Actions and Access to Justice
Felipe Bizinoto Soares de Pádua
Resumo: O artigo é dividido em duas partes. A primeira parte aborda a adoção terminológica sobre duas categorias jurídicas: ação em sentido material e a ação em sentido processual, que também é chamada de ‘’ação’’. A segunda parte trata da relação entre os dois sentidos de ação e os conceitos de acesso à justiça e acesso à jurisdição.
Palavras-chave: Ação em sentido material; Ação em sentido processual; Acesso à justiça; Acesso à jurisdição.
Abstract: This article is divided in two parts. The first part deals with the terminological adoption of two legal categories: action in material sense and action in a procedural sense, which is also called ‘’action’’. The second part deals with the relationship between the two senses of action and the concepts of access to justice and access to jurisdiction.
Keywords: Material action; Procedural action; Access to justice; Access to jurisdiction.
Sumário: Considerações Iniciais. 1. Afinal, O Que é Ação? 2. ‘’Ação’’, Acesso à Justiça e Acesso à Jurisdição. Conclusão. Referências
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
De acordo com uma óptica amplíssima trazida por Thomas S. Kuhn (2003, p. 57-66) e Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 5-10), a função do cientista para com a ciência é o de compreender os fenômenos que lhes sejam pertinentes e desenvolver o aparato principiológico que sagre o entendimento e a operabilidade do objeto estudado. Para isso, vale-se da abordagem teorética dos sistemas sociais, de N. Luhmann (2016, p. 11-49), que suscita a noção de que as diversas áreas do saber são subsistemas sociais e que se distinguem entre si por meio da linguagem, dos signos que lhes são próprios.
Duas perspectivas são retiradas se analisados, especificamente, os contributos de N. Luhmann (2016) e Thomas S. Kuhn (2003): (i) a de cunho extracientífico, que diz respeito à distinção dos subsistemas entre si, p. ex., o Direito da Política, a Economia da Cultura, etc., e (ii) a de cunho intracientífico, que se refere à diferenciação entre as categorias pertencentes ao mesmo subsistema, p. ex., os contornos conceituais e conteudísticos de prescrição e decadência, posse e propriedade, direitos relativos e direitos absolutos no Direito.
Cabe aqui trazer a ‘’Metáfora das Ilhas do Canal’’, que é retratada por Otávio Luiz Rodrigues Júnior (2019, p. 148-150): são arquipélagos insulares anglo-normandos sob domínio inglês e que sofreram ocupação nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Após 8 de maio de 1945, quando a Alemanha se rendeu oficialmente, os soldados ingleses reocuparam as Ilhas da Mancha, sendo eu os soldados alemães ali foram representados por um oficial, que se dirigiu ao governador britânico provisório do local, o qual respondeu com certa frieza ao teutão no sentido de que aquelas ilhas nunca foram invadidas, desde Guilherme, o Conquistador, o que causou confusão na qualidade dos alemães: tropas de ocupação ou imigrantes ilegais?
Tornando às premissas gerais, cabe ao cientista, portanto, não cair no desacordo semântico extraído da ‘’Metáfora das Ilhas do Canal’’, incumbindo-lhe definir com precisão os contornos conceituais que servirão de instrumental para o trabalho a ser desenvolvido pela comunidade científica da qual faz parte. Evidentemente, tal preceito é um retrato ideal, eis que as atividades humanas, por serem justamente humanas, são providas de falibilidade, e, também, em razão das circunstâncias, passíveis de mudanças em razão das diversas circunstâncias que permeiam a vida.
Afunilando-se para a ciência jurídica, K. Larenz (2019, p. 439-444), K. Engisch (2014, p. 21-164) e F. C. Pontes de Miranda (2012a, p. 15) apontam que o operador do Direito (= doravante denominado, também como cientista jurídico, jurista ou intérprete) extrai das fontes pertinentes as normas jurídicas, que contemplam diversas categorias que servem de instrumental para responder às questões intersubjetivas. É dizer: o bom jurista é aquele que compreende o mundo jurídico e suas classes, para, justamente, delimitar o campo de incidência da disciplina jurídica.
Sobre o papel do intérprete, asseveram Hans Kelsen (1999, p. 3-16), Eros R. Grau (2018, p. 35) e F. C. Pontes de Miranda (2012a, p. 146-147) que a norma jurídica é (a) o objeto da ciência jurídica, (b) por meio dela é que se sabe qual fato social é ou não relevante para o Direito, e (c) ela é o resultado do enlace entre as fontes jurídicas e as categorias nelas contidas com a interpretação. Portanto, interpretar consiste em construir o âmbito de juridicidade dentro de um quadro fáctico, exigindo-se do jurista o conhecimento tanto das fontes quanto das classes que devem ser aplicadas.
Dentro desse panorama é que se dá mais um passo de aprofundamento, este ligado à seara do Direito Processual, retomando-se contributo de F. C. Pontes de Miranda (1972, p. 109-116) e aprimorado por Marcel Edvar Simões (2016a; 2016b): ação em sentido material, a distinguindo da ação em sentido processual (= doravante denominada ‘’ação’’), do acesso à justiça e, também, do acesso à jurisdição.
Apenas como questão terminológica prévia, adota-se o aqui chamado quadro de posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, elementares e complexas, patrimoniais e não-patrimoniais (= extrapatrimoniais), todas teorizadas para a teoria geral da relação jurídica, de forma inaugural por W. N. Hohfeld (2008, p. 29-85) e que ganharam maior sistematização por G. Lumia (1999). O primeiro tópico envolverá maior aprofundamento sobre a escala evolutiva das posições jurídicas.
O ponto de partida sobre o conceito de ação está na divisão encontrada em F. C. Pontes de Miranda (1972, p. 110-111; 2012b, p. 563), para quem há a noção de ação em sentido material e ação em sentido processual, conferindo aspas à segunda categoria, ‘’ação’’, para uma maior precisão terminológica.
Com bases ponteanas, os contributos de M. Bernardes de Mello (2019, p. 208-214) e Marcel Edvar Simões (2016a) orientam que a ação em sentido material é a garantia, que consta, juntamente com os sujeitos, o objeto e o fato jurídico constitutivo, como elemento da relação jurídica e é conceituada como o conjunto de meios que o ordenamento jurídico deixa às ordens do sujeito para que tutele suas posições jurídicas subjetivas ativas.
De acordo com F. C. Pontes de Miranda (1972, p. 109-110; 2012b, p. 561-562) e Marcel Edvar Simões (2016a), onde há pretensão não atendida pela resistência ou não satisfação por parte do titular do dever comportamental, haverá a consequente ação, o poder agir com base no que o ordenamento jurídico dispõe para assegurar a posição jurídica ativa.
Vê-se que a relação entre poderes e deveres remetem a fases as quais M. Bernardes de Mello (2019, p. 207-208) e F. C. Pontes de Miranda (1972, p. 109-110; 2012b, p. 561) definem como regra geral à teoria geral do Direito. Aqui, cabe uma digressão acerca do que é pretensão, dever comportamental, faculdade e outras espécies de posições jurídicas subjetivas elementares, assim como o quadro que agrupamentos delas representam. Tal digressão serve como questão prejudicial para a apuração da natureza jurídica da ação em sentido material.
Sobre o léxico direito, afirma W. N. Hohfeld (2008, p. 29-30) que muitos juristas o concebem em contextos distintos, gerando ambiguidades, algo que o operador do Direito deve evitar. A partir dessa constatação, definiu-se o direito como a posição jurídica subjetiva elementar ativa, cujo oposto correlato na relação jurídica é o dever, uma posição jurídica subjetiva elementar passiva.
Ao conceber o direito, G. Lumia (1999) assevera que se trata de um interesse preponderante ao qual a ordem jurídica estabelece ao polo oposto da relação o correlato dever, que é o interesse subordinado e voltado a atender a necessidade do titular da posição ativa.
Aqui cabe a identificação de M. Bernardes de Mello (2019, p. 208-212) de que a etapa do direito ↔ dever envolve a ausência de exigibilidade e acionabilidade o que leva ao conceito de direito e dever como posições jurídicas subjetivas elementares não exigíveis e não acionáveis.
Ato contínuo na digressão, na etapa da exigibilidade há correlação-oposição de pretensão ↔ dever comportamental, faculdade ↔ ausência de pretensão, sendo que o conceito chave em tal fase é de que a posição ativa tem um plus e envolve o necessário comportamento (coordenação) por quem titulariza a posição passiva: a pretensão é a posição ativa que consiste no poder conferido ao seu titular de exigir a satisfação de interesse próprio ou alheio pelo titular do dever comportamental (LUMIA, 1999; PONTES DE MIRANDA, 1972, p. 52; PONTES DE MIRANDA, 2012b, p. 533, MELLO, 2019, p. 208-209); já a faculdade consiste em uma posição jurídica ativa ligada que confere ao seu titular um poder de fortes traços fácticos relativo à inexistência de obstáculo para realização do que lhe interessa, visto que o polo antagônico titulariza uma ausência de pretensão e, portanto, nada pode exigir (LUMIA, 1999).
Por última, na fase da acionabilidade há correlação-oposição de poder formativo ↔ sujeição, imunidade ↔ ausência de poder formativo, sendo que em tal etapa há um plus maior ao que conferido na exigibilidade e envolve impositividade, independendo de atuação do titular da posição passiva: o poder formativo confere ao seu titular o poder de sujeitar a contraparte ao exercício e aos efeitos da posição ativa, toca-se a esfera do polo passivo da relação, constituindo, modificando ou extinguindo posições jurídicas (LUMIA, 1999; PONTES DE MIRANDA, 1972, p. 39-42; PONTES DE MIRANDA, 2012b, p. 297-300; MELLO, 2019, p. 210); a imunidade, por sua vez, consiste na posição elementar ativa que confere blindagem a quem a titulariza, impedindo que outrem constitua, modifique ou extinga posições jurídicas em sua esfera jurídica (LUMIA, 1999).
Dentro de todas as categorias acima, indaga-se sobre a natureza jurídica da garantia: trata-se de uma pretensão, de uma faculdade, de um poder formativo ou de uma imunidade? Ou seria algo relacionado às posições passivas?
Marcel Edvar Simões (2016b) suscita algumas características da garantia: (i) sua unilateralidade no exercício, (ii) sua realização mediante a desnecessidade de adoção comportamental pelo sujeito passivo da relação, e (iii) sua habitual consumação quando findo o exercício. A partir disso, o autor qualifica a ação em sentido material como um poder formativo que ora tem efeito constitutivo, ora modificativo e ora extintivo. Nessa linha de raciocínio está a orientação de Luciano de Camargo Penteado (2014, p. 385).
Uma segunda perspectiva abordada por F. C. Pontes de Miranda (1972, p. 110-111; 2012b, p. 562) é a de ‘’ação’’, que tem como área de estudo o Direito Processual e é concebida como o exercício da pretensão à tutela jurídica.
A falsa ideia de um sentido unívoco de ação é desenvolvida por M. Bernardes de Mello (2019, p. 213), para quem há uma relação não necessária de meio e fim, isto é, a ação em sentido material, por estar no campo do Direito Material, tem como regra geral o seu exercício por meio da ‘’ação’’, que está no campo do Direito Formal. É dizer: ação em sentido processual significa o meio jurídico por meio do qual se implementa a garantia.
Sobre a natureza jurídica da ‘’ação’’, funda-se no posicionamento de M. Bernardes de Mello (2019, p. 213) e F. C. Pontes de Miranda (1972, p. 231-234; 2012b, p. 362) de que é pretensão – como, inclusive, constante no conceito adotado. A busca da tutela jurídica através do remédio jurídico-processual (= ação em sentido formal) tem como característica basilar o fato de que aquele que maneja a ‘’ação’’ busca um comportamento que julga necessário por parte do ente estatal, ou seja, o atendimento do interesse do primeiro se dá por meio de um comportamento específico do segundo.
A confusão entre os dois sentidos liga-se ao monopólio da violência legítima, à estatalização dos meios de solução dos conflitos, o que torna, in potentia, todas as relações intersubjetivas relevantes para o sistema jurídico como objeto de alguma apreciação estatal (MARCEL, 2016a; MELLO, 2019, p. 213).
Sobre a canalização da força na figura do Estado, Thomas Marcky (2019, p. 43-44) mostra que essas inspirações encontram bases constatáveis em Roma, que detinha diversas espécies de administradores públicos, chamados de magistrados (magistratus), os quais geriam diversas atividades do cotidiano romano, p. ex., o administrador das vias públicas (magister viarum), o administrador da justiça, mais conhecido como pretor (praetor), o auditor fazendário, mais conhecido como questor (quaestor).
Exemplar a passagem do jurisconsulto romano Ulpiano (VASCONCELLOS, p. 112), a quem é titulada a assertiva de que a jurisdição compreende a administração da justiça (= atribuição de pretor), a investidura do império que pune os perversos, concede bens e juízos às partes. Javoleno (VASCONCELLOS, p. 112) complementa ao asseverar que aquele que exerce a jurisdição é conferido tudo o que necessário para desempenhá-la.
De Roma em diante houve um progressivo aumento do protagonismo estatal no que diz respeito ao exercício das posições jurídicas subjetivas, resultando no plano atual, no qual a autotutela é exceção, enquanto a tutela via Estado é a regra.
Na contemporaneidade constata-se que o trajeto pelo qual as democracias mais consolidadas percorreram e as democracias tardias ainda percorrem envolve um movimento legislativo no qual o magistrado ganha maior campo de atuação decorrente da expansão do Estado e de suas atribuições: diante dessa dilatação estatal, o paradigma do juiz ubíquo ganha sua ascensão, visto que toda discussão jurídica torna-se potencialmente estatal-judicializável (PÁDUA, 2019).
Ocorre que, como exposto, as posições jurídicas não se implementam de forma exclusiva através do aparato estatal, e sim que a regra geral é que o Poder Público atue com toda sua força. O ordenamento brasileiro pontua alguns exemplos de hipóteses normativas nas quais o interesse dominante pode ser atendido sem a ponte juspublicista: a compensação entre dívidas, o desforço imediato para proteção possessória, a legítima defesa, todas figuras nas quais o titular da posição ativa, per si, satisfaz seu interesse frente ao sujeito passivo.
De forma mais concreta, famosa cena tanto da película quanto da obra literária Harry Potter e a Pedra Filosofal (ROWLING, 2000, p. 152-156), na qual a personagem que dá nome à saga e seus amigos, Rony Weasley e Hermione Granger, passam pelos corredores da escola que frequentam durante o Dia das Bruxas e se deparam, quando estão em um dos banheiros, com um trasgo, com quase quatro metros de altura, pernas curtas e grossas, braços alongados, pele acinzentada escura, corpo cheio de calombos, uma cabeça minúscula. Para evitarem a morte, eles fazem uso das magias que aprenderam para atordoar o ser corpulento.
Imaginando-se que o Diretor da Escola, o mago Dumbledore, é a autoridade máxima e, por isso, o Poder Público do caso, vê-se que o quadro fáctico delineado na espécie literária acima envolve uma ação material sem a busca das vias estatais: para evitar danos ou até a morte, as personagens exerceram legítima exercício, optando por resguardar o direito à vida sem a busca da diretoria escolar.
A adoção do conceito de ação em sentido processual como o remédio-jurídico processual por meio do qual alguém deduz uma pretensão contra o Estado leva a uma decorrência indagativa: seria, então, o mesmo que acesso à justiça?
Existem duas correntes que explicam o conceito de acesso à justiça. A primeira trata tal categoria como sinônima de ‘’ação’’, nela constando um dos três fundamentos do Estado de Direito hodierno, enunciado por M. Gonçalves Ferreira Filho (2016, p. 142-143) como a justiciabilidade, que remete ao monopólio da violência legítima no sentido de canalizar na função judiciária a voz final dos conflitos que irrompem na sociedade. Isso não significa que as funções executiva e legislativa não componham conflitos, e sim que o Judiciário é o último meio para solver algum conflito de interesses ou normativo.
A partir dessa noção de justiciabilidade é que se remete, novamente, ao paradigma do juiz ubíquo, aquele que se mostra presente em, praticamente, todos os setores sociais, desde as relações disciplinadas pelo regime de Direito Público até as relações sob regramento jusprivatista (PÁDUA, 2019, p. 153). Em suma, solucionar as questões de ordem material tornou-se algo ligado à ordem processual judicial.
No Brasil, a Constituição enuncia que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), o que serve de base para, juntamente com a perspectiva da ubiquidade judiciária, J. Afonso da Silva (2014, p. 222), Ana P. de Barcellos (2011, p. 341-349), C. Rangel Dinamarco e Bruno V. Carrilho Lopes (2017, p. 228) afirmarem posicionamento no sentido de que acesso à justiça é a busca pela tutela jurisdicional provida pelo Estado-Juiz. No mesmo sentido, Soraya Gasparetto Lunardi (in DIMOULIS, 2012, p. 32) ao estabelecer que acesso à justiça é a garantia conferida a todos, brasileiros e estrangeiros, de acessar o Poder Judiciário para postular tutela preventiva ou reparatória.
Por outro lado, a segunda corrente sobre a acepção de acesso à justiça defende que há distinções entre ‘’ação’’, acesso à justiça e acesso à jurisdição. Aqui, adota-se um posicionamento no sentido de que há distinção e relação entre as três categorias, partindo-se daquela de grau maior, o gênero, para a de grau intermediário, a de grau médio, a espécie, e, por fim, para a de grau mínimo, a subespécie: antecipando a conclusão deste trecho, acesso à justiça é gênero do qual ‘’ação’’ faz parte, que, por sua vez, tem acesso à jurisdição como subespécie. Explica-se.
Acesso à justiça é conceituado como como o direito subjetivo de buscar todo e qualquer meio juridicamente permitido e que seja apto a compor o conflito de interesses qualificados por meio da efetividade do direito (PÁDUA, 2019, p. 146; PÁDUA; SILVA, 2017, p. 320).
Como consta na terminologia, acesso à justiça é um plexo de posições jurídicas subjetivas elementares que se voltam ao atendimento do interesse de quem as titulariza, o que é definido como um direito subjetivo (LUMIA, 1999).
Rompe-se com a noção estatalista desenvolvida pela primeira corrente em razão, justamente, do chamado sistema multiportas, que confere um leque a quem busca efetividade jurídica para que suas questões sejam solucionadas: arbitragem, mediação, conciliação e, inclusive, a atuação da ação em sentido material, esta por meio, p. ex., pela atuação da advocacia em questões contratuais que permitem que os contratantes exerçam direitos e deveres de forma desligada do Poder Público.
A Esopo (1996, p. 24-26) é reconhecida a autoria da fábula A Raposa Gulosa, que retrata uma raposa, Mégara, que, como todo vulpídeo, tem prudência e grande senso de observação. De tais atributos vale-se a personagem fabular, a fim de atender sua fome, observando alguns pastores guardarem alimentos de suas ovelhas dentro de um carvalho oco e planejando como captar tais iguarias sem ser pega. Ante a ausência dos cuidadores, Mégara acessa o vão e lá se banqueteia, o que gera um aumento em sua região abdominal que a impossibilitou de retornar ao ambiente aberto. Em passagem pela proximidade, uma conhecida da mesma classe de Mégara contempla a situação e conclui, após questionamento da personagem central, que é fácil se desvencilhar do espaço, bastando o decurso do tempo. Assim o fez a raposa presa, aguardou a diminuição da sua barriga e saiu do interior, sob a promessa de que seria menos gulosa.
A moral da história acima (ESOPO, 1996, p. 26) é a de que o farto nem sempre significa algo vantajoso, o que se torna plenamente aplicável à transição do Estado onipresente para o Estado contido: o excesso de sociedade política levou a irrupções do coletivo sobre o individual, o que levou a uma autorreflexão sobre esse expansionismo demasiado e a consequente busca por um modelo no qual não haja tanta presença do Poder Público na vida social, em especial na dos indivíduos.
Mauro Cappelletti e Garth Bryant (1988) mostraram os sinais dessa evolução terminológica em monografia na qual traçam marcos evolutivos (as ondas de acesso à justiça) e destacam que o assoberbamento judicial levou à busca e ao aprimoramento dos mecanismos extrajudiciários, a fim de atender às demandas sociais por soluções céleres e com maior aprofundamento qualitativo.
Essa nova adoção conceitual envolve um novo olhar por parte dos operadores do Direito, sagrando um novo esquema estrutural denominado paradigma do juiz comedido, no qual o magistrado é, sim, peça-chave da solução das questões jurídicas, mas não o único, visto que as partes têm uma universalidade de medidas extrajudiciais que podem atender seus interesses (PÁDUA, 2019, p. 145-147).
Como asseverado de forma mais ampla, ‘’ação’’ consiste na busca pela tutela jurídica prestada pelo Estado. Não se fala a qual das funções estatais (executiva, judiciária e legislativa) é perseguida por quem deduz a pretensão, visto que o posicionamento de F. C. Pontes de Miranda (1972, p. 110-112) é categórico ao dividir a categoria em comento em ‘’ação’’ judicial e ‘’ação’’ administrativa. Trata-se de gênero precisamente criado em razão do fato de que o monopólio da força não é titularizado apenas pelo Estado-Juiz, mas, também, pelo Estado-Administrador. Aqui, cabe a contribuição de E. Domingos Bottallo (2009, p. 111-170) de que ‘’ação’’ administrativa ocorre na seara das três funções de Estado, ou como atribuição típica, por parte do Executivo, ou atribuição atípica, por parte do Judiciário e do Legislativo.
Dentro desse gênero denominado ação em sentido formal é que está o acesso à jurisdição, o qual se coaduna com o sentido de ‘’ação’’ judicial, a pretensão deduzida contra o juiz, para que exerça o comportamento especial, a que preste a tutela jurisdicional (SIMÕES, 2016a; PÁDUA, 2019).
Acesso à justiça é a molécula composta por diversas partículas: as ‘’ações’’ judicial e administrativa, a arbitragem, a mediação, a conciliação e a autotutela, todos meios voltados à satisfação de determinado interesse jurídico.
Em razão da constatação dos meios externos ao aparato estatal judicial, há novos olhares sobre a terminologia adotada sobre o acesso à jurisdição. Luiz Alberto D. Araújo e Vidal N. Serrano Júnior (2018, p. 257), C. A. Carmona (in MORAES; et. al., p. 152) e Walter de Moura Agra (2018, p. 249) adotam signos mais precisos para definição principiológica contida no texto constitucional brasileiro: inafastabilidade da jurisdição, todos destacando que o caráter da atuação jurisdicional é subsidiária.
Sobre a subsidiariedade judicial, doutrinam C. Rangel Dinamarco e Bruno V. Carrilho Lopes (2017, p. 117) que ela parte de uma das duas condições da ‘’ação’’, qual seja, o interesse de agir, que, no que lhe concerne, é enunciado como a necessidade da intervenção judicial na relação jusmaterial para a proporção de situação prática adequada que seja útil e conforme o Direito. A partir das ideias de H. Theodoro Júnior (2018, p. 75), sintetiza-se a ideia de interesse de agir como a necessidade da parte em buscar o Estado-Juiz, para que, por meio de determinado procedimento, seja sanada lesão ou afastado perigo que recai sobre determinado bem jurídico.
O que se tem em comum entre acesso à justiça e ‘’ações’’ judicial e administrativa é que elas podem constituir em enunciados principiológicos, são princípios, visto que, valendo-se da exposição de Humberto Ávila (2016, p. 102-104), enunciam imediatamente finalística, estabelecendo um estado ideal de coisas que exige do aplicador que estabeleça condutas cujos efeitos decorrentes são necessários à sua promoção.
Em maior medida, o acesso à justiça estabelece um estado de coisas no qual sejam promovidos todos os meios para atendimento de um interesse juridicamente relevante, que atendam às demandas sociais por eficiência (= melhores meios) e efetividade (= concretização) das formas como são solucionadas as questões jurídicas (PÁDUA; SILVA, 2017, p. 306-309).
Por seu turno, a ‘’ação’’ consiste na norma-subprincípio que enuncia um estado ideal no qual os remédios jurídico-processuais judicial e administrativo atendam as demandas sociais de forma eficiente e efetiva, categorias que foram relacionadas às posições jurídicas subjetivas. Dentro desse espectro é que acesso à jurisdição é enunciado como a norma-princípio que enuncia um estado ideal no qual o remédio jurídico-processual judicial atenda as demandas sociais que lhe são levadas de forma eficiente e efetiva.
CONCLUSÃO
Cultivou-se como ideia geral a incumbência do cientista em definir com precisão os contornos conceituais que servirão de instrumental para o trabalho a ser desenvolvido pela comunidade científica da qual faz parte.
A premissa acima aplica-se à ciência jurídica, que determina aos operadores do Direito a incumbência de compreender o mundo jurídico e suas categorias jurídicas, para que, justamente, possa determinar qual a disciplina que recairá sobre as questões intersubjetivas.
Com foco ao tema cerne, houve a distinção terminológica entre ação em sentido material, de ação em sentido processual (= doravante denominada ‘’ação’’), do acesso à justiça e, também, do acesso à jurisdição.
A ação em sentido material se coaduna com a ideia de garantia, um dos elementos desenvolvidos na teoria geral da relação jurídica, o que levou a ser definida como o poder formativo que o ordenamento jurídico deixa às ordens do sujeito para que tutele suas posições jurídicas subjetivas ativas.
Garantia tem como natureza jurídica o poder formativo que pode ser ora constitutivo, ora modificativo e ora extintivo, visto que (i) é exercida de forma unilateral, (ii) independe de comportamento pelo sujeito passivo da relação, e (iii) seu exercício habitualmente a consuma.
A ‘’ação’’ foi conceituada como o exercício da pretensão à tutela jurídica. Tal conceito leva a uma relação não necessária de meio e fim, em que a ação em sentido material, por estar no campo do Direito Material, é, regra geral, exercida por meio da ‘’ação’’, que está no campo do Direito Formal.
Qualifica-se o remédio jurídico-processual (= ‘’ação’’) como uma pretensão, porquanto a busca da tutela jurídica tem como característica basilar o fato de que aquele que a maneja busca precisa do aparato estatal para que seu interesse seja assegurado.
A confusão terminológica se dá em razão da ascensão do papel do Poder Público desde tempos remotos, que mostram que, cada vez mais, existe uma canalização da força pelo ente coletivo, o leva ao exercício das posições jurídicas subjetivas exercidos de forma preponderante por meio do maquinário estatal, deixando medidas relacionadas à autotutela como exceção.
O acesso à justiça é definido como como o direito subjetivo de buscar todo e qualquer meio juridicamente permitido e que seja apto a compor o conflito de interesses qualificados por meio da efetividade do direito.
A natureza jurídica da categoria em comento é de direito subjetivo, um conjunto de posições jurídicas subjetivas ativas elementares voltado ao atendimento do interesse de quem as titulariza, interesse este que, in casu, é o de ter os meios para que suas questões sejam solucionadas de forma eficiente e efetiva.
Aprofunda-se, a ‘’ação’’ consiste na busca pela tutela jurídica prestada pelo Estado, dividindo-se em ‘’ação’’ judicial e ‘’ação’’ administrativa, que mostra que o monopólio da força não é titularizado apenas pelo Estado-Juiz, bem como levando à consideração da ‘’ação’’ administrativa ocorrer na seara das três funções estatais, ou como atribuição típica, por parte do Executivo, ou atribuição atípica, por parte do Judiciário e do Legislativo.
Dentro do gênero ação em sentido formal é que está o acesso à jurisdição, o qual se coaduna com o sentido de ‘’ação’’ judicial, a pretensão deduzida contra o juiz, para que exerça que preste a tutela jurisdicional.
Remete-se à qualificação da ação em sentido formal como pretensão, cabendo aqui apenas expor que a pretensão tem um destinatário muito específico, que é o magistrado, o órgão judicial que está investido da jurisdição e, portanto, tem o poder-dever (= dever funcional) para solucionar os conflitos de interesse e os conflitos normativos que lhes são levados.
Além de compreenderem posições jurídicas subjetivas, acesso à justiça e ‘’ação’’ podem ser compreendidos como normas-princípios, enunciados normativos que estabelecem de forma imediata um estado ideal de coisas que exige do aplicador que determine os comportamentos cujos efeitos decorrentes são necessários à sua promoção.
A partir da noção de princípio, a relação de grau entre o gênero acesso à justiça e sua subespécie, a ‘’ação’’ judicial, depreende-se que a acepção tem variações no aspecto terminológico e no conteúdo.
Em maior medida, o acesso à justiça estabelece um estado de coisas no qual sejam promovidos todos os meios para atendimento de um interesse juridicamente relevante, que atendam às demandas sociais por eficiência (= melhores meios) e efetividade (= concretização) das formas como são solucionadas as questões jurídicas.
Já a ‘’ação’’ consiste na norma-subprincípio que enuncia um estado ideal no qual os remédios jurídico-processuais judicial e administrativo atendam as demandas sociais de forma eficiente e efetiva.
Em um grau de aprofundamento maior, o espectro normativo-principiológico do acesso à jurisdição é enunciado como um estado ideal no qual o remédio jurídico-processual judicial atenda as demandas sociais que lhe são levadas de forma eficiente e efetiva.
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