A Lei 12015/09 promoveu uma revolução no tratamento legal da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, outrora denominados “crimes contra os costumes”. Antes desse diploma reformador a ação penal privada exclusiva era a regra nos antigos crimes contra os costumes, inclusive no estupro e no então vigente atentado violento ao pudor. Excepcionalmente havia casos de previsão de ação penal pública condicionada ou incondicionada. [1]
Com o advento da Lei 12015/09 extinguiu-se a ação penal privada exclusiva do cenário dos crimes contra a dignidade sexual. Agora somente será possível falar-se em ação penal privada em tais espécies delitivas tratando-se de ação penal privada subsidiária da pública em caso de inércia do Ministério Público, tal como ocorre em qualquer outro crime por força do artigo 5º., LIX, CF. Por tratar-se de ditame constitucional erigido em cláusula pétrea (artigo 60, § 4º., IV, CF) essa espécie de ação penal privada não pode ser eliminada do ordenamento jurídico, conforme prevista nos artigos 100, § 3º., CP c/c 29, CPP.
A ação penal pública condicionada à representação tornou-se a regra nos crimes contra a dignidade sexual, nos estritos termos do artigo 225, “caput”, CP. Entretanto, a lei expressamente prevê duas exceções no parágrafo único do mesmo dispositivo nas quais a ação penal será pública incondicionada. As exceções referem-se aos casos em que a vítima seja menor de 18 anos ou pessoa vulnerável (menores de 14 anos, portadores de deficiência ou doença mental incapacitante ou pessoa que por qualquer outra causa não possa ofertar resistência).
Efetivamente as exceções expressas à regra supra mencionada são apenas aquelas duas. É fato que o legislador olvidou o tratamento direto da questão dos crimes de estupro qualificado previstos no artigo 213, §§ 1º. e 2º., CP. São três os casos de estupro qualificado atualmente previstos:
a)Quando a vítima for pessoa maior de 14 anos e menor de 18 anos;
b)Se da conduta resultar lesão corporal grave ou gravíssima;
c)Se da conduta resultar morte.
É nítido que o primeiro caso (vítima menor) é tranquilamente abrangido pela exceção da ação penal pública incondicionada que prevê realmente tal espécie de ação para os casos que envolvam quaisquer vítimas menores. Não há aqui, portanto, qualquer dificuldade interpretativa. O problema se conforma nos casos de estupros qualificados por lesões graves, gravíssimas ou por morte. Ocorre que foi nessas hipóteses que o legislador deixou de ser suficientemente claro quanto à natureza da ação penal, se pública incondicionada ou se pública condicionada conforme a regra geral.
Sabe-se que antes do vigor da reforma a ação penal nesses casos era pública incondicionada por aplicação do artigo 101, CP, o que se coadunava com a gravidade e a natureza de tais delitos. Seria agora defensável que a ação penal nos estupros qualificados por lesões graves, gravíssimas ou morte passaria a ser pública condicionada? Esse é o tormentoso questionamento que inspira este texto.
No caso das lesões graves certamente não seria nada razoável a exigência de representação. A começar por uma interpretação sistemática em que se nota que no mesmo parágrafo há outra qualificadora (vítima menor) em que a ação é incondicionada. Anote-se, por oportuno, que a ação será induvidosamente incondicionada ainda que a vítima menor não sofra lesões graves. Então, o que justificaria tratamento diferente para a vítima de crime qualificado no mesmo parágrafo e inclusive em que esta sofre lesões graves? Somente a questão etária? Isso não parece defensável, mesmo sem considerar a estranheza da situação em que, por exemplo, uma Autoridade Policial tivesse de indagar da vítima que ficou tetraplégica devido à conduta do estuprador se ela tem ou não interesse na apuração do caso. Tal situação seria até mesmo cômica se não fosse tão trágica!
Ademais é preciso atentar para o fato de que o crime isolado de lesões graves é de ação pública incondicionada. Portanto, seria absolutamente ilógico que se um homem agredisse uma mulher e lhe quebrasse os braços a ação fosse pública incondicionada, mas se a agredisse, quebrasse os braços e ainda a estuprasse, fosse condicionada!
Mas o pior está por vir, pois o que se pode dizer da ação penal pública condicionada nos casos de morte? Novamente a comicidade somente é impedida pela tragédia da situação. Então caberia à Autoridade Policial indagar da vítima morta se ela deseja representar? Haveria aqui então algum intento de “espiritualização” do Direito Penal e Processual Penal? A psicografia e a mediunidade passariam a ser “ciências auxiliares” do Direito Penal e Processual Penal? Ou talvez o silêncio da vítima pudesse ser esclarecido pelo dito popular do “quem cala consente”? Ou ainda melhor, no silêncio concluir-se-ia pela não representação, já que “in dubio pro reo” (Princípio do “Favor Rei”)!?
Não parece haver dúvida de que ao caso deve ser aplicado o sistema do artigo 101, CP, prevalecendo a ação penal pública incondicionada, sendo este o posicionamento mais sensato conforme a doutrina predominante (ver neste sentido por todos FÜHER, 2009, p. 192; CABETTE, 2010, p. 154).
No entanto, há quem defenda a tese de que a ação será nesses casos pública condicionada, somente comportando exceção incondicionada nas hipóteses de vítima menor ou vulnerável expressamente previstas (NUCCI, 2009, p. 62). Malgrado o absurdo da situação e seu conteúdo francamente legalista – formalista extremado, seria até certo ponto viável a coleta da representação no caso das lesões graves. Mas como enfrentar a questão do resultado morte? A criatividade doutrinária é grande e surge a sugestão de aplicação do artigo 31, CPP, passando o direito de representação para “os sucessores” previstos no dispositivo, ou seja, o cônjuge, ascendente, descendente ou irmão da vítima (MOREIRA, 2009, p. 3).
Ocorre que mesmo todo esse esforço para tornar o absurdo aceitável pode conduzir a situações totalmente esdrúxulas:
Imagine-se um homem com tendência à perversão sexual, porém versado na ciência penal. Ciente de toda essa construção relativa à ação penal nos crimes de estupro qualificado, ele poderia simplesmente escolher adequadamente sua vítima para ter certeza da impunidade de um estupro seguido de morte. Ele procuraria uma vítima solteira, cujos pais já faleceram e também quaisquer outros ascendentes. Também verificaria se ela não tem filhos, outros descendentes e nem irmãos. Assim sendo, estando morta, ninguém por ela poderia representar e, não satisfeita a condição de procedibilidade da ação penal, o crime gravíssimo de estupro qualificado pela morte restaria absolutamente impune. O autor somente teria que cuidar para que a morte parecesse preterdolosa, evitando o concurso com o crime de homicídio. Depois, quem sabe ele até poderia ganhar fama e dinheiro sobre o caso, talvez escrevendo um livro sob o título “Bruno Psicopatinha”, o qual poderia dar ensejo a um filme no cinema nacional com altos rendimentos financeiros e sendo o estuprador assassino representado por algum galã global! Afinal, nada disso seria espantoso em nosso mundo contemporâneo de relativismos e inversão de valores!
Ainda que se pretenda mais uma vez emendar a situação de absurdidade mediante o recurso agora ao artigo 33, CPP, que trata da nomeação de curador especial para aqueles que não têm representante legal, é mais que evidente que tal dispositivo não faz menção aos mortos, mas tão somente aos menores, mentalmente enfermos ou retardados mentais. Aliás, as pessoas constantes do rol do artigo 31, CPP, não são obviamente “representantes legais” do morto, mas seus “sucessores” no exercício do direito de queixa ou representação. Note-se, por fim, que a solução bem mais simples é apenas reconhecer o óbvio, ou seja, que a ação penal nesses casos (lesões graves ou morte no estupro) somente pode ser pública incondicionada, aplicando-se o artigo 101, CP, sem qualquer necessidade de todo esse malabarismo jurídico e legal para solucionar um problema que na verdade não existe. É claro que em parte a culpa por toda essa celeuma desnecessária recai sobre a omissão legislativa, mas também os intérpretes poderiam usar com menos contenção o bom senso e com mais parcimônia o legalismo formalista, aproveitando as vantagens do primeiro e evitando os efeitos deletérios do segundo.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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