Resumo: O presente artigo aborda as mudanças introduzidas pelo Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015), dando ênfase ao aspecto da valorização de precedentes. Um estudo crítico e comparativo da Constituição Federal de 1988, da emenda constitucional nº 45/2004, do Código de Processo Civil de 2015 e seu inovador microssistema de valorização de precedentes composto pelo incidente de assunção de competência, incidente de resolução de demandas repetitivas e reclamação. Analisa a constitucionalidade da valorização de precedentes adotada pelo código de processo civil de 2015 e expõe uma análise crítica do sistema de precedentes adotado pelo novo código de processo civil.
Palavras Chaves: Valorização de Precedentes, Novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/2015, constitucionalidade de precedentes, precedentes judiciais, efeitos vinculantes.
Abstract: The present study approaches the changes introduced by the new Brazilian code of civil procedure (Law 13.105/2015), emphasizing the precedents or stare decisis. A critic and comparative study of the 1988 Federal Constitution, of the constitution amendment number 45/2004 and the new Brazilian code of civil procedure and your respective new microsystem of precedents or stare decisis made mainly by the taking competence incident, incident of the repetitive cases solution and complaint issue. Analyze the constitutionality of the precedents or stare decisis adopted by the new Brazilian code of civil procedure, and expose a critic analysis of the precedents system adopted by the same new code.
Key Words: Judicial Precedent, stare decisis, new Brazilian code of civil procedure, law number 13.105/2015, constitutionality of the precedents/stare decisis.
Sumário: 1. Introdução. 2. Famílias do Direito: Commom Law e Civil Law. 3. Efeito Vinculante. 4. O Precedente Judicial. 5. Principais Inovações do Código de Processo Civil de 2015. 6. Visão Geral do Novo Código Civil e Os Precedentes Vinculantes. 7. Análise Constitucional da Valorização de Precedentes no Código de Processo Civil de 2015. 8. Analise Crítica dos Precedentes da Lei 13.105/2015. 9. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda as mudanças introduzidas pelo Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015), mormente no que tange à valorização de precedentes e sua adequação ao sistema constitucional vigente.
As principais inovações trazidas pelo novo código de processo civil de 2015 – lei 13.105/2015, apresentado os institutos diretamente ligados à valorização dos precedentes judiciais, tal como o incidente de resolução de demandas repetitivas, incidente de assunção de competência e a reclamação.
Por fim, é feita uma análise constitucional da valorização de precedentes, tal como introduzida pela lei 13.105/2015, e exposta as principais críticas da doutrina à lei 13.105/2015 no que tange especificamente aos precedentes judiciais.
2. FAMÍLIAS DO DIREITO: COMMOM LAW E CIVIL LAW
René David, em sua obra os grandes sistemas do direito contemporâneo[1], agrupou os diferentes “modelos” de Direito em “famílias”. Das famílias citadas por René David em sua obra ganha interesse para esta breve análise o modelo do direito codificado continental (civil law) e o modelo do precedente judicial anglo saxão (commom law).
Enquanto o modelo codificado continental (civil law) que é o adotado pelo Brasil estabelece premissas normativas e normas gerais organizadoras, o modelo anglo saxão (common law) adotado pelos Estados Unidos da América é um modelo judicialista e se funda nos chamados precedentes (stare decisis), conforme explica Walber de Moura Agra " … o sistema do Common Law, de tradição anglo-saxônica, onde prepondera o stare decisis (et quieta non movere), o precedente judiciário é fonte de direito, isto é, detém valor normativo".[2]
André Ramos Tavares assim explica a diferença entre os dois modelos acima mencionados:
“Há uma radical oposição e (aparente) incompatibilidade entre os modelos mencionados. Realmente, enquanto o modelo codificado (caso brasileiro) atende ao pensamento abstrato e dedutivo, que estabelece premissas (normativas) e obtém conclusões por processos lógicos, tendendo a estabelecer normas gerais organizadoras, o modelo jurisprudencial (caso norte-americano, em parte utilizado como fonte de inspiração para criação de institutos no Direito brasileiro desde a 1 República) obedece, ao contrário, a um raciocínio mais concreto, preocupado apenas em resolver o caso particular (pragmatismo exacerbado). Este modelo do common law está fortemente centrado na primazia da decisão judicial Uudge made law). É, pois, um sistema nitidamente judicialista. Já o direito codificado, como se sabe, está baseado, essencialmente, na lei…”[3]
E prossegue:
“O chamado precedente (stare decisis) utilizado no modelo judicialista, é o caso já decidido, cuja decisão primeira sobre o tema (leading case) atua como fonte para o estabelecimento (indutivo) de diretrizes para os demais casos a serem julgados. Esse precedente, como o princípio jurídico que lhe servia de pano de fundo, haverá de ser seguido nas posteriores decisões como paradigma (ocorrendo, aqui, portanto, uma aproximação com a ideia de súmula vinculante brasileira). ”[4]
O direito brasileiro, portanto, com raízes na civil law permitiu se influenciar pelo instituto do precedente, da stare decisis, que tem raízes no modelo da common law, criando inicialmente a figura da súmula vinculante.
Gilmar Mendes cita que “o efeito vinculante das decisões de Tribunais Superiores sobre os atos de instâncias inferiores não configura novidade”[5] e faz importante e pertinente observação ao citar Hans Kelsen que considerava que a função criadora do direito pelos tribunais, quando este recebe competência para produzir normas de caráter geral por meio de decisões com efeito de precedente, acaba por competir com o legislativo, levando a uma descentralização da função legislativa, conforme exposto:
“É de Kelsen o esclarecimento de que a função criadora do direito dos tribunais, existente em todas as circunstâncias, surge com particular evidência quando um tribunal recebe competência para produzir também normas gerais por meio de decisões com força de precedentes. Conferir a tal decisão caráter de precedente é tão só um alargamento coerente da função criadora de direito dos tribunais. Se aos tribunais é conferido o poder de criar não só normas individuais, mas também normas jurídicas gerais, estarão eles em concorrência com o órgão legislativo instituído pela Constituição, e isso significará uma descentralização da função legislativa. ”[6]
Gilmar Mendes não vê problema algum nesta interconexão entre os modelos civil law e common law, para o autor os países adeptos da common law construíram a prática do precedente judicial vinculativo, no entanto, isto não impede que o precedente vinculante também seja adotado pelos países adeptos da civil law, embora nesta deva ser adotado de forma mais formalizada, normatizada ou rígida no sentido de existência de normas previamente elaboradas sobre sua aplicação. Nas palavras do eminente Ministro:
“Os países que pertencem à tradição do common law construíram a prática do precedente judicial vinculativo, que se caracteriza pelo fato de a ratio decidendi de um alto tribunal ser, em princípio, obrigatória para os tribunais inferiores. A criação predominantemente judicial do direito concorreu positivamente para o estabelecimento dessa racionalidade. Isso, no entanto, não impede de se ver o precedente vinculante também em países de tradição romanista, embora aí mais formalizado, como referido”[7].
Ao encontro do exposto Alexandre de Moraes afirma que “a instituição da súmula vinculante, pela EC nº 45/2004, corresponde à tentativa de adaptação do modelo da common law (stare decisis) para nosso sistema romano-germânico (civil law) ”. Prossegue fundamentando o surgimento das súmulas vinculantes da seguinte forma:
“…necessidade de reforço à ideia de uma única interpretação jurídica para o mesmo texto constitucional ou legal, de maneira a assegurar-se a segurança jurídica e o princípio da igualdade, pois os órgãos do Poder Judiciário não devem aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias, devendo, pois, utilizar-se de todos os mecanismos constitucionais no sentido de conceder às normas jurídicas uma interpretação única e igualitária”[8].
Assim, abstrai-se que a intenção do legislador constitucional ao estabelecer competência para o Supremo Tribunal Federal para o julgamento do recurso extraordinário e do Superior Tribunal de Justiça para o Recurso Especial, estaria implicitamente tentando ou se esforçando para que o primeiro fosse o responsável pela uniformização da interpretação da Constituição Federal, enquanto o segundo ficaria responsável pela uniformização da interpretação da lei federal, tudo em prol da segurança jurídica e do princípio da igualdade.
Diante do insucesso desta tentativa preliminar e da perpetuação de desigualdades por interpretações judiciais díspares, natural que o poder constituinte reformador encontrasse no modelo anglo saxão da common law, da stare decisis – stare decisis et quieta non movere (mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido) – do qual os Estados Unidos da América era o modelo mais emblemático e funcional.
Neste mesmo contexto Pedro Lenza[9] ensina que “os juízes poderiam decidir de maneira contraditória criando várias leis contraditórias”, sendo assim “estabeleceu-se o instituto dos precedentes, devendo todos os demais juízes julgar conforme o decidido no caso concreto e pelo órgão hierárquico superior”.
Faz-se necessário lembrar que os sistemas commom law e civil law apenas se aproximaram, mas nunca se interconectaram a ponto de perderem suas identidades características, dentro deste panorama é importante a observação de Alexandre de Moraes no sentido de que a EC nº 45/2004 não adotou o clássico stare decisis, nem tampouco transformou nosso sistema civil law em common law, conforme exposto abaixo:
“A EC n2 45/04 não adotou o clássico stare decisis, nem tampouco transformou nosso sistema de civillaw em commonlaw, porém permitiu ao Supremo Tribunal Federal de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”[10].
Além da inegável origem no direito norte americano (common law, stare decisis e leading cases), um observador atento da evolução da história do direito também veria no instituto das súmulas vinculantes uma inegável contribuição do direito alemão e português. O primeiro[11] no seu sistema concentrado de controle de constitucionalidade que já influenciara o nascimento da ação declaratória de constitucionalidade (EC nº 3/93) que conferiam força de lei e efeito vinculante às decisões de tribunal e no segundo[12] da “força obrigatória geral” da Constituição Portuguesa de 1976 que consagra ideia de vinculação geral e força de lei.
3. EFEITO VINCULANTE
Embora não tenha relação direta com a Emenda Constitucional nº 45/2004, visto que foi criado e já existia antes da edição da referida emenda, será aqui abordado tendo em vista sua importância dentro do assunto e objetivo a ser discutido à frente.
Gilmar Mendes[13] lembra que a expressão efeito vinculante não era de uso comum entre nós e foi utilizada primeiramente na redação do regimento interno do STF ao disciplinar a representação interpretativa introduzida pela EC nº 7/77 e em 1992 apareceu no projeto de emenda constitucional apresentado pelo deputado Roberto Campos (PEC 130/92) ao abordar o efeito das decisões em controle abstrato de constitucionalidade. Na referida PEC diferenciava-se claramente a eficácia geral (erga omnes) do efeito vinculante.
Porém, foi em 16/03/1993 com a promulgação da Emenda Constitucional 3/93 que instituiu a ação declaratória de constitucionalidade, e se inspirou na PEC 130/92, que o efeito vinculante ganhou notoriedade e ficou conhecido. A Emenda Constitucional introduziu o artigo 102, §2º na Constituição Federal com a seguinte redação:
“Artigo 102, §2 (Segundo EC 3/93) – § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”[14].
Segundo Gilmar Mendes, com a redação acima o legislador constituinte assim como fizera a Emenda Roberto Campos procurava distinguir a eficácia erga omnes do efeito vinculante.
Foi a Lei 9868/99 que com seu artigo 28, parágrafo único, uniformizou a matéria e deu coerência introduzindo eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública nas declarações de constitucionalidade e inconstitucionalidade, inclusive na interpretação conforme a Constituição e à declaração parcial de constitucionalidade sem redução de texto.
“Art. 28, Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”[15].
Posteriormente a EC 45/2004 alterou o artigo 102, §2 da Constituição Federal dando a redação atual.
“Art. 102, §2 As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”[16].
Pertinente relembrar aqui que a Emenda Constitucional nº 45/2004 também emprestou efeito vinculante para as súmulas vinculantes no artigo 103-A, caput, da Constituição Federal.
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.[17]
O ministro Gilmar Mendes, bastante versado no Direito Alemão, ensina que o modelo adotado no Brasil deste instituto previsto inicialmente na EC 3/93 está vinculado ao modelo germânico.
“A concepção de efeito vinculante consagrada pela EC n. 3/93 está estritamente vinculada ao modelo germânico disciplinado no § 31-2 da Lei Orgânica da Corte Constitucional. A própria justificativa da proposta apresentada pelo deputado Roberto Campos não deixa dúvida de que se pretendia outorgar não só eficácia erga omnes, mas também efeito vinculante à decisão, deixando claro que estes não estariam limitados apenas à parte dispositiva. Embora a EC n. 3/93 não tenha incorporado a proposta na sua inteireza, é certo que o efeito vinculante, na parte que foi positivada, deve ser estudado à luz dos elementos contidos na proposta original.
Assim, parece legítimo que se recorra à literatura alemã para explicitar o significado efetivo do instituto”[18].
Em relação ao limite objetivo do efeito vinculante o ministro Gilmar Mendes ensina que não está restrito à parte dispositiva, mas atinge também os fundamentos determinantes, a norma abstrata que se extrai da decisão e não apenas o pronunciamento judicial em si. Nas insubstituíveis palavras do eminente ministro:
“Nesses termos, resta evidente que o efeito vinculante da decisão não está restrito à parte dispositiva, mas abrange também os próprios fundamentos determinante. Como se vê, com o efeito vinculante pretendeu-se conferir eficácia adicional à decisão do STF, outorgando-lhe amplitude transcendente ao caso concreto. Os órgãos estatais abrangidos pelo efeito vinculante devem observar, pois, não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão, mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, que determinado tipo de situação, conduta ou regulação — e não apenas aquele objeto do pronunciamento jurisdicional — é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado”.[19]
Sobre os limites subjetivos a questão que emerge é relativa a auto vinculação, ou seja, se o próprio STF se vincula à decisão proferida. Entendimento que prevalece é no sentido de que não ocorre a auto vinculação, segundo Gilmar Mendes reconhecer a auto vinculação do STF seria uma renúncia a própria evolução da Constituição, mas para alterar um precedente vinculante o STF ficaria duplamente onerado do dever de se justificar.
“De um ponto de vista estritamente material também é de se excluir uma auto vinculação do STF aos fundamentos determinantes de uma decisão anterior, pois isto poderia significar uma renúncia ao próprio desenvolvimento da Constituição, tarefa imanente aos órgãos de jurisdição constitucional.
Todavia, parece importante, tal como assinalado por Bryde, que o Tribunal não se limite a mudar uma orientação eventualmente fixada, mas que o faça com base em uma crítica fundada do entendimento anterior, que explicite e justifique a mudança51. Quem se dispõe a enfrentar um precedente, fica duplamente onerado pelo dever de justificar-se.
Ao contrário do estabelecido na proposta original, que se referia à vinculação dos órgãos e agentes públicos, o efeito vinculante consagrado na EC n. 3/93 ficou reduzido, no plano subjetivo, aos órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo”[20].
Alexandre de Moraes lembra que também não ficará vinculado o legislador em relação ao mérito da matéria decidida pela corte suprema, podendo editar novas normas em sentido oposto ao decidido em decisão vinculante pelo STF, conforme trecho abaixo transcrito:
“Não será possível, porém, a vinculação do Legislador em relação ao mérito da matéria decidida pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que poderá editar novas normas com objeto oposto ao decidido pela Corte Suprema, em virtude de sua absoluta liberdade de criação legislativa, garantindo-se, dessa forma, a possibilidade de evolução. Dessa forma, caso o Congresso Nacional edite nova lei disciplinando matéria de maneira conflituosa com entendimento anterior do STF, em sede de controle concentrado – seja por repetir lei anterior, seja por redigir entendimento muito semelhante – caberá ao Supremo, caso provocado novamente, reanalisar a matéria, no sentido de sua constitucionalidade”[21].
Ainda segundo Alexandre de Moraes[22], o legislador só ficaria vinculado em duas hipóteses: não editar norma derrogatória da decisão do STF e impedido de editar normas que convalidem os atos nulos praticados com base em lei declarada inconstitucional, pois assim agindo estaria o Poder Legislativo limitando total ou parcialmente a decisão da Suprema Corte.
Pedro Lenza ensina que “a valorização de precedentes no âmbito constitucional decorreu do efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública”[23], efeitos estes decorrentes da decisão em controle concentrado de constitucionalidade, seja decidindo pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.
O que o legislador constitucional fez na intitulada “Reforma do Judiciário” por meio da EC nº 45/2004, foi ampliar os efeitos vinculantes que já estavam previstos na Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC (introduzida pela EC 3/93) – para a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI – fazendo isso através de uma modificação no Art. 102, §2º da Constituição Federal:
“Art. 102, § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. ” [24]
Entretanto, antes da entrada em vigor do novo código de processo civil (lei 13.105/2015), já era possível observar que o legislador ordinário vinha numa crescente vontade de aumentar o poder decisório dos relatores e a “vinculação” sugestiva decorrente de posicionamentos sumulados e pacificados nos tribunais superiores, tendência esta que ganhou novos contornos com a entrada em vigor da lei 13.105/2015 intitulada de “Novo Código de Processo Civil brasileiro” e que será analisada mais pormenorizadamente à frente.
Das várias obras que tratam sobre o precedente judicial, talvez o autor que com mais propriedade escreveu sobre o assunto foi Alexandre Freitas Câmara[25]. O referido autor assim define precedente:
“Precedente é um pronunciamento judicial, proferido em um processo anterior, que é empregado como base da formação de outra decisão judicial, prolatada em processo posterior. Dito de outro modo, sempre que um órgão jurisdicional, ao proferir uma decisão, parte de outra decisão, proferida em outro processo, empregando-a como base, a decisão anteriormente prolatada terá sido um precedente”[26].
Lembra o referido autor que a técnica de decidir com base em precedentes, empregando-os como princípios argumentativos, é uma das bases dos sistemas jurídicos anglo-saxônicos, ligados à tradição jurídica da common law. Como já mencionado anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro é vinculado à tradição romano-germânica (conhecida como civil law).
E como também já relatado, a adoção de precedentes pelo Brasil não significa que o ordenamento jurídico brasileiro tenha migrado para a common law, nas palavras de Alexandre Câmara “Muito ao contrário, o que se tem no Brasil é a construção de um sistema de formação de decisões judiciais com base em precedentes adaptado às características de um ordenamento de civil law”[27].
Portanto, decidir com base em precedentes seria de acordo com o mesmo autor assegurar respeito a uma série de princípios constitucionais formadores do modelo constitucional de processo brasileiro, precipuamente isonomia e segurança jurídica.
“Decidir com base em precedentes é uma forma de assegurar o respeito a uma série de princípios constitucionais formadores do modelo constitucional de processo brasileiro. O sistema brasileiro de precedentes judiciais busca assegurar, precipuamente isonomia e segurança jurídica. É que, como se poderá ver ao longo desta exposição, o direito processual civil brasileiro conhece dois tipos de precedentes (os vinculantes e os não vinculantes, também chamados de persuasivos ou argumentativos). E os da primeira espécie – evidentemente os mais importantes na construção do sistema – destinam-se a garantir que casos iguais recebam respostas jurídicas iguais (isonomia), o que confere previsibilidade às decisões judiciais (segurança jurídica) ”[28].
Para se compreender o sistema brasileiro de precedentes é necessário fazer a distinção entre o conceito de precedente e jurisprudência.
Jurisprudência emerge como um conjunto de decisões judiciais, proferidas pelos tribunais (órgãos colegiados), sobre uma determinada matéria, em um mesmo sentido.
Portanto entre precedente e jurisprudência existe uma clara diferença quantitativa, pois enquanto a primeira se refere a uma decisão judicial proferida em um determinado caso concreto, o segundo relaciona um grande número de decisões judiciais por órgãos colegiados, permitindo, em última análise, saber como os tribunais interpretam determinada norma jurídica.
Alexandre Cãmara explica que esta distinção é relevante pois “o sistema brasileiro de precedentes é construído para que haja uniformidade de decisões em causas idênticas (notadamente, ainda que não exclusivamente, no que diz respeito às assim chamadas demandas repetitivas) ’[29]. Ao passo que a jurisprudência serviria “de base para a uniformização de entendimento a respeito de temas que se manifestam em causas diferentes”[30].
A ligação entre as duas se estabelece quando pensamos que a identificação de uma linha de jurisprudência constante se faz a partir do exame de um conjunto de decisões judiciais, e cada uma dessas decisões pode ser considerada individualmente um precedente. Assim:
“…falar de precedente é falar de uma decisão determinada, a qual serve de base para a formação de outra decisão, proferida em processo posteriormente julgado. De outro lado, falar de jurisprudência é falar de conjunto de decisões formadoras de uma linha constante de entendimento acerca de determinado tema”[31].
Sobre a jurisprudência dos tribunais o código de processo civil de 2015 (lei 13.105/2015) estabelece em seu artigo 926 que esta deve ser estável, íntegra e coerente.
“Art. 926 Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”[32].
Segundo Alexandre Câmara a estabilidade indica que linhas de decisões constantes e uniformes a respeito de determinadas matérias não podem ser simplesmente abandonadas ou modificadas arbitrária e discricionariamente, de forma que um órgão jurisdicional não pode decidir uma matéria ignorando linha decisória anteriormente firmada em sentido contrário, promovendo flutuação de entendimentos que comprometem a segurança jurídica.
A jurisprudência íntegra é aquela construída levando-se em consideração a história institucional das decisões acerca de determinada matéria, de forma que um tribunal, ao proferir decisão sobre determinado tema, deve levar em conta toda a evolução histórica das decisões proferidas, anteriormente sobre o mesmo tema, a conhecida história do romance em cadeia de que fala Ronald Dworkin[33], assim “cada juiz ou tribunal, ao proferir decisão , deve levar em conta as decisões anteriormente proferidas acerca daquela mesma matéria, de modo a trata-las como se fossem os capítulos anteriores de um romance em cadeia”[34].
Por derradeiro, coerência remeteria a uma isonômica aplicação principiológica, fundamenta-se na ideia de que casos análogos devem receber decisões fundadas nas mesmas normas (especialmente, nos mesmos princípios). “A coerência garante isonomia e é a chave para a integridade”[35].
Especificamente sobre os precedentes, Alexandre Câmara ensina que nem toda decisão judicial é precedente, somente serão precedentes aquelas decisões possíveis de estabelecer um fundamento determinante que será observado posteriormente, com caráter vinculante ou meramente persuasivo, na formação de decisão futura.
O direito brasileiro conhece dois tipos de precedentes: o precedente vinculante e o precedente não vinculante (persuasivo ou argumentativo).
Os precedentes vinculantes, como o próprio nome indica, são de aplicação obrigatória, não podendo os órgãos jurisdicionais a eles vinculados, deixar de aplicá-los e/ou decidir contrariamente. Ou seja, havendo precedente vinculante não é legítimo decidir de modo diverso.
Os precedentes não vinculantes são meramente argumentativos, não podem ser ignorados pelos órgãos jurisdicionais, porém podem decidir de modo distinto, desde que o pronunciamento judicial venha acompanhado de fundamentação que justifique plenamente a não aplicação do precedente, admissível, portanto decisão conflitante desde que com justificativa adequada.
Dentro deste panorama o artigo 927 do código de processo civil entra como um dever jurídico dos juízes e magistrados levar em conta em suas decisões. Os pronunciamentos ou enunciados sumulares descriminados nos incisos do artigo 927 não indicam qualquer eficácia vinculante, que “quando existente resultará de outra norma, resultante da interpretação de outro dispositivo legal (e que atribua expressamente tal eficácia) ”[36]. Não existindo outra norma, será meramente persuasivo.
Assim do ensinamento de Alexandre Câmara:
“… têm eficácia vinculante as decisões e enunciados sumulares indicados nos incisos I a III do art. 927; e são meramente argumentativas as decisões e verbetes sumulares de que tratam os incisos IV e V do mesmo artigo”[37]
Já os acórdãos prolatados no julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos (pelo STF ou pelo STJ, respectivamente) têm eficácia vinculante por força do disposto no art. 1.040, segundo o qual, uma vez publicado o acórdão paradigma, se negará seguimento aos recursos extraordinários ou especiais que estivessem sobrestados na origem quando o acórdão recorrido coincidir com a tese firmada (art. 1.040, I); o órgão que tenha proferido o acórdão recorrido que contrarie a tese firmada reexaminará o caso para aplicação da tese (art. 1.040, II); os processos ainda não julgados seguirão “para julgamento e aplicação da tese firmada pelo tribunal superior” (art. 1.040, III).”[38]
Do exposto o mesmo autor conclui que “as decisões de controle concentrado de constitucionalidade e para os enunciados de súmula vinculante há norma constitucional a estabelecer a eficácia vinculante”[39]. Por outro lado, “para as decisões proferidas no julgamento do incidente de assunção de competência e no julgamento de casos repetitivos há norma infraconstitucional atributiva de eficácia vinculante”[40].
Este é o cerne da questão aqui brevemente discutida, se a eficácia vinculante realmente pode decorrer tanto de norma constitucional como de norma infraconstitucional, ou mesmo, se pode o legislador ordinário lançar mão e estabelecer regras de vinculação que seriam de certa forma materialmente constitucionais, ou que até então somente a Constituição tivesse versado.
Outra grande e importante diferença relativa aos precedentes apontada por Alexandre Câmara[41] entre os sistemas jurídicos vinculados à tradição de common law e o sistema brasileiro de precedentes é que na primeira o juiz ou tribunal não sabe que está decidindo um caso que será tomado como precedente, ao passo que no segundo o juiz ou tribunal já toma a decisão sabendo de antemão que ela será um precedente.
No primeiro caso quem diz se a decisão judicial é precedente ou não, será o juiz do caso seguinte, ou seja, nenhum juiz ou tribunal sabe a priori se aquela decisão tomada será ou não, no futuro, tida por precedente, apenas quando surgir um segundo caso com circunstâncias análogas às do caso anterior que o tribunal responsável pelo segundo caso afirmará que a primeira decisão tomada é um precedente.
No direito processual civil brasileiro a situação é diferente pois a lei já estipula, com antecedência, quais são as decisões judiciais que terão eficácia de precedente vinculante. De forma que quando um tribunal vai exercer controle concentrado de constitucionalidade, vai decidir um incidente de assunção de competência ou vai julgar casos repetitivos, já sabe, de antemão, que a decisão ali proferida será um precedente vinculante. Sobre este assunto conclui Alexandre Câmara:
“Pode-se mesmo dizer que tais pronunciamentos são “precedentes de propósito” (ou, como já tive oportunidade de dizer, em tom de brincadeira, em conferências que proferi sobre o ponto, “precedentes vinculantes dolosos”, já que formados “com a intenção de serem precedentes vinculantes”).
Isto resulta não só do fato de que existe a previsão expressa em lei da eficácia vinculante de algumas decisões judiciais, mas também da circunstância de que existem procedimentos especificamente voltados à criação desses precedentes vinculantes (o procedimento destinado ao julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade, regido pela Lei no 9.869/1999; o procedimento destinado à edição de enunciado de súmula vinculante, previsto na Lei no 11.417/2006; o procedimento do incidente de assunção de competência, regido pelo art. 947; o procedimento do incidente de resolução de demandas repetitivas, regido pelos arts. 976 a 986; e, por fim, o procedimento destinado ao julgamento dos recursos especiais e extraordinários repetitivos, regulado pelos arts. 1.036 a 1.041) ”[42].
Este fato, porém, não dispensa os juízes e tribunais de observar o contraditório e proferir decisão adequada e fundamentada justificando o motivo da aplicação do precedente ao caso em julgamento, demonstrando, inclusive, se os fundamentos determinantes daquele precedente são mesmo aplicáveis ao novo caso sob apreciação.
Da mesma forma deve ser fundamentada a decisão que deixa de aplicar o precedente por ser o caso em julgamento distinto, tornando o precedente inaplicável. Sobre isso dispõe o artigo 489, §1, VI do Código de Processo Civil.
“Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
VI – Deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”[43].
Por fim, interessante observar que no sistema brasileiro a superação de um precedente não acarreta a rescisão do julgamento. Acontece quando a decisão que servia como precedente vinculante também é o julgamento de um caso concreto, de forma que nestes casos superado o precedente, não será mais aquela decisão adotada no julgamento de casos futuros, mas o caso concreto no qual se chegou àquela decisão continuará sendo submetido àquela mesma decisão.
Da mesma maneira, no caso dos precedentes não vinculantes (artigo 927, IV e V do Código de Processo Civil), caberá ao juiz responsável dialogar com o precedente, apontando seus fundamentos determinantes e indicando de forma específica as razões pelas quais não os aplica. Alexandre Câmara explica que neste caso “não há uma vinculação, mas existe um ônus argumentativo que exige uma fundamentação específica para justificar a decisão divergente”[44].
5. PRINCIPAIS INOVAÇÕES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Foram grandes e importantes as inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil.
Foi dada grande atenção ao fenômeno da constitucionalização do processo civil na parte geral do novo código a ponto de os 12 primeiros artigos ficarem dedicados a definir o que se denominou de normas fundamentais do processo civil, dentre as quais ganha destaque o princípio do contraditório sem surpresas; da cooperação entre as partes e juiz na atividade de formulação do provimento jurisdicional; da sujeição de todos os participantes do processo ao comportamento de acordo com a boa-fé; da duração razoável do processo; da dignidade da pessoa humana; da eficiência da prestação a cargo do Poder Judiciário; da submissão do próprio juiz ao contraditório; da fundamentação adequada das decisões judiciais; da vedação de privilégios da ordem de julgamento das causas, estímulo à prática da justiça coexistencial (juízo arbitral, conciliação e mediação).
Sem qualquer sombra de dúvidas, o fenômeno da constitucionalização do processo civil almejado no âmago mais profundo e razão primeira da atualização do código processual salta aos olhos dos constitucionalistas. Verifica-se de pronto que os fundamentos que nortearam o legislador foram os mais elevados possíveis, tentando materializar os direitos e perspectivas resguardados pelo constituinte.
Espera-se que o objetivo do legislador ordinário, dotado da mais alta relevância jurídica e social, não se perca com o transcorrer dos anos na aplicação das normas processuais, tornando novamente o processo como instrumento procrastinatório e que dificulta ou atrasa a materialização de direitos, especialmente os mais essenciais da pessoa humana.
No entanto, o ponto de alteração de maior relevância dentro do assunto que este trabalho propõe abordar, certamente ficou por conta da política de valorização da jurisprudência.
Permitiu-se assim a rejeição liminar da demanda em um maior número de casos, de modo a possibilitar rejeição liminar sempre que o pedido for contrário a súmulas ou acórdãos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência, ou ainda quando afrontar diretamente norma jurídica extraída de dispositivo expresso de ato normativo.
6. VISÃO GERAL DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E OS PRECEDENTES VINCULANTES.
A reforma do código de processo civil feita pela lei 13.105/2015 que resultou no novo código de processo civil em geral recebeu boa receptividade por parte da doutrina nacional, visto que, inquestionavelmente, foram feitas muitas das mudanças necessárias para se chegar a um processo mais justo, com adoção de institutos processuais mais modernos, focando sobretudo na constitucionalização do processo civil de forma a enfatizar seu aspecto instrumental para entregar a realização plena e efetiva do direito material, sem tecnicismos.
Inegavelmente pois, que na reforma deste código o legislador ordinário, agiu imbuído do mais alto grau de relevância jurídica e social, digna de aplausos, conforme podemos citar na opinião de vários expoentes do nosso direito nacional:
Humberto Theodoro Junior:
“O Novo CPC acha-se estruturado e aparelhado para cumprir a missão de um processo justo capaz de realizar a tutela efetiva dos direitos materiais ameaçados ou lesados, sem apego ao formalismo anacrônico e de acordo com os princípios constitucionais democráticos que regem e asseguram o pleno acesso de todos ao Poder Judiciário”[45].
Alexandre Câmara:
“Em primeiro lugar, a nova legislação processual foi elaborada a partir da firme consciência de que o processo deve ser pensado a partir da Constituição da República. É que impende reconhecer a existência de um modelo constitucional de direito processual (e, para o que a este livro mais diretamente interessa, um modelo constitucional de direito processual civil) estabelecido a partir dos princípios constitucionais que estabelecem o modo como o processo civil deve desenvolver-se.
O processo civil brasileiro é um procedimento em contraditório, que se desenvolve de forma isonômica perante o juiz natural, destinado a permitir a construção de decisões fundamentadas em tempo razoável sobre qualquer pretensão que se deduza em juízo (já que é garantido o acesso universal à justiça). É, enfim, um devido processo legal (entendido como devido processo constitucional).
Pois é a partir desse modelo constitucional de processo que foi construído o Código de Processo Civil. E alguns dispositivos do Código mostram isso muito claramente, como é o caso dos que tratam do princípio do contraditório (arts. 9o e 10), compreendido como garantia de participação com influência e não surpresa, e do que estabelece os casos em que se considera haver vício de fundamentação na decisão judicial (art. 489, § 1o) ”[46].
Luiz Guilherme Marinoni:
“Daí que é imprescindível para compreensão do novo Código a sua leitura a partir da cultura do Estado Constitucional, tornando-o um instrumento idôneo para servir à prática sem descurar das imposições que são próprias da ciência jurídica, como necessidade de ordem e unidade, sem as quais não há como se falar em sistema nem • tampouco cogitar da coerência que lhe é essencial.66 Isto quer dizer que o Código deve ser pensar a partir de sua finalidade e de eixos temáticos fundados em sólidas bases teóricas.[47]
…O ideal é que o Código de Processo Civil seja pensado a partir da ide ia de tutela dos direitos. E o compromisso do Estado Constitucional com a tutela dos direitos e, em termos processuais civis, com a efetiva tutela jurisdicional dos direitos em sua dupla dimensão que singulariza o Estado Constitucional. Esse se caracteriza justamente por ter um verdadeiro dever geral de proteção dos direitos. Fica claro, portanto, a razão pela qual a interpretação que o novo Código merece caracteriza-se por um sintomático deslocamento – do processo à tutela. ”[48]
“Daí a razão pela qual a adoção pelo novo Código de expressões como tutela dos direitos, perigo na demora e medidas necessárias – justamente porque abertas e moldáveis concretamente às mais diferentes situações de direito material carentes de tutela – constitui prova de sua atenção à realidade social e ao direito material que lhe cabe efetivamente tutelar[49].
E Cassio Scarpinella Bueno:
“O Capítulo I do Título Único do Livro I da Parte Geral do CPC de 2015 trata, em seus doze artigos, das normas fundamentais do processo civil. São as normas que querem ser fundantes não só do próprio Código, mas também de todo o direito processual civil. ”
O caráter didático de cada um daqueles onze artigos, contudo, é inegável e merece, por isso mesmo, ser enaltecido e bem compreendido para viabilizar uma interpretação e uma aplicação do CPC de 2015 – e, repito, de todo o direito processual civil –, mais harmônico com os valores do Estado constitucional brasileiro”[50].
Do exposto, pode-se afirmar categoricamente que a comissão encarregada da reforma do novo código de processo civil fez um trabalho digno de elogios e pautada dentro dos mais relevantes propósitos jurídicos e sociais, de forma que não cabe neste trabalho, bem como em nenhuma obra séria que se propõe a estudar e construir a doutrina nacional, qualquer cunho depreciativo em relação ao código.
Sabe-se, no entanto, que o trabalho da doutrina, estudiosos do direito e juristas em parte é apontar melhoramentos e contribuir sempre para a evolução da ciência do direito, produzindo e trocando conhecimentos e principalmente contribuindo com a comunidade jurídica para o crescimento da ciência jurídica, afinal é no contraditório e no debate franco de ideias que nascem os melhores conceitos, opiniões e decisões. Dentro deste panorama não haverá diploma legal imune a críticas pontuais e construtivas.
No que tange o novo código de processo civil de 2015 as críticas da doutrina mais qualificada pairam principalmente sobre o aspecto da constitucionalidade dos novos precedentes vinculantes introduzidos por lei infraconstitucional, o chamado incidente de assunção de competência (art. 927, III do CPC) e o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 927, III do CPC) bem como no instituto da Reclamação, bem como preocupações de que uma crescente valorização de precedentes cause um “engessamento” inaceitável do direito brasileiro, freando qualquer tipo de evolução.
Estas duas preocupações expostas podem ser reproduzidas nas palavras de Alexandre Câmara sobre o engessamento do sistema:
“A pior das alterações, porém, é que, em razão das modificações operadas no texto do Código, fica muito difícil, quase impossível, que uma matéria sobre a qual o STJ ou o STF já tenha estabelecido um padrão decisório dotado de eficácia vinculante volte àqueles tribunais. Pois isto pode provocar um “engessamento” do Direito brasileiro que seria absolutamente inaceitável. Felizmente, a “vontade do legislador” não é elemento relevante na interpretação da lei, e é perfeitamente possível que a doutrina indique caminhos para contornar os obstáculos criados pela lei de reforma do novo CPC. Neste livro será apresentada uma proposta – respeitados, evidentemente, os limites e objetivos deste trabalho – que, espera-se, poderá ajudar a evitar que se transforme o ordenamento jurídico brasileiro em um sistema “engessado”, infenso à evolução, que faria dele o pior ordenamento jurídico conhecido”[51].
E nas palavras de Cassio Scarpinella Bueno fica exposta uma prévia da ideia de inconstitucionalidade que permeia algumas partes do novo código especialmente na questão dos precedentes vinculantes.
“…o conteúdo dos arts. 1º ao 11 do CPC de 2015 serão significativos da necessidade de se pensar o Código e o direito processual civil de maneira mais ampla, a partir da Constituição e do modelo que ela impõe a eles, não limitado, portanto, às amarras textuais e às escolhas que o legislador infraconstitucional tenha feito. Este, aliás, é um dos diversos paradoxos do CPC de 2015: enaltecer, como enaltece, o “modelo constitucional do direito processual civil” desde seu art. 1º e descumpri-lo, com maior ou menor frequência, inclusive na etapa final de seu processo legislativo. É assunto que, nos limites deste Manual, vem à tona periodicamente, ao longo de seu desenvolvimento”[52].
Esta ideia que se pretende trabalhar de forma pormenorizada e com maior afinco adiante.
7. ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA VALORIZAÇÃO DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSSO CIVIL DE 2015
Chega-se à análise de constitucionalidade da valorização de precedentes adotada pela lei 13.105/2015, o novo código de processo civil de 2015.
O código de processo civil de 2015 introduziu em lei federal importantes institutos gerando um verdadeiro microssistema de formação de precedentes vinculantes, composto pelos: incidente de assunção de competência; incidente de resolução de demandas repetitivas e reclamação.
Vale lembrar que uma vez decididos pelo tribunal competente os citados institutos geram de imediato eficácia de precedentes vinculantes, capazes de indeferir liminarmente pedidos colocados à apreciação do judiciário ou mesmo relativizar o contraditório ao impor, por vezes, concessão de tutela de evidência inaudita altera parte.
Conforme já abordado no transcorrer do presente trabalho, a questão que emerge aos olhos dos constitucionalistas com força singular diante de tal reforma e dos mencionados institutos é se teria o legislador constitucional conferido ao legislador ordinário autonomia e poder para, fundamentado em princípios constitucionais, notadamente o da segurança jurídica e isonomia, criar institutos com efeitos vinculantes.
Diante de tais evidências e discussões, verifica-se dois momentos distintos, um primeiro no qual os doutrinadores receberam mal as informações relativas à reforma no processo civil e aos novos institutos passando a atacar a reforma e a declarando inconstitucional pelos motivos já expostos.
Inserido neste primeiro momento, ressaltamos aqui o posicionamento de alguns juristas em obras e também em opiniões livres emitidas em mídia especializada.
Pedro Lenza assevera que as regras de vinculação existentes na Lei 13.105/2015 não poderiam ser introduzidas por meio de legislação infraconstitucional, mas deveriam ser introduzidas por meio de Emenda Constitucional, já que o texto constitucional atribui efeito vinculante apenas às decisões do Supremo em sede de controle concentrado e súmulas vinculantes, hipótese melhor defendida nas próprias palavras do brilhante doutrinador:
Em nosso entender, essas regras de vinculação não poderiam ter sido introduzidas por legislação infraconstitucional, mas, necessariamente, por emenda constitucional a prever outras hipóteses de decisões com efeito vinculante, além daquelas já previstas na Constituição.[53]
Nelson Nery Jr. emitiu opinião no mesmo sentido em julho/2015 quando disse que na forma como disposta no Código de Processo Civil de 2015 “a jurisprudência vincula, mas a Constituição e a lei, não. Colocaram no novo código algo que deveria ser determinado por emenda constitucional”[54].
Nelson Nery Jr. ainda profetiza o futuro ao fazer observação com caráter vidente, com a qual aqui se concorda sem restrições, de que juízes e tribunais certamente se calariam diante de tal inconstitucionalidade:
“As medidas do novo CPC tendentes a dar poderes legislativos aos tribunais são inconstitucionais. Mas nenhum tribunal vai dizer que são. Vendo uma barbaridade dessas, um passa-moleque desses na sociedade brasileira, eu, como jurista, não posso deixar de falar que isso é inconstitucional”.[55]
Explica-se aqui que a concordância exposta acima está no sentido de que este suposto “poder legislativo” atribuído aos tribunais citado por Nelson Nery Jr no trecho acima, traria benefício imediato e certo ao judiciário no que tange à redução no número de processos, rapidez de julgamento, com repercussões positivas sobre a segurança jurídica e isonomia. Uma vez implementada a mudança dificilmente seria dado por inconstitucional pelos juízes e tribunais, pois declarada a inconstitucionalidade, os efeitos prospectivos decorrentes da medida seriam de tal monta que reabririam processos findos pela vinculação, bem como um suposto efeito “rebote” de demandas retidas decorrentes da vinculação por outras decisões.
Neste sentido, o judiciário reconhecer e decidir pela inconstitucionalidade dos precedentes vinculantes seria impensável, ou até mesmo imponderável, pelos efeitos danosos previsíveis e imprevisíveis que acarretariam dentro do próprio poder.
Talvez a única saída, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade, seria a edição de uma proposta de emenda constitucional – PEC – para constitucionalizar, o que certamente inverteria a ordem natural das coisas e também seria objeto de críticas fervorosas da doutrina.
José Maria Teshneir, seguindo as opiniões retro referidas, também emitiu seu parecer de que a lei 13.105/2015 confere indevida atribuição legislativa aos tribunais, por simples lei ordinária, nas palavras do jurista:
“O mesmo artigo 927 atribui poder normativo às súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e às do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional (inciso IV). Trata-se, também aí, de indevida atribuição legislativa aos tribunais, por simples lei ordinária. O Código de Processo Civil atreve-se, assim, a inovar sobre as próprias fontes do Direito. ”[56]
José Maria Teshneir ainda explica que na sua visão o artigo 927 do novo código de processo civil chega ao absurdo de atribuir um poder de editar normas retroativas aos tribunais, poder este vedado às próprias leis pelo princípio da irretroatividade. O citado autor assim explica o seu ponto de vista:
“Imagine-se caso ocorrido no momento A, que é julgado pelas instâncias ordinárias no momento B, com base em súmula do STJ, posteriormente revisada no momento C. Em recurso especial, a causa é então apreciada pelo STJ. Se não houve modulação de efeitos, o Tribunal aplicará a súmula vigente no momento B. Se houve, modulação de efeitos, o Tribunal aplicará a súmula vigente no momento C. Em qualquer dos casos, será irrelevante o momento A aquele em que ocorreram os fatos, a evidenciar aplicação retroativa de normas posteriormente editadas”.[57]
E conclui que “atribui-se assim aos tribunais, um poder normativo vedado às próprias leis, qual seja, o de editar normas retroativas”[58] e que talvez isso não seja um problema nos sistemas de common law, mas que certamente é nos sistemas fundados na lei e no princípio da legalidade.
Por fim, José Maria Tesheiner termina tecendo forte crítica alegando uma suposta inversão de valores uma vez que a Constituição estaria sendo interpretada de acordo com o Código de Processo Civil.
O fenômeno da constitucionalização do processo civil já citado e elogiado neste trabalho em capítulo próprio, também é lembrado pelo autor em sua crítica ao se mostrar escandalizado que um diploma legal após expressar tamanha adesão ao constitucionalismo em seus primeiros artigos, edite normas tão manifestamente inconstitucionais, ao passo que também denuncia uma possível concentração de poder jurisdicional em Brasília pelos tribunais superiores cabendo aos demais juízes e tribunais apenas reproduzir questões já decididas, nas palavras do citado jurista a crítica foi assim redigida:
“Inicia o novo Código de Processo Civil dizendo que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. Escandaliza-me o fato de que o Código, depois de expressar tão clara adesão ao neoconstitucionalismo, edite normas tão manifestamente inconstitucionais. Talvez eu tenha me engando, e deva ler esse dispositivo com o sentido de que é a Constituição que deve ser interpretada de conformidade com as normas do novo Código de Processo Civil. O que se quer – parece – é criar um sistema de concentração do poder jurisdicional em Brasília: só os tribunais superiores poderão “dizer o direito”, cabendo aos demais juízes e tribunais apenas a tarefa de aplicar aos casos particulares o que eles houverem dito. Nada tenho contra os precedentes. Ao invocar decisões anteriores, dele próprio ou de outros juízes e tribunais, o juiz afasta a possível suspeita de que esteja a inventar uma solução ad hoc, para favorecer uma das partes. Mas isso tem a ver com os precedentes persuasivos; não com os vinculativos, que implicam atribuição de poderes normativos aos tribunais, fora dos casos previstos na Constituição”.[59]
Cassio Scarpinella Bueno também lembra o aspecto contraditório existente no novo código de processo civil ao manifestar em seu início sua irrestrita adesão aos preceitos constitucionais e depois descumpri-los em maior e menor grau no decorrer do diploma legal:
“…o conteúdo dos arts. 1º ao 11 do CPC de 2015 serão significativos da necessidade de se pensar o Código e o direito processual civil de maneira mais ampla, a partir da Constituição e do modelo que ela impõe a eles, não limitado, portanto, às amarras textuais e às escolhas que o legislador infraconstitucional tenha feito. Este, aliás, é um dos diversos paradoxos do CPC de 2015: enaltecer, como enaltece, o “modelo constitucional do direito processual civil” desde seu art. 1º e descumpri-lo, com maior ou menor frequência, inclusive na etapa final de seu processo legislativo. É assunto que, nos limites deste Manual, vem à tona periodicamente, ao longo de seu desenvolvimento”.[60]
Daniel Amorim, tecendo uma crítica mais tecnicista, analisa a questão do cabimento dos recursos extraordinário e especial a partir da decisão em incidente de resolução de demanda repetitivas e toda a repercussão que daí advém em considerar ou não o IRDR como um julgamento de “causa” e a repercussão da questão sobre a constitucionalidade do artigo 987[61] do Novo Código de Processo Civil. Para o autor existem duas possibilidades: ou o julgamento do IRDR representa uma decisão de “causa” e o artigo 987, caput, do CPC é constitucional; ou não há causa decidida e o dispositivo é inconstitucional.
Por outro lado, conforme citado pelo mesmo autor em homenagem à melhor doutrina, o entendimento de que o IRDR seria uma “causa”, para afastar o questionamento de constitucionalidade citado acima (do artigo 987 do CPC), traria como efeito colateral o questionamento da constitucionalidade do próprio IRDR que passaria a ser uma causa de competência originária do tribunal de segundo grau sem previsão expressa na Constituição Federal (artigo 108 CF), nem nas Constituições Estaduais (artigo 125, §1º da CF).
Em última análise é esta última posição que se debate e se defende neste breve estudo, e pelas palavras do autor, verifica-se claramente não haver saída fácil, uma vez que para se reconhecer a constitucionalidade de um dispositivo (artigo 987 do CPC), obrigatório seria o reconhecimento da inconstitucionalidade do instituto, como um todo, por ausência de previsão constitucional para uma causa de competência originária de tribunal.
Como se vê, o assunto não é simples, e a constitucionalidade do instituto é bastante questionável, o citado autor, diante da situação relatada projeta uma futura disputa épica entre o técnico e o pragmático, ao que ele antecipa uma provável vitória do pragmático.
Nas palavras de Daniel Amorim o assunto é assim abordado:
“A realidade é que não se podem buscar subterfúgios para tentar explicar a constitucionalidade do dispositivo ora comentado. Ou o julgamento do IRDR representa decisão de “causa” e o art. 987, caput, do Novo CPC é constitucional, ou não há causa decidida nesse caso e o dispositivo é inconstitucional.
Compreendo que se entender pela inconstitucionalidade do dispositivo seria trágico para a realidade forense e para os objetivos traçados pelo legislador para o IRDR. A solução, ainda que tecnicamente discutível, será alargar o conceito de “causa” para fazer nele caber o julgamento do IRDR. O histórico desse entendimento, entretanto, não é favorável, como denuncia o enunciado da Súmula 513 do STF: “A decisão que enseja a interposição de recurso ordinário ou extraordinário não é do plenário, que resolve o incidente de inconstitucionalidade, mas a do órgão (Câmaras, Grupos ou Turmas) que completa o julgamento do feito”.
Ademais, com bem colocado pela melhor doutrina, um problema colateral de entender-se que o IRDR é uma “causa” é a constitucionalidade do próprio IRDR, que passaria a ser uma causa de competência originária do tribunal de segundo grau sem previsão expressa na Constituição Federal (art. 108 da CF) nem nas Constituições Estaduais (art. 125, § 1º, da CF).
Será uma disputa épica entre o técnico e o pragmático, com provável vitória do pragmático”.[62]
Luiz Guilherme Marinoni sem tomar partido pela inconstitucionalidade ou não dos precedentes introduzidos, entende que um código de processo civil não deveria tomar partido em um assunto “tão espinhoso” como são os precedentes e sua correlação com o Direito e complementa que este assunto não deveria ser objeto de uma disposição legislativa, nas palavras do autor:
“Por fim, o legislador incorre no equívoco de adotar uma específica proposta a respeito da compreensão do conceito de direito: especificamente, vê-lo a partir do conceito de integridade, defendido por determinados setores da teoria do direito. Abordá-lo em toda a sua riqueza está certamente fora do escopo deste Curso, mas nem por isso é possível deixar de registrar que a compreensão do direito como integridade (law as integrity) pressupõe a adoção da tese da resposta certa (right answer) – que de seu turno importa na adoção de uma "peculiar epistemologia moral interpretativa"(segundo a qual, entre outras coisas, haveria sempre verdades morais objetivas na interpretação). Não nos parece oportuno, porém, que um Código de Processo Civil tome partido em um assunto tão espinhoso, porque desnecessário à sua operacionalização prática. A adoção de uma determinada proposta a respeito do irremediável problema a respeito do conceito de direito – por mais fascinante que seja o debate a seu respeito – certamente não deve ser objeto de uma disposição legislativa. ”[63]
Entretanto, num segundo momento, após a entrada em vigor da lei e a publicação das primeiras obras especializadas de processo civil já atualizadas com a lei 13.105/2015 (novo código de processo civil), verificou-se que a inconstitucionalidade alardeada pela doutrina numa análise perfunctória dos precedentes vinculantes, introduzidos por lei ordinária, acabou perdendo força e não se concretizando, talvez até como uma realização prática do exercício de vidência e da profetização de Nelson Nery Jr (citado anteriormente) de que nenhum tribunal reconheceria a citada inconstitucionalidade ou da própria antecipação da vitória do pragmatismo sobre o tecnicismo citado por Daniel Amorim Assumpção Neves.
Talvez a doutrina tenha percebido que seria difícil ou praticamente impossível o judiciário reconhecer a propalada inconstitucionalidade e acabou por, em sua maioria, concordar com as inovações propostas, virando as costas para uma possível inconstitucionalidade ou até se esforçando para tentar fundamentar e explicar, dando ares de constitucionalidade para o que é, à priori e do ponto de vista técnico, inconstitucional.
Dentro desta perspectiva, emerge como principal representante desta corrente o respeitável doutrinador de processo civil e jurista Humberto Theodoro Junior que reconhece a discussão existente sobre a possibilidade ou não de a lei ordinária instituir casos de jurisprudência com força vinculativa geral, fora das previsões legais. Ao reconhecer existência de tal discussão já antecipa e deixa claro que existe o “fumus” de uma possível inconstitucionalidade, haja vista que até mesmo os doutrinadores que a rechaçam, reconhecem esta possibilidade ou discussão.
Para rechaçar a inconstitucionalidade Humberto Theodoro Junior recorre ao fato do STF ter considerado constitucional a lei 9868/1999 que estabeleceu efeito vinculante para todas as ações de controle de constitucionalidade enquanto a Constituição apenas previa tal efeito para a ação declaratória de constitucionalidade.
Nas palavras de Humberto Theodoro Júnior:
“Muito se tem discutido sobre a possibilidade ou não de a lei ordinária instituir casos de jurisprudência de força vinculativa geral, fora das previsões constitucionais. O STF, no entanto, já considerou constitucional, por exemplo, a Lei nº 9.868/1999, que estabeleceu efeito vinculante para todas as ações de controle de constitucionalidade, quando, a seu tempo, a Constituição só previa tal eficácia para as ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Restou reconhecida pela Corte Suprema que “o fato de a Constituição prever expressamente tal efeito somente no que toca à ação declaratória não traduz, por si só, empecilho constitucional a que se reconheça também, por lei, tal resultado à ação direta”.417
Não havendo razão para afirmar a inconstitucionalidade da regra que prevê a força vinculante do resultado do incidente de resolução de demandas repetitivas…”[64]
Com a devida vênia do brilhante doutrinador entende-se aqui que uma possível inconstitucionalidade não pode ser afastada citando ou fundamentando em casos semelhantes no qual houve um desrespeito a carta magna. O Supremo Tribunal Federal ignorou e constitucionalizou situação em afronta literal ao texto constitucional, dando uma interpretação exageradamente extensiva a ponto de legislar sobre a matéria e criar hipóteses não previstas pelo legislador constituinte. Tanto é fato que da decisão do STF decorreu, na sequência, uma alteração legislativa por parte do legislador constitucional para incluir efeito vinculante nas demais ações de constitucionalidade.
Defende-se que o Supremo Tribunal Federal não pode de maneira alguma editar atos gerais e abstratos em seus acórdãos suplementando aquilo que o legislador constitucional não autorizou, forçando que o poder constituinte reformador se adeque ao entendimento do judiciário. Assim fazendo estará o judiciário a legislar e no mais alto grau hierárquico do sistema normativo, literalmente editando normas constitucionais a serem seguidas, quando sua função precípua é tão somente guardar a Constituição da República, no máximo interpretando mandamentos constitucionais, princípios e regras previamente expostos e previstos pelo constituinte.
Outro representante desta segunda corrente, e exemplo emblemático desta visão contraditória da doutrina, que tenta justificar e fundamentar a constitucionalidade dos citados institutos introduzidos pela lei 13.105/2015 seria o próprio Nelson Nery Jr.
Sim, o mesmo citado e relatado anteriormente e que num primeiro momento acusou a inconstitucionalidade das regras vinculantes, e em sua obra publicada posteriormente, rendeu-se a justificar a constitucionalidade da reclamação, que peço vênia para chamar aqui de reclamação infraconstitucional por não ter previsão na Constituição Federal, nas seguintes palavras:
“E, como visto no comentário anterior, o novo CPC ampliou as hipóteses de cabimento da reclamação para garantir a observância de tese firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em incidente de assunção de competência. Estaria o CPC criando regras não previstas na CF, regras essas que seriam inconstitucionais relativamente ao processamento da reclamação no STF? Acreditamos que não, pois, no caso específico do STF, as novas hipóteses acabam sendo um desdobramento da garantia da autoridade das decisões daquele Tribunal. Afinal, as decisões desse Tribunal vinculam todos os demais Tribunais e Juízes do País (v. CPC 927). Além disso, a previsão constitucional da reclamação faz vezes de indicação da via de impugnação adequada, não impedindo que o instituto, propriamente dito, seja aplicável a outras situações e tribunais”.[65]
Observe-se que, num primeiro momento, Nelson Nery Jr atacava diretamente a jurisprudência vinculante criada no novo Código de Processo Civil como inconstitucional e neste ponto defende especificamente a constitucionalidade da reclamação para garantir a observância da tese firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas e assunção de competência.
Observação à parte, entende-se aqui que não há como cindir um instituto do outro, ou seja, se considerada constitucional a reclamação para garantir a tese firmada nos citados incidentes, indiretamente se estaria defendendo a constitucionalidade da jurisprudência vinculante, uma vez que a única razão de ser da reclamação infraconstitucional, introduzida pela lei 13.105/2015 – o novo código de processo civil – seria forçar o cumprimento da jurisprudência vinculante criada por lei infraconstitucional.
Por derradeiro, e para encerrar o presente trabalho, considera-se oportuno citar as consequências indesejáveis que se estaria trazendo para dentro do ordenamento jurídico com a adoção dos precedentes vinculantes criados pela lei 13.105/2015 – Novo Código de Processo Civil, haja vista que as consequências benéficas da adoção dos mesmos precedentes já foram amplamente debatidas, quais sejam o fortalecimento do judiciário e dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da isonomia.
8. ANÁLISE CRÍTICA DOS PRECEDENTES DA LEI 13.105/2015
Dois doutrinadores se diferenciam na análise crítica dos efeitos trazidos pela doutrina dos precedentes introduzidos pelo novo código de processo civil, são eles Luiz Guilherme Marinoni e Alexandre Câmara.
Luiz Guilherme Marinoni[66] cita o artigo 926[67] do novo código de processo civil e deixa claro que, embora inequivocamente bem-intencionado o legislador, na visão do jurista o dispositivo padece de cinco problemas teóricos.
“1) Fala em tribunais indistintamente, sem atentar que existe uma divisão de trabalho bastante clara entre as Cortes de Justiça e as Cortes Supremas no ordenamento jurídico brasileiro.
2) Institui um dever de uniformização, nada obstante seja conhecida a ligação do termo a uma função de simples controle que era exercida pelas cortes de vértice em um determinado momento da história.
3) Alude genericamente à jurisprudência, sem se preocupar com eventuais distinções que podem existir entre os termos jurisprudência, súmula e precedentes, empregados igualmente em seus parágrafos.
4) Refere que os tribunais têm o dever de manter a jurisprudência estável, quando na verdade esse é apenas um dos seus deveres no que tange à necessidade de prover segurança jurídica.
5) Endossa uma proposta teórica bastante específica a respeito do conceito de direito ao determinar que a jurisprudência deva ser íntegra.”
A seguir será abordado os problemas citados em 1, 2 e 3 os quais estão mais ligados ao objetivo deste artigo.
Para Marinoni, a fim de trabalhar bem um sistema de precedentes é imprescindível a distinção no seio da organização judiciária de cortes voltadas à justiça do caso concreto cuja função é controlar a interpretação dos fatos da causa e do direito aplicável ao caso concreto e fomentar o debate a respeito das possíveis soluções interpretativas por meio da jurisprudência, das cortes voltadas à unidade do direito (as chamadas Cortes Supremas – Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) cuja função é interpretar o direito a partir do caso concreto e dar a última palavra a respeito de como deve ser entendido o direito constitucional e o direito federal em nosso país.
Bem explicado nas palavras do brilhante doutrinador a questão é assim exposta:
“Se é certo que as Cortes Supremas têm o dever de dar unidade ao direito mediante os seus precedentes e de torná-los pendores de segurança em nossa ordem jurídica, certamente não se passa exatamente o mesmo com as Cortes de Justiça. É claro que é desejável que a jurisprudência dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais seja uniforme e segura, assim como é evidente que essas Cortes têm – a partir da existência de precedentes sobre o caso que devem julgar – o dever de aplicá-los sem quebra de igualdade. No entanto, a função dessas cortes está ligada justamente à exploração dos possíveis significados dos textos jurídicos a partir do controle da justiça do caso concreto (a interpretação do direito é apenas um meio para chegar-se ao controle da justiça do caso). E diferente do que ocorre com as Cortes Supremas, em que o caso concreto é apenas um meio a partir do qual se parte para chegar-se à interpretação do direito. Enquanto inexiste precedente da Corte Suprema encarregada de formá-lo, o desacordo interpretativo é em grande medida inevitável, dado o caráter equívoco da linguagem em que vazados os textos legislados. ”[68]
Isto posto, o autor chega à conclusão que o artigo 926 do novo código de processo civil deveria ter particularizado que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm o dever de dar unidade ao direito. E uma vez definido e delineado os precedentes constitucionais e precedentes federais, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça teriam o dever de controlar a uniforme aplicação destes precedentes, isso porque as Cortes de Justiça têm o dever de controlar a uniforme aplicação desses precedentes. Marinoni assim conclui:
“Cortes de Justiça – e os juízes de primeiro grau – são responsáveis por fomentar o debate a respeito de quais são as melhores opções interpretativas para os desacordos inerentes à interpretação do direito: tolher esse debate, não deixando espaços para que vingue, serve apenas para obtenção de uma solução para os problemas jurídicos – não necessariamente para obtenção da solução melhor ou mais amadurecida pelo diálogo e pela experiência judiciária. Em outras palavras: não necessariamente uma solução amadurecida democraticamente pelo diálogo institucional no e do poder judiciário. ”[69]
Distinguindo assim o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça com o papel de dar unidade ao direito enquanto as Cortes de Justiça teriam o papel de uniformizar.
“Daí que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça – como Cortes Supremas que são – devem dar unidade ao direito e não propriamente uniformizá-lo. Devem dar unidade ao direito a partir da solução de casos que sirvam como precedentes para guiar a interpretação futura do direito pelos demais juízes que compõem o sistema encarregado de distribuir justiça a fim de evitar a dispersão do sistema jurídico. Nessa linha, uniformizar é tarefa das Cortes de Justiça, que têm o dever de controlar a justiça da decisão de todos os casos a elas dirigidos – o que obviamente inclui o dever de aplicação isonômica do direito. ”[70]
Do exposto, fica patente que o artigo 926 incorre em equívoco ao distribuir a função de uniformizar indistintamente a todos os tribunais, inclusive à Suprema Corte e Superior Tribunal de Justiça, dispondo sobre matéria de importância ímpar dentro do ordenamento que deveria ser materialmente constitucional, invade assim seara alheia, e legisla sobre assunto chamado por Marinoni de tal monta “espinhoso” que não deveria ser feito em legislação ordinária processual.
Por fim, o artigo 926 também emprega o termo jurisprudência sem distinguir semanticamente súmula e precedentes. Para Marinoni, trata-se de um equívoco do legislador ordinário pois “jurisprudência, precedentes e súmulas são conceitos que não podem ser confundidos – ainda mais porque o legislador procurou ressignificar os conceitos de jurisprudência e de súmulas e introduzir o de precedentes no novo Código”[71].
Luiz Guilherme Marinoni explica:
“Apenas o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça formam precedentes. Os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça dão lugar à jurisprudência. As súmulas podem colaborar tanto na interpretação como na aplicação do direito para as Cortes Supremas e para as Cortes de Justiça – e, portanto, podem emanar de quaisquer dessas Cortes. ”[72]
Assim, Luiz Guilherme Marinoni explica que a jurisprudência é a atividade de interpretação da lei desempenhada pelas cortes para solução de casos, cuja múltipla reiteração gera a uniformidade capaz de servir de parâmetro de controle, não gozando de autoridade formalmente vinculante. Enquanto súmulas constituem um “método de trabalho”, um meio para “ordenar e facilitar a tarifa judicante” de controle da interpretação e aplicação do direito no caso concreto, não gozando igualmente de força vinculante.
Partindo desta premissa, Marinoni aponta que o novo código claramente outorga outro sentido ao termo jurisprudência e às súmulas, rompendo com a caracterização tradicional:
“O novo Código claramente outorga outro sentido ao termo jurisprudência – ao menos para determinados casos. Para essas situações, o novo Código exige a sua ressigni1icação: isso porque, ao emprestar força vinculante aos julgamentos de casos repetitivos e àqueles tomado em incidente de assunção de competência (art. 927, HI) no âmbito das Cortes de Justiça e dispensar a múltipla reiteração de julgamentos como requisito para sua configuração, na medida em que basta um único julgamento mediante incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência, o direito brasileiro rompe em grande parte com a caracterização tradicional da jurisprudência.
O mesmo ocorre com as súmulas. Quando as súmulas eram vistas apenas como um método de trabalho capaz de ordenar e facilitar a tarefa dos juízes – note-se que aí os destinatários das súmulas eram apenas e tão-somente os próprios órgãos judiciais que compunham os tribunais que as emanavam – bastava redigi-las de fôrma abstrata, sem qualquer alusão aos casos concretos aos quais ligadas. Ao reconhecer as súmulas como guias para a interpretação do direito para o sistema de administração da Justiça Civil como um todo e para a sociedade civil em geral (art. 927, H e IV), previu-se o dever de identificação e de congruência das súmulas com as circunstâncias fáticas dos casos que motivaram suas criações (art. 926, §2). ”[73]
Além de ressignificar jurisprudência e súmulas, o novo código introduz o conceito de precedentes. E Luiz Guilherme Marinoni explica que os precedentes não são equivalentes às decisões judiciais, seriam razões generalizáveis que podem ser identificadas a partir de decisões judiciais, ou seja, o precedente é formado a partir da decisão judicial, tendo como matéria prima a decisão judicial. São “razões generalizáveis que podem ser extraídas da justificação das decisões”[74] e “emanam exclusivamente das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios – isto é, vinculantes. Do contrário poderiam ser confundidos com simples exemplos”[75].
A crítica de Luiz Guilherme Marinoni ao novo código de processo civil dentro deste panorama está no fato da citada legislação considerar que os precedentes são oriundos apenas de súmulas (art. 927, II e IV), recursos repetitivos, assunção de competência (art. 927, III) e orientações de plenário ou órgão especial (art. 927, I e V). E explica na sequência que os precedentes não são exclusivamente formais ou quantitativos – inclusive muitas vezes sequer são quantitativos. São também materiais e qualitativos, de forma que se um julgamento (de caso repetitivos, assunção de competência ou súmulas, formas indicadas pelo novo código) não contenha razões determinantes e suficientes claramente identificáveis, não formará precedente, nada obstante oriundo da forma indicada pelo novo código.
Conclui Marinoni que “o art. 926 e ss. do novo código de processo civil fornecem apenas pistas – algumas delas falsas – a respeito de como os precedentes devem ser tratados na ordem jurídica brasileira”[76].
Como citado no início deste capítulo outro respeitável doutrinador que faz uma crítica pontual a forma como os precedentes foram tratados no novo código de processo civil é Alexandre Câmara.
A crítica de Alexandre Câmara, no entanto, é mais pontual e amena, reside nos possíveis efeitos da adoção dos precedentes, ao que ele chama de um possível “engessamento” do sistema ao tirar a liberdade dos juízes monocráticos em decidir, uma vez que deverão estes necessariamente acatar e respeitar os precedentes vinculantes.
Nas palavras de Alexandre Câmara a questão é assim exposta:
“A pior das alterações, porém, é que, em razão das modificações operadas no texto do Código, fica muito difícil, quase impossível, que uma matéria sobre a qual o STJ ou o STF já tenha estabelecido um padrão decisório dotado de eficácia vinculante volte àqueles tribunais. Pois isto pode provocar um “engessamento” do Direito brasileiro que seria absolutamente inaceitável. Felizmente, a “vontade do legislador” não é elemento relevante na interpretação da lei, e é perfeitamente possível que a doutrina indique caminhos para contornar os obstáculos criados pela lei de reforma do novo CPC. Neste livro será apresentada uma proposta – respeitados, evidentemente, os limites e objetivos deste trabalho – que, espera-se, poderá ajudar a evitar que se transforme o ordenamento jurídico brasileiro em um sistema “engessado”, infenso à evolução, que faria dele o pior ordenamento jurídico conhecido. ”[77]
A solução dada por Alexandre Câmara para resolver este possível efeito de engessamento do sistema seria o reconhecimento de distinções e superações, que no inglês seria o equivalente ao “distinguishing e “overruling”.
A distinção asseguraria a aplicação dos precedentes apenas a casos em que se repitam as circunstâncias que justificaram a sua criação[78] e a superação evitaria o engessamento do Direito ao reconhecer que os precedentes são criados a partir de certas circunstâncias fáticas e jurídicas que precisam permanecer presentes para que possam continuar a ser aplicados.
Assim, para o doutrinador, “havendo justificados motivos, o precedente pode – e deve – ser superado[79], modificando-se a tese nele firmada, “de modo que ele perderá sua eficácia vinculante para casos futuros”[80].
9. CONCLUSÃO
A Constituição deve ser entendida como norma dotada de superioridade hierárquica e fundamento de validade do restante do ordenamento jurídico, todas as demais normas infraconstitucionais pré-existentes ou criadas após a promulgação de uma Constituição devem com ela ser compatíveis, trata-se do princípio da supremacia da Constituição, em parte extraída da acepção jurídica de Constituição introduzida por Hans Kelsen da qual decorre a consequente ideia de hierarquia das normas.
A reforma do judiciário levada a efeito pela emenda constitucional nº 45/2004 veio no sentido de resolver problemas do poder judiciário demonstrando uma preocupação maior do legislador constituinte reformador em atualizar o poder judiciário frente à crescente demanda de processos, à morosidade da justiça e aos novos desafios enfrentados.
Dentro deste panorama, a referida emenda alçou à hierarquia constitucional normas que asseguram a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (Art. 5º LXXVIII da Constituição Federal), bem como introduziu importantes mecanismos para reduzir o número de processos em trâmite, como as súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal, a reclamação constitucional para a preservação da competência ou a garantia da autoridade das decisões do STF e a repercussão geral, um verdadeiro filtro de entrada no Supremo Tribunal Federal para o conhecimento do recurso extraordinário.
No entanto, transcorridos doze anos da promulgação da emenda 45/2004, verifica-se que esta não foi suficiente para equalizar a demanda/resposta do judiciário, de modo que os processos continuam a se acumular frente a um número exíguo de servidores que não conseguem dar a resposta célere e adequada que preceitua nossa Constituição, a ponto da Ministra Carmem Lúcia, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, afirmar sobre o poder judiciário em seu discurso de posse que “não basta mais uma vez reformá-lo: faz-se urgente transformá-lo”.
Neste panorama, combinado a um poder judiciário já enfraquecido frente ao número crescente de processos, um ativismo judicial cada vez mais arraigado e um número insuficiente de servidores, entra em vigor o novo código de processo civil, lei 13.105/2015 ou simplesmente chamado de Código de Processo Civil de 2015. Este código reafirmando sua fidelidade às normas constitucionais, introduz o conceito de precedentes e cria os institutos do incidente de resolução de demandas repetitivas, incidente de assunção de competência e reclamação.
Os precedentes introduzidos pela legislação processual civil representam uma nítida interconexão entre os modelos civil law e common law.
À priori, como demonstrado no decorrer deste estudo, não há problema na adoção do precedente judicial vinculante nos países que adotam o sistema da civil law, embora devam ser adotados de forma mais formalizada, normatizada e rígida, com normas previamente elaboradas delimitando e normatizando sua aplicação.
A constitucionalidade da lei ordinária que introduziu os precedentes vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro foi a discussão que se expôs no decorrer deste trabalho.
Verificou-se que num primeiro momento a doutrina reagiu explosivamente, defendendo que as regras de vinculação não poderiam ser introduzidas por legislação infraconstitucional, mas necessariamente por emenda à Constituição, convergiram neste sentido as opiniões de Pedro Lenza, Nelson Nery Jr e José Maria Teshneir.
No entanto, com o passar do tempo e à medida que eram publicadas respeitadas obras tratando sobre o assunto, já atualizadas de acordo com as disposições do novo código, verificou-se um cuidado maior por parte da doutrina em alegar a inconstitucionalidade dos precedentes vinculantes da lei 13.105/2015.
O maior nome dentre os defensores da constitucionalidade dos precedentes vinculantes fica com Humberto Theodoro Junior, que embora reconhecendo a existência de um embate na doutrina sobre o assunto, defende a constitucionalidade. O citado autor fundamenta sua posição citando caso recente em que o Supremo Tribunal Federal estabeleceu efeito vinculante para todas as ações de controle de constitucionalidade, quando a Constituição somente previa tal eficácia para as ações declaratórias de constitucionalidade, oportunidade em que a doutrina majoritária entendeu pela inconstitucionalidade, mas não conseguiu fazer com que a Suprema Corte mudasse a decisão.
Com a devida vênia do leitor mais atento, transcreve-se aqui nosso entendimento já citado no decorrer trabalho, de que uma possível inconstitucionalidade não pode ser afastada citando ou fundamentando em casos semelhantes no qual também houve um desrespeito à carta magna e o Supremo Tribunal Federal ignorou e constitucionalizou a situação. Pondera-se aqui que da decisão do STF mencionada por Humberto Theodoro Junior decorreu, na sequência, uma alteração legislativa por parte do legislador constitucional para incluir efeito vinculante nas demais ações de constitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal não pode editar atos gerais e abstratos em seus acórdãos suplementando aquilo que o legislador constitucional não autorizou, forçando que o poder constituinte reformador se adeque ao entendimento do judiciário. Assim fazendo estará o judiciário a legislar e no mais alto grau hierárquico do sistema normativo, literalmente editando normas constitucionais a serem seguidas, quando sua função precípua é tão somente guardar a Constituição da República, no máximo interpretando mandamentos constitucionais, princípios e regras previamente expostos e previstos pelo constituinte.
No transcorrer do estudo foi chamada atenção do leitor para duas posições que talvez expliquem o futuro e o caminho que se abre. A primeira delas uma verdadeira profetização de Nelson Nery Jr de que nenhum tribunal reconhecerá a citada inconstitucionalidade, e a segunda uma antecipação da vitória do pragmatismo sobre o tecnicismo citado por Daniel Amorim Assumpção Neves.
De fato, com base no estudo da melhor doutrina é este o caminho que se vislumbra, uma inegável inconstitucionalidade técnica e latente que salta aos olhos de qualquer constitucionalista, mas que jamais será reconhecida pelos tribunais por impossibilidade do judiciário retroceder e operacionalizar o efeito decorrente deste reconhecimento, o que só faria aumentar o descrédito, número de processos e ineficiência do poder judiciário.
No decorrer do estudo e das explanações foram propositalmente deixadas indagações para que o leitor refletisse, perguntas estas que se pede vênia para transcrever e deixá-las como sucedâneo de uma linha conclusiva geral imposta por este autor:
Até que ponto seria conveniente ao poder judiciário se convencer da constitucionalidade das mudanças introduzidas, uma vez que ele próprio é o maior beneficiário?
Seria o poder judiciário capaz de analisar esta questão de constitucionalidade com isenção sem se preocupar com os efeitos advindos de uma possível decisão de inconstitucionalidade?
São indagações que, ao meu ver, merecem ser enfrentadas pela comunidade jurídica no futuro.
Por outro lado, não ficam aqui esquecidas as soluções entregues pela lei 13.105/2015 – o novo código civil – para valorizar o poder judiciário, tentar fornecer ao jurisdicionado uma resposta mais célere e efetiva, com adesão irrestrita e taxativa aos princípios constitucionais, principalmente à segurança jurídica e isonomia, através da criação de um sistema de valorização de precedentes.
Inegavelmente, medidas dignas dos mais sinceros aplausos e elogios, mas que certamente perdem um pouco do seu brilho diante da inconstitucionalidade técnica aqui levantada e discutida.
Como Luiz Guilherme Marinoni defende em opinião exposta no decorrer deste trabalho e com a qual aqui se concorda sem restrições e ressalvas, é a de que o código de processo civil, com natureza de legislação ordinária, não deveria adentrar em assunto tão “espinhoso” ao definir, conceituar e estabelecer um sistema de precedentes vinculantes para todo o ordenamento jurídico.
Em suma, uma fumaça de inconstitucionalidade paira sobre o ordenamento aguçando muitos dos melhores doutrinadores a escrever ou citar o assunto em suas recentes obras, artigos e discussões.
No entanto, ao que tudo indica, para resguardar o poder judiciário de um maior descrédito e pelo bem maior da celeridade, segurança jurídica e bem-estar social, vislumbra-se que a matéria não chegará à Corte Suprema, bem como se, um dia o Supremo Tribunal Federal enfrentar a questão, dificilmente declarará inconstitucional institutos que estejam internalizados e em pleno funcionamento e que, diuturnamente, ganham menos críticas e mais aceitação da doutrina especializada.
Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná- PUC-PR (2008); pós-graduação em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes UCAM-RJ (2010) e em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Damásio de Jesus (2017)
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