1. Introdução
A discussão sobre o tema é incipiente nos Tribunais Superiores brasileiros, que ainda não definiram entendimento em relação à competência para o julgamento de ação rescisória desafiadora de julgado proferido, especificamente, por magistrado atuante em Juizado Especial Federal.
De regra, como a matéria recém está sendo alçada às Cortes Nacionais, os Tribunais Regionais têm decidido[1] pelo declínio da competência, aduzindo caber às Turmas Recursais de cada Estado o processamento da ação constitutiva negativa de decisão prolatada por Juiz Federal investido de jurisdição em Juizado Especial Federal.
O argumento utilizado se funda na redação expressa do art. 59[2] da Lei nº 9.099/95, sistema procedimental a que faz alusão o art. 1º[3] da Lei nº 10.259/01. De fato, em primeira análise, a interptretação literal do art. 59 da Lei dos Juizados Especiais Estaduais, que veda o manejo de ação rescisória dos julgados proferidos neste rito, parece conduzir a um juízo de impossibilidade absoluta de desconstituição de suas decisões.
No entanto, o exame mais acurado e a interpretação sistemática de dispositivos legais e constitucionais permite a formulação de juízo diverso.
2. Análise da incidência dos arts. 98 (I) e 108 (I, b), ambos da CF/88
A adoção de posicionamento impeditivo à utilização do pedido rescisório, tal como se inclina a recente jurisprudência, viola literalmente o disposto no art. 108, I, b, da CF/88, expresso não apenas em admitir a previsão e o cabimento do remédio processual, mas também em atribuir competência constitucional originária aos TRF’s para o processo e julgamento destas ações desconstitutivas em face de suas próprias decisões ou de decisões de juízes federais vinculados ao Tribunal.
Com efeito, assim dispõe o art. 108, I, b, do texto constitucional:
Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I – processar e julgar, originariamente:
(…)
b)as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região;
Note-se que a decisão contra a qual se volta a ação rescisória é aquela prolatada por juiz federal, por óbvio vinculado ao Tribunal da respectiva Região. Assim, resta impositiva a competência constitucional do Tribunal Regional Federal para o processamento da demanda.
Observe-se o que, a esse respeito, leciona Luiz Rodrigues WAMBIER[4]:
A ação rescisória é de competência originária do segundo grau de jurisdição. É, portanto, demanda intentada diretamente nos tribunais de segundo grau, com exceção dos casos em que a competência cabe aos tribunais superiores STF e STJ.
Muito embora as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais gozem da competência para o julgamento dos recursos previstos nos arts. 4º e 5º da Lei nº 10.259/01 (recurso contra medida cautelar e contra a sentença definitiva, respectivamente), a previsão da Carta Maior quanto ao manejo do remédio rescisório é imperativa e inafastável.
Em verdade, não há distinção no art. 108 da Constituição Federal acerca do local de atuação do magistrado federal ou do procedimento seguido no processo em cujo contexto insere-se a decisão rescindenda. Nesse sentido, também é precisa a lição de CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS[5]:
Diga-se o mesmo das ações rescisórias que eram processadas e julgadas pelo extinto Tribunal Federal de Recursos. A partir da Constituição Federal de 1988, art. sub thema, in fine, são processadas e julgadas pelo Tribunal Regional Federal, desde que se refiram aos seus julgados ou às sentenças prolatadas pelos juízes federais da região onde se situa o Tribunal.
Não se pode olvidar que, inevitavelmente, a decisão trânsita em julgado, objeto da demanda constitutiva negativa, deve gozar da natureza de sentença de mérito, proferida por magistrado federal.
Neste ponto, impende frisar que, muito embora a Lei dos Juizados Especiais Federais contenha procedimento e disposições próprias, não tem força normativa para derrogar a Carta da República, cujas normas, por natureza, revestem-se de supremacia[6].
Como relativamente às revisões criminais e ações rescisórias a previsão constitucional é taxativa e expressa, não resta ao julgador (leia-se Tribunal Regional Federal) margem de decisão para afastar sua incidência ao caso sob análise. Portanto, a despeito do entendimento perfilhado pelas Cortes Regionais Federais, neste particular, há vinculação hierárquica e jurisdicional entre juízes federais atuantes em Juizados Especiais Federais (ou Turmas Recursais) e Desembargadores Federais dos respectivos Tribunais.
Para a hipótese em estudo, tendo sido a decisão proferida por magistrado que se reveste da qualidade de Juiz Federal de Juizado Especial Federal – diga-se, juiz de 1º Grau de jurisdição -, sua vinculação ao órgão de hierarquia superior que jurisdiciona a Região é decorrente e ínsita.
Note-se, ainda, que, a se perpetuar a tese do não-cabimento e da incompetência do Tribunal Federal para o processamento da lide, se estará a contrariar frontalmente o disposto no art. 98, I, in fine, da Carta Política, claro ao atribuir competência a turmas de juízes (Turmas Recursais) para o julgamento de recursos, como bem se pode observar, in verbis:
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I – juizados especiais, providos por juízes togadosou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;
Tanto a Doutrina quanto a jurisprudência pátrias já assentaram entendimento de que ação rescisória não possui natureza jurídica de recurso, mas de ação própria e autônoma, com pressupostos de admissibilidade específicos, elencados no art. 485 do CPC. Trata-se, em realidade, de ação constitutiva negativa, a produzir, quando da formulação do juízo de procedência, uma sentença desconstitutiva[7]. A esse respeito, há muito tempo já divulgava PONTES DE MIRANDA[8]:
A ação rescisória e a revisão criminal não são recursos; são ações contra sentenças: portanto, remédios jurídicos processuais com que se instaura outra relação processual. (…) É erro dizer-se que ação rescisória ou revisão criminal é recurso, como falar-se de reabertura extraordinária de lide trancada, pela força do caso julgado.
Assim, dessume-se que a ação rescisória não se confunde com recurso justamente por atacar uma decisão já sob efeito da res iudicata, revestindo-se, tecnicamente, da qualidade de ação[9].
Vê-se, portanto, que o permissivo constitucional somente dá amparo à apreciação, pelas Turmas Recursais de Juizados Especiais, de medidas processuais de natureza recursal, não acolhendo o processo e/ou o julgamento de demandas outras que não se revistam dessa condição.
A prescrição disposta no texto constitucional é taxativa e não admite interpretação ampliativa, que, a qualquer pretexto, pretenda conferir maior amplitude aos conceitos lá fixados do que aquela que o legislador constituinte originário pretendeu efetivamente consignar.
Frise-se que se trata de dispositivo a contemplar regra de atribuição constitucional de poder (competência), sendo, pois, impositiva sua consideração restritiva.
No caso em apreço, a remessa da ação rescisória à Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais afronta o dispositivo constitucional (art. 98, I), já que, mantida a decisão, a Turma de Juízes estaria a analisar, por competência originária, a pretensão deduzida no pedido rescisório, situação que, repita-se, não se coaduna com a exclusividade de atuação recursal conferida pela Lei Maior ao órgão jurisdicional.
3. Conclusão
À luz do exposto, em estrita observância aos ditames dos arts. 108 (I, b) e 98 (I), ambos da CF/88, deve ser firmada a competência do respectivo Tribunal Regional Federal para o processo e julgamento da ação rescisória contra decisão proferida por Juiz Federal, investido de jurisdição em Juizado Especial Federal.
Procurador Federal
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