Algumas considerações sobre a responsabilidade civil do ortodontista

Resumo: Responsabilidade civil dos ortodontistas; Trabalho realizado com a colaboração do insígne professor Dr. José Antônio Caricatti, do Centro de Estudos de Ortodontia da Universidade de São Paulo- Bauru.

Sumário: 1. Introdução; 2. Responsabilidade Civil do Ortodontista; 3. Conclusão.

1 – Introdução

O mundo globalizado seccionou os diversos ramos das atividades produtivas em pequenos grupos, todos com um alto grau de especialização nas suas tarefas. Os profissionais liberais, hoje considerados fornecedores de serviços pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor Brasileiro (Lei n. 8078/90), influenciado por esta tendência, é um dos setores que mais tem se especializado. Os ortodontistas constituem uma das diversas castas deste último conjunto.

Analisando as peculiaridades que envolvem seus ofícios, é que arriscamos traçar alguns comentários sobre a responsabilidade civil destes importantes profissionais, hoje tão presentes em nossas vidas.

2 – A responsabilidade civil do ortodontista

O ortodontista, de maneira geral, é um profissional liberal prestador de serviços. Sua responsabilidade civil, portanto, se inclui dentre os limites traçados pela lei civil (que rege as relações privadas).

Normalmente as relações entre pacientes e ortodontistas configuram uma relação de consumo – consideradas aquelas em que há a entrega da prestação de serviços diretamente ao destinatário final (paciente). Sendo assim, qualquer tipo de conflito de interesses entre os integrantes da relação (inclusive a empresa de plano de saúde) será  regulado pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), ao lado do novo Código Civil, que traça as regras gerais sobre a responsabilidade civil.

Sendo os ortodontistas profissionais liberais, assegura o CDC que “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (art. 14, § 4º). Quis dizer a lei, neste ponto, que a responsabilidade é subjetiva e só ocorrerá quando se comprovar que o dano decorreu da culpa do especialista.

Esta disposição legal tirou a razão prática de se perquirir a natureza jurídica da obrigação dos ortodontistas, se de meio ou de resultado, que sempre esteve em voga nas discussões acaloradas dos tribunais e das academias. Hoje, o que importa é verificar se houve culpa, na modalidade de imprudência, de negligência ou ainda de imperícia (quando falta conhecimento técnico suficiente para o desempenho da ação). Esta posição, inclusive, já foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que assim ementou sua posição:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. CIRURGIÃO-DENTISTA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. RESPONSABILIDADE DOS PROFISSIONAIS LIBERAIS. 1. No sistema do Código de Defesa do Consumidor a “responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (art. 14, § 4º)…” [1]

É bom ressaltar, todavia, que mesmo já havendo precedente do STJ para o caso de cirurgiões dentistas, profissão que engloba os ortodontistas, há ainda muita discussão sobre a matéria. Ilustram bem a grande controvérsia sobre o tema, se obrigação de meio ou de resultado (responsabilidade objetiva) os seguintes julgados, das variadas Cortes do país, os quais também traduzem os conflitos da técnica jurídica quanto ao assunto responsabilidade civil:

“…Código do Consumidor. Serviços de dentista… O serviço que o dentista presta ao cliente é o de profissão liberal e em caso de reclamação por dano, exige a prova da sua culpa, consoante art. 14 par. 4. do C. do Consumidor. Para esse efeito é irrelevante a classificação como obrigação de resultado…” [2]

“…O compromisso do dentista, ensina a doutrina, envolve acentuadamente uma obrigação de resultados, estando-se, pois, diante de responsabilidade objetiva…” [3]

“TRATAMENTO DENTÁRIO – PRÓTESE. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. A má prestação dos serviços, sem os cuidados devidos, gera o dever de indenizar novo tratamento, além de danos morais.” [4]

“Ementa:[…] A responsabilidade de indenizar decorre da conjugação de vários elementos: o agir voluntário do agente ou a sua omissão deve produzir o resultado lesivo, o que implica a necessidade da existência de nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o resultado. Alem disso, deve restar comprovado que o ato voluntário ou a omissão do causador do dano se caracterizou pela negligência, imprudência ou imperícia, não evitando o resultado, que era previsível. Ausentes tais requisitos, não há falar em obrigação de indenizar.” [5]

“Nas profissões sanitárias, como a medicina e a odontologia, é evidente que o compromisso contratual do profissional não pode consistir em restaurar a saúde agravada, mas em empregar todos os recursos disponíveis com esse fim. Por isso, diz-se que é uma obrigação de meio e não de resultado, ou — para adotarmos a definição da jurisprudência francesa — consiste em prodigalizar ao cliente “cuidados conscienciosos, atenciosos, e, salvo circunstâncias excepcionais, conforme aos dados adquiridos pela ciência. (…). No concernente à profissão cirúrgico-dentária, acreditamos que o compromisso profissional é menos de meios que de resultado. Efetivamente, à patologia das infecções dentárias corresponde etiologia específica e seus processos são mais regulares e restritos, sem embargo das relações que podem determinar com desordens patológicas gerais; consequentemente, a sintomatologia, a diagnose e a terapêutica são muito mais definidas, — e é mais fácil para o profissional comprometer-se a curar” [6]

“RESPONSABILIDADE CIVIL – Dano resultante de tratamento ortodôntico – Hipótese em que não fora tingido o resultado previsto pelo tratamento imposto pelo dentista – Método inadequado – Imperícia do profissional. Inocorrência – Prova técnica que reputa corretos tanto o método, quanto o tratamento – Indenização indevida – Ação improcedente – decisão mantida – Recurso improvido.” [7]

“INDENIZAÇÃO – Tratamento odontológico – Erro clínico – Comprovação – Aparelho ortodôntico – Causa de males supervenientes – Dever de indenizar – Danos materiais – Exclusão da indenização por danos morais – Agravo retido prejudicado – Recurso parcialmente provido.” [8]

“INDENIZAÇÃO – Responsabilidade civil – Ato ilícito – Danos decorrentes de cirurgia ortodôntica – Imprudência pelo uso de técnicas cirúrgicas não aprovadas pela comunidade científica e imperícia em virtude do comprometimento de enervações e da estrutura óssea – Ação procedente – Recurso não provido – Voto vencido JTJ 121/90.”

“INDENIZAÇÃO – Responsabilidade Civil – Dentista – Emprego de técnica e de material inadequados – Danos causados à saúde bucal da vítima – Responsabilidade pelo custeio do novo tratamento, com a intervenção de profissionais de outras especialidades – Direito da vítima de não se submeter a outras terapias de resultados duvidosos – Sentença mantida – Recurso não provido.” [9]

Como se vê, variados são os entendimentos sobre a responsabilidade civil do cirurgião dentista. Uns entendem ser necessário a comprovação da culpa (responsabilidade subjetiva), outros entendem ser suficiente a não ocorrência do resultado prometido (responsabilidade objetiva). Certo é, entretanto, como enfatiza o ilustre Desembargador PEDRO DE ALCÂNTARA DA SILVA LEME (São Paulo) que “seja ou não a melhor solução do problema da responsabilidade civil no campo da medicina, a verdade é que a teoria objetiva, ou de risco, é, hoje em dia… a preferida dos tribunais”.[10]

A indefinição, contudo, apesar de existir e persistir, certamente se afunilará para a tese da responsabilidade subjetiva, pois já acolhida pelo STJ e está prevista expressamente no texto do Código de Defesa do Consumidor – e como se sabe, a lei sempre deve ser o primeiro norte para qualquer julgador.

Haverá culpa sempre que o profissional não observar os deveres de conduta lhe afetos. Na dicção do Código de Defesa do Consumidor, isto significa basicamente que o profissional deverá alertar o consumidor de todos os riscos que tem, previsíveis, e ainda deverá explicar o serviço a ser prestado e no que implicará (art. 14, § 1º do CDC). Nestes termos, a responsabilidade civil do contratado (ortodontista) será compreendia entre os riscos previsíveis e as obrigações assumidas. Aqueles, se alertados corretamente e claramente ao contratante (consumidor), ficam excluídos de serem posteriormente cobrados, eis que foram aceitos (de preferência expressamente através de uma declaração escrita). As obrigações assumidas ficam circunscritas aos termos do contrato estabelecido pelas partes; vale dizer, quanto mais ampla e inespecífica a obrigação assumida, maior também se torna o campo de abrangência para cobrá-las.

Os instrumentos e acessórios (aparelhos, suas peças etc) que o profissional utilizar também estão sob a sua alçada, pois para serem escolhidos contaram com a confiança depositada em quem lhos elegeram aptos. Certamente, em caso de defeito ou vício do produto (equipamento), o seu fabricante poderá arcar com a responsabilidade conjuntamente, mas o consumidor poderá exigir indenização daquele que estiver mais próximo (arts. 23 e 25 do CDC).

Não é demais lembrar também que nas relações de consumo os fatos, normalmente, são interpretados em favor do consumidor (hipossuficiente) e o ônus da prova é invertido, ou seja, é o prestador de serviço que deverá provar a sua inocência (art. 6º, VIII e art 14, § 3º, CDC).

Qualquer evento que fuja do previsível (caso fortuito) ou seja causado por força maior (fato de terceiro etc), desde que por eles não se houver responsabilizado expressamente, escapará do campo de responsabilidade do prestador de serviços (art. 393 do novo Código Civil). A recíproca também é verdadeira, ou seja, se para riscos previsíveis o consumidor não for alertado, o profissional sempre será responsabilizado por sua desídia, eis que o consumidor só decidiu contratar face aos riscos claramente observados.

Como bem resume a insígne professora Doutora Maria Helena Diniz, da Univerisdade de São Paulo, “O dentista só não será responsabilizado se o evento danoso se deu por erro escusável, em face do estado da ciência, por culpa da vítima, por caso fortuito ou força maior e se ele agiu sem culpa e de conformidade com as normas norteadoras do exercício de sua profissão”. [11]

3 – Conclusão

Diante de tudo isto, pode-se dizer que a responsabilidade civil dos ortodontistas está contida entre dois extremos, ou seja, entre os riscos e as obrigações assumidas. Sendo assim, fica fácil concluir que evitará surpresas futuras aquele especialista que dispuser de um bom instrumento de contrato para materializar detalhadamente a contratação. Este documento, deverá estar regado com boas doses de “boa-fé” (claro, inteligível, didático para o consumidor etc), notificar o consumidor de todos os riscos a que sua intervenção estará sujeita e ainda no que consiste detalhadamente a sua atividade.

Enfim: sob uma legislação avançada e rígida, a responsabilidade civil dos ortodontistas, de um ponto de vista real, depende exclusivamente dos instrumentos contratuais utilizados para efetivar a sua relação com seus pacientes. Porém, o pressuposto capacidade técnica, que permita com folga saber exatamente tudo que está disponibilizado pela ciência, é um atributo essencial, já que é o único que garante uma relação entre o paciente e o odontólogo perfeitamente segura.

Em outras palavras, como muito bem citou FERNANDO CELSO MORAES ANTUNES[12], evitará ser responsabilizado civilmente pelos seus atos, o profissional que seguir a fio os “10 mandamentos” para uma prática médica e odontológica segura, que são:

“01. Crie e cultive uma relação de amizade e confiança com seu paciente, sendo sempre coerente e transparentes em suas ações.

02. Seja organizado, mantendo todas as informações sobre seus pacientes adequadamente arquivadas e acessíveis.

03. Faça um exame clínico e uma anamnese completas e detalhadas, deixando clara a sua importância.

04. Registre todas as informações do paciente na ficha odontológica ou médica.

05. Escreva sempre de forma legível e evite rasuras. Tenha cópia de todos os documentos e exames pedidos ou fornecidos (como cópia da receita).

06. Comunique-se claramente com seu paciente, explicando-lhe detalhadamente cada procedimento, exame ou medicamento proposto e mantenha controle próximo quanto às suas expectativas sobre o resultado. Na dúvida, seja conservador ao falar sobre as chances de sucesso. Sempre que possível, complete suas colocações com materiais escritos explicativos.

07. Utilize um sistema de investigação (para o diagnóstico) e tratamentos odontológico ou médico adequado, através de uma rotina passo-a-passo, muito bem planejada.

08. Mantenha-se sempre atualizado em sua área de atuação (odontológica ou médica) e em relação à Medicina em geral.

09. Antes de executar qualquer procedimento, certifique-se pessoalmente de todos os cuidados (pessoais e materiais) foram tomados e,

10. Peça sempre opinião de colegas e especialistas em caso de dúvida (principalmente em casos de diagnósticos mais complexos ou de interpretações diversas).”

4 – Bibliografia
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Notas:
[1] RESP 122505/SP, 1997/0016340-7, Fonte DJ DATA:24/08/1998 PG:00071, RSTJ VOL.:00115 PG:00271, Relator Min. Carlos Alberto Menezes Direito.
[2] Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ementa do voto vencido do Des. Rudi Loewenkron na AC n. 1998.001.01860, votação por maioria, Rel. Des. Maria Henriqueta Lobo, julgado em 15/06/1998.
[3] Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, AC n. 1997.001.08751, votação: unanime, Rel. Des. Jose Pimentel Marques, Julgado em 24/03/1998.
[4] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 598510774, Relator: Des. Décio Antônio Erpen, julgado em 29/12/99.
[5] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70001275544, Relator: Des. Alzir Felippe Schmitz, julgado em 06/12/00, in www.tj.rs.gov.br.
[6] Menegale, J. Guimarães, “Responsabilidade profissional do cirurgião dentista”, Revista Forense, outubro de 1939, vol. LXXX, Fascículo 436, pág. 53, apud Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Apelação cível n. 97.011438-9, Relator Trindade dos Santos, decisão de 16 de junho de 1998.
[7] Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 37.639-4 – São Paulo – 7ª Câmara de Direito Privado – Relator: Oswaldo Breviglieri – 25.11.98 – voto unânime.
[8] Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 250.416-1 – São Paulo – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Toledo César – 07.05.96 – V.U.
[9] Tribunal de Justiça de São Paulo , Apelação Cível n. 122.715-4 – Jundiaí – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Waldemar Nogueira Filho – 07.05.02 – V.U.
[10] “O Erro Médico e suas Implicações Penais a Civis”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 1, pág. 121.
[11] Curso de Direito Civil Brasileiro, 6ª ed., 7º vol, São Paulo: Saraiva, 1992, pág. 210.
[12] “O CIRURGIÃO DENTISTA FRENTE À RESPONSABILIDADE CIVIL”, in http://www.ortodontiaemrevista.com.br.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Kisleu Gonçalves Ferreira

 

MBA Direto Empresarial – FGV;
Especialista Dir. Civil e Processual Civil – FACH-UFRJ;
Professor da Universidade Católica de Goiás;
Assessor do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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