1. A matéria referida à regulamentação dos meios de prova em processo penal é das mais complexas por colocar em confronto direto duas ordens de raciocínio: por um lado, evidencia-se o crescimento do fenômeno criminal em determinados domínios até bem pouco tempo insondáveis, manifestando-se de forma organizada, com a utilização de meios sofisticados e, algumas vezes, ocupando estratos sociais distantes da marginalidade comum (as modalidades dessa nova onda criminal estão especialmente relacionadas com as organizações criminosas, processos de lavagem de dinheiro, tráfico de mulheres, tráfico de drogas e terrorismo), para o que nem sempre a polícia judiciária está preparada, vendo-se na condição de também inovar, agindo com tanta astúcia quanto os criminosos; por outro lado, uma tal circunstância de combate ao crime, que é querida pelas instâncias oficiais do Estado (que deve fazer frente ao risco social representado pela atividade criminal, ela própria fonte criminógena, porque o crime alimenta o crime) e da comunidade, está, por vezes, na zona limítrofe entre o direito e o ilícito, tendo sua legitimidade contestada por afrontar as mais comezinhas noções dos direitos fundamentais e, até mesmo, dos princípios que norteiam o corpus jurídico cosntitucional-processual. Ante a incapacidade de refrear a criminalidade, o Estado – o Estado de direito que se quer material, ultrapassando, portanto, os postulados da Constituição formal –, vê-se na contingência de fazer concessões ao sistema de direitos fundamentais estruturado durante a primeira onda do constitucionalismo (Hauriou), de cariz notadamente liberal e que, em boa verdade, ultrapassou o Estado chamado burguês (Schmitt) para se tornar aquele patrimônio irrenunciável da sociedade democrática, seja no tipo de Welfare State, seja nesta configuração pós-moderna de Estado (do Estado em crise constitucional, estrutural, ética e de identidade e que já não se conforma com uma rotulação pura e simples), mais ou menos como já havia prenunciado Bobbio num de seus estudos[1]. Surge aí, portanto, uma tensão que se manifesta entre a legítima finalidade-dever de minimizar os efeitos da criminalidade sobre a sociedade e a necessidade de preservação do sistema de direitos fundamentais que, para além de conquista da sociedade democrática ocidental é a própria justificativa do Estado que surge, primeiro, nos Estados Unidos da América, depois na França da Revolução de 1789, quando se depõe o Ancien Régime.
Mesmo que o momento mais emblemático disso possa ser localizado após o 11 de setembro, quando a polícia norte-americana passou a lograr facilidades para empreender investigações cujos métodos põem em causa o direito à privacidade, o problema já vem sendo discutido há muito por doutrinadores europeus, ao que parece sempre mais predispostos à defesa de um processo penal ético (em consonância com o Estado de direito material, como refere Figueiredo Dias) e que é, portanto, absolutamente contrário ao recurso de práticas ilícitas (ou de caráter oficioso) para o desbaratamento do crime. Entre nós, o tema é novo, e encontra resistência por parte da doutrina abertamente funcionalista e mesmo do posicionamento jurisprudencial das mais altas cortes. Mas não temos dúvida de que é hoje uma ingente necessidade sua análise, mormente quando o País assiste a um verdadeiro espetáculo de ações da Polícia Federal (muitas delas mais estrepitosas do que eficientes) no sentido de identificar criminosos de colarinho branco, organizações criminosas, narcotráfico transnacional, sem que haja paradigmas legais a serem seguidos, a não ser um arcabouço fragmentário de normas procedimentais (presentes em leis penais especiais, como a Lei Antidrogas) e a noção dos direitos-garantias individuais[2]. A única diretriz acerca das proibições sobre meios de prova em nosso sistema constitucional-processual é encontrada num enunciado vago, de caráter amplo, amplíssimo, que é aquele contido no art. 5º, LVI, CR: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. E nada mais. Assim, propomo-nos, no presente artigo, analisar o problema dos meios de prova radicando-o em duas figuras hoje bastante solicitadas pelas investigações policiais, que são o agente provocador e o agente infiltrado, tentando uma abordagem crítica sobre sua validade no processo penal, aqui entendido a partir do referencial com o moderno Estado de direito material.
2. Não há dúvida de que o processo mantém estreita correspondência teleológica com a idéia de garantia da liberdade, como bem se depreende de sua mais remota noção abrigada na Magna Charta Libertatum, de 1215, onde se prescreveu, no seu capítulo 29, que nullus liber homo capiatur vel imprisionatur… nisi per legale iudicium parium suorum, vel per legem terrae, de forma, portanto, que a liberdade humana restava já delimitada pela lei da terra (do que deriva o princípio da rule of law dos ingleses) e a salvo dos atos arbitrários, na medida em que só caberia sua restrição com base na lei[3]. Os contornos mais bem acabados da garantia derivada do processo aparecem, também por inspiração inglesa – ao fim e ao cabo a matriz do sistema constitucional-processual norte-americano – na Declaration of Rights, da Virgínia, de 1776, onde seu art. 8, dispõe que todo processo em que se vise à aplicação de pena capital ou simples processo penal
“[…] a man hath a right to demand the cause and nature of his accusation, to be confronted with the accusers and witnesses, to call for evidence in his favor, and to a speedy trial by an impartial jury of twelve men of his vincinage, without whose unanimous consent he cannot be found guilty […].”
E na parte final, o mesmo artigo refere que o homem só perde sua liberdade em razão do que dispuser a law of land e do julgamento de seus pares. Mais tarde, a Constituição dos Estados Unidos (1787) emprega, expressamente, o termo due process f law na décima quarta emenda, sem cuja obediência por parte do Estado ninguém poderá ser privado de sua vida, da liberdade ou da propriedade. Observe-se que isto, aliado ao direito que os cidadãos norte-americanos conquistaram à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres contra prisão, busca e apreensão arbitrária; as formalidades que devem estar presentes nos mandados judiciais arrimados num juízo prévio de culpabilidade (exigências prescritas na quarta emenda constitucional); assim como o direito a um julgamento rápido e público por um júri imparcial (sexta emenda), constituem, segundo entendemos, um verdadeiro sistema de garantias da liberdade pessoal – sistema presidido pelo direito-garantia do due process of law[4]. As coisas vistas desta forma, permitem-nos desde já identificar no advento do Estado liberal (de forma incipiente na Inglaterra do século XVIII, de forma acabada com a independência dos Estados Unidos da América e na Europa continental de após Revolução Francesa) o surgimento de um processo penal conforme à planificação de democracia do mundo ocidental, que estabelece a dúplice idéia de, por um lado, existência de uma esfera de liberdade do indivíduo [que] se supõe como um dado anterior ao Estado, ficando a liberdade do indivíduo ilimitada em princípio, enquanto que a faculdade do Estado para invadi-la é limitada em princípio e, por outro lado, de organização do Estado, com funções bem definidas, mecanismo impeditivo de abusos e arbitrariedades[5]; sendo assim, o processo penal é erigido à condição de garante da liberdade dos cidadãos, na medida em que impede a supressão de um bem jurídico de relevância, como a liberdade, por ato arbitrário e abusivo, de todo em todo deslocado das regras do jogo; e, por fim, como decorrência disso, o processo penal antes de encarar o homem como objeto, um ser funcionalizado do processo, concede-lhe o estatuto de interveniente processual, ou seja, um ser no processo, que dele dispõe inclusive para controlar a atuação estatal. É por isso que vemos no due process of law norte-americano mais que um princípio fundamental: trata-se de um verdadeiro direito-garantia individual, que coordena as demais garantias constitucionais de índole processual, tudo se enfeixando na idéia de proteção da liberdade individual. Ou, por outras palavras, o processo penal é a própria expressão ativa garantidora da liberdade.
Mas se o processo penal mantém essa ligação ideológica com a salvaguarda da liberdade individual, de maneira a que os atos do Estado em vez de atropelarem os interesses do cidadão – e, por mais elementar que seja a idéia, é sempre bom lembrar do alerta feito por Ortega y Gasset, quem dizia que o Estado existe em função do homem e não o contrário (e que, completaríamos nós, não deve ser funcionalizado, sob pena de perder sua individualidade, sua dignidade) – devem, para além de se conformar a eles, garanti-los, minimizando os danos a que estão sujeitos pelo prosseguimento das funções estatais, ao menos preservando o núcleo duro da idéia dos direitos de liberdade, há, por outro lado, uma outra ordem de interesses identificada com aquilo que Pontes de Miranda denominou de técnica de garantia dos direitos de liberdade, segundo a qual As liberdades individuais têm de ser asseguradas até onde não ofendam a ordem pública[6]. O problema que aqui surge (quando se tenta dirimir as tensões entre interesses individuais e a ordem pública, ou, de maneira mais conforme ao atual quadro político, interesses sociais), no entanto, se relaciona com eventual (e indevida) ideologização do Estado, que por vezes, agindo em nome dos interesses sociais (ou a pretexto deles), capitaliza para determinada situação ideológico-política o modo de atuar estadual. Nestas circunstâncias, tanto uma democracia populista (que tem, na realidade, uma face oculta), o socialismo (como esse propugnado pelo ideal bolivariano que anda a circundar o Brasil), como um regime autocrático de direita, aquilo, em suma, que Radbruch denominava de Estado supra-individualista (por não respeitar a dignidade da pessoa humana e, portanto, o seu direito à individuação)[7], acabam por funcionalizar o homem: em vez de autonomia, inclusive no modo de participar no processo (como interveniente), tem-se nele um objeto atrelado ao instrumentário processual; e o processo, portanto, em vez de garante da liberdade individual, torna-se instrumento técnico de realização dos fins estatais, sem tangenciar a esfera ontológica do homem, nem a órbita dos valores axiológicos da comunidade. Daí que o direito acaba se tornando um direito simbólico, porque antes de referir-se a um conteúdo axiológico, estará a serviço de uma dada ideologia (ou convicções políticas), situação contra a qual se insurge, entre nós, de forma veemente, Silva Franco[8].
3. A atual fase de desenvolvimento do processo penal está relacionada com a viragem de consciência operada após a segunda Grande Guerra, quando a nova onda do constitucionalismo estabelece como marco inarredável para a estruturação do sistema de direitos fundamentais o princípio da dignidade da pessoa humana. O homem é, a partir de então, encarado como um ser complexo, nele compreendendo-se as dimensões moral, psíquica e espiritual; é espécie ontológica, mas que tem sua existência radicada em sua experiência como ser-em-sociedade, para além do que toda ontologia acaba por se tornar sem sentido; no entanto, tem especial vocação para o aperfeiçoamento e para a autodeterminação, signos da hominidade nos quais se funda uma dimensão puramente individual. Perspectivando as coisas por essa ótica, as Constituições modernas, como a da Alemanha Federal (1949), a da República Portuguesa (1976), a da Espanha (1978) e a nossa, passaram a ser presididas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que determina dois níveis de relacionamento, como percebemos na primeira das Constituições mencionadas:
1 A dignidade do homem é inviolável. Constitui obrigação de todas as autoridades do Estado o seu respeito e proteção. 2. O povo alemão reconhece, em conseqüência, os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo (art. 1º).
A dignidade, então, é exigida não apenas nas relações do plano horizontal, do homem para com o homem, mas, também, num plano vertical verificado nas relações entre o cidadão e o poder político. De maneira a que, em suma, todos estejam obrigados à dignidade da pessoa humana, inclusive o Estado em seus programas idealizados para dar consecução a seus fins. Em seguida, no art. 2º, a mesma Constituição dispõe: Todos têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade sempre que não ofendam os direitos de outrem nem atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral. Esse Estado de direito democrático já não se compadece com uma expressão meramente formal de sua Constituição, pois que o aperfeiçoamento do homem exigirá a comparticipação do Estado, que intervirá com meios, promovendo a liberdade positiva (Berlin); o livre desenvolvimento, apela, por outro lado, para a feitura de um Estado não-doutrinador e não-ideologizado. O que, sem dúvida, contrasta com o modelo de Estado supra-individualista, que considera o homem apenas como ser da coletividade. Em consonância com isto, o processo penal propugnado segue, podemos dizer, as linhas gerais traçadas por Figueiredo Dias[9]: a) estará dirigido pelo princípio axiológico da dignidade da pessoa humana e, no que se refere à matéria da prova, há de se respeitar o contido no art. 32º, 6 da Constituição da República Portuguesa e no art. 261º do Código de Processo Penal[10], proibindo-se no processo, por exemplo, a confissão obtida por meio de tortura; b) a possibilidade de limitação de certos interesses individuais que não contendam diretamente com a garantia da dignidade da pessoa humana, explicando que […] se a proibição de (valoração da) prova se não prende com a garantia da dignidade da pessoa (como, v.g., no caso de proibição do testemunho de ouvir-dizer), já poderá eventualmente vir a reconhecer-se a admissibilidade de provas consequenciais à violação daquela proibição[11]. Tal possibilidade de limitação, no entanto, estará sujeita aos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
4. Da necessidade de se estabelecerem limites para a atividade processual do Estado decorrem regras de proibição de prova[12], como verificamos no 1) corpus jurídico norte-americano, que adota o conceito de exclusonary rules, depreendidas da Constituição, onde se erige um rígido sistema de garantias de liberdade pessoal, presidido pelo due process of law. Ali não se admite, v.g., qualquer meio de prova que colida com a 5th Amendment (que estabelece o privilege against self-incrimination). As proibições carecem de flexibilidade, estabelecendo regras muito claras para o sistema de acusatório puro, no qual o State Prossecutor, orientando as investigações da polícia judiciária, deve rejeitar os meios de prova insuscetíveis de apreciação pelo tribunal[13]. Há nesse sistema um crivo que não apenas declina irregularidas, mas nulidades absolutas com efeitos-à-distância, que contaminam as provas decorrentes da que foi nulificada; 2) no direito processual alemão observam-se as Beweisverbote, que pressupõem a proteção de bens jurídicos derivados da normação axiológica presente em sua Lei Fundamental: daí destaca-se a proibição dos meios de prova que contendam com a dignidade humana […], com o livre desenvolvimento […] com a inviolabilidade do segredo de correspondência e das telecomunicações […] ou com a inviolabilidade do domicílio[14]. Tal regime encontra-se cimentado em seu processo penal que proíbe o acolhimento de confissão extraída através de maus-tratos, fadiga, ofensas corporais, administração de quaisquer meios, tortura, hipnose etc. Há aí um terreno fragmentário de normas constitucionais, incapazes de proteger os muitos interesses do homem relacionados com o seu livre desenvolvimento, mas adequado para movimentações mais amplas da exegese jurisprudencial (especialmente da Corte Constitucional) e doutrinal. São ocorrentes na jurisprudência da Corte Constitucional as ponderações dos bens jurídicos em jogo (entre os que digam respeito ao réu e à sociedade), de modo a que a realização do direito penal se confirme como garantidor do mínimo ético necessário à paz social; 3) já no processo penal português existe um regime autônomo de proibições de prova, dirigido pelo princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, da CR), pelo direito à integridade física e moral (art. 25º, CR), pelo direito à imagem e à reserva de intimidade da vida privada (art. 26º, CR), tudo enfeixando-se num sistema de garantias que tornam nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (art. 32º, CR). Não se pode negar que também no sistema constitucional-processual português ocorre um mal genético de fragmentariedade, mesmo estando a matéria disciplinada no Código de Processo Penal, de maneira que o operador do direito deverá recorrer a outras constelações legais para se guiar[15].
Se, por um lado, os sistemas aqui vistos, mesmo que de forma perfunctória, permitem o estabelecimento de limites para os meios de prova em processo penal, dando certa margem de segurança para o operador do direito, o nosso, por outro lado, não apresenta um regime de proibição de provas legalmente definido, implicando, necessariamente, já que tratamos do modelo de Estado de direito material, na necessidade de ampararmo-nos no sistema de direitos e garantias constitucionais para a solução dos problemas nessa área ocorrentes. É a partir daí e dos princípios a ele inerentes que poderemos adensar a análise do problema proposto, antes, porém, fazendo a análise das duas figuras de investigação.
5. É freqüente na prática investigatória da polícia judiciária o uso do agente provocador, expediente, aliás, que não só encurta o longo caminho que normalmente teria de percorrer a investigação, como, também, se revela eficaz para a detecção (e prisão) do agente de crimes como o tráfico, operacionalizados pela organização criminosa e encobertos pela lei do silêncio imposta às pessoas, como moradores de certas regiões, que acabam se resignando com o cotidiano de crimes; e, mais recentemente, a partir da previsão legal constante no inc. V, do art. 2º da Lei nº. 9.034/95 (modificada pela Lei nº. 10.217/2001), passando pela Lei nº. 10.409/2002 (art. 33, I) e, agora, pela Lei nº. 11.343/2006 (art. 53, I), vem-se adotando a infiltração de agente, geralmente no meio ou organização criminal. As figuras não se distinguem apenas pelo fato de uma se originar da práxis oficiosa, enquanto que a outra apresenta previsão legal: o método de atuação é o principal elemento diferenciador, reclamando sua contextualização no quadro normativo axiológico, dos princípios constitucionais e da idéia fundamental de proibição de meios de prova. Avancemos, então, na análise desses métodos de investigação.
Na doutrina alemã, as pessoas inseridas com identidade encoberta no meio criminal, com o intuito de investigarem a atuação de criminosos, ganham a denominação genérica de homens de confiança (Vertrauens-Männer), que podem ser categorizados como agentes provocadores e agentes infiltrados[16]. Esses agentes são, para Costa Andrade:
“[…] todas as pessoas que colaboram com as instâncias formais da perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da confidencialidade da sua identidade. Cabem aqui tanto os particulares (pertencentes ou não ao submundo da criminalidade) como os agentes das instâncias formais, nomeadamente da polícia (Untergrundfahnder, undercover agent, agentes encobertos ou infiltrados), que disfarçadamente se introduzem naquele submundo ou com ele entram em contacto; e quer se limitem à recolha de informações (Polizeispitzel, detection), quer vão ao ponto de provocar eles próprios a prática do crime (polizeiliche Lockspitzel, agent provocateur, entrapment)”[17].
A. O agente provocador é aquele que, ao ganhar a confiança do criminoso, mediante uso de algum ardil, o instiga ou o convence a praticar determinada conduta típica, quando, então, desencadeia a atuação policial para a positivação do fato e mesmo para sua prisão. É o que verificamos geralmente nas prisões em flagrante delito de traficantes de drogas, que são levados a comercializá-las com um agente de identidade encoberta a serviço da polícia. Em realidade, trata-se de método que tem como eixo central um expediente enganoso, condenável por muitos em razão da falta de ética, o que colocaria Estado e criminoso num mesmo nível. Numa decisão datada de 1912, o Reichsgericht assim se referiu sobre o provocador:
“[…] à luz dos princípios gerais da ética, a que terão de submeter-se, sem consideração pelos resultados, as autoridades da justiça penal, não pode de forma alguma coonestar-se esta prática […]. A utilização no processo penal de tais solicitações é, em qualquer circunstância, proibida. É desonesto e, de todo modo, incompatível com a reputação das autoridades da justiça penal, que os seus agentes ou colaboradores se prestem a incitar tão perigosamente ao crime ou, mesmo, que apenas deixem subsistir a aparência de terem colocado ao serviço da justiça penal, meios enganosos (Täuschung) ou outros meios desleais[18].”
A doutrina portuguesa segue este referencial, havendo quem considere a atuação do agente provocador não apenas antiética, mas, também, criminosa, uma vez que inescapavelmente haverá, de sua parte (do agente), a intenção consciente de realizar a conduta típica, fazendo nascer o delito que não ocorreria não fosse sua intervenção[19], tudo, obviamente, sem a cobertura de qualquer excludente de ilicitude. É por este paradigma doutrinal e com base no art. 126º, 2, do CPP[20], que o Tribunal Constitucional português já fixou o entendimento no sentido de que
“é inquestionável a inadmissibilidade da prova obtida por agente provocador, pois seria imoral que, num Estado de direito, se fosse punir aquele que um agente estadual induziu ou instigou a delinqüir. Uma tal desonestidade seria de todo incompatível com o que, num Estado de direito, se espera que seja o comportamento das autoridades e agentes da justiça penal, que deve pautar-se pelas regras gerais da ética […][21].”
B. O agente infiltrado, também incluído no conceito de homem de confiança das autoridades policiais, atua com a identidade encoberta, mas, diferentemente do provocador, não está inserido no meio criminal para estimular a prática de um crime: trata-se de pessoa que colhe informações, investiga o modus operandi dos criminosos, incluindo os planos ou preparação do crime, visando oferecer elementos para a atuação policial. Gonçalves, Alves e Guedes Valente, ao comentarem o Dec.-Lei n.º 15/93, que regulamentou em Portugal essa modalidade de investigação, referem:
“A figura do agente infiltrado é, pois, substancialmente diferente da do agente provocador. O agente provocador cria o próprio crime e o criminoso, porque induz o suspeito à prática de actos ilícitos, instigando-o e alimentando o crime, agindo, nomeadamente, como comprador ou fornecedor de bens ou serviços ilícitos. O agente infiltrado, por sua vez, através da sua actuação limita-se, apenas, a obter a confiança do suspeito(s), tornando-se, aparentemente, num deles para, como refere Manuel Augusto Alves Meireis, ‘desta forma ter acesso a informações, planos, processos, confidências…que, de acordo com seu plano, constituirão as provas necessárias à condenação’[22].”
Em suma, o agente infiltrado mantém sua verdadeira identidade encoberta, adotando uma falsa, para ganhar a confiança dos criminosos; passa a viver no submundo do crime, inclusive fazendo parte dos planos e ações ilícitos, sem, no entanto, dar causa, diretamente, à prática de um crime (a atividade do agente é limitada). Pode mesmo chegar a prestar apoio moral e material, e praticar atos de execução de crime, como permite o regime legal português de ações encobertas[23], mas não pode – está proibido de – impulsionar o crime. Para além do mais, a infiltração, pelo que percebemos quanto ao seu emprego tanto no processo penal português[24] como no nosso, é regrada por um juízo de necessidade e pelo princípio da proporcionalidade, pois que fica a investigação restrita a crimes de maior potencialidade ofensiva e sob a pendência de autorização do Ministério Público (em Portugal) ou do juiz (no caso brasileiro).
6. Mesmo que o processo penal brasileiro não disponha de um regime jurídico específico para as ações encobertas (o que, em parte, se justifica em razão da falta de desenvolvimento na polícia judiciária de práticas investigatórias desse gênero), o agente infiltrado tem já os contornos delineados pela Lei n.º 9.034/95 e pela Lei n.º 11.343/2006. A primeira dispõe que a polícia judiciária deve criar nos seus quadros equipes especializadas, ao passo que o inc. V do art. 2º refere expressamente que a infiltração será realizada por agentes de polícia ou de inteligência, enquanto que o artigo 53, I, da Lei Antidrogas trata, apenas, da infiltração por agentes da polícia. Portanto, diferentemente do modelo que acabamos de analisar, nosso sistema não permite a infiltração de informantes ou colaboradores da polícia, o que já limita as possibilidades dessa prática investigatória. Mas o que realmente nos preocupa é o fato de não existir um disciplinamento da própria atuação do agente infiltrado, concedendo-lhe, por um lado, prerrogativas e, por outro, mecanismos de controle por parte da autoridade policial ou do judiciário ou do Ministério Público. Nada é dito, por exemplo, sobre a prática de eventuais atos de execução de crime (muitas vezes inevitáveis), ou sobre a necessidade de relato minucioso à autoridade policial da intervenção do agente no meio criminal. De forma que, embora circunscritas à idéia de licitude, as ações encobertas de nosso sistema investigatório correm riscos de resvalar não só para fora da esfera daquilo que é pretendido para as instâncias oficiais de prevenção e combate ao crime (que é a investigação gizada pela ética), como, também, de eventuais práticas criminosas ou que ingressem nos domínios da provocação do crime. Daí que a fronteira entre as atuações do agente infiltrado e do agente provocador seja tênue.
Quanto ao agente provocador, figura que se encontra à margem da esfera da licitude, constituindo-se, portanto, um expediente investigatório ditado por um arraigado costume de nossa polícia, especialmente em relação aos crimes de tráfico de drogas, acaba ingressando num quadro jurisprudencial-doutrinal absolutamente estranho, ou, mesmo, paradoxal. É, como afirmamos, uma modalidade de atuação sem previsão legal e os elementos de prova daí decorrentes, por conseqüência, não se encontram sob o abrigo da licitude. Mas os tribunais, em geral, em vez de invalidarem a prova coletada pelo agente provocador, apenas entendem não configurado o crime instigado. Aliás, o STF consolidou esse entendimento na Súmula 145, que dispõe: Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação. Por outras palavras, a conduta provocada não perfectibiliza crime porque o elemento subjetivo – dolo -, a vontade livre e consciente orientada para certo fim é contaminada pela indução do agente provocador. Mas, no entanto, há nessa linha de raciocínio uma implícita admissão não apenas da ação penal com relação aos fatos que antecedem à provocação e que, obviamente, configurem crime, mas, também, o próprio testemunho do agente provocador como meio de prova no processo penal. Daí que, no caso paradigmático do tráfico ilícito de drogas, o negócio de compra e venda levado a efeito pelo traficante e o agente provocador, não configura o crime na modalidade de venda (que é para doutrina apenas uma venda ficta[25]), no entanto, considera-se aí configurado o tráfico na espécie de ter em depósito ou manter sob sua guarda droga. Conseqüentemente, a denúncia deverá ater-se aos fatos criminosos que antecedem à ação de provocação, enquanto que a conduta daí decorrente é considerada, pelos tribunais, situação de crime impossível[26].
Damásio de Jesus, que esposa essa linha de raciocínio, justifica sua posição afirmando que
“Os comportamentos do traficante, nas hipóteses de guarda, depósito etc., não são induzidos pelo agente policial. Em conseqüência, há delito e pode ser lavrado o auto de prisão em flagrante, mas somente em relação à guarda ou depósito da droga, isto é, no tocante às condições não provocadas pelo simulador (REsp. 277, STJ, 5ª T. – Rel. Min. Costa Lima – RT, 652:358).”
Em suma, temos na primeira hipótese, a de atuação de agente infiltrado, expediente de investigação policial legalmente autorizado para a elucidação dos crimes praticados por organizações criminosas (Lei n.º 9.034/95) e do tráfico ilícito de drogas (e afins, arts. 33 a 37, da Lei n.º 11.343/2006); e, de conformidade com a interpretação que se faz do direito-garantia da inadmissibilidade de provas obtidas por meio ilícito, todos os elementos recolhidos durante as investigações, inclusive o testemunho do agente, poderão constituir meios aptos de prova em processo penal. Como conseqüência disso, uma rápida análise desse proto-regime de provas em processo penal que se instala entre nós conduzirá a entendermos que: a) as ações encobertas ocorridas para a elucidação de crimes não previstas em lei, desautorizam o uso em processo penal dos elementos de prova através delas juntados; no entanto, b) a atuação do agente provocador, de todo em todo fora do âmbito de licitude, portanto não apenas antiética mas, também, antijurídica, é admitida para levar ao conhecimento da justiça penal todos os fatos antecedentes à provocação e que constituam ilícito penal; de sorte que c) os meios de prova resultantes da provocação concernentes à parte não contaminada por ela, prestar-se-ão aos fins visados pelo processo.
Ao apresentarmos as coisas desta maneira e partindo da orientação contida no direito-garantia fundamental de inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, seremos forçados a indagar se a experiência jurídico-jurisdicional verificada em nossos tribunais, no que concerne ao aproveitamento da prova produzida durante a provocação de um crime, gera uma antinomia jurídica. Ou, de forma mais planificada: estará o Estado a recorrer a meios antiéticos para dar consecução aos seus fins na área da justiça penal, nisso igualando-se aos criminosos? O processo penal brasileiro é, puramente, um processo que funcionaliza o homem, desrespeitando as noções mínimas de autonomia ou de autodeterminação pessoal? Nesta hipótese, o réu figurará no processo como mero objeto dos fins pretendidos pelo Estado, mormente o de combate de certo tipo de criminalidade? Há possibilidades de equacionar as questões problemáticas aqui sugeridas, que se reconduzirão a uma única, referida ao modelo de processo penal que pretendemos para nós, através dos princípios fundamentais de nosso corpus iuris? Os problemas são verdadeiramente complexos e talvez não esgotemos as possibilidades de soluções no espaço deste ensaio, mas vamos já adiantar algumas delas.
7. Já de início, e para centrarmos a discussão do problema na área axiológica da filosofia do direito, poderemos dizer que nenhuma das modalidades de investigação aqui tratadas tem uma justificativa puramente ética, a menos que tratemos seu conceito dentro do relativismo, o de todos os sistemas filosóficos. De forma mais clara, se, por um lado, a provocação do crime é levada a efeito por um expediente ardiloso do agente com identidade encoberta, que dissimula uma condição de pessoa pertencente ao submundo do crime, no fundo, bem no fundo, por outro lado, o agente infiltrado recorre ao mesmo tipo de expediente para ganhar a confiança de criminosos e, assim, inserido no seu meio, recolher as informações que permitirão a atuação da autoridade policial visando à prevenção ou à repressão de determinado crime; para além disso, tanto o agente provocador quanto o agente infiltrado invariavelmente cometerão atos de execução de crime, de forma consciente e predeterminada. Pode-se, então, dizer que há diferenças éticas nos dois casos? Expondo o problema de outra maneira, o expediente de quem, visando, apenas, à recolha de informações, simula sua identidade e até pratica atos preparatórios ou de execução de crime, é menos antiético de quem leva outrem à prática de crime? A nosso ver a resposta só pode ser negativa.
Mesmo quando se lança mão do princípio da lealdade para justificar a recusa das informações do agente provocador como meio de prova em processo penal, não nos parece haver uma linha de raciocínio coerente com aquilo que se entende por lealdade – conceito este indiscutivelmente localizável nos domínios da ética –, tendo em vista relacionar-se com noção que […] impele a administração da justiça a não recorrer a meios enganosos, a métodos ardilosos que traduzam a obtenção de provas de forma ilícita, que induzam o arguido à prática de factos que não praticaria se não fosse ardilosamente interpelado, provocado ou incitado[27]. Mas, repare-se bem que os criminosos só relatam seus planos ou confiam determinado papel ao agente infiltrado dentro de uma organização para a prática de crimes porque foram, tout court, rotundamente enganados, sendo levados a entender tratar-se o agente como um dos seus. Estabelecem-se, então, linhas de comunicação entre as duas modalidades de agentes encobertos, cuja base ética, a nosso ver, é bem fraca, não resistindo a um olhar mais cuidadoso. A não ser por uma circunstância diferenciadora: o de que a atuação do agente infiltrado está alicerçada na previsão legal e no controle exercido pelo representante do Ministério Público e pelo juiz.
Ao começarmos a compor a equação desse problema jurídico, podemos afirmar que o fato de existirem leis que regulamentam a infiltração de agentes e mecanismos de controle de sua atuação, torna esse método de investigação menos repreensível do ponto de vista ético. Ora, a regulamentação por lei confere ao criminoso a possibilidade de prever a ocorrência de infiltração de informantes, de forma que o próprio envolvimento em certas modalidades de crime passa a constituir uma situação de risco para o criminoso. Podemos até ir um pouco mais adiante: quanto melhor estiver regulamentada essa modalidade de investigação, menos oportunidades haverá para seu rechaço por parte dos criminosos diante da justiça penal, porque mais evidente o risco que quiseram ou assumiram correr. Por outras palavras, quando uma organização criminosa admite o ingresso de alguém no seu meio, já o faz com uma calculada margem de risco, não podendo, por isso, alegar insciência do método de investigação. Para além disso, a infiltração é precedida de impulso do representante do Ministério Público (que ou concorda com o pedido efetuado pela autoridade policial, ou requer, ele próprio, no uso de suas atribuições, a providência) e de autorização judicial, que acabam por se transformar em esferas de controle legal.
Se a procura de justificativa para a atuação infiltrada é mais facilmente resolvida devido à existência de um regime legal que, embora deficiente (por não descrever, com maior precisão, as áreas de atuação e seus limites), evita a alegação de falta de possibilidade de previsão de sua ocorrência por parte do criminoso, já o problema referido ao agente provocador não será tão simples. Uma parte dele é, de pronto, equacionada pelo entendimento doutrinal e jurisprudencial quanto à inadmissibilidade dos elementos recolhidos pela autoridade policial acerca da própria provocação. De fato, se a ação do criminoso sequer esteve integrada pelo elemento subjetivo, não há que se falar em crime. E, portanto, os elementos de informação concernentes ao fato provocado não interessam à justiça penal. No entanto, inexiste uma abordagem específica quanto ao tratamento a ser dado às informações prestadas pelo agente provocador sobre os fatos antecedentes que constituam autonomamente crime: há, apenas, o entendimento de que, se constituem crime, podem ser levados à prossecução pela justiça penal. A situação se agrava quando confrontamos este problema com o direito-garantia de não se ver o processo instruído com provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, CR). Haverá, então, a imprestabilidade de todos os elementos de prova recolhidos pelo agente provocador? Ou será possível o aproveitamento das informações que obteve antes da provocação? A nosso ver a primeira achega para a solução do problema está em determinar a extensão do conceito de ilicitude da atuação do agente provocador. E isto passa pelo equacionamento do problema pelos princípios do direito constitucional.
8. Ora bem, tem crescido entre nós o interesse doutrinal pelo trato da questão da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos[28] através de um viés do direito constitucional. Que, por isso mesmo, nos remete para uma análise que co-envolve não apenas os princípios fundamentais explícitos na Constituição, mas, também, alguns não positivados que gravitam em torno da matéria, além de certos marcos fundamentais identificados pela teoria. Dessa forma, as principais noções de direito constitucional que devemos ter em mira numa aproximação inicial de seu estudo, são referidas à sua fragmentariedade e à relatividade dos direitos fundamentais. A primeira, sugere-nos que o ordenamento jurídico-constitucional é fragmentário – aliás, extremamente fragmentário –, não esgotando as possibilidades jurídicas que dele tentamos arrancar quando pretendemos a aplicação de suas normas no mundo prático. Como a Constituição deve representar a estabilidade de um Estado, não é aconselhável sejam suas normas historicamente datadas e, pois, vulneráveis ao envelhecimento, a não ser em sua parte programática, quando, naturalmente, se faz necessária a revisão constitucional. Por isso, mesmo numa Constituição como a nossa, o corpo de normas fundamentais não particulariza de forma definitiva a vida social. Além do mais, a esfera dos direitos e garantias fundamentais, devido a seu entrecorte com a constelação de valores axiológicos da comunidade, acaba por estabelecer-se como vetor para a dinâmica sócio-política, mas cujos conceitos não se apresentam de forma irredutível (é o caso do direito à greve, direito à liberdade de expressão, direito à intimidade, e,. também, o direito-garantia de provas obtidas por meios lícitos). Há, portanto, lacunas no direito constitucional, que devem ser preenchidas pela política jurídica levada a efeito pelos legisladores e tribunais, tudo visando a atender a circunstância histórico-político-cultural da sociedade. Com isso queremos dizer que o alcance da norma fundamental expressa no art. 5º, LVI, CR, iniludivelmente não se exaure no valor semântico dos vocábulos aí empregues. Por outro lado, há de se referir a inviabilidade do entendimento dos direitos fundamentais como expressões absolutas do direito: eles colidem entre si e geram tensões jurídicas que devem ser equacionadas por uma ordenada política jurídica, cujo precípuo fim será o de estabelecer a harmonia e a paz sociais. Esta condição torna-se evidente se trouxermos ao exame o direito de liberdade de expressão em confronto com o direito individual à privacidade quando, de maneira muito fácil, constataremos essas tensões. Pois bem, em razão disso, será acertada a afirmação de que os direitos fundamentais são relativizados por operações político-jurídicas, contanto que elas não comprometam o núcleo duro, a idéia essencial dos direitos.
A nosso ver, o problema referido à aceitação dos elementos de prova produzidos pelo agente provocador deve ser contextualizado a partir das noções sobre a teoria constitucional acima expostas para, num primeiro instante, indagarmos se a regra contida no art. 5º, LVI, CR alcança as informações dos fatos ocorridos antes da provocação, assim inviabilizando-as no processo penal; e, num segundo instante, confrontar mencionada regra constitucional (art. 5º, LVI) com o fim (também constitucional) de tratar da justiça penal e, por conseqüência, da segurança pública. Para tal operação, entendemos possível recorrer-se ao princípio da proporcionalidade[29]que, embora não expressamente referido no texto constitucional, é aceito (e muitas vezes necessário) no âmbito jurídico-constitucional-penal.
Ora bem, o princípio da proporcionalidade tende para a conformação harmoniosa dos direitos fundamentais, de maneira a impedir situações antinômicas. E acaba por relacionar-se com os demais princípios fundamentais (da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da universalidade) com eles formando um verdadeiro sistema de princípios da Constituição. Os direitos fundamentais, por outras palavras, são compreendidos e concretizados na vida do direito (que é a própria vida da sociedade organizada) à luz deste sistema. No entanto, o princípio da proporcionalidade impõe-se, através de juízos de ponderação, como instrumento de concretização prático-jurídica dos direitos fundamentais de igual dignidade que se encontrem em aparente situação colidente. Trata-se de um verdadeiro equacionamento pelo qual fatalmente os direitos são redefinidos, desde que não importe em sua descaracterização, nem muito menos na diminuição do quadro de direitos fundamentais: o núcleo essencial deles deve ser preservado.
Para que se entenda a aplicação do princípio da proporcionalidade, recorrem-se às considerações de necessidade (que parte da verificação de uma circunstância que exija intervenção para a delimitação do direito); de adequação (que demonstre ser a providência adequada à solução do problema); e da proporcionalidade stricto sensu (que é a medida de ponderação da providência a ser tomada, para que não ocorram prejuízos aos direitos em causa[30]). Assim, no caso problemático de que estamos a tratar, a proporcionalidade poderá ser empregue da seguinte forma:
a) ante o brutal aumento da criminalidade organizada, do tráfico ilícito de drogas, do tráfico de pessoas e de ações de terrorismo (como as que são levadas a efeito pelo PCC), que colocam em risco não apenas bens jurídicos individuais, mas aqueles de alcance social, inclusive o da segurança pública, haverá a necessidade de expedientes investigatórios ou de repressão pelas instâncias formais de controle diversificados. Assim, as ações de agentes encobertos, inclusive as do agente provocador, serão consideradas necessárias para refrear a criminalidade categorizada como grave, mas já não se justificarão para outro tipo de criminalidade de menor potencial;
b) ante a constatação de que tais operações criminosas contam com elementos que dificultam a investigação com uso de meios tradicionais pela polícia, seja porque são organizadas, seja porque dispõem de grande estrutura humana e logística a seu serviço, para além de imporem medo às pessoas que potencialmente poderiam ajudar no seu desbaratamento, temos a nítida impressão de que o Estado arranca com grande desvantagem no caminho da prevenção e combate ao crime. Não faz frente, tout court, a todo esse aparato. De modo que a atuação do agente provocador é, no mínimo, adequada para se contrapor aos criminosos.
c) Por fim, devemos considerar que, havendo já um posicionamento consolidado acerca da imprestabilidade dos atos derivados da provocação (e, entendemos nós, sobre todas as informações colhidas pelo agente concernentes à conduta provocada), não será desarrazoado o acolhimento de provas relativas aos fatos criminosos antecedentes (não provocados). Se a dissimulação que dá causa a um delito talvez não pretendido pelo criminoso pode ser considerada “desleal”, ou lesiva à noção de ética, já, por outro lado, entendemos não ser razoável o proveito desse entendimento em relação aos crimes anteriormente praticados, que só poderiam chegar ao conhecimento da autoridade policial graças à atuação do agente provocador. Além do mais, o mesmo raciocínio evidencia a inocorrência de negação do direito-garantia disposto no art. 5º, LVI, CR, uma vez que a descoberta do crime praticado anteriormente à provocação decorre de uma operação incidental do agente provocador.
9. Em conclusão, o atual quadro de criminalidade que verificamos no Brasil, leva-nos a pretender um novo programa de política criminal que, por um lado, aperfeiçoe os instrumentos jurídico-processuais relativos à prova em processo penal, inclusive no sentido de criar-se um regime para a atuação de agentes encobertos, em que estejam previstas as áreas de atuação (mormente entre os crimes de maior potencial ofensivo) e as hipóteses de abrigo da situação de antijuridicidade em decorrência da prática (inevitável) de atos que caibam em tipo penal, além de mecanismos de controle das atividades dos agentes; por outro lado, tendo, também, em consideração a vantagem que a criminalidade mais ofensiva iniludivelmente leva em relação aos meios investigatórios da polícia judiciária, entendemos possível, partindo do princípio da proporcionalidade, aproveitar como prova penal as informações colhidas pelo agente provocador quanto aos fatos (ilícitos) observados antes da provocação.
Promotor de Justiça do Estado de Santa Catarina, Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, doutorando pela Univali, Professor de Ciência Política e Direito Penal na UNISUL, Professor convidado da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, Professor convidado do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina – CESUSC
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