Resumo:Perspectiva garantista e crítica sobre a tensão entre o dito interessetransindividual à segurança pública e o direito à inviolabilidade domiciliar tem cuja repercussão geral foi reconhecida no Recurso Extraordinário n. 603.616.
Sumário:1. Introdução. 2. Norma constitucional de inviolabilidade domiciliar. 2.1 A abertura da norma. 2.2 O conceito de casa: Máxima otimização da norma. 3. Questão nodal: a inexigência de certeza precedente ao ingresso domiciliar e a problemática dos crimes permanentes. 4. Conclusão
1) Introdução
Desde o primeiro pôr-do-sol, como anota Carrara, o homem olhou à sua volta em busca de um local para se abrigar[1] e, então, sem delongas, normas consuetudinárias e positivadas passaram a tutelar a casa como refúgio do indivíduo contra intervenções do Estado.
No Brasil, o primeiro diploma a consagrar a inviolabilidade domiciliar foi a Lei de 14/10/1822[2], sendo certo que todas as Constituições pátrias, desde a do Império (1824) e incluindo as de índole ditatorial[3], previram em alguma medida proteção à casa.
Tanto esforço em assegurar que “o mais pobre dos homens pudesse desafiar na sua cabana as forças da Coroa”, como disse Lord Chatham em antanhos, é ignorado diuturnamente pela majoritária jurisprudência, que, impelida e impelindo o senso comum, tem abandonado sua função de tutela de direitos fundamentais para identificara aplicação austera do poder de punir estatal como solução ideal para defesa da “segurança pública”.
É justamente escussão quanto ao que é “dia”.
Por óbvio, nenhum texto normativo está apto a ser tão completo a ponto de prescindir de posterior interpretação.
No entanto, em tema de direitos fundamentais, a imprecisão conceitual da regra relega ao sabor do Poder Judiciário a possibilidade de alargar a proteção a estes ou a restringir a um mínimo que finda por esvaziar a “liberdade pública” consagrada.
A norma em foco, atualmente, submete-se aos dois paladares, senão vejamos.
2.2) O conceito de “casa”: Máxima otimização da norma
No que toca à definição de “casa”, a doutrina especializada assentou que esta deve ser entendida como todo espaço de projeção da personalidade[4] ocupado por um indivíduo com exclusão de terceiros (Exclusividade), sendo irrelevantes a natureza da edificação, sua fixação ou não ao solo, a existência de cercas, a finalidade da ocupação (habitacional, profissional ou para lazer), espécie ou caráter da relação civil que envolve o bem e a duração desta[5].
É dizer, de modo muito mais abrangente que a previsão do artigo 150 do Código Penal, a Constituição abarca como “casa”, por exemplo, o jardim não contido por muros, o pasto da fazenda, as sedes de empresas industriais e comerciais[6], e, até mesmo, para alguns, tais como Bastos[7] e Barile[8], o clube recreativo, por constituir prolongamento da casa tradicional.
Claramente, transitou a doutrina no sentido de reconhecer que o texto constitucional merece interpretação à luz do Princípio da Ótima Concretização da Norma, o que é aplaudível.
Sobre tal princípio escreve com autoridade Konrad Hesse:
“Se o Direito e, sobretudo, a Constituição, têm sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.”[9]
Felizmente, a ampliação encunhada pela doutrina é acatada pelos Tribunais Brasileiros, que têm reconhecido proteção a múltiplos recintos, inclusive àqueles que primo ictu oculi não parecem casas.
2.2) Definição de “flagrante”: Interpretação em nome da “garantia da ordem pública”
O cenário que se assiste quanto à percepção do termo “flagrante, todavia, é oposto!
Com efeito, a doutrina, depois de divergir acerca do ente incumbido da tarefa de demarcar o significado do termo em tela – para Gilmar Mendes, o legislador infraconstitucional[10]; Bertolo, a doutrina e a jurisprudência; e Grotti, ao primeiro e à segunda[11] – assenta de forma majoritária que apenas o flagrante real (de crime ou contravenção[12]) autoriza o ingresso na casa do indivíduo, colhendo-se por todas as posições de Nelson Oscar de Souza[13], Denilson Feitoza Pacheco[14] e Alexandre Morais da Rosa[15].
Arrima-se a doutrina, primeiramente, na circunstância de que, nos flagrantes impróprio e presumido, não há efetiva “crepitação do fato”, tanto que o Código de Processo Penalemprega o termo “considera-se”[16].
Noutro plano, buscam o escólio amparo no artigo 293 daquele diploma, já que este proscreve o ingresso noturno mesmo quando judicialmente determinado, de sorte que o texto constitucional, cercado de espírito garantista[17], não poderia ser interpretado de modo a alargar as exceções à inviolabilidade domiciliar.
A jurisprudência, no entanto, cerra seus olhos a isto e entende o flagrante impróprio como autorizador da devassa à casa[18], compreensão que claramente decorre de uma interpretação inspirada em concepções maniqueístas, próximas ao Direito Penal do Inimigo e afetas ao denominado Eficientismo Penal.
Os mesmos ares, aliás, têm propulsionado o discurso acerca da necessidade de PRECEDENTE conhecimento sobre a situação flagrancial ou não, assunto que ganha especial importância diante dos chamados “crimes permanentes”, senão vejamos.
3) Questão nodal: a (in)exigência de certeza precedente ao ingresso domiciliar e a problemática dos crimes permanentes
A cizânia que ora se aborda é de definir se, tal qual o exigido para a as buscas domiciliar e pessoal (Artigo 240, §§1.º e 2.º, Código de Processo Penal), a incursão na casa diante do flagrante delito reclamacerteza, fundadas razões ou suspeita da situação flagrancial ANTECEDENTES ao ingresso ou se basta a existência de flagrante, ainda que percebido/constatado após a entrada na casa.
Pois bem, a jurisprudência, incluindo a Corte Suprema, tem se inclinado majoritariamente na direção de que, inobstante a inviolabilidade da casa, esta “não pode ser transformada em garantia de impunidade de crimes que em seu interior se praticam”[19], passando ao largo, no mais das vezes, da questão acima posta e atribuindo validade às intrusões com base apenas em seu resultado positivo (v.g. apreensão de armas ou entorpecentes).
No tocante aos crimes permanentes, os Tribunais pátrios são quase uníssonos ao afirmar que, independentemente da causa deflagradora da incursão na casa – se suspeita vigorosa, “denúncia” anônima ou mero “faro policial” – a diligência, a prisão e as provas arrecadadas devem ser tidas por legais, ao fundamento de que enquanto houver permanência, existirá flagrante delito[20].
Como todo respeito, o raciocínio é dos mais absurdos, pois viabiliza não só o ingresso arbitrário nas casas, esvaziando a tutela constitucional, como, a reboque desse, a prática de toda a sorte de abusos estatais às escondidas, distante dos olhos do povo, constrangendo o indivíduo no interior de seu próprio lar.
No ponto, é de relevo a observação de Rosivaldo Toscano:
“Na prática jurídica, o caminho foi o de ir pelo dogmatismo, com raras esparsas exceções. O discurso do bem contra o mal e dos homens de bem contra os marginais termina permitindo aberturas para que o utilitarismo contra as camadas desfavorecidas se imponha. Existe uma Constituição, mas ela só vale até a subida do morro ou a entrada das favelas. O discurso perverso e ideologicamente anestesiado causa muita opressão aos desfavorecidos”.[21]
Obviamente, não se debate que o estado de flagrante, quer se cuide de crime instantâneo, permanente ou instantâneo de efeitos permanentes, viabiliza a entrada na casa a qualquer tempo, mas o que se sustenta é que esta ação deve “estar autorizada anteriormente, ou seja, o flagrante não pode ser pressuposto, mas deve estar posto […]”[22].
A vingar solução diversa, a casa seria transformada, de ambiente inquebrantável, em espaço de entrada franca, porque bastaria ao invasor ingressar no lar e, feita a devassa, desculpar-se asserindo que acreditava haver circunstância flagrancial em seu interior.
Na mesma trilha, realizando intepretação da proteção constitucional em harmonia com as outras disposições que integram o sistema de que a Constituição é vértice, não se pode deslembrar que, na seara do Direito Penal, a incidência de justificantes, tal qual a situação de flagrante delito quanto ao crime de violação de domicílio[23], pressupõe o prévio conhecimento do agente acerca de sua existência[24], de modo que, também sob este ângulo, o mero caráter permanente da infração penal não legitimaria a entrada não antecedida por tal ciência.
Veja-se que, nos crimes permanentes, o requisito da certeza precedente se impõe com ainda mais razão (e não com menos), conforme leciona Ana Maria Campos Tôrres:
“Como entender urgente o que se protrai no tempo? É possível, graças à presença diuturna do Judiciário guardião da lei, requerer e ser atendido em pouco tempo, o direito constitucionalmente previsto de entrar em domicílio. A facilidade do arguir-se urgência é forma espúria de desconhecer direitos, é subterfúgio para o exercício de força, é descumprimento do dever de acatar as diretrizes políticas assumidas pelo Estado. Impossível legalizar o ilícito. Deve, nestes crimes chamados permanentes, especificamente por durarem, não se reconhecer a urgência do flagrante próprio, pois nem se evita sua consumação, nem se impede maiores consequências […]
Vê-se com muita frequência não só o descumprimento da lei, mais que isto, um caminho perigoso a permitir que retornem as más autoridade, o modelo inquisitorial, buscando provar a qualquer custo, não se preocupando com mais nada, senão com a punição pela punição”.[25]
Em suma, raciocínio mais alinhado ao Estado Democrático de Direito só convive com a proibição dos ingressos domiciliares sem precedente certeza do flagrante.
4) Conclusão
O aqui sustentado não é loucura, tanto que a jurisprudência pátria[26], em comportamento contraditório, embora chancele incursões arbitrárias em flagrante, é razoavelmente firme na inadmissão de mandados de busca domiciliar genéricos.
Data venia, a esquizofrenia é das Cortes: se não se reconhece o poder de “busca cega” aos magistrados, a fortiori, não se deve deferi-lo às polícias, permitindo a verificação do flagrante após já ter sido invadida a casa.
Noutro giro, a visão aqui exposta também não ignora a realidade social, especialmente o fato de que a criminalidade violenta tem grassado por todo o território brasileiro.
É que não podemos perder de vista que a adoção de um Estado de Direito implica equilíbrio, demanda a habilidade de conviver com pontuais “ineficiências” no combate a comportamentos ilícitos (civis, administrativos e penais) em prol de impedir o arbítrio estatal.
Eis o pequeno “custo” dos múltiplos benefícios alcançados com o Estado Constitucional e o Processo Penal Devido[27], como bem divisa Afrânio Silva Jardim:
“Uma premissa constitucional deve ser estabelecida em todo o processo de interpretação das normas constitucionais que tutelam os chamados direitos individuais: ao estabelecer regras que asseguram um Processo Penal democrático, o Estado sabe, de caso pensado, que irá absolver culpados diuturnamente. Entretanto, faz esta opção para não assumir igual risco de condenar inocentes ou mesmo culpados a pena injustas”.[28]
Enfim, torcemos para que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 603.616, conduza-nos a um país em que “acha-se garantida a choupana humilde contra o Rei, cujo poder vai despedaçar-se contra aquele miserável reduto.” (Lord Chatham, Inglaterra, século XVIII).
Advogado. Professor de Direito Penal e Processual Penal no Centro Universitário Fluminense – UNIFLU. Professor adjunto na Universidade Cândido Mendes – UCAM. Advogado Orientado no Fórum da Universidade Cândido Mendes – FUCAM. Pós-graduação Lato Sensu em Direito Penal e Processual Penal com ênfase em prática forense do Centro Universitário Fluminense – UNIFLU
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