Resumo: Aborda o tema aborto anencefálico ás luzes do direito e da religião. Embora pelo ordenamento jurídico brasileiro o aborto anencefálico é considerado crime, não deveria ser culpável, por inexigibilidade de conduta diversa. Culpar o agente que pratica o aborto anencefálico ás luzes dos princípios religiosos seria o mesmo que impor a religião aos cidadãos.[1]
Palavras-chave: Vida – dignidade – respeito.
O aborto sempre foi tema atual na história do ser humano, porém nem sempre foi concebido sob o mesmo ângulo, variando de acordo com as sociedades e períodos históricos.
Nos tempos de antanho, houve sociedades que puniam severamente a pratica do aborto, enquanto outras não incriminava tal pratica.
“A verdade é que os povos primitivos não previam o aborto como um ato criminoso, no entanto, posteriormente, quando o faziam atribuíam a ele severas punições. A aceitação do aborto como exceção à regra geral da proibição esta revestida de norma oral ou legal – surgindo com extrema raridade em algumas legislações antigas, mas impreterivelmente vinculadas ao preenchimento de rigorosos requisitos, já previamente determinados.” (Pacheco, apud Matielo).
Para algumas civilizações, o aborto servia como pretexto para controlar o crescimento populacional, tendo como defensores do aborto para tal finalidade os filósofos Aristóteles e Platão.
Como é de se observar, a questão do aborto era muito controvertida, sendo que cada civilização tinha seus próprios conceitos a respeito do tema. Porém, com o Cristianismo, essa polêmica foi amenizada, pois como preleciona Pacheco, “nesse período nasceu a crença de que o homem possui uma alma, e que esta é imortal.”
Diante desses novos princípios, o feto passou a ser considerado ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, sendo que somente Ele teria o poder de vida ou morte sobre o mesmo.
Como o Cristianismo se alastrou por grande parte do mundo, o aborto passou a ser concebido sobre outra óptica, e nas civilizações cristãs esta pratica passou a ser incriminada.
Como se conclui de uma análise histórica, no período em que nasceu o Cristianismo houve confusão entre direito e religião, sendo que a religião teve predominância, chegando a ser, de certa forma, imposta aos cidadãos, tolhendo-lhes a liberdade de crença religiosa. Como exemplo, temos o decreto do Imperador Constantino, do século IV, que impôs o cristianismo como religião do Estado.
Porém, com o desenvolvimento da ciência do direito, chegou-se á conclusão de que o Estado era laico, e que o direito, em hipótese alguma, poderia ser confundido com a religião.
Foi com essa conquista do direito que foi possível a pratica do aborto legal, que é o aborto terapêutico (para salvar a vida da gestante) e o aborto sentimental (em casos de gravidez resultante de estupro), pois a partir desse momento o direito passou a ser considerado uma ciência à parte da religião, pois a religião é destinada a um grupo de adeptos, enquanto o direito é destinado a uma sociedade em geral.
Após essa sucinta introdução, passemos a analisar, de maneira não menos sucinta, o aborto anencefálico, que é tema polêmico no mundo jurídico atual.
“Abortar, etimologicamente (ab-ortus, privar do nascimento), significa a interrupção violenta do processo de gestação com a conseqüente morte do feto, nas palavras do lembrado jurista baiano, Prof. Sergio Habib. “(Coutinho, apud in Revista Jurídica Consulex, ano VIII, nº 174).
Já a anencefalia, nos dizeres de Gomes, significa “má-formação (total ou parcial) do cérebro ou da calota craniana”, sendo que, de acordo com a ciência médica, um verdadeiro caso de anencefalia torna inviável a vida do feto.
Como se observa, para se falar em aborto tem que ter a violenta interrupção do processo de gestação, resultando em morte arbitraria do feto, o que de plano se observa que não ocorre num verdadeiro caso de anencefalia, pois como a vida do feto é totalmente inviável, não há que se falar em morte arbitraria.
Diante de tais circunstâncias, seria um desrespeito à dignidade da gestante sujeitá-la a gerar um feto com total inviabilidade de vida, pois além do sofrimento físico, seu estado psicológico poderá sofrer danos irreparáveis.
“Obrigar mulheres a sustentar a gestação de um feto anencefálico é prática institucionalizada de tortura, já que a criança, com vida simbólica e psicológica, não existirá.” (Gomes, apud Samantha Buglione, Folha de S. Paulo de 26.08.08, p. C7).
Coutinho, sobre o tema, diz que “a razão se encontra com a parte da doutrina que admite a exclusão da culpabilidade nesta hipótese, pois nesses casos, não há dúvida, de que a previsão legal deveria ser favorável ao abortamento, pois que não seria justo submeter a gestante ao intenso sofrimento de carregar consigo o feto sem a menor perspectiva de vida futura.”(Luiz Augusto Coutinho).
Indubitavelmente, o aborto anencefálico não deveria ser culpável, por inexigibilidade de conduta diversa, que é um dos elementos da culpabilidade. Embora a culpabilidade, para a teoria finalista- adotada pelo nosso Código Penal- não seja considerada como elemento do crime, a culpabilidade é pressuposto de aplicação de pena, e nesse caso, de aborto anencefalico, sempre estará presente a ausência de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, impossibilitando a aplicação da pena.
Como é de ver-se, um verdadeiro caso de anencefalia, que pode facilmente ser constatada pela ciência médica, leva a gestante a uma situação de extremo, sendo que embora ela seja imputável e tenha potencial consciência da ilicitude da conduta, diante de tais circunstâncias é inexigível uma conduta diversa por parte da gestante, o que leva á exclusão da culpabilidade.
Assim, mesmo que o ordenamento jurídico incrimine tal conduta, a punição não deveria ocorrer, pois é inexigível outra conduta da gestante.
Passemos agora a analisar o aborto anencefalico às luzes da religião. A verdade é que a religião trata de pecados, e não de crimes, o que de plano já mostra que a religião não deveria interferir nos ordenamentos jurídicos, pois o Estado é laico e o direito deve regular as situações de maneira á não prejudicar nem beneficiar grupos da sociedade por princípios religiosos, morais e filosóficos.
Sem dúvida, às luzes da religião o aborto anencefalico é um pecado imensurável, sendo que quem pratica tal conduta estará ferindo um bem indisponível, qual seja a vida, que só o Criador tem o poder sobre ela, sendo que tal individuo terá, espiritualmente, sua punição.
Percebemos claramente que religião e direito são duas ciências completamente distintas. Portanto a religião não deve se imiscuir no direito, justamente pelo fato do direito ser destinado à sociedade em geral e o Estado ser laico.
Gomes sabiamente preleciona que “não se pode confundir Direito com religião. Direito é direito, religião é religião (como bem sublinhou o iluminismo). Ciência é ciência, crença é crença. Razão é razão, tradição é tradição. Delito é delito, pecado é pecado (Beccaria). A religião não pode contaminar o direito. As crenças não podem ditar regras superiores à ciência.” (Luiz Flavio Gomes).
Destarte, conclui-se que o aborto anencefálico, às luzes do direito, não deveria ser culpável, por inexigibilidade de conduta diversa. Uma vez constatada a anencefalia seria desrespeito à dignidade da gestante obrigá-la a gerar o feto inviável para a vida futura, sendo que nesse caso é inexigível outra conduta por parte da gestante.
Pela óptica da religião, o aborto anencefálico é um pecado imensurável, sendo que o autor de tal conduta será punido espiritualmente.
Como o Estado é laico, atribuir culpabilidade ao agente que comete o aborto anencefálico, às luzes dos princípios religiosos, seria o mesmo que impor a religião aos cidadãos. Por isso, a melhor solução seria não culpar o aborto anencefálico por inexigibilidade de conduta diversa, ficando ao livre arbítrio da gestante optar pelo aborto ou pelo prosseguimento da gestação. Desta forma não estaria ofendendo os princípios religiosos, morais e filosóficos de nenhuma gestante, pois cada uma se auto-determinaria de acordo com seus princípios e suas crenças.
Advogada
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