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Algemas na interpretação


Sinceramente, nunca li tanta coisa igual sobre o mesmo tema, com raras exceções. As frases são quase as mesmas, sem nunca deixar-se de lembrar a origem árabe do termo. Refiro-me às algemas.


É mais ou menos assim: como já disse, o termo “algemas” vem do idioma árabe; antigamente era usada como forma de pena e castigo; as legislações do século XIX do Brasil deram início à sua abolição como parte integrante da execução penal; hoje ela é apenas um meio cautelar, que só deve ser utilizado nos casos de concreto perigo para terceiros; o seu uso indevido poderá acarretar em atentado à dignidade humana e na tipificação do abuso de autoridade (mas não necessariamente, como querem alguns); a Lei de Execução Penal brasileira não trouxe uma regulação específica sobre como se deve dar o uso desse instrumento, não havendo na legislação a devida regulamentação do assunto; outras coisas mais.


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De todas essas informações, a última é a que mais inquieta. Inquietou até mesmo o Supremo, que editou a súmula vinculante 11 para tentar resolver a matéria. Não conseguiu, continuou a mesma coisa. Mas não conseguiu e continuou a mesma coisa exatamente porque não há como conseguir nem como não continuar a mesma coisa.


Não duvidando da importância de uma súmula editada pelo Supremo, penso que a mesma apenas repetiu o que já existia na legislação nacional. E isso, reitero, não poderia ser diferente! Há, ainda, debates e linhas de tinta sendo gastas por algo que deve ser abstrato e geral. Explico. Pela mesma justificativa de que, nos crimes culposos, não há a previsão legal de todas as possíveis situações fáticas passíveis de ocorrência (para se evitar a prolixidade legal), também não há como se exigir que o legislador brasileiro preveja todas as situações concretas que legitimariam o uso das algemas. Em outros termos, a necessidade de averiguação específicae concreta da legitimidade do uso das algemas acarreta a necessidade de se ter uma lei geral e abstrata sobre o tema, a não ser que se queira criar um tipo penal mais estrito para o irregular uso desse instrumento.


A interpretação constitucional e sistemática do Direito obriga-nos a concluir pela impossibilidade de se usar a algema por qualquer situação desproporcional e não razoável ao fim que se pretende alcançar com o seu uso. Claro que, se todos tivessem o bom senso, a “Utopia” de Thomas More seria até um lugar desagradável para se viver, pois lá ainda se aplica a sanção penal. Há, então, a necessidade de lei. O “problema” é que ela já existe.


Desde o momento que o Código Processual admite a analogia e a interpretação analógica, a boa – e fácil – interpretação nos leva ao sentido de necessidade concreta e provada agora dito. Mas perguntariam: “como se fará o uso das algemas? Poderão ser algemados os pés também? Poderá ser o sujeito algemado com os braços para trás? Isso porque a legislação não nos diz!” E eu retrucaria: “diz sim!” Ora, sendo necessário para a segurança coletiva ou individual, que sejam algemadas as mãos; sendo necessário para a mesma segurança uma coibição mais contundente, que sejam algemados os pés; sendo necessário uma reação ainda maior para a prevenção de atitudes violentas, que sejam algemadas as mãos com os pés entrelaçados! E assim por diante! Estarmos num tradicional sistema jurídico tido como da “Civil Law” não significa termos que ver atada nossa capacidade interpretativa. Estarmos num Estado Democrático de Direito não significa que devamos pregar a santidade dos homens, mas apenas respeitar sua dignidade (e de todos, não somente do preso).


Não se pode admitir, respeitosamente, uma interpretação que não acompanha a inteligência. Uma interpretação presa por questionamentos – muitos deles – desmerecedores de atenção. Uma interpretação que se verá cada vez mais dificultada, caso leis mais e mais específicas sejam editadas sobre um tema que necessita da verificação concreta de necessidade de prevenção. É o caso da lei processual penal de 2008, que trouxe a regulação das algemas no Tribunal do Júri. Corre-se o risco de haver previsões para cada procedimento legal, sendo que, no final das contas, todos poderão acabar por dizerem a mesma coisa: “serão admitidas as algemas somente em caso de necessidade concreta e provada”. E para que repetir algo que já existe na legislação? Para que isso se a Constituição e Tratados Internacionais assinados pelo Brasil já falam do tratamento digno que deve ser dispensado ao investigado e ao acusado? Estão algemando a interpretação…



Informações Sobre o Autor

Marcel Figueiredo Gonçalves

Advogado criminalista e Professor de Direito Penal em São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


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Equipe Âmbito Jurídico

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