Resumo: O presente trabalho busca analisar a adoção intuitu personae sob um viés jurídico-psicanalítico, sustentando a sua possibilidade em casos excepcionais, com base no melhor interesse da criança e do adolescente e em sua proteção integral. A retirada do adotando do ambiente familiar, onde já se encontra totalmente incluso e com o afeto estabelecido, pode ser encarado como um trauma pela criança, ensejando diversos prejuízos psíquicos. Há de se salientar ainda que a parte principal, e que necessita ser protegida, neste cenário, é a criança e o adolescente, de forma que se deve atentar primeiramente aos seus interesses, sob pena de priorizar o Cadastro Nacional de Adoção em detrimento do adotando. Ademais, a observância dos habilitados não é absoluta, ensejando a possibilidade desta modalidade de adoção em casos especiais, isto é, quando o afeto já está consolidado e a criança encontra-se totalmente inserida no ambiente familiar. Assim, busca-se dar à criança, sujeito de direitos, o amparo e a proteção devida.
Palavras-chave: Adoção Intuitu Personae; Psicanálise; Direito da Criança e do Adolescente; Proteção Integral; Melhor Interesse da Criança e do Adolescente.
Sumário: Introdução. 1. A adoção intuitu personae e o Cadastro Nacional de Adoção. 2. Implicações psíquicas presentes no indeferimento da adoção intuitu personae. Conclusão.
Introdução
O presente artigo busca analisar a adoção intuitu personae, explorando a sua viabilidade em casos excepcionais. Contudo, por vezes o seu deferimento encontra barreira na sua não apreciação no rol exposto no art. 50, parágrafo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe sobre os casos em que deve-se deferir a adoção ainda que o adotante não encontre-se devidamente cadastrado. Assim, visa-se considerar a possibilidade desta modalidade, a fim de regulamentar uma situação fática já consolidada, atentando, desta forma, ao melhor interesse da criança e do adolescente, princípio basilar do sistema protecionista da infância e da juventude.
Além disso, objetiva-se analisar em profundidade, a partir de um olhar psicanalítico, os prejuízos psíquicos e as implicações subjetivas que a retirada de um lar pode causar à criança e ao adolescente, na medida em que este fato pode ser revivido como traumático. Por fim, busca-se, a partir de um diálogo jurídico-psicanalítico, problematizar, nesta modalidade de adoção, o poder e a rigidez do Cadastro Nacional.
Assim, ainda que não previsto no já mencionado artigo estatutário, e os adotantes não se encontrem devidamente habilitados, deve-se analisar o caso concreto, verificando a possibilidade de deferimento da modalidade, a fim de garantir o princípio protecionista e evitar um possível evento traumático a esta criança. Logo, o presente artigo caminha no sentido de defender a proteção integral e o melhor interesse da criança e do adolescente, com absoluta prioridade, valorizando o adotante em detrimento da criança.
A adoção intuitu personae e o Cadastro Nacional de Adoção
A criança e o adolescente, por um longo período, ocuparam papéis de coadjuvante no direito pátrio, diante da Doutrina da Situação Irregular e da Doutrina Penal do Menor, onde não havia proteção à infância. Contudo, este cenário veio a ser alterado com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trouxeram novos paradigmas à matéria, como a proteção integral e o melhor interesse da criança e do adolescente. Tais preceitos foram alterados a partir do reconhecimento da infância como fase especial do processo de desenvolvimento e merecedora de proteção, com prioridade absoluta.
Neste novo cenário, surgiram inovações ainda no que diz respeito à adoção, com a criação do Cadastro Nacional de Adoção, visando à realização de estudos com estes pretendentes, para melhor organizar possíveis adotantes e adotados, garantindo assim uma maior compatibilidade entre eles e a garantia de proteção ao infante. Porém, a alteração do art. 50, parágrafo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente veio regulamentar situações excepcionais em que deve-se deferir a adoção a pretendentes não habilitados no Cadastro Nacional de Adoção.
Contudo, ainda que não presentes no rol citado, algumas formas de adoção sem prévio cadastro mostram-se recorrentes no cenário nacional, não podendo o Poder Judiciário se furtar de analisá-los sob o enfoque protecionista da criança. Dentre tais hipóteses há a adoção intuitu personae, onde a família adotante acaba por abrigar no âmbito familiar um filho que não é seu, mediante a intervenção dos pais biológicos, que escolhem uma nova família para seu filho, sem a intervenção judicial. Esta modalidade, por ocorrer sem a devida intervenção e análise do sistema de justiça da infância e da juventude, enseja diversos problemas no que diz respeito à regularização desta criança (MACIEL, 2013). Assim, o Judiciário acaba por receber diversos pedidos de adoção sustentados no afeto e em situações já consolidadas, onde a criança se encontra totalmente inclusa no âmbito familiar. Trata-se de “uma adoção que pode violar o cadastro de pessoas habilitadas”, mas “antes de ser uma violação legal, devemos atender o melhor interesse da criança” (FONSECA, 2012, p. 147).
Embora por diversas vezes os adotantes não se encontrem inscritos no Cadastro Nacional de Adoção, o Poder Judiciário vem admitindo a viabilidade desta adoção em casos excepcionais, isto é, quando já há um vínculo afetivo consolidado entre criança e adotantes. Apesar de alguns posicionamentos contrários, sustentados em um formalismo exacerbado da norma, é necessário averiguar, fundamentalmente, o melhor interesse da criança, já inserida no âmbito familiar destes adotantes, sob risco de sobrepor a formalidade do cadastro ao interesse da criança.
Deve-se balizar ainda a possibilidade de pais biológicos entregarem seus filhos aos cuidados de outra família, que poderá dar amor e cuidado a esta criança, quando verificarem que não possuem condições financeiras ou recursos psíquicos suficientes para cuidá-la. É preciso deixar de julgar os pais que escolhem entregar seus filhos a outras famílias como criminosos, mas sim como indivíduos que estão agindo com amor e carinho para com este filho, buscando o que entendem melhor para ele (MACIEL, 2013).
Ademais, o fato de a adoção ter ocorrido sem o respaldo judicial não deve ensejar em uma penalização à criança, mas sim àquele que afrontou a lei, e jamais com a perda de seu filho (DIAS, 2014). Ademais, para a concretização desta adoção, todavia, é necessário superar o formalismo acentuado da norma, além de sobrepor o interesse do adotado, diante da impossibilidade de atentar, neste caso, para os dois aspectos, isto é, o melhor interesse da criança e ao Cadastro Nacional de Adoção.
Neste sentido expõe Silvio Venosa (2010, p. 390-391).
“Em sede de adoção, nunca deve ser esquecido que este instituto na atualidade vê o conforto e a afetividade em prol do menor e apenas secundariamente o interesse dos adotantes. O interesse do menor adotando deve ter sempre prioridade.”
Assim, por diversas vezes, os adotantes não pretendiam realizar uma adoção, motivo pelo qual não se inscreveram no Cadastro Nacional, entretanto, ao conhecer aquela criança, estabeleceram um relacionamento de afeto. Desta forma, estes adotantes não desejam adotar uma criança, mas sim aquela criança específica, com quem já desenvolveram laços de cuidado, amparo e amor.
Assim, ainda que os adotantes não se encontrem inscritos no Cadastro de Adoção, e o caso não preencha os requisitos expostos no art. 50 do Estatuto, deve o Poder Judiciário analisá-lo sob a perspectiva do melhor interesse da criança, relativizando regras formais, como o cadastro de adotantes, que não configura um óbice intransponível à adoção. A prévia inscrição no cadastro oficial não deve constituir condição sine qua non para pleitear a adoção, mesmo que não preenchidos os requisitos expostos no art. 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Deve-se analisar, nestes casos específicos, a adequada atuação dos adotantes, e não a sua prévia inscrição. Assim, embora o cadastro de pessoas interessadas seja de maior utilidade, pois facilita a apuração dos requisitos legais, permitindo assim analisar a compatibilidade entre as partes, não há que se excluir a possibilidade da adoção intuitu personae em casos excepcionais.
Tribunais e doutrina vêm admitindo esta possibilidade, desde que fundada no superior interesse da criança e no vínculo afetivo estabelecido entre adotante e adotado. Isto é, a mitigação deste formalismo ocorre quando o menor já está inserido no núcleo familiar e tiver ampla e duradoura afetividade com o adotante.
O Poder Judiciário, ao ater-se ao formalismo acentuado da norma que disciplina a adoção direta, acabaria por negar as partes e a própria criança a prestação jurisidicional, com o fim de regularizar situação já estabelecida, em clara dissonância com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
A adoção intuitu personae requer especial sensibilidade do julgador, analisando o interesse da criança e o afeto já existente no caso concreto antes do formalismo da Lei. Isto porque nesta modalidade é preciso considerar a subjetividade de cada caso, levando em consideração também o modo como a criança lidou com a primeira perda e o quanto está adaptada ao atual lar. Não se objetiva que a adoção fique sem regulamentação e jogada a sorte da plena liberdade individual, mas sim verificar se cada adoção intuitu personae está a atender o melhor interesse da criança que se busca garantir, por meio da análise singular do caso concreto.
Contudo, não se busca afirmar que a adoção intuitu personae possui um caráter absoluto, de forma que é imperioso um estudo multidisciplinar da família adotante, uma vez que esta pode não estar proporcionando o melhor para aquela criança, sendo, em alguns casos, necessária a sua retirada deste âmbito familiar. Não se visa, também, retirar a importância do Cadastro Nacional de Adoção, contudo, este é um instrumento criado para estar a serviço do sistema de adoção, isto é, é uma ferramenta para atender aos interesses da criança, e não um fim em si mesmo. Desta forma, priorizar o adotante listado e o cadastro em detrimento da criança é extremamente prejudicial ao infante e seu aparelho psíquico, além de desvirtuar os objetivos do instituto.
Logo, torna-se necessária uma legislação que adeque esta modalidade de adoção aos princípios da criança e do adolescente, visto que trata-se de uma realidade nacional, devendo ser protegida, nas suas devidas proporções. Proibir a adoção intuitu personae, com a retirada do infante desta família adotante, seria repassar à criança um fracasso do próprio Cadastro Nacional de Adoção e de sua morosidade.
Implicações psíquicas presentes no indeferimento da adoção intuitu personae
A retirada da criança deste lar e a sua colocação em abrigo ou em família devidamente habilitada pode ser vivenciada como um excesso e trazer diversos prejuízos psíquicos ao infante. É preciso considerar que a criança já viveu uma situação de perda e no momento em que é retirada de sua atual família, com a qual já estabeleceu uma aliança afetiva, ela reviveria este momento de abandono. Entende-se, desta forma, que, devido ao vínculo existente e da atuação adequada dos adotantes, enquanto pais afetivos, não é apropriada a retirada desta criança do âmbito familiar. Ademais, a adoção intuitu personae é uma realidade no cenário nacional e não deixará de existir apenas pelo indeferimento judicial. A negação, por sua vez, ensejará uma desmotivação da família adotante de ingressar em juízo com o fito de regularizar a situação desta criança, visto que haveria a possibilidade de não obter êxito, influenciando ainda mais a guarda informal e desregularizada (MACIEL, 2013). Assim, a observância do cadastro deve ser mitigada em situações excepcionalíssimas, levando em consideração o melhor interesse da criança e do adolescente.
A criança em questão, já foi retirada de seu lar, ou ainda nem teve acesso aos seus genitores biológicos, o que por si só já pode ter sido vivido como um excesso que o psiquismo não consegue metabolizar, caracterizando um trauma. No momento em que ela é novamente retirada da família adotante, com a qual está totalmente inclusa, e possui um forte laço de afeto, existe a possibilidade de reviver a situação de abandono. Tal evento poderá ainda desencadear diversos prejuízos psíquicos, na medida em que as noções de confiança e respeito não estão sendo instaurada nesta criança.
O nascimento de um bebê pode ser considerado uma violência, na medida em que constitui uma ruptura radical do equilíbrio entre o organismo e seu meio: o bebê deixa o conforto vivido dentro do útero para conhecer o mundo exterior. A sua autonomia é adquirida por meio do desamparo, inerente ao ser humano, o qual irá gerar uma demanda de amor e uma angústia, deixando uma marca indelével na vida psíquica do sujeito. Por medo de perder o amor paternal, a criança internaliza os valores e proibições dos genitores. Este temor sempre está presente, de modo que a criança passa os primeiros anos de sua vida desejando o amor dos pais (HORNSTEIN, 2009).
Dessa forma, a criança necessita viver em um lar com pessoas com quem ela possa sentir-se segura – é necessário um porto seguro. Um ambiente suficientemente bom é determinante no desenvolvimento de um indivíduo. Para tanto, desde os estágios iniciais, o bebê necessita que suas necessidades sejam satisfeitas a partir da confiança, amor e constância, originadas no estado de preocupação materna primária.
Ao cometer falhas, esse ambiente deveria ser capaz de repará-las em um tempo em que o bebê poderia suportar sem viver uma aflição impensável. Na medida em que este tempo é ultrapassado, o psiquismo da criança é submetido a riscos e prejuízos, os quais trazem consequências para o seu desenvolvimento (ROCHA, 2006). Assim, no momento em que a criança adotada é submetida a diversas mudanças de contextos familiares, esta relação não se estabelece, de modo que a criança em questão sente-se desamparada e abandonada, podendo interpretar que é indesejada. Desse modo, o adotado vive uma experiência de desvalorização, insegurança e incompreensão e é privado de vivenciar uma relação de confiança.
Por meio de uma defesa psíquica, é possível ocorrer uma psicose, uma perversão, a ocorrência de transtornos alimentares, ou ainda a busca por substâncias psicoativas, a fim de preencher um vazio que jamais será preenchido, pois quando se trata da falta de amor, não há nada que seja verdadeiramente suficiente. Portanto, esta retirada do seu lar comprova uma indiferença diante desta criança, de modo que suas vivências e considerações estão sendo desvalorizadas e desconsideradas a fim de atender o Cadastro Nacional.
Conclusão
Ao propormos uma discussão a respeito do Cadastro Nacional de Adoção e o melhor interesse da criança e do adolescente, salienta-se que a observância da listagem de adotantes não é absoluta, de forma que, com base no melhor interesse da criança, princípio basilar do sistema protecionista, deve-se deferir a adoção intuitu personae em casos excepcionais, isto é, quando o adotando já encontra-se ambientado no núcleo familiar, com vínculos de afeto consolidados.
Há posicionamentos que defendem sua impossibilidade, sustentados em um formalismo exagerado, desconsiderando o melhor interesse da criança, na medida em que sobrepõe o cadastro ao vínculo que esta estabeleceu com a família. Contudo, é preciso levar em consideração que a retirada da criança deste lar pode trazer diversos prejuízos psíquicos, podendo ser vivida como mais uma experiência traumática e de abandono.
Acredita-se, portanto, que devido ao vínculo existente e ao trauma que pode ser desencadeado no adotando, não é possível retirar a criança do âmbito familiar quando já há afeto estabelecido com os adotantes. Assim, é essencial considerar o melhor interesse da criança e analisar cada caso com sensibilidade, sobrepondo-o à observância do cadastro. Logo, torna-se imperioso dirigir o olhar, com absoluta prioridade, a essa criança, na medida em que, caso contrário, estaríamos responsabilizando o adotando pelos fracassos do Cadastro Nacional. Nesta perspectiva, a criança deve ser tratada com respeito e como ser humano, sujeito de direitos e sentimentos.
Embora o legislador tenha buscado padronizar a adoção, buscando prever algumas hipóteses de deferimento da adoção sem preencher o requisito de prévio cadastro, a afetividade e a subjetividade do caso foram deixadas de lado (COELHO, 2011). Deve-se considerar as transformações da sociedade contemporânea para a aplicação da norma jurídica, embora seja inviável abranger toda a gama de particularidades possíveis. Logo, a não inscrição do adotante no Cadastro Nacional de Adoção não deve caracterizar, por si só, impedimento de se vincular com a criança, com quem estabeleceu uma relação afetiva e parental. Desta forma, o Direito brasileiro atual não pode se furtar de ir além do caso manifesto e considerar a afetividade presente na relação estabelecida entre pais e filhos, independentemente da existência de laços biológicos e formalidades legais.
Advogado. Graduado em Direito pela PUCRS. Especialista em Direito de Família e Sucessões na PUCRS. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família
Acadêmica em Psicologia na PUCRS. Bolsista de IC no Grupo de Pesquisa Fundamentos e Intervenções em Psicanálise do PPG da FAPSI/PUCRS.
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