Resumo: Este artigo trata de alguns obstáculos no tratamento das doutrinas jurídicas como objeto de reflexão Antropológica. Proponho que se as doutrinas, por um lado, não expressam a realidade do direito, como querem alguns juristas, tampouco são uma cortina de fumaça que esconde essa realidade. Argumento que, sendo parte da realidade social, as doutrinas lhe fornecem sentido, sendo utilizadas seletivamente pelos atores do campo para justificar em situações específicas suas práticas judiciais.
Palavras-chave: Campo jurídico-doutrinas- cortina de fumaça- práticas judiciais-realidade
Abstract: This paper deals with some obstacles in the approach of legal doctrines as object of anthropological study. I propose that while doctrines do not express the reality of Law, as assumed by some scholars, they are not either a smokescreen that hides this reality. My argument is that as part of social reality, legal doctrines offers to this reality semantic references, at the same time that are used in a selective way by actores of the legal field to justify their practices.
Keywords: Legal field- doctrines-smokescreen- judicial practices-reality
Sumário: Introdução Dois falsos impedimentos no estudo etnográfico da doutrina jurídica Considerações finais. Referências.
Introdução
Neste pequeno artigo irei apresentar minha perspectiva sobre alguns aspectos das relações entre doutrina[1] e prática jurídica, assim como algumas de suas implicações para o estudo etnográfico do direito brasileiro. O que me motivou a escrever este artigo foram algumas críticas que minha tese de doutorado recebeu no curso de sua elaboração e que acredito estarem baseadas em uma compreensão equivocada sobre as relações entre o conhecimento doutrinário, práticas jurídicas e a possibilidade de tornar estes temas objeto de reflexão antropológica.
Naquela ocasião, ainda que informado por conflitos que acompanhei através de observação direta e participante, me debrucei, de maneira que ainda não havia feito em minha trajetória de pesquisa, sobre as doutrinas que abordam o tema dos processos judiciais coletivos nos Estados Unidos e no Brasil. A partir da frequência em cursos em Faculdades de Direito nos dois países e da leitura de textos dogmáticos sobre o tema em questão, busquei identificar como se estruturavam nos dois campos jurídicos as controvérsias relativas a problemáticas como as formas de produção da verdade, modelos de acesso a direitos e noções de interesse público suscitados pelos estatutos ambientais da década de 1970 nos EUA e por legislações como a lei da Ação Civil Pública, no Brasil. O objetivo do presente texto é abordar especificamente o que considero serem falsos obstáculos para o estudo das doutrinas jurídicas. Antes de abordá-lo vou fazer alguns apontamentos que ajudam a construir os pressupostos da perspectiva apresentada neste artigo.
A primeira coisa que destaco é que o próprio título deste artigo carrega uma imprecisão. Na verdade, a doutrina jurídica também é uma prática social ou, dito de outra forma, uma ação coletiva. Isso significa dizer que, se por um lado, ela se refere à realidade social, quer dizer, aos códigos (criados pelos legisladores) e às decisões judiciais (realizadas pelos operadores do direito) ela também faz parte da realidade social, ou seja, é escrita por sujeitos que compõem eles próprios um setor do campo jurídico, o que significa dizer que são escritas em condições sociais determinadas. Logo, talvez mais preciso que opor doutrina, enquanto teoria, e decisões e ações judiciais, enquanto prática, seria reconhecer que a doutrina é também uma prática social, no sentido apontado acima e que o que nos acostumamos a chamar de prática jurídica (decisões de juízes, ações de membros do ministério público) também possuem teorias, subjascentes, que podem ser identificadas e explicitadas pelo antropólogo. É neste sentido que ambas dimensões do fazer jurídico, as doutrinas e as práticas, são todas ações coletivas, ou seja, produções humanas socialmente condicionadas.
Uma segunda coisa a destacar diz respeito à natureza dos processo de legitimação do conhecimento doutrinário no campo jurídico brasileiro. Os membros do campo jurídico se referem à “doutrina”, no singular. Isso não significa que não reconheçam a diversidade de pontos de vista que podem estar presentes na produção doutrinária do campo. Isso está claro no fato de usarem algumas vezes a expressão “trata-se de entendimento pacificado na doutrina”, o que pressupõe a existência de divergências sobre determinado assunto mas que estas teriam sido, em alguns casos, “pacificadas”. Esta visão, por outro lado, implica que as divergências, reconhecidas como existentes, são vistas como algo negativo, a ser superado.
Ora, isso expressa uma crença mais ampla, já apontada por Kant de Lima, de que o conflito é visto como algo inerentemente desagregador no direito brasileiro, algo que deve ser extinto ou “pacificado”. Assim, dizer que trata-se de entendimento “pacificado” na doutrina não é o mesmo que dizer que trata-se de entendimento “consensual” na doutrina. Neste sentido, a expressão “pacificado na doutrina” expressa uma tentativa de impor certas interpretações, atribuindo a elas autoridade. Não expressa, assim, necessariamente, qualquer consenso mais amplo dentro do campo, mas uma hegemonia baseada em critérios hierárquicos de validação do conhecimento[2].
Dois falsos impedimentos no estudo etnográfico da doutrina jurídica
Isto nos leva ao primeiro dos dois obstáculos a um estudo antropológico das doutrinas jurídicas que discuto neste texto. Esta característica do conhecimento jurídico apontada no parágrafo anterior, de ser legitimado a partir de uma lógica hierarquizada e não consensual, poderia levar alguns a imaginarem que as doutrinas não poderiam ser objeto de reflexão antropológica porque, não sendo produto de consensos, seriam então arbitrárias e variariam ao infinito, de acordo com as orientações pessoais de cada doutrinador, não existindo padrão acessível ao observador.
O problema desta perspectiva é que ela corresponde a imaginar que não haveria no campo doutrinário brasileiro aquilo que Bourdieu (2007) chamou de “desacordo que supõe um acordo”, ou seja, problemáticas obrigatórias que fornecem as condições do consenso cultural nos termos de uma participação em um senso comum entendido como condição da comunicação, que tornaria possível a identificação dos conjuntos de questões obrigatórias que definem o campo cultural de uma época.
O autor continua:
“De qualquer modo, não se conseguiria ir além das aparências caso se concluísse em todos os casos a partir das divergências patentes que opõem os intelectuais de uma época acerca do que muitas vezes se designa os “grande problemas do tempo” como se houvesse uma falta de integração lógica. O desacordo supõe um acordo nos terrenos do desacordo, e os conflitos manifestados entre as tendências e as doutrinas dissimulam, aos olhos dos que deles participam, a cumplicidade em que implicam e que choca o observador estranho ao sistema (p.207, 2007).”
Bourdieu se refere a um consenso implícito que existe entre os membros de um campo e que difere, neste sentido, dos acordos ou desacordos explícitos que demarcam as posições dentro deste mesmo campo. Ora, estes acordos e desacordos explícitos podem seguir uma lógica de legitimação baseada em princípios consensuais, ou seja, em que a validade de uma proposição provém da autoridade dos argumentos (como no campo científico) ou seguir uma lógica de legitimação hierárquica e “pacificadora” baseada nos argumentos da autoridade (como no campo jurídico)[3].
No entanto, em um e no outro caso, seja qual for o princípio que rege a legitimação do conhecimento do campo em questão, há, necessariamente, em um nível anterior, sempre algum terreno implícito, que constitui os “grandes problemas do tempo”, ou seja, os horizontes culturais mais amplos e menos conscientes, que permitem uma “cumplicidade dissimulada aos olhos dos que dele participam e que choca o observador estranho ao sistema”.
Minha proprosição aqui é que é justamente a existência destes horizontes culturais mais amplos e menos conscientes que permite tornarmos qualquer campo de conhecimento, incluindo aqui as doutrinas jurídicas brasileiras, objeto de reflexão antropológica. Em outras palavras, ainda que o conhecimento produzido pelos doutrinadores não obedeça a princípios consensuais de legitimação isso não quer dizer que inexista, de maneira implícita, uma “cumplicidade dissimulada” , menos consciente, que constitui as problemáticas obrigatórias do campo e que possam ser identificadas e estudadas pelo observador.
Estas problemáticas obrigatórias de um campo como o do direito variam de acordo com o contexto social mais amplo em que estão inseridas. Demonstrei isto em minha tese de doutorado (Filgueiras, 2012). Naquela ocasião mostrei como a categoria “inquisitorialidade” está carregada de significados bem diferentes no Brasil e nos EUA. Em nossa sociedade, a valoração positiva da participação ativa do juiz na instrução do processo[4] ou do procurador do Ministério Público através do inquérito civil encontra grande receptividade na doutrina pátria e está associada recorrentemente à defesa do interesse público e realização da justiça social, marcas do que os doutrinadores brasileiros têm chamado de Estado Social de Direito[5].
Nos EUA, por outro lado, as práticas inquisitoriais estão associadas historicamente à tirania, em oposição às práticas adversariais, associadas no imaginário nacional americano com garantias constitucionais fundamentais (Crapanzo, 2000; Garapon & Papadopoulos, 2005)[6]. Assim, nos EUA, as proposições no sentido de aumentar o poder do juiz sobre o andamento do processo enfrentam resistências relacionadas à auto-imagem legal dos norte-americanos (Kessler, 2004), que não se colocam no Brasil, ao menos não com a mesma intensidade.
Um outro obstáculo ao estudo das doutrinas jurídicas diz respeito às relações entre as doutrinas e as práticas judiciais. Diversas pesquisas em antropologia jurídica tem demonstrado como os juízes no Brasil decidem de maneira casuística, ou seja, de acordo com subjetivismos e ambiguidades que estão a serviço de moralidades pessoais. Neste sentido, a lei e o processo recebem significados distintos conforme o juiz que os maneja (Lupetti Batista, 2012). Ainda que sejam os juízes que ocupam a posição mais alta na hierarquia do campo (Mendes Teixeira; Duarte), é importante destacar que os procuradores do Ministério Público também exercem este casuísmo em suas ações judiciais e extra-judiciais (Mouzinho, 2007).
Desta constatação sobre a arbitrariedade das decisões judiciais no Brasil não deve decorrer, no entanto, a conclusão de que estas decisões ignoram completamente a doutrina ou a lei. Destaco que, ainda que autocráticas e casuísticas, por mais que determinadas pelas preferências e moralidades pessoais destes atores, as decisões dos juízes e as ações do procuradores não deixam de ser ações coletivas, ou seja, de ser socialmente determinadas. Como aponta Geertz, o pensamento -inclusive o do magistrado – é um ato público. Ou, como diriam os membros da Escola de Sociologia Francesa, que acontece a partir de categorias sociais e representações coletivas. Sendo socializados em Faculdades de Direito, as ações de juízes e procuradores acabam informadas pelas visões de mundo que lá vigoram, mesmo que eles não estejam completamente conscientes disso. E é justamente neste sentido que as doutrinas, como já apontou Kant de Lima (2008a, p.170), sendo parte da realidade social, lhe emprestam significado e referência semântica.
Assim, podemos identificar na dissertação de mestrado de Lupetti Batista (2008), por exemplo, que quando os juízes reconhecem em entrevistas que, na prática judicial, buscam limitar o uso da oralidade pelas partes, contrariamente ao previsto pela lei e por grande parte da doutrina, o fazem a partir da referência a outro principio doutrinário, o da celeridade do processo, que também é uma garantia constitucional, ou seja, o direito a um julgamento rápido[7].
Ora, neste sentido, não é de menor importância identificar como os operadores do direito, como juízes e também membros do Ministério Público, como procuradores, justificam, em entrevistas, sentenças, acórdãos, etc, suas ações. Identificar como estes atores utilizam de maneira seletiva, em cada caso concreto, a doutrina e a lei para justificar seus procedimentos, é em si uma tarefa de extrema riqueza. Assim, a constatação do casuísmo nas práticas judiciais torna ainda mais interessante a tarefa de identificar como esta arbitrariedade é justificada publicamente através de apropriações seletivas da doutrina.
Portanto, se as doutrinas, por um lado, não “expressam a realidade” do direito, como querem alguns juristas, tampouco são uma “cortina de fumaça” que esconde essa realidade[8]. Sugiro aqui que elas são parte da realidade social, de modo que nos interessa identificar seus pressupostos e a forma como são apropriadas em diferentes contextos pelos membros do campo jurídico.
Neste sentido, enquanto a observação e estudo dos rituais judiciários, a frequência em tribunais, delegacias, audiências, etc, é de vital importância, isso não implica que a dogmática não seja objeto legítimo e rico de reflexão. Neste caso, no entanto, trata-se de proceder diferente de como procedem os juristas. Ou seja, o interesse antropológico pela dogmática é aquele de exercitar sobre ela o cuidado de explicitar suas categorias e pressupostos, ao invés de simplesmente naturalizar sua lógica e limitar-se a escolher entre uma ou outra “opinião” sobre determinado tema. Ao contrário disso, interessa-nos as representações sociais, os “princípios de juízo e raciocínio”[9] que balizam as controvérsias internas ao campo doutrinário.
Logo, a questão não é saber se a decisão ou ação judicial “se encaixa” ou não com a lei e a doutrina. Em um ou no outro caso, o que está em questão é que as decisões e ações não são indiferentes à lei e a doutrina, sendo estas o idioma, manipulado seletivamente, através do qual as práticas judiciais são justificadas publicamente. E aqui as apropriações que fazem da lei e da doutrina não são somente arbitrariedades, carentes de significado, mas uma das etapas fundamentais de produção da verdade em nosso sistema legal. No caso brasileiro esta verdade, é claro, não busca produzir qualquer consenso, mas estabelecer a interpretação “pacificada” e legítima, ou seja, hierarquicamente estabelecida de acordo com os argumentos da autoridade.
Este foi o caso no conflito que acompanhei na Barra do Jucu/ES, em 2007 e que tive a oportunidade de discutir em minha dissertação (2008) e revisitar em minha tese de doutorado (2012). Após a realização de inquérito civil, que não consultou os pescadores, o Ministéio Público Federal no Espírito Santo emitiu um documento extra-judicial, uma Recomendação, solicitando à Prefeitura que removesse da Praia da Concha os barracões onde os pescadores locais guardava seus equipamentos, porque estes serial ambientalmente lesivos e irregulares.
Nesta história, houve claramente um conflito entre o direito daqueles pescadores enquanto grupo que o próprio Ministério Público se referiu como tradicional, em um Despacho, e o direio ao meio ambiente. O paradoxal é que segundo a Constituição Federal e a doutrina jurídica, ambos os direitos estão entre os que deveriam ser protegidos pelo Minsitério Público. A seguir um trecho da entrevista que fiz com a Procuradora responsável pelo caso na Barra do Jucu ajuda a visualizar o dilema:
Márcio: E quando há interesses coletivos conflitantes…como no caso da Barra do Jucu?
Procuradora: Ali foi uma questão… Porque era uma comunidade relativamente tradicional… nós avaliamos isso tudo…mas nós chegamos à conclusão que naquele caso específico o interesse da preservação da praia era maior, tinha como a comunidade se adaptar à situação e procurar alojamento…era mais fácil eles se deslocarem e tentarem encontrar uma solução fora da praia do que a gente descaracterizar a praia que era bucólica, tinha ainda um potencial de natureza muito grande… a gente tem que ponderar, sempre tem que haver uma ponderação de interesses, aí a gente vai identificar qual o interesse proponderante (…)
Quando perguntei à Procuradora sobre o direito dos pescadores enquanto gupo tradicional ela
disse, entre risos, que eu devia saber isso melhor que ela porque eu era antropólogo e que ela estava
olhando mais a área ambiental:
Procuradora: (Entre risos) Olha, vc é antropólogo…vc pode dizer mais disso do que eu… o quê que você
considera população…vc acha que eles se enquadram exatamente no conceito de população
tradicional?
Márcio: Sim, como ele é definido no decreto 6040…
Procuradora: Olha, eu teria que estudar muito, nós não avaliamos por esta ótica, por isso que essa solução dos barracões…seria uma forma de minimizar esse prejuízo mas na nossa concepção a situação de ocupação da praia era ilegal
Observa-se assim que a Procuradora não apresenta qualquer justificativa razoável para a decisão de tratar o direito ambiental como mais relevante do que o direito tradicional do grupo. Pelo contrário, reconhece que precisaria estudar muito o caso, o que pressupõe-se que não fez. Este parece ser mais um daqueles casos em que as ações de membros do Ministério Público não expressam qualquer consenso, baseado na autoridade dos argumentos, mas estabelecem a interpretação “pacificada” sobre o caso, ou seja, hierarquicamente estabelecida de acordo com os argumentos da autoridade.
Assim, a Procuradora busca de maneira seletiva na legislação e na doutrina justificativas que funcionam como racionalizações, a posteriori, de uma decisão que parece já ter sido tomada, a priori, de forma casuística, ou seja, de acordo com “subjetivismos e ambiguidades que estão a serviço de moralidades pessoais” (Lupetti Batista, 2012). Neste sentido, a lei recebe significados específicos conforme o manejo da Procuradora.
Considerações Finais
Neste artigo apontei dois obstáculos que identifiquei no estudo antropológico da dogmática jurídica brasileira. O primeiro é a crença de que as doutrinas brasileiras não poderiam ser objeto de reflexão antropológica porque, não sendo produto de consensos, seriam então arbitrárias e variariam ao infinito, de acordo com as orientações pessoais de cada doutrinador, não existindo padrão acessível ao observador. O segundo obstáculo que analisei diz respeito às relações entre as doutrinas e as práticas judiciais. Neste caso, a objeção ao estudo das doutrinas referir-se-ia à constatação da arbitrariedade das práticas judiciais no Brasil. Desta constatação decorreria a conclusão de que estas práticas, sendo baseadas de maneira autocrática na autoridade de juízes, procuradores, etc., não estariam submetidas à doutrina, de modo que estas nada poderiam acrescentar à compreensão das práticas judiciais.
Proponho que, nos dois casos, ignora-se que, sendo a produção doutrinária uma ação coletiva, ou seja, algo determinado socialmente, trata-se, portanto, de parte da realidade social, que lhe empresta significado e referências semânticas (Kant de Lima, 2008b). Assim, ainda que produzida em um contexto averso ao consenso, está baseada em acordos subjascentes e pouco conscientes, que constituem uma substância passível de análise e interpretação antropológica. E, mesmo submetida ao casuísmo dos operadores do direito, a doutrina serve ainda como o idioma, manipulado seletivamente, através do qual as decisões, ações, etc., serão justificadas publicamente, ainda que de maneira autocrática.
Esta discussão nos remete à constatação de que a doutrina jurídica é objeto legítimo de análise antropológica. Como apontou Kant de Lima, a etnografia é aquele conhecimento que resulta do comprometimento do observador com a explicitação das categorias sociais do contexto observado assim como aquelas próprias de sua tradição disciplinar (2008b, p.12). Este objetivo não depende, para sua realização, exclusivamente de pesquisas produzidas através de observação participante, na forma de longas interações face a face. Também os textos, que constituem parte da realidade social de um determinado campo social, podem tornar-se objeto de estranhamento e reflexão e acredito ser este o caso do saber doutrinário que compõe a tradição legal das sociedades que se utilizam da escrita como espaço de produção e consagração do conhecimento.
Neste sentido, um olhar antropológico sobre as doutrinas jurídicas permite que superemos o truísmo da afirmação de que no campo jurídico a realidade não coincide com a ideologia. Ora, dizer isso é muito pouco. Primeiro porque, como já destaquei, pressupõe que a ideologia não faz parte da realidade social. Segundo, porque já está longamente estabelecido em nossa disciplina que há sempre discrepâncias entre o que os homens fazem, o que dizem que fizeram em situações específicas e o que afirmam fazer em situações hipotéticas (Van Velsen, p.345-374, 1987).
Uma estratégia possível é a de explicitar as categorias sociais presentes nos textos dogmáticos e relacionar estes textos a seus autores e às suas filiações institucionais, identificando os limites semânticos do campo doutrinário e reconhecendo as diferentes posições dentro deste campo sobre determinados institutos. Em seguida, é preciso identificar como ocorrem os usos destas doutrinas pelos operadores do direito ou pelos membros do Ministério Público em discursos sobre situações hipotéticas, geralmente acessíveis através de entrevistas. Cabe, ainda, identificar as aplicações que fazem das doutrinas em situações específicas para justificar suas práticas, como registrado em textos de acórdãos, sentenças ou Ações Civis Públicas, por exemplo. Por fim, é também fundamental observar o que operadores do direito e outros atores do campo como procuradores e advogados realizam em suas práticas judiciais, a despeito de como as justificam doutrinariamente. Identificando, distinguindo e compreendendo as relações entre estas dimensões analíticas, as doutrinas e as práticas judiciais passam a ser vistas, ambas, como parte da realidade social e podemos escapar tanto da visão de que as doutrinas escondem uma realidade a ser descoberta nas práticas judiciais quanto a de que as doutrinas expressam harmonicamente estas práticas.
Doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense com financiamento Capes/Fulbright. Pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos Inct/InEAC. Professor Substituto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo
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