, diretivas e decisões não precisariam passar pelo procedimento de incorporação ao direito interno, surtindo efeitos jurídicos a partir de sua publicação) nos ordenamentos nacionais.

 Este direito derivado comunitário regido pelos princípios do efeito direto e da primazia, e, por isto, diferente em relação ao direito internacional, e autônomo ao direito interno, seria um novo gênero dentro do mundo jurídico. Este conjunto de características serve para que se atribua o adjetivo de supranacional ao direito comunitário. Logo, o direito comunitário seria supranacional, visto que seria aplicado à revelia da vontade dos governos nacionais. Seu funcionamento e operacionalidade não poderiam ser afetados por questões políticas internas. Pelo mesmo raciocínio os órgãos que elaboram as normas jurídicas secundárias seriam classificados como supranacionais, com uma vontade própria que não se confunde com a dos Estados. Este distanciamento das instâncias técnicas comunitárias em relação à política interna de cada membro é vista pelas teorias liberais neofuncionalistas[50] como um fator positivo e de elevado grau de desenvolvimento dentro das escalas evolutivas de um processo de integração pela via comercial. Em contrapartida do avanço da supranacionalidade, a intergovernabilidade é vista como um modelo atrasado e pouco eficiente. O direito supranacional manifesta a cooperação estatal na área jurídica, de maneira próxima à de um Estado federal, ou seja, é hierarquizado, efetivo (com efeito e aplicação diretos, em princípio), mas não conta com um ente central soberano, dotado, em última instância do monopólio do poder de coerção.

A semelhança do direito regional com a lógica jurídica interna dos Estados é explicada por Daniel Sarmento quando aborda sua lógica estrutural, em analogia com a relação entre normas federais e estaduais em uma federação[51]. Em virtude desta construção peculiar e da relativa independência de sua aplicação da soberania estatal, autores liberais entusiastas do pensamento kantiano[52] afirmam ser o direito comunitário o modelo mais próximo ao ideal jurídico do direito cosmopolita[53], um dos fatores principais para a promoção da paz perpétua entre os Estados, que deixariam as prerrogativas soberanas para tornarem-se uma grande federação que compartilhasse valores comuns[54].

A situação idealizada por Kant parecia próxima após a emergência da globalização financeira e seu ideário homogeneizador. O estreitamento das comunicações e das relações comerciais proporcionados pelo avanço tecnológico gerou entre os pensadores do direito[55] uma euforia desmedida a ponto de sustentar um gradual enfraquecimento do Estado-nação, com a consequente, extinção das fronteiras nacionais. Com a remodelação e organização da União Europeia pós-Tratado de Maastricht, nos moldes da ideologia neoliberal, autores, como Jürgen Habermas entendiam ser o formato supranacional do direito comunitário a solução para os impasses entre os interesses do indivíduo e a soberania estatal[56].

Esta aparente decadência do Estado-nação, perdendo espaço para organizações internacionais, de normas e funcionamento imunes à política das nações, não se coaduna com a estrutura e a realidade do Direito Internacional Público, a qual ainda não foi modificada substancialmente, mas, como envolve um conteúdo com forte influência político, foi adaptada às novas condicionantes do sistema internacional.

IV Conclusão: o Direito Comunitário como um ramo regional do Direito Internacional Westfaliano

O Direito Internacional Público contemporâneo veio sendo construído a partir da transição entre Idade Média e Idade Moderna[57], período marcado pelo fim da influência da Igreja nas monarquias. Em meio à lógica feudal, desenvolvia-se o poder da burguesia, cujos interesses se contrapunham àqueles dos proprietários de terras. A concepção católica de mundo, que embasava o modo de produção feudal, já não atendia plenamente aos interesses comerciais da classe ascendente. Com isso, os Estados modernos foram sendo constituídos a partir da visão jurídica de mundo da burguesia, que secularizava a perspectiva teológica, libertando a monarquia da tutela do Papa[58].

O suporte jurídico deste movimento de enfraquecimento do direito divino e de fortalecimento do poder político foi o postulado da soberania dos Estados, de reflexos internos (dentro das fronteiras territoriais) e externos (sem questionamentos por outros monarcas). Este veio a constituir o pilar das relações internacionais e, consequentemente, do direito internacional após a Guerra dos Trinta Anos[59]. No sistema interestatal, seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados[60] e o da inexistência de um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica[61]. Internamente, legitimaria o poder de coerção do Estado, como um poder exclusivo, uno, supremo e indivisível (BODIN, 2011).

O Estado, portanto, é colocado no centro das discussões, sempre atuando em favor do interesse nacional, que imediatamente é o de sobreviver e impor sua vontade em um ambiente descentralizado e horizontal por meio do acúmulo de poder. Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados (FIORI, 2007). Com o passar do tempo, as mudanças sistêmicas determinaram uma maior complexidade da relação entre Estados, abrindo espaço para o surgimento de organizações internacionais e para a relativização do conceito absoluto de soberania, o qual foi adaptado às novas necessidades e aos novos temas da agenda global, valorizando a cooperação interestatal (KOSKENIEMMI, 2004).

Neste panorama é que se encontra a integração regional europeia. Resultado de um arranjo geopolítico do pós-Segunda Guerra Mundial, cujos rumos foram determinados por condicionantes internas e externas, seguiu e adaptou-se às transformações da sociedade internacional, sobretudo ao ideário neoliberal do final do século XX.  Com uma estrutura remodelada pelo Tratado de Maastricht, a articulação peculiar do direito comunitário passou a ser defendida pelos pensadores liberais como modelo de um direito livre de interferência da política dos Estados, ante sua autonomia perante o direito interno e suas particularidades em relação ao direito internacional. Apesar de gozar de características próprias, o direito comunitário não está acima da vontade dos Estados e constitui uma manifestação específica regional do direito internacional público por diversas razões, as quais serão expostas a seguir.

A primeira e mais óbvia reside no fato da União Europeia não ser um Estado federal, mas uma organização internacional, como todas as outras que existem no direito internacional. Isto significa que pela definição doutrinária (TRINDADE, 2003 e PELLET et alli, 2003) a UE é composta por uma união de vontades dos Estados (soberanos), a qual lhe garante uma personalidade jurídica derivada (originária é a dos Estados) e própria (com a dos Estados não se confunde necessariamente), constituída por tratado internacionais (constitutivos) e instrumentalizada a um fim específico (econômico). Estas entidades são regidas pelos princípios da especialidade e da subsidiariedade. Em outras palavras, suas competências serão delegadas pelos Estados para que elas possam atingir seus objetivos. Ocorre que a distribuição de competências na União Europeia é bem complexa, envolvendo diversas áreas, ainda que, em sua maioria, voltadas a questões comerciais e econômicas, sem tocar na maior parte das prerrogativas soberanas do Estado[62]. O argentino Félix Peña rechaça a ideia evolucionista do processo de integração, ainda que dentro de uma visão funcionalista, situando-o como uma plataforma de efetivação do interesse nacional por meio da potencialização do interesse regional, em um sistema de ganhos recíprocos, o que o legitima teoricamente perante a sociedade[63].

A segunda aborda a institucionalidade europeia, cuja sua composição difusa e complexa, que reúne a mescla de pilares supranacionais e intergovernamentais, como, respectivamente, o das Comunidades e o de Política e Segurança Externa Comum, a PESC[64]. A coordenação destes vetores é feita por intermédio do Conselho Europeu, o órgão executivo de cúpula, responsável por elaborar as diretrizes políticas gerais, composto pelos Chefes de Estado e de Governo dos países membros, pelo seu Presidente e pelo Presidente da Comissão Europeia (estes dois últimos não têm direito de voto), ainda segue a lógica intergovernamental e não supranacional, como outros da Comunidade[65]. Criado definitivamente na Cúpula de Paris, em dezembro de 1974, não nasce como um órgão comunitário e somente aparece pela primeira vez na arquitetura formal após a incorporação do Ato Único Europeu, em 1986. Ainda assim, é competente para debater e tomar decisões sobre o desenvolvimento e a coesão da União Europeia como um todo, sem, contudo, exercer função legislativa. Com o Tratado de Lisboa foi incorporado definitivamente no seio comunitário, tendo suas competências ampliadas e modificadas[66], sem perder a intergovernabilidade. Diante do exposto, parece um contrassenso celebrar a supranacionalidade da União Europeia, quando seu órgão norteador de rumos políticos segue ainda a lógica intergovernamental, o que só revela que a vontade dos governos influencia diretamente nas questões regionais.

A reserva de soberania do Estado é evidenciada também na terceira razão, atinente ao direito comunitário. Em primeiro lugar, o direito originário segue a lógica ordinária do direito internacional, ou seja, para ser aplicado internamente, precisa passar pela aprovação no procedimento de incorporação dos tratados internacionais. Em segundo lugar, o direito derivado, dele originado, ganha particularidade por não precisar novamente submeter-se ao procedimento de incorporação, tendo efeito direto nos tribunais nacionais. Isto garante operacionalidade e dinamicidade à organização dentro dos assuntos para os quais os órgãos comunitários são competentes. Estas competências foram transferidas pelos Estados e referem-se a assuntos específicos, os quais envolvem em sua maioria questões comerciais e econômicas. Logo, os Estados não perdem sua soberania ou são enfraquecidos, ao contrário, transferem prerrogativas e poderes para efetivar seu interesse nacional ou prioridades de suas elites, tornando por meio das normas as relações comerciais mais dinâmicas e estáveis[67]. Além do efeito direto, o direito secundário possui uma autoproclamada primazia sobre a legislação interna, feita pela jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu. Ainda que louvável na teoria, na prática dependerá de sua confirmação nos tribunais internos[68], os quais somente renunciaram a este controle, se o direito comunitário efetivar de forma satisfatória (conceito bastante subjetivo e de fácil manipulação) os direitos fundamentais (SARMENTO, 2006).

Portanto, vistas as três razões acima, percebe-se que o conceito de supranacionalidade exprime nada mais que duas particularidades do direito comunitário, as quais não são suficientes para colocá-lo acima da vontade soberana do Estado. O que há é um direito internacional regional[69], o qual respeita os ditames da soberania, ainda que se diferencie de outras manifestações jurídicas regionais. A noção de que o direito comunitário supera a soberania do Estado é datada e conveniente para suas elites controladoras e antidemocráticas[70], cujo intuito é a imposição da ideologia neoliberal que foi institucionalizada na União Europeia após o Tratado de Maastricht.

 

Referências
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Notas:
[1] Assim descreve o processo histórico o Professor Franklin Trein (TREIN, 2008: pp. 136-137): Se a geografia da Europa não tem critérios claramente definidos para estabelecer suas fronteiras, sua história é objeto de interpretações e argumentos muitas vezes mais ricos e complexos. Contudo, isto não impediu, ao longo da História, que se tenha cogitado, com frequência, a construção de uma unidade dos Estados europeus. Contrariando alguns estudiosos, os séculos XVIII e XIX não foram o berço original dos ideais de uma Europa integrada, ainda que seja possível encontrar naquele período alguns de seus mais entusiasmados defensores. Muito antes, ainda nos séculos XIII, XIV e XV, poetas, filósofos e políticos já construíam argumentos em favor de uma Europa unida. O que nem sempre era dito é que, desse modo, se sonhava recuperar a herança histórica e as grandezas do Império Romano. Entre os muitos autores daquele período, alguns nomes merecem ser citados: Pierre Dubois (1250-1312) da França, Tomasso Campanela (1568-1639), da Itália, Georg von Podiebrad (1420-1471), rei da Boêmia. Mais tarde, no século XIX, dois homens ilustres merecem ser lembrados por suas idéias em favor de uma união da Europa: Victor Hugo (1802-1885) e Conrad Friedrich von Schmidt-Phiseldek (1770-1832). Este último elaborou, exaustivamente, a tese de uma “União Européia”, o que a tornou, talvez, a mais expressiva de todas as contribuições recolhidas ao longo de séculos.
[2] Unificação monetária alemã, bem-sucedida, atingida com a integração territorial e política, marcada pela criação do Reichsbank, em 1876. União Monetária Latina, formada em 1866, por França, Suíça, Bélgica e Grécia. União Monetária Escandinava, constituída em 1872, por Suécia, Dinamarca e Noruega.
[3] O romeno naturalizado britânico nasceu em 1888 e faleceu em 1975. Sua obra, escrita no período entre-guerras, foi pioneira dentro da tradição liberal idealista na construção e teorização sobre os modelos de integração regional. Identificava que o sistema westfaliano de Estados gerava fortes tensões na defesa de cada país por seu interesse nacional. A tentativa de reverter o contexto de rivalidades históricas que acirravam as disputas durante os anos dourados do imperialismo europeu no século XIX e início do XX deveria ser comandada pela inter-relação econômica dos países, transferindo as competências a órgãos neutros e instrumentais, acima da política egoísta dos Estados. Em meio à interdependência econômica, ou seja, na coletivização dos interesses econômicos seria possível estabelecer um panorama de estabilidade e paz, próximo à paz perpétua kantiana pela federalização dos Estados. Para os autores desta matriz de pensamento, o período entre-guerras ilustrava como as rivalidades e a defesa irrestrita do interesse nacional podem ser danosas à humanidade. Para mais ver MITRANY, David. A Paz e o Desenvolvimento Funcional da Organização Internacional. In: BRAILLARD, P. (ed.). Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. p. 566-603.
[4] Corrente que além da defesa da cooperação regional voltada ao institucionalismo supranacional e o compartilhamento de competências soberanas, enfatizava a via comercial como principal responsável por irradiar efeitos positivos para outras áreas.
[5] Análises, como a de Elena Lazarou e dos autores que a inspiram, consideram esta peculiaridade como marca do estágio avançado europeu, como se o processo de integração (e o que chama de compartilhamento de competências) fosse evolutivo e gerasse efeitos positivos em todas as áreas (LAZAROU, 2013: p,. 107): “O que torna a União Europeia única é a fusão econômica, política, social e, possivelmente, ideacional da maioria das políticas dos Estados-membros. É, certamente, o único caso de integração regional funcional envolvendo governança supranacional, competências compartilhadas e uma partilha de soberania (Keohane e Hoffmann, 1991). Enquanto mercados comuns e uniões aduaneiras são menos incomuns, a UE evoluiu desse nível para uma comunidade política com instituições próprias, um sistema legal, políticas, valores e princípios. O processo de spillover, por meio do qual isso ocorreu, é, talvez, a chave para a singularidade do modelo.”
[6] O regionalismo é fechado em relação ao comércio internacional. Nas iniciativas de integração pautadas pela lógica cepalina, como a ALALC e a ALADI, no continente americano, por exemplo, antes de partir ao mercado internacional é preciso que as indústrias locais se fortaleçam por meio de medidas protecionistas para que possam obter melhores condições de competitividade.
[7] O regionalismo aberto tenta reverter a lógica cepalina, incutindo as ideias neoliberais de abertura dos mercados e economias nacionais, sem quaisquer medidas de transição, à competição internacional, a qual será, em teoria, a responsável por obrigar as indústrias nacionais a se modernizarem, se fortalecerem e se tornarem competitivas.
[8] Foros neutros, em teoria, nos quais a vontade comum é derivada da transferência de competências estatais, mas própria e não se coincide, necessariamente, com a de um Estado específico (TRINDADE, 2003).
[9] Ana Paula Tostes comenta a crise do Estado nação e as novas mudanças acarretadas pela globalização, caracterizando o conceito de supranacionalidade (TOSTES, 2001: pp. 36-37): “A União Europeia (UE) tem enfrentado dificuldades de várias naturezas ao inaugurar um modelo de ação política que é fruto de uma nova engenharia institucional, bem mais complexa do que a estatal. A ação política “comunitária” fundamenta-se em um princípio de interesse supranacional: o “interesse comunitário” dos Estados europeus. Esta novidade política estruturada por instituições que também não se comprometem a realizar os interesses intergovernamentais ou interestatais, mas apenas o “interesse comunitário”, exige esforços teóricos e analíticos em favor de modos alternativos (ao estatal) de constituição de legitimidade da ação política, de justificação do poder e de identidade coletiva.”
[10] O direito cosmopolita tem em Jürgen Habermas e Ulrich Beck seus defensores mais conhecidos.
[11] A Guerra dos Trinta Anos envolveu conflitos de cunho político e religioso que devastaram os reinos germânicos da parte central da Europa e que envolveram as grandes potências da época, ao final, foram marcados pela vitória dos países protestantes e pelo enfraquecimento da Igreja Católica. Os tratados que celebraram a paz, em 1648, firmados em Osnabrück e em Münster, duas cidades da região de Westfália, expressaram os valores que passariam a nortear a ordem jurídica interestatal (PELLET, 2003).
[12] Difundida pela publicação do livro Os Seis Livros da República, de Jean Bodin, em 1576.
[13] A premissa central do pensamento realista é o sistema de Estados, no qual cada ente quer impor seu interesse nacional, com o intuito de maximizar seu poder perante os outros (ZOLO, 1999 e FIORI, 2007).
[14] Apoiado na concepção difundida pelos autores é possível ilustrar a parte teórica com alguns exemplos práticos. A chancela hegemônica ao projeto de integração europeu é manifestada desde o Plano Marshall, a criação da OECE e da União Europeia de Pagamentos, passando pela criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), instituição responsável pela defesa militar na região, até na constituição da Alemanha (desenvolvida a convite) como polo de liderança econômica regional. Sem este apoio fundamental, não teria esta iniciativa certamente prosperado da forma como conhecemos. Para mais ver: TAVARES, Maria da Conceição e BELLUZZO, Luiz Gonzaga. “A Mundialização do Capital e a Expansão do Poder Americano”. IN: FIORI, J. L. C. (org.) O Poder Americano, Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
[15] De acordo com José Manuel Pureza, crítico da integração europeia pela via dos capitais e que pontua a celebrada e relativa paz e estabilidades por ela geradas: (PUREZA, 2012): A simples existência da UE como estrutura de integração econômica e política não é suficiente para explicar a paz prolongada na Europa. A paz pela integração dos mercados e pela abdicação de soberania é uma tese frágil. Porque só funciona para explicar a calmaria de quem ganha com a integração e de quem não é demasiado lesado com a perda de soberania. Quem perde não quer essa paz que o esmaga. E é claro que esses são sempre processos com ganhadores e perdedores. Mais ainda: os ganhadores de hoje podem rapidamente tornar-se os perdedores de amanhã”.
[16] Para este artigo o sistema interestatal capitalista emergiu no que Fernand Braudel cunhou ser o longo século XVI e permanece até os dias atuais, intensificado, como ressalta Fiori ao destacar o papel dos Estados protagonistas (FIORI, 2008: pp. 31-32): “Desde o início do sistema mundial moderno, o expansionismo dos Estados líderes teve um papel decisivo no desenvolvimento de suas economias nacionais, e vice-versa. O impulso conquistador desses Estados impediu que seus mercados locais se fechassem sobre si mesmos e alargou suas fronteiras, com a inclusão de outras economias no seu território econômico supranacional, ao mesmo tempo, que foi criando oportunidades monopólicas para a realização dos lucros extraordinários que movem o capitalismo. Neste novo sistema interestatal manteve-se- num patamar muito mais elevado- a mesma relação virtuosa que já existia na Europa no século XIII e XIV, entre acumulação do poder, as guerras, o aumento contínuo da produtividade e do excedente econômico; e entre as guerras, as dívidas públicas, os sistemas de crédito e a multiplicação do capital financeiro”.
[17] Carta do Atlântico é a denominação para o acordo de cavalheiros assinado por Winston Churchill e Franklin Roosevelt, cada qual representando sua respectiva nação, Grã-Bretanha e Estados Unidos, no qual se estabelecia os termos para o suporte estadunidense para os aliados na Guerra contra o Eixo. Esse documento foi assinado a bordo de um navio no Oceano Atlântico e não tinha o caráter jurídico de tratado internacional, mas seria legitimado pela moral do compromisso e duraria enquanto seus signatários ocupassem seus cargos de chefia do Estado. Esse acordo proporcionou aos aliados um fôlego extra no combate, uma vez que incluía condições facilitadas de empréstimo e de aquisição de material bélico, bem como suporte logístico.
[18] Diversas conferências importantes foram realizadas de 1941 até 1945, com destaque para a ocorrida na pequena cidade norte-americana de Bretton Woods, em julho de 1944.
[19] Essa percepção de hegemonia passa pela noção difundida por Antônio Gramsci (GRAMSCI apud MORTON, 2006: p.95): “It has been established that the moment of hegemony involves both the consensual diffusion of a particular cultural and moral view throughout society and its interconnection with coercive functions of power; or there is corresponding equilibrium between ethico-political ideas and prevailing socio-economic conditions fortified by coercion (…) To sum up, hegemony is marked by the decisive passage from the structure to the sphere of the complex superstructures.”
[20] Criada pela Conferência de São Francisco, em julho de 1945, como sucessora da combalida Sociedade das Nações
[21] Fiori esclarece (FIORI, 2004: p. 88): “Na verdade, a posição ultraliberal dos financistas só foi quebrada transitoriamente pela crise de escassez de dólares na Europa em 1947; pela ameaça de vitória política-eleitoral dos comunistas na França e na Itália, nas eleições de 1948; e pelo colapso da economia japonesa. Suas ideias predominaram de 1945 e 1947, mas acabaram sendo revertidas pelo novo quadro internacional e pela imposição de prioridades estratégicas da nova Doutrina da Guerra Fria. É neste contexto que se explica o Plano Marshall, assim como todas demais concessões feitas pelos Estados Unidos, com relação ao protecionismo dos europeus, em particular com a retomada dos velhos caminhos heterodoxos das economias alemã e japonesa.”
[22] Expressão consagrada pela literatura especializada que ganhou maior relevo após a unificação da Alemanha como Estado nacional no final do século XIX, gerando grande desequilíbrio na balança europeia de poder.
[23] Henry Morgenthau foi Secretário do Tesouro Americano à época que não se confunde com seu contemporâneo, o realista acadêmico Hans Morgenthau, autor do clássico livro”A Política das Nações”.
[24] Expressão consagrada pela literatura especializada em desenvolvimento comparado para explicar os investimentos financeiros, intenso fluxo comercial e a tolerância monetária que os Estados Unidos tiveram em relação a Alemanha e Japão.
[25] Problemática geopolítica acirrada com a unificação e formação da Alemanha enquanto Estado nação, que esteve, direta ou indiretamente, presente nas causas das duas guerras mundiais.
[26] Fiori sintetiza a estratégia estadunidense quanto aos países derrotados (FIORI, 2004: p.89): “Esta mudança da posição americana com relação à estratégia de desenvolvimento dos países derrotados, em particular o Japão, a Alemanha e a Itália, se transformou na pedra angular da engenharia econômico-financeira do pós- II Guerra Mundial, em particular depois da década de 1950, quando estes países se transformaram nos grandes “milagres” econômicos da economia capitalista. (…) Em outras palavras, viraram “protetorados militares” e “convidados econômicos” dos Estados Unidos, e no caso da Alemanha e do Japão, foram transformados em “pivôs” regionais de uma máquina global de acumulação de capital e riqueza que funcionou de forma absolutamente virtuosa entre as Grandes Potências e em algumas economias periféricas até a crise da década de 1970.”.
[27] Em meio a uma sequência de crises, interna e externa, acompanhada de questionamentos sobre o declínio da hegemonia estadunidense, antes do fim do governo Carter, ainda em 1979, Paul Volker assume a cadeira do Federal Reserve, dando nova guinada às pretensões imperiais estadunidenses, com o Choque de Juros. Na manobra, as taxas de juros foram elevadas unilateralmente e atingiram níveis estratosféricos, acompanhadas por um discurso de fomento às inovações financeiras e à desregulamentação, que predominaria na década de 1980. A valorização inesperada do dólar, como manobra para sair do contexto de questionamentos, que suscitavam o questionamento à hegemonia americana, conduziu a economia mundial à recessão. Os EUA, em sua estratégia de restauração liberal-conservadora, retomam progressivamente o controle do sistema monetário-financeiro internacional.
[28] Conceito cunhado por Franklin Serrano para explicar o novo regime monetário internacional (SERRANO, 2004). A particularidade desse novo padrão reside no fim de duas limitações que tanto o padrão ouro-libra, quanto o ouro-dólar impunham aos países que emitiam a moeda chave, a necessidade de manter o câmbio fixo, para que se evitasse a fuga para o ouro e os consequentes déficits na conta corrente, e a possibilidade de incorrer em déficits globais na balança de pagamentos e financiá-los com ativos denominados em sua própria moeda como nos outros padrões anteriormente citados. Ademais, a ausência de conversibilidade em ouro garante ao dólar a liberdade de variar por sua iniciativa unilateral a paridade em relação às moedas dos outros países conforme sua conveniência, por meio de mudanças nas taxas de juros americanas.
[29] O ideário neoliberal inspirado nas ideias ultraliberais de economistas como Friedrich Hayek e Milton Friedman atribuía à iniciativa privada o papel regulamentador e fomentador da economia, relegando ao Estado funções meramente logística que proporcionassem à lógica mercadológica a máxima eficiência. Entre as medidas desejáveis haveria a redução da intervenção estatal, restrita a fatos episódicos e excepcionais, por meio, sobretudo, das privatizações dos serviços públicos, abertura do mercado interno ao capital estrangeiro e um dracioniano corte de gastos públicos, tendo a economia nacional a preocupação primordial de garantir a estabilidade de preços e os picos inflacionários.
[30] O pensamento de Medeiros é resumido (MEDEIROS, 2004: pp.139-140): “A retomada da política hegemônica do dólar no início dos anos 80 interrompeu as possibilidades de se construir em colaboração com os principais países industrializados, alternativas monetárias a um dólar enfraquecido. A estratégia de enquadramento dos aliados e das moedas rivais se deu como reação ao extraordinário sucesso industrial e exportador da Alemanha e do Japão e da contestação do dólar enquanto moeda internacional que caracterizaram a economia mundial no final dos anos 70. A iniciativa norte-americana de retomada da hegemonia econômica e ideológica nas relações internacionais afirmou-se, também, como uma ampla ofensiva interna liderada pelos EUA e Inglaterra contra os sindicatos, o Estado de Bem-Estar, o excesso de democracia, interrompendo o crescimento compartilhado típico do keynesianismo social que caracterizou o capitalismo industrial no pós-guerra.”
[31] Pureza resume a guinada ao neoliberalismo, abandonando o viés do desenvolvimento socioeconômico e priorizando exclusivamente o do fomento ao capital (PUREZA, 2012): Sucede todavia que desde 1992 que a Europa abandonou esse modo de ser um projeto de paz. Passou a dar primazia inequívoca à competitividade em detrimento da coesão. Passou a dar primazia ao ser mercado em detrimento do ser união. A arquitetura da União Económica e Monetária, expressão da hegemonia do pensamento neoliberal, repudia o modelo social e a democracia inclusiva em escala europeia em que a paz se alicerçou.”
[32] O direito da União Europeia ganhou por ilustrar as normas e valores do sistema criado pelas Comunidades Europeias, criadas durante a década de 1950 e unificadas na década de 1960.
[33] A jurisprudência, de acordo com o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, é um meio auxiliar ou fonte secundária do direito internacional, logo, não tem valor jurídico em princípio, não obriga necessariamente as partes, somente terá efeitos vinculantes na omissão de uma fonte primária que trate do assunto.
[34] O Caso Stauder (processo n° 29/69) confirmou a aplicação de princípios no direito comunitário, atribuindo relevo aos princípios gerais de direito e os princípios e garantias fundamentais. Com os Protocolos aos Tratados de Lisboa, foi incorporada a Carta de Direitos Fundamentais, positivando os direitos humanos no sistema jurídico regional.
[35] O Tratado Internacional é um exemplo, de acordo com o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, de fonte primária ou material do direito internacional público, é um instrumento legal que possui valor jurídico, ou seja, os compromissos neles pactuados vinculam as partes a seu cumprimento, sob pena de sanções.
[36] Neste artigo não foi feita, mas a doutrina especializada (ESPADA et alli, 2012) realiza uma distinção entre os tratados internacionais, afirmando que há os tratados constitutivos (Tratados de Paris, de Roma e de Maastricht), tratados de reforma (Ato Único Europeu, Tratado de Amsterdã, de Nice e de Lisboa) e os tratados de adesão de novos membros.
[37] Órgão que proporcionou a administração multilateral das matérias-primas básicas e estratégicas da indústria, selando o acordo político para a estabilização do continente celebrado por França e Alemanha, iniciou-se a constituição de um espaço comum a algumas economias europeias como forma de garantir a paz e a segurança por meio do entrelaçamento econômico.
[38] Estes tratados vieram consolidar, expandir e institucionalizar a iniciativa, por meio da formação de uma comunidade econômica que visava ao fortalecimento do mercado interno entre os países membros, cujas ambições se direcionavam para a constituição de um mercado comum europeu. O sentido geopolítico deste processo de integração acompanhou, ainda que não no mesmo ritmo, os avanços econômicos, como a criação da comunidade europeia de energia atômica, a EURATOM, de fins pacíficos. Ademais, foram responsáveis pela criação da maior parte dos órgãos hodiernos da União Europeia.
[39] Conhecido como Tratado da União Europeia estruturou a integração por meio da formação da União Europeia, que abarcaria todas as iniciativas comunitárias anteriores sob o mesmo teto. Além disso, no documento, ficou expressa a intenção de transformação do mercado comum europeu em mercado único por meio da previsão de uma moeda comum para a zona comunitária. A integração europeia mostrava adaptabilidade ante a conjuntura internacional e, baseada na lógica neoliberal do regionalismo aberto, viria a servir de parâmetro para outras iniciativas de integração econômica no sistema mundial.
[40] Responsável por modificações estruturais que preparavam a União para uma planejada expansão.
[41] Este documento reformou a organização institucional de alguns órgãos comunitários.
[42] Refletiram uma tentativa pragmática de resgatar alguns elementos da rechaçada constituição europeia e que concederam à integração europeia uma nova lógica, que prioriza a operacionalidade, a partir da introdução de mudanças que possibilitam acordos e soluções bilaterais entre Estados parte da União Europeia em detrimento dos multilaterais sobre assuntos temáticos e pontuais da competência comunitária.
[43] O direito primário é também conhecido como direito fundamental ou constitucional, em analogia às normas constitucionais, fundadoras da ordem jurídica estatal interna.
[44] A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 26/62. Este caso foi o principal responsável pelo reconhecimento do efeito direto vertical (particular poderia invocar as normas comunitárias em litígio com o Estado dentro do país membro) do direito comunitário sobre o nacional.
[45] A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 36/74. A partir desta sentença, reconheceu-se também o efeito direto horizontal (particular invocar na relação com outro particular o direito comunitário).
[46] A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 106/77. Suscitou a primazia do direito comunitário quando em conflito com o direito nacional.
[47] A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 148/78. Este caso foi importante por estabelecer aos Estados-membros o dever de cumprimento do direito comunitário, para que este não fosse esvaziado pela prática da soberania intransigente.
[48] A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 6/90. Consagrou a possibilidade de punição ao Estado que não cumprir o direito comunitário, permitindo sua responsabilização civil por eventuais danos causados pelo não cumprimento.
[49] A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 6/64. Esta decisão paradigmática consolidou a existência de um ordenamento jurídico comunitário.
[50] Para Ernst Haas, maior exponente do neofuncionalismo, partindo do êxito do pilar econômico, articulado pela interdependência das economias nacionais, seria possível multilateralizar sua administração para que não haja interferência de questões políticas internas e, assim, com o fomento da parte comercial, conseguir espalhar os efeitos positivos para outras áreas, como a política e a social. Este efeito aumentaria as transações comerciais, atenuaria as rivalidades locais e proporcionaria acordos políticos para a transferência de competências soberanas dos Estados a órgãos supranacionais, teoricamente neutros da política governamental, o que incrementaria a rede institucional, viabilizando uma tecnocracia. O aprofundamento do processo alcançaria uma união federal política, e, consequentemente, a paz. Para mais ver: MACHADO, João Bosco. Mercosul: Processo de Integração: Origem, evolução e crise. São Paulo: Ed. Aduaneiras Ltda., 2000; HASS, E. Beyond the Nation-State: Funcionalism and International Organization. Stanford: Stanford University Press, 1964; e CALEGARI, Daniela. “Neofuncionalismo ou Intergovernamentalismo: preponderância ou coexistência na União Europeia?”. Revista Eletrônica de Direito Internacional do CEDIN, vol.5, 2009, pp. 91-131. Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume5/. Acesso em 18 de junho de 2013.
[51] Assim explica o professor Daniel Sarmento (SARMENTO, 2006: pp. 53-54): “As relações entre direito comunitário europeu e direito nacional se articularam sobre dois pilares que se assemelham àqueles que presidem o funcionamento de um sistema jurídico federal: os princípios de primazia e efeito direto. O primeiro estabelece a supremacia do direito comunitário europeu sobre o direito nacional em caso de conflito, tornando inaplicável a norma do direito nacional. Por vezes, tal conflito pode chegar a resultar não apenas inaplicabilidade, como também anulação da norma interna. Quanto ao princípio do efeito direto, através dele garante-se que se possa recorrer a tribunais ordinários, isto é, nacionais, para tratar de normas do direito comunitário europeu. Assim, quando as normas do direito comunitário europeu outorgarem direitos a indivíduos, estes poderão esgrimir tais direitos na sede judiciária nacional, como se se tratasse de um direito de criação garantido por lei nacional.”.
[52] Dente os quais merece destaque Jürgen Habermas, o responsável por difundir, adaptar e radicalizar pensamento kantiano ao longo da década de 1990.
[53] Soraya Nour sintetiza o pensamento kantiano sobre o direito (NOUR, 2003: p. 21): “O direito, até Kant, tinha duas dimensões: o direito estatal, isto é, o direito interno de cada Estado, e o direito das gentes, isto é, o direito das relações dos Estados entre si e dos indivíduos de um Estado com os do outro. Em uma nota de rodapé na Paz Perpétua (Kant,1795:347-349), Kant acrescenta uma terceira dimensão: o direito cosmopolita, direito dos cidadãos do mundo, que considera cada indivíduo não como membro de seu Estado, mas como membro, ao lado de cada Estado, de uma sociedade cosmopolita. A relação deste direito com os dois anteriores segue a tabela das categorias da Crítica da Razão Pura: um único Estado corresponde à categoria da unidade; vários Estados, no direito das gentes, à da pluralidade; todos os seres humanos e os Estados, no direito cosmopolita, à da totalidade sistemática, que une os dois estados anteriores (Kant, 1781:93; Brandt, 1995:142).”
[54] Rafael de Agapito Serrano explica (SERRANO, 2009: p. 109): “La paz, para Kant, es un estado de dominio de las relaciones jurídicas entre los pueblos; o bien, es un estado de razón de los pueblos”.
[55] Para Habermas (HABERMAS, 1995: p. 98): “Globalização significa transgressão, a remoção das fronteiras, e portanto representa uma ameaça para aquele Estado-nação que vigia quase neuroticamente suas fronteiras. Anthony Giddens definiu "globalização" como "a intensificação das relações mundiais que ligam localidades distantes, de tal maneira que os acontecimentos locais são moldados por eventos que estão a muitos quilômetros de distância, e vice-versa". A comunicação global ocorre tanto por meio de linguagens naturais (na maioria das vezes através de meios eletrônicos) como por códigos especiais (são os casos, sobretudo, do dinheiro e do direito).”
[56] De acordo com Habermas (HABERMAS, 1995: p. 100): “Uma das maneiras de escapar ao impasse, tal como descrito acima, é indicada pela emergência de regimes supranacionais com o formato da União Europeia. Precisamos tentar salvar a herança republicana, mesmo que seja transcendendo os limites do Estado-nação.”.
[57] É necessário recorrer a elementos históricos para compreender esta peculiaridade jurídica westfaliana. Alain Pellet aponta a Reforma Protestante como movimento precursor destas ideias (PELLET e alli, 2003): “O vínculo religioso quebrado pela Reforma é substituída por uma nova comunidade internacional alargada, fundada no humanismo do Renascimento.”.
[58] Engels explica (ENGELS, 2011): O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado.”.
[59] Conflitos de cunho político e religioso que devastaram os reinos germânicos da parte central da Europa e que envolveram as grandes potências da época, ao final, foram marcados pela vitória dos países protestantes e pelo enfraquecimento da Igreja Católica. Os tratados que celebraram a paz, em 1648, firmados em Osnabrück e em Münster, duas cidades da região de Westfália, expressaram os valores que passariam a nortear a ordem jurídica interestatal.
[60] Logo, os Estados deveriam ter sua integridade respeitada por seus pares (não intervenção), a não ser em caso de conflito, no qual a guerra poderia ser considerada um meio legítimo de solução de controvérsias.
[61] Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados. Essa aparente “ordenação” não segue a semântica convencional. Não há ordem na acepção clássica do termo, mas uma disposição dos Estados, ao mesmo tempo rígida e precária, que necessita da desordem, para que continue se fortalecendo e se perpetuando.
[62] Enquanto prerrogativas soberanas são as áreas que denotam explicitamente o poder estatal, como a atrofia das iniciativas voltadas a uma comunidade política, a uma integração vinculada à defesa regional, a qual é praticada por uma organização internacional que é liderada por países de outro continente, a OTAN, a uma política externa comum e à questão tributária e à fiscal (apesar de a monetária ser o exemplo de prerrogativa soberana compartilhada, ainda que por nem todos os membros). Maurizio Bach alarga a análise, sustentando que o avanço normativo é referente à liberdade de bens, serviço e capital, não toca a questão da liberdade de trabalho e nem a institucionalização do conflito entre capital e trabalho, deixando os assuntos a cargo das regulações nacionais (BACH, 2006).
[63] Na opinião de Felix Peña (PEÑA, 2006: p. 92): “No caso do Mercosul- bem como no caso da União Europeia, do NAFTA ou da Comunidade Andina de Nações, entre outros- não se pretende que as partes se integrem em uma nova soberania ou unidade autônoma de poder dentro do sistema internacional- ao menos não no atual estágio dos respectivos processos nem num horizonte previsível. O panorama comum coexiste, portanto, com diferentes panoramas nacionais para o alcance de objetivos que são compartilhados. (…) “Uma aliança deste tipo não responde nem se explica pelo que tem sido chamado de uma hipotética racionalidade supranacional. Ao contrário, em sua origem e em sua permanência, explica-se por concretas racionalidades nacionais. É a partir do nacional- do interesse nacional- que se chega ao regional, ou seja, ao âmbito comum, ao espaço econômico e político compartilhado. Mesmo o aspecto comum tem o sentido profundo de afirmar o interesse nacional frente a desafios externos, como é hoje o da globalização dos mercados, com todas suas consequências, positivas e negativas, sobre a margem de ação- ou seja, o grau de permissibilidade para o exercício de políticas públicas em distintos campos, inclusive o externo- de uma nação no sistema internacional. A identidade comum não substitui a nacional, sendo percebida, porém, como forma de torna-la viável. Inclusive daí vem sua legitimidade social.”.
[64] Este viés da cooperação não foi incorporado pela lógica comunitária nem deverá sê-lo. Procura-se apenas elaborar diretrizes que podem ou não ser seguidas pelos Estados membros, caso estes estejam dispostas a praticar uma política externa e de segurança comuns.
[65] Órgãos como a Comissão Europeia, o Conselho da União Europeia, o Parlamento Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia, o Banco Central Europeu, o Tribunal de Contas Europeu, o Banco Europeu de Investimento, dentre outros.
[66] Dentro das reformas mais substanciais, destaca-se a criação do cargo de Presidente do Conselho Europeu, competente para convocar as reuniões extraordinárias e administrar o funcionamento do órgão, cujo mandato é de dois anos e meio prorrogável uma vez por igual período; sua inter-relação com o ocupante de outro cargo recém-criado, o do Alto Representante para Assuntos Exteriores e de Segurança, que participa de suas reuniões; seus atos compõem o direito comunitário e, por isso, são passíveis de controle de comunitariedade pelo Tribunal de Justiça Europeu (ESPADA et ali, 2012); seu quórum de votação manteve-se no consenso, salvo para questões pontuais determinadas pelo Tratado de Lisboa, nas quais poderá adotar a unanimidade ou a maioria qualificada (como na eleição de seu Presidente); e reunir-se-á semestralmente, sendo pelo menos uma vez ao ano em Bruxelas.
[67] O alemão Maurizio Bach assim também entende (BACH, 2006: p. 161): “A União Europeia é, portanto, constituída, fundamentalmente, através dos atos jurídicos que se baseiam na livre celebração de acordos pelos governos soberanos participantes. Neste sentido, o sistema europeu de soberania supranacional constitui-se dentro dos limites do espaço jurídico estipulado pelos membros associados.”.
[68] O próprio Daniel Sarmento admite (SARMENTO, 2006: p. 61): “Assim, o tribunal constitucional nacional estará convocado a forçar, até o limite de suas possibilidades, a leitura da Constituição nacional com o objetivo de torna-la compatível com o direito comunitário europeu. Quando esta interpretação se revelar impossível, o conflito deverá ser resolvido favoravelmente à Constituição nacional.”.
[69] A professora Ana Cristina Paulo Pereira ratifica esta lógica (PEREIRA, 2006: p. 204): “Em geral, todo o direito comunitário encontra-se permeado dos princípios de direitos humanos e das normas jus cogens do direito internacional, que servem, portanto, de orientação para sua aplicação.”.  Lógica esta que é aprofundada pela visão intergovermentalista de Jacques Ziller (ZILLER, 2012: p. 118): The EU is based upon international agreements (i.e., treaties) that are binding upon sovereign states; as long as the treaties do not specify legal rules and principles applicable to the functioning of the EU, the international law of treaties is applicable – a set of principles and rules which has been to a large extent codified by the United Nations Convention on the Law of the Treaties of 1969. One of the fundamental principles of international law is the principle of specialty, according to which organizations or bodies set up by a treaty have only the powers which they have been provided by the treaty; on the contrary, a state, in international law, has no limitation to its powers, other than the limitations they have voluntarily accepted by agreeing to international treaties. The principle of specialty is also known as the “principle of conferral, and has always been applicable to the European Communities.”
[70] Maurizio Bach sustenta que (BACH, 2006: 161): “A legitimidade da União Europeia baseia-se, em primeiro lugar, na crença na legalidade do sistema normativo estatuído por elites funcionais pouco sujeitas a controles, e apoiado por códigos correspondentes de procedimentos, que regulam a formação da opinião e a tomada de decisões por parte dos órgãos da União Europeia.”.

Informações Sobre o Autor

Luiz Felipe Brandão Osorio

Professor de Direito Internacional dos Cursos de Graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional e em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional


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Equipe Âmbito Jurídico

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